quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3417: Em bom português nos entendemos (4): Ele há histórias e estórias... (Norberto Gomes da Costa / Luís Graça)

Há tempos (21 de Outubro de 2008), o camarada António Varela que foi Fur Mil Sapador na CCS/BART 2865, Catió, 1969/70, e já aqui nos contou a estória do seu baptismo de fogo (agora, deve-se escrever batismo, sem p), mandou-nos o seguinte mail (deve-se dizer: mensagem de correio electrónico):
Caro Luis, Carlos e Virgínio: Em anexo segue um artigo do Correio da Manhã de Dez/2006 sobre "Pulo genético une Portugal á Guiné Bissau", que eu penso ter interesse para o Blogue.
Um abraço. António Varela

Respondi-lhe no dia seguinte, nos seguintes termos:
António: Obrigado pela tua atenção. Claro que a divulgação da investigação neste domínio (biologia das populações) nos interessa. Mas é preciso ter cuidado com os nossos jornais... Aqui o jornalista queria dizer "pool" genético... Pool=base, e não pulo=salto... Este erro (grosseiro) ficou "gravado" na Net, replicado, reproduzido noutros jornais... Um grande abraço. Luís
Reproduz-se acima o infeliz título de caixa alta... (Na foto, o então investigador da Universidade da Madeira, Doutor Hélder Spínola, que não teve nada a ver com o erro grosseiro do jornalista).

Foto: Correio da Manhã, 30 de Dezembro de 2006. (Cortesia do António Varela).


1. Mensagem de Norberto Gomes da Costa, com data de 22 de Outubro último:


Assunto - A malfadada 'estória'

Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e V. Briote,

Leio sempre com muito interesse todas as mensagens que os amigos tertulianos enviam para o nosso blogue. Pode dizer-se que a grande maioria, se não a quase totalidade dos textos tem interesse; estão até, relativamente, bem escritos. Porém, é raro haver um que não contenha a malfadada palavra "estória".

Confesso que "encanito" deveras com essa pseudo-palavra, que não faz parte do léxico português de Portugal, que não consta de nenhum dicionário sério da língua portuguesa, que, segundo penso, só é usada pelos nossos amigos brasileiros e para se referirem aquelas histórias que as avós contam (ou contavam) aos seus netos, à lareira nas noites de Inverno. Ou seja, histórias que nunca existiram, sendo, portanto, inventadas.

Ora, as nossas histórias em terras da Guiné são bem reais, aconteceram e algumas delas bastante dramáticas, como sabemos. Assim sendo, merecem ser "histórias" e não essa "coisa" que não é nada e só, francamente, nos diminui.

Meus amigos, eu tenho hesitado em desabafar do modo que estou a fazer, até porque quem sou eu para dar lições a quem quer que seja. Mas custa-me ver os gloriosos e, por vezes, heróicos acontecimentos que, de uma maneira ou de outra, todos vivemos nas matas e bolanhas da Guiné, alcunhados de "estórias". Gostaria imenso que esse vocábulo fosse banido dos escritos da Tabanca Grande.

Não queria terminar sem antes pedir desculpa pela minha intervenção, podendo
parecer que estou a tentar ser uma espécie de provedor da língua de Camões, o que, de modo algum, corresponde à realidade. Mas, este impulso "anti-estorial" é mais forte que eu.

Um grande abraço a todos,
Norberto Gomes da Costa


2. Fica também aqui a mensagem de António Fernando da Fonseca Moreira , com data de 6 de Março de 2008, a propósito do mesmo tópico (estória/história):

Assunto - Dúvida ortográfica

Exmo. Senhor Luís Graça

Como também fui obrigado a ir para a guerra de Angola, uns amigos meus, que estiveram na Guiné, indicaram-me o vosso blogue para ir visitar.

Acabei de o fazer neste momento e fiquei admirado por aparecer a palavra «estória» que, por não conhecer, fui ver a vários dicionários e não a encontrei.

Por esta razão e apelando à sua boa vontade venho pedir-lhe o especial favor de me dizer em que fonte de saber poderei encontrá-la para assim enriquecer o meu léxico.

Sem mais, fazendo votos de sucesso para o blogue e ficando a aguardar a sua prezada informação, peço aceite os meus melhores cumprimentos.

António Fernando da Fonseca Moreira
Alameda Eça de Queirós, 36-1º centro
4410-282 Canelas VNG

3. Comentário de L. G.:

Meus caros Norberto Gomes e António Fernando, combatentes da mesma guerra (um na Guiné, outro em Angola):

Mais de meio ano para responder à pergunta do António, convenhamos que é muito tempo. Infelizmente não somos editores a tempo inteiro, nem eu nem o Carlos Vinhal nem o Virgínio Briote, meus queridos co-editores.

Como devem imaginar, é-nos humanentemente impossível responder a toda a correspondência que nos chega. Usamos, por isso, critérios de oportunidade e interesse editoriais, priveligiando as coisas e as loisas da Guiné… Mas já que ambos levantam a questão da estória 'versus’ história, vou dar-vos a minha opinião…

(i) Uma coisa é uma estória (com elementos ficcionais ou não, com alguma efabulação, e preocupações literárias; escritores lusófonos gostam do termo e cultivam-no…);

(ii) outra coisa é a história, enquanto disciplina científica, ou a nossa história de vida (biografia), mais factual, mais memorialística… Ou a ainda história da nossa unidade, mais documental, mais técnica, em linguagem mais neutral…

(iii) Temos, no blogue, várias séries que operam esta distinção: estórias (ficção, inspirada na realidade vivida, texto mais livre, em que o rigor factual não é tão importante, em que há uma certa reconstrução do real, do vivido…) e história (narrativa, depoimento, relato mais documentado, mais factual, mais detalhado, com mais precisão, com números, datas, lugares…); por exemplo, "estórias cabralianas" e "história de vida"... mas também "estórias de Guileje"!

(iv) O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (em 6 volumes, que é um dos meus livros de... cabeceira, e que é, em minha opinião, uma verdadeira obra-prima da lexicografia da nossa língua...) diz o seguinte a respeito do termo estória:

Vocábulo que remonta ao Séc. XIII. O mesmo que História. No Brasil, a partir de 1912, passa a designar 'narrativa de cunho popular e tradicional; história'. Etimologicamente, vem do inglês story (Séc. XIII-XIV): 'narrativa em prosa ou verso, fictícia ou não, com o objectivo de divertir e/ou instruir o ouvinte ou o leitor'. Story, por sua vez, vem do anglo-francês estorie, do francês antigo estoire, e este do latim historia,ae.

(v) O termo história é polissémico, tendo vários sentidos ou sinónimos: (a) biografia, história de vida; (b) confusão, trapalhada, problema, embrulhada...; (c) enredo, intriga, trama...; (d) evolução, desenvolvimento (por ex., história da guerra, da literatura da guerra colonial); (e) melindre, escrúpulo, hesitação..; (f) mentira, conversa, fábula, invenção... (Vd. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa).

(vi) Eu sei que os historiadores não gostam da palavra estória, optando por lembrar a distinção que os ingleses fazem entre history e story... Esta última remeteria mais para a ideia de conto, mito, narrativa ficcional... enquanto history é a narrativa estrutura, sistemática, objectiva, dos acontecimentos, dos factos, dos feitos, etc. de um povo... Em português, seriam apenas grafias diferente de um mesmo vocábulo. A forma estória não se justificaria...

(vii) Também sei que os especialistas do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa detestam o vocábulo estória... que não seria mais do que uma grafia, antiga, medieval de história. O nosso grande Camões não tem pejo em falar de histórias a respeito das aventuras (reais ou imaginárias) dos portugueses... (Devo dizer que tenho muito apreço pelo trabalho feito pela equipa do Ciberdúvidas em defesa da língua portuguesa, e é também um dos sítios a que recorro quando tenho dúvidas, e se tenho muitas!...).

(viii) A favor do uso do vocábulo estória/estórias, poderíamos, todavia, usar um outro argumento de autoridade (embora eu não goste muito de invocar e sobretudo de usar deste tipo de argumento): grandes escritores da língua portuguesa como o angolano Luandino Vieira (n. 1935, Lagoa do Furadouro, Portugal; Prémio Camões 2006) usam (e popularizaram) o termo estória… ou o moçambicano Mia Couto (n.1955, filho de colonos portugueses, e que escreveu, por exemplo, em 1994, as Estórias Abensonhadas)

Luandino Vieira é autor, por exemplo, de Velhas Estórias (Lisboa, Caminho, 2006; Col ‘Outras Margens’, 51), um dos seus livros recentes, com o termo “estórias” no próprio título…

Mas o título mais conhecido e que o consagrou foi Luaanda – Estórias, um livro de contos a que foi atribuído, em 1965, pela júri da Sociedade Portuguesa de Escritores, o Grande Prémio da Novelística… Acontece que o então jovem escritor, ‘contador de estórias’, militante do MPLA, José Luandino Vieira, estava preso no Tarrafal a cumprir uma pena de prisão de 14 anos por ‘práticas terroristas’ (sic)... Como classificar estes três estórias que foram escritas no pavilhão prisional da PIDE em São Paulo, Luanda, no ano de 1963, quando o escritor ainda não tinha sido transferido para o Tarrafal ? Não são seguramente histórias da carochinha... O Luuandino Vieira ousou na altura violar os códigos linguísticos da sua língua... Hoje é considerado um inovador...

O livro foi publicado pelas Edições 70 em 1972, sendo a sua 2ª edição apreendida pela PIDE/DGS e a Editora multada em 30 contos, por despacho assinado pelo director-geral da Informação da época. Grandes escritores portugueses como Ferreira de Castro e Jorge de Sena vieram em defesa da obra e do autor: este último salientou, por exemplo, o seu papel primordial no “desenvolvimento da literatura angolana de expressão portuguesa»…

(viii) Confesso que eu também não tenho (ou não teria) pejo em usar histórias em vez de estórias... Mas não me apetece banir nem menos proibir o seu uso, no nosso blogue... Além disso, seria uma maçada rever todos os postes em que estória deveria ser substituída por história... Mais importante ainda: não sou (nem me sinto) dono da língua portuguesa...

(ix) Mas aqui fica o conselho, aviso ou advertência do nosso camarada Norberto Gomes da Costa: "as nossas histórias em terras da Guiné são bem reais, aconteceram e algumas delas bastante dramáticas, como sabemos" , [pelo que] merecem ser 'histórias' e não essa 'coisa' que não é nada e só, francamente, nos diminui"... (Estou-lhe grato por levantar esta questão, e de frontal e saudavelmente discordar dos editores - pelo menos de um deles, o L.G. - que toleram ou até consagram o uso do vocábulo estória. (O Carlos Vinhal, esse, já manifestou publicamente as suas reservas).

(x) No entanto, e para finalizar, e antes de voltar a rever este pequeno pomo de discórdia, gostava de ouvir a opinião (sábia, serena...) de alguns membros da nossa Tabanca Grande, menos ortodoxos ou mais desalinhados , que escrevem aqui no blogue: o Jorge Cabral, por exemplo, que já escreveu 40 saborosíssimas, fantásticas, picarescas, divertidas, grotescas, absurdas... estórias cabralianas; ou os nossos amigos guineenses, formados por universidades portugueses, e com excelente domínio da escrita, o Leopoldo Amado e o Pepito, por exemplo. Ao Jorge Cabral aproveito, inclusive, a oportunidade para lhe recomendar a leitura do recorte de jornal acima citado: pode ser que o "pulo genético" (sic)... que une portugueses e guineenses lhe inspire mais uma desconcertante, desalinhada, heterodoxa, marginal, absurda, quase porno-humorística e quiçá inconveniente, politicamente incorreta, estória cabraliana...

Guiné 63/74 - P3416: Album fotográfico de Santos Oliveira (2): Tite, Tempestade tropical

1. Dando continuidade ao Álbum fotográfico do nosso camarada Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf do Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66, apresentamos estas fotos com o título Tempestade tropical, tiradas em Tite, numa noite do mês de Junho do longínquo ano de 1965.

Todos nos lembramos de quanto eram bonitas e medonhas estas tempestades acompanhadas de violentas trovoadas. Quantas vezes os relâmapagos foram a única luz que tínhamos para nos ajudar nas progressões nocturnas. As fotos não precisam de legendas, mas os nossos camaradas podem comentar, relatando as suas impressões e emoções ao passarem por situações parecidas. CV










Fotos: © Santos Oliveira (2008). Direitos reservados


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Nota de CV

Vd. primeiro poste da série de 15 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3318: Album fotográfico de Santos Oliveira (1): Tite

Guiné 63/74 - P3415: Histórias engraçadas (António Matos) (2): Bifes, ratos, Irish Coffee e até o IN em dia de anos (António Matos)

Aquele aniversário > 10 de Novembro 1970


Faltam 4 dias... para comemorar o meu 60º aniversário.



Mas naquele dia alguns camaradas de armas que comigo partilhavam aquele SPA em Augusto Barros, recordarão também outras peripécias dignas de uma taça de champagne bem levantada numa verdadeira exortação à vida!

As histórias da guerra não podem nem devem ser só com referências a um qualquer Requiem ainda que a memória dos que já partiram deva ser respeitada e recordada para efeitos de memória futura.

A história passa por todos nós e este blogue, quero crer, terá uma divulgação cada vez maior, e extravasará as fronteiras da comunidade dos ex-combatentes da Guiné e tornar-se-à um documento vivo e na 1ª pessoa para um dia poder pertencer ao acervo, quiçá, duma Torre do Tombo...

Mas voltemos a recuar 38 anos...

A manhã despertara com um céu azul e, às primeiras horas, um grupo de indígenas da tabanca dirigiram-se ao destacamento para oferecer ao alferes uma peça de carne digna de referência.


Augusto Barros, com Bula a Norte. Depois de passar João Landim, era sempre a andar até Bissau e à civilização, electricidade, o frango assado no Solar dos 10, o ar condicionado, enfim outras guerras...

O desenrolar do dia viria a demonstrar, porém, que a amabilidade escondia uma acção muito pouco prazenteira e que um menisco ainda hoje a incomodar, é o sinal mais evidente.

A rotina e contra-rotina diária a que eu me obrigava por motivos de segurança, não deixou de ser seguida nesse dia mas, entretanto, ia-se preparando a festa. O jantar não seria arroz com arroz mas sim bifes! Suculentos!

Uma terrina cheia foi alocada ao buraco cognominado de messe onde havia uma mesa rectangular com bancos corridos e onde a terra lateral funcionava de guarda-louça.

À noite era reconvertido em casino e lugar de tertúlia onde as entradas, não sendo reservadas, eram, contudo seleccionadas dia-a-dia.

Naquela noite, entre outros, o Asdrúbal era visita da messe.

Ao fim da tarde esperava-se a chegada do capitão que se deslocara a Bissau afim de trazer vitualhas a condizer com o dia. Chegou, enfim, e logo deu a sua lição de homem sabedor destas coisas.Comprou natas e 1/2 dúzia de copos de cristal e café de 1ª categoria....

Entretanto os bifes começaram a cheirar e a tal terrina foi posta no tal guarda-louça...

Um visitante inesperado, ou nem tanto

Por verdadeiro acaso, tive necessidade de entrar na messe e eis senão quando deparo com um cenário horrendo. Um rato de dimensões absolutamente assustadoras passeava-se na borda da terrina e ia lambericando a bifalhada.... C'os diabos! Que fazer?

Tive alguma contenção premeditada limitando-me a enxutar o paquiderme... A ideia era não fazer alarido do que vira sob pena de estragar o jantar a toda a malta.

Pela minha parte, restava-me contentar com o arroz na esperança de que esse não tivesse sido detectado por tamanho terrorista!

Como verdadeiro jantar estival numa esplêndida varanda dum qualquer hotel 5 estrelas, os convidados começaram a chegar...

Recordo o Asdrúbal num sumptuoso traje de calção curto e botas de lona sem atacadores, camisa aberta e com grandes manchas de suor debaixo dos braços, fralda meio saída, mas com uma extraordinária boa disposição e uma alma cheia de bom homem. Depois chega o capitão...

Entrámos no salão...Dei uma olhadela de soslaio à terrina dos bifes e nada fazia supor o espectáculo de há uns momentos atrás.

O manjar foi digno de reis e até fiquei na dúvida se uma bela lambuzadela de rato não delicia ainda mais um bom e suculento bife...

Passámos aos finalmente. O whisky, como todos nos recordámos, existia em quantidades suficientes e a preços de LIDL, naquelas paragens. E o capitão explicou...Íamos beber Irish Coffee!

Claro que Irish Coffee, à semelhança de champagne, não podia ser bebido em taças de alumínio! A mistura em partes iguais de café e bom whisky era fundamental.

A bebida tinha que ser coada pelas natas que aderiam às bordas do copo de cristal. O protocolo naquele ambiente não primava pela cerimónia, razão pela qual o Asdrúbal (e não só) bebeu o 2º Irish Coffee imediatamente a seguir ao 1º, altura em que o capitão informa que aquilo era uma bomba de efeito retardado.

O efeito Irish Coffee

Só o confirmámos mais tarde quando, acabada a sessão de lerpa que se seguia ao repasto, os convidados se começavam a levantar.

Foi assustador pois as pernas não obedeciam ao normal esquerdo-direito-op-2 e vai daí, registou-se o coma alcoólico do Asdrúbal que duraria 48 horas! A pedrada foi tal que passou várias horas debaixo do chuveiro de campanha (bidão com água e com furos no fundo) durante as quais aconteceu um ataque [do PAIGC] ao qual respondemos com galhardia, evitando baixas mas ouvindo alguns ai-ais do lado de lá a entusiasmarem-nos por estarmos a acertar no objectivo!

Eu completara 22 anos e aquilo não era maneira de comemorar tão fantástica idade, bolas!

Se eles me estiverem a ouvir, daqui vai um abraço ao Sucena, ao Cardoso, ao Barros Leite, ao Benigno Abreu, ao Asdrúbal, ao Salvador, ao Reis, ao Guedes Vaz, ao Alves Matos e não sei se caberia mais alguém no buraco...

António Matos

ex-Alf Mil
CCAÇ 2790
Bula 1970/72

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Notas de vb:



1. Negritos e títulos da responsabilidade do editor.

Guiné 63/74 - P3414: PAIGC - Instrução, táctica e logística (19): Supintrep, nº 32, Junho de 1971: ABC da preparação táctica (A. Marques Lopes)

Fundação Mário Soares > Dossiers > Guiledje · Simpósio Internacional · Bissau, Guiné-Bissau · 1 a 7 de Março de 2008 > "Amílcar Cabral, no mato, utilizando um teodolito para definição de tiro de artilharia. Distingue-se, atrás, Manuel Santos (Manecas). Fotografia de Bruna Polimeni.[05345.001.029] · Documentos Amílcar Cabral (11/23)" (Com a devida vénia à autora e ao proprietário da foto...)

Fundação Mário Soares > Dossiers > Guiledje · Simpósio Internacional · Bissau, Guiné-Bissau · 1 a 7 de Março de 2008 > Retrato de Amílcar Cabral e Manuel dos Santos (Manecas). Fotografia de Bruna Polimeni.[05345.001.003] · Documentos Amílcar Cabral (10/23). (Com a devida vénia à autora e ao proprietário da foto...)

Notas dos editores: a inserção destas 2 fotos pretende também ser uma tripla homenagem do nosso blogue:

(i) a Amílcar Cabral, muitas vezes descrito, pejorativamente, como um simples intelectual, um teórico, um revolucionário de caneta e papel; ele sabia que as ideias era muito mais importantes do que as balas, mas que questões como "a instrução, a táctica e a logística", ou seja, a formação e a organização da guerrilha, também eram fundamentais para o sucesso da "luta de libertação";

(ii) à grande fotojornalista italiana Bruna Polimeni que fez seguramente as melhores fotos do dirigente político mas também do guerrilheiro Amílcar Cabral e da sua luta, no terreno, pela concretização dos ideais em que acreditava;

e (iii) à Fundação Mário Soares e à Fundação Amílcar Cabral por terem salvo o Arquivo Amílcar Cabral e disponibilizarem o seu progressivo acesso em linha (leia-se: em suporte digital), para além do acesso público (em Lisboa, Cidade da Praia e Bissau).

Para os que o admiram, como africano, como homem, como líder, como intelectual, como escritor lusófono e como cidadão do mundo, "Amílcar Cabral ká móri"...

Fotos: Cortesia de © Fundação Mário Soares (2008).

19ª e última parte do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, devidamente tratada, através de mais de um dúzia de mails, entre Setembro e Outubro de 2007, pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma. O Marques Lopes foi Alf Mil na CART 1690 (Geba ) e CCAÇ 3 (Barro) entre 1967 e 1969 (Aqui, na foto, à esquerda, a sair de um abrigo (!), em Cantacunda, destacamento de Geba, que ficava também a cerca de 40 kms da sede da companhia, a CART 1690, perto da base que o PAIGC tinha em Samba Culo, na margem sul do rio Camjambari).

Apraz-nos registar aqui, publicamente, o nosso apreço pelo trabalho de pesquisa do A. Marques Lopes, pela sua grande camaradagem e amaizade, e pela sua vontade em partilhar connosco o seu vasto conhecimento sobre o PAIGC e a Guiné-Bissau, país e povo que ele (e nós) tanto ama(mos). Recorde-se que o A. Marques Lopes é um DFA, tendo sido gravemente ferido em combate, evacuado para o HML e regressado, de novo, à Guiné, onde foi colocado na CCAÇ 3, em Barro, num grupo de combate composto por balantas (os temíveis Jagudis). Desde o 25 de Abril de 1974 que tem procurado, sempre que vai à Guiné, contactar os seus antigos inimigos... É um homem lúcido, generoso, sem ressentimentos... que hoje se esforça por conhecer o "outro lado"...

Esperamos que ele continue a surpreender-nos com a exploração de novas fontes (como outros Supintrep) de informação e conhecimento sobre os adversários de ontem, contra quem combatemos, e de que hoje somos amigos e irmãos, partilhando experiências, memórias, história(s), lugares, património, afectos, sabores, cheiros e... uma mesma língua, uma formidável ferramenta com a qual podemos comunicar (do latim, communicare = pôr em comum). Apesar da distância, das dificuldades, dos obstáculos, da falta de muita coisa, cá e lá, etc. Bem hajas, António. Os editores, LG/CV/VB.


19ª e última parte da série PAIGG ABC DA PREPARAÇÃO TÁCTICA > Trabalho do chefe do destacamento (grupo) depois de receber a missão de combate.

[Transcrição de documento do PAIGC]

Fixação e revisão de texto: AML/LG

Depois de receber a missão de combate, o chefe do destacamento (grupo) deve:

- aclarar a missão;

- apreciar a situação;

- tomar a decisão;

- dar ordem de combate e organizar a cooperação.


Aclarando a missão, o chefe do destacamento (grupo) deve:

- perceber onde, quando, com o que vai realizar-se a operação;

- determinar as medidas a realizar imediatamente na preparação do combate;

- calcular o tempo.


Apreciando a situação, o chefe do destacamento (grupo) deve estudar:

- o inimigo;

- as próprias forças e meios;

- as missões dos vizinhos;

- a hora do dia e as condições do tempo.


Estudando o inimigo, o chefe do destacamento (grupo) determina:

- a disposição combativa do inimigo, situação dos seus meios de combate e o carácter das acções que se esperam, os lugares de encontro prováveis com o reconhecimento e a garda inimiga;

- a hora e o lado de chegada especialmente das reservas;

- as especialidades de guarda e de defesa do objectivo que deve atacar-se, ordem de troca das sentinelas e guardas, itinerário das patrulhas de vigilância e os lugares dos obstáculos.

Apreciando as suas próprias forças, o chefe do destacamento (grupo) deve:

- apreciar a composição e a capacidade de combate da unidade;

- tomar em consideração o grau de instrução dos guerrilheiros, sua experiência combativa, o estado político-moral e os conhecimentos do terreno na região das acções futuras;

- tomar em consideração a presença e o estado do armamento, das munições,do combustível, etc.

Apreciando os vizinhos, o chefe do destacamento (grupo) estuda a sua composição, as missões e os meios da sua realização.

Apreciando o terreno, o chefe do destacamento dos guerrilheiros determina:

- sua capacidade de passo para os guerrilheiros e o inimigo, os lugares cómodos para atravessar os obstáculos e mais favorável caminho de movimento e as condições de mascaramento;

- os lugares de descanso e de alto de dia;

- as aproximações camufladas para acesso e as posições de partida para o ataque;

- os lugares de encontro depois de ter cumprido a missão e os caminhos de recuo.


Na sua decisão, o chefe do destacamento determina:

- o objectivo da operação e os meios da sua realização;

- qual é o inimigo que deve aniquilar~se e de que maneira;

- onde se concentra o esforço principal e qual a forma de combate que deve fazer;

- as missões de combate;

- as medidas de abastecimento das acções combativas;

- os caminhos do movimento, as horas e os métodos e aproximação dos guerrilheiros aos objectivos de ataque;

- os métodos de salvar os obstáculos e as acções, perante de encontro por surpresa do inimigo;

- a hora do começo da operação e ordem das acções depois de cumprir a missão e os métodos de comando;

- onde, quando e quais as acções simulantes a realizar.


Na ordem de combate, o chefe do destacamento indica:

- os pontos de referência (objectos locais cifrados);

- as informações sobre o inimigo;

- a missão combativa do destacamento ou grupo;

- as missões dos vizinhos;

- as missões de combate para as unidades e os meios de fogo;

- a hora de estar pronto para cumprir a missão e os métodos de comando;

- seu lugar e o ajudante.


Organizando a cooperação, o chefe do destacamento (grupo) coordena:

- as consequências e as maneiras de abrir passos nos obstáculos do inimigo, eliminar as sentinelas e outra guarda;

- ordem, tempos e maneiras das acções durante o ataque contra o inimigo (ocupação do objectivo);

- as acções de atacantes, das unidades de fogo, e de asseguramento dos grupos de explosão e de reserva;

- as direcções de recuo e a ordem de proteger o recuo;

- ordem de manter a comunicação;

- sinais de identificação para o pessoal e sinais de identificação das unidades;

- sinais de ataque, começo, transmissão, cessar de fogo e recuo.


As medidas de precaução durante a instrução táctica


Nos estudos tácticos é proibido:


1. Abrir fogo contra os objectos e as construções com cartuchos de salva a distância inferior a 200 m.

2. Explodir os petardos de imitação ou outros meios de imitação na distância menos de 20 m de pessoal, lança-foguetes e com petardos de imitação perto dos homens, contra o material de combate, carros, nas aldeias, porto dos depósitos, etc.

3. Passar nas zonas e lugares proibidos, limitados com bandeiras e indicadores. Tomar e tocar os obuses, minas, petardos e espoletas não rebentadas.

4. Deter nas mãos os petardos de imitação já incendiados.

5. Lançar foguetes de iluminação e de sinais com ângulo menos de [?...ilegível].

6. Situar-se e deitar-se perto dos carros, tanques, e os canhões que atiram na distância menos de 50 m.

7. Beber a água não fervida das fontes não provadas e incendiar as fogueiras.

8. Deixar sem guarda a arma, munições e equipo, perder os mapas, os documentos, etc.

9. Transportar o pessoal no transporte não preparado, reduzir as distâncias estabelecidas, realizar travagem brusca e superar a velocidade estabelecida de marcha.

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Notas de L. G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série (que foi sendo publicada com alguma irregularidade, desde há mais de um ano):

22 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

24 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2126: PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte) (A. Marques Lopes)

1 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2146: PAIGC - Instrução, táctica e logística (3): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (III Parte) (A. Marques Lopes)

8 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2164: PAIGC - Instrução, táctica e logística (4): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IV Parte): Emboscadas (A. Marques Lopes)

29 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2228: PAIGC - Instrução, táctica e logística (5): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (V Parte): Flagelações (A. Marques Lopes)

4 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes)

17 de Janeiro de 2008 >
Guine 63/74 - P2446: PAIGC - Instrução, táctica e logística (7): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VII Parte): Minas II (A. Marques Lopes)

19 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2454: PAIGC - Instrução, táctica e logística (8): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VIII Parte): Minas III (A. Marques Lopes)

13 de Fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2535: PAIGC - Instrução, táctica e logística (9): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IX Parte): Defesa anti-aérea (A. Marques Lopes)

7 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2730: PAIGC - Instrução, táctica e logística (10): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (X Parte): Organização defensiva (A. Marques Lopes)

15 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2762: PAIGC - Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

17 de Junho de 2008 >
Guiné 63/74 - P2955: PAIGC - Instrução, táctica e logística (12): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XII Parte): Saúde (A. Marques Lopes)

7 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3032: PAIGC - Instrução, táctica e logística (13): Supintrep, nº 32, Junho de 1971 (XIII Parte): Armamento (A. Marques Lopes)

4 de Setembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3170: PAIGC - Instrução, táctica e logística (14): Supintrep, nº 32, Junho de 1971 (XIV Parte): Educação (A. Marques Lopes)

16 de Setembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3211: PAIGC - Instrução, táctica e logística (15): Supintrep, nº 32, Junho de 1971 (XV Parte): Os Armazéns do Povo (A. Marques Lopes)

1 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3258: PAIGC - Instrução, táctica e logística (16): Supintrep, nº 32, Junho de 1971: Itinerários de abastecimento (A. Marques Lopes)

8 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3284: PAIGC - Instrução, táctica e logística (17): Supintrep, nº 32, Junho de 1971: A formação do soldado das FARP (A. Marques Lopes)

22 de Outubro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3344: PAIGC - Instrução, táctica e logística (18): Supintrep, nº 32, Junho de 1971: A luta contra o temível helícóptero (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P3413: Blogoterapia (71): O regresso voluntário à África da nossa juventude (José Teixeira)




1. Mensagem de 2 de Novembro de 2008, do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70, referindo ao seu regresso voluntário à Guiné-Bissau, aquando do Simpósio Internacional de Guiledje, em Março passado.



Guiné Bissau – O regresso, agora voluntário

Nota-se nos ex-combatentes, em cada dia que passa, uma vontade de regressar, agora voluntariamente às terras da Guiné.

Tantos de nós, tentaram varrer da sua mente as imagens da Guiné, sobretudo as de má memória, as que era preciso exorcisar, pelo que de sofrimento trouxeram a cada um. Debalde, pois elas esconderam-se lá bem no fundo do arcaz da memória e com o rodar dos anos, voltaram calma e pacificamente ao de cima, como que reacordando-nos para a realidade que teimavamos em abafar – A Guiné fez parte da nossa vida e continua a fazer, pelas marcas que deixou. Uma delas é a saudade. A mais agradável, que nos faz deixar tudo, para muitos inclusivé, fazer poupanças durante o ano para correr aos convívios que todos os anos nos permitem reavivar a memória, rever amizades, as mais ricas, as que jamais se esquecerão, porque foram forjadas na luta, durante o tempo que era o tempo para viver com garra a nossa vida.

Alguém me dizia há dias que os amigos são muitas vezes mais amigos daquilo que possuímos, do que de nós próprios e exemplificava com um caso concreto de alguém a quem saiu a sorte grande e de repente ficou rodeado de amigos. Rapidamente esgotou os ganhos da sorte com eles e dois anos depois, estava de novo na miséria, sem dinheiro e sem amigos. As amizades geradas nos ex-combatentes, essas são firmes e duradoiras, até àmorte.

Já há convívios por freguesia e por concelhos. Há os blogues. e blogues como Tabanca Grande que cresce em cada dia que passa. Há Tertúlias como a Tabanca de Matosinhos que cresce semana a semana. Isto é, já não nos unimos apenas e só aos camaradas, que estiveram connosco. Alargamos as nossas relações de amizade fraterna a quantos foram passando pelo conflito, independente do ano em que por lá andaram e o mais interessante é que nos fomos unindo de forma horizontal, isto é, acabarm-se os postos militares em que nos colocaram, restam os homens que trilharam os mesmos caminhos, viveram cenas comuns de luta de vida ou morte.

A Net tem sido de facto um excelente meio para fomentar todo este reacordar e reavivar a memória. Os livros, alguns com qualidades literárias fantástica, outros nem tanto, mas todos com histórias verdadeiras, que só quem passou por lá compreenderá inteiramente, são também um factor de comunicação e união.

Fenómenos estranhos estes. Na partida para um destino totalmente desconhecido, até à Guiné, uma frase se ouvia repetidamente Adeus até ao meu regresso. Não consta que no regresso alguém tenha ousado repetir essa mesma frase e muito poucos ousaram pensar no retorno um dia.

Eu já lá voltei duas vezes e sonho com nova partida. Recordo a minha entrada pela fronteira de Pirada em 2005, confesso que tenso e temeroso, no primeiro contacto com as autoridades fronteiriças. Logo após uma afectuosa saudação bom dia baranco, uma pergunta; onde estiveste ? Estranha recepção, vinda de um policia de fronteira, logo esclarecida com um franco sorriso e um afectuoso aperto de mão, quando lhe respondi - Quebo; Mampatá; Buba ... (não me deixou completar a frase) - então conheceste minha ermon, foi milicia em Buba. Seguiu-se uma curta, mas agradável kunversa. Recordações transportadas de um tempo difícil que se foi, para um tempo presente alimentado pela saudade.

Ali iniciei a fraterna comunhão que desde alguns anos atrás sonhava. Encontrar-me com os guineeses que se cruzaram na minha vida, curta, mas tão longa passagem pela guerra na Guiné. Nem eu nem eles se esqueceram da vida partilhada em comum; dos perigos que corremos juntos, das horas de angústia que ultrapassámos, dos momentos de alegria ou de dor, quando no fim dos encontros/desencontros com seus ermons do mato, colocados do outro lado da barreira, fazíamos o balanço da contenda.

Mil sentimentos, por vezes contraditórios, me perseguiram ao rememorar os cenários reais de tais façanhas, vividas nas colunas de Buba para Aldeia Formosa e desta até Gandembel; estrada em construção de Buba para Aldeia Formosa, nas picadas, repicadas constantemente em busca das minas assassinas semeadas pelo meu ermon Miundá Baldé (a) e seus camaradas; nos aquartelamentos e nas tabancas, onde a população vivia o mesmo drama que eu, num sofrimeno muito maior, pois era uma guerra de irmãos contra irmãos.

Ao rodar naquela estada esburacada, os olhs não se cansavam de observar e admirar a beleza que nos rodeava. Foi a volúpia da beleza natural, a acordar progressivamente os meus sentidos.

Que capacidade o ser humano tem de poder guardar nos seus compartimentos mentais tanta beleza, sem que a própria consciência se aperceba dessa realidade ! Passados trinta e cinco anos, redescobri a gama de cores variadas, que a maravilhosa floresta da Guiné me ofereceu outrora, que eu teimara em não ver no seu esplendor, mas ficou bem guardada no cofre secreto do meu coração e da mente. Nenhuma impressão de outrora se escapuliu, pelo contrário, tudo me saltou à vista. Até as gigantes árvores ou as longas lianas, estavam no mesmo lugar. Cada olhar provocava um acordar de memória. As curvas da picada tão temidas pelo perigo que representavam. Algumas delas, cenários de lutas sangrentas, estavam lá no mesmo sítio, rodeadas de vegetação verdejante, noutros tempos assustadora.

Vieram-me à memória os longos e altos capinzais, dourados pelo sol dos trópicos, que tocados violentamente pelos ventos impetuosos que antecediam as tempestades, mais se assemelhavam às ondas do mar em dias de exaltação das suas águas. De onde em onde um majestoso baga–baga espreitava altaneiro, pondo a sua crista de fora. Espaços de redobrada atenção, pois o IN traiçoeiro, aí se podia acoitar para uma espera de morte

Foto 1 > Altos e longos capinzais, junto às bolanhas da Ponderosa

Foto 2 > De onde em onde, um majestoso baga-baga espreitava altaneiro

Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados


Note-se que nestas fotos apareço com a D. G3rtrudes, emprestada por um colega, já que eu como enfermeiro, desde os primeiros tempos de Guiné, deixei de usar arma para cumprir a promessa que fiz a mim mesmo de ser apenas enfermeiro.

E as pessoas? Como nos acolhem? É-me muito dificil transcrever com total realismo os reencontros. Só vividos. Como é possível passados trinta e cinco, quarenta anos, recordarem-se da nossa fisionomia, do nosso nome !

A peregrinação vivida em Março deste ano pela Mata do Cantanhez, durante o Simpósio de Guiledje e a passagem pelas Tabancas por onde andei, no auge da minha juventude, com a bolsa de enfermeiro às costas, foi profundamente gratificante. Abraços e beijos à mistura com lágrimas de emoção. Famílias inteiras do mais pequeno ao mais velho que em poucos minutos se juntavam para me cumprimentar e tirar uma foto. Sobrinhas como a Cadidjatu Candé ou a Djuvae Embaló, hoje Conceição Vaz ao serviço da GNR na Amadora, que me telefonam para parte mantenhas ou enviam correspondência electrónica. Mindjers garandis, as lindas bajudas do nosso tempo, que se penduravam no meu pescoço, chamando pelo Tissera fermero (Teixeira enfermeiro), A Fatma minha lavandera, a Ansaru, mãe da Maimuna, a bebé que me acompanhava por todo o lado em Mampatá, a Ádama mãe da bebé que salvei de um crise fatal de paludismo, quando já estava desenganada pelos médicos do hospital em Bissau. Os soldados da milicia; o Suleimane e o Braima agora a viverem no Saltinho; O Issa Baldé que me foi procurar a Aldeia Formosa; o Abdulai Djaló que me telefona...

Tanta vida para recordar…

Mas como dizem que uma imagem vale que mil palavras, apreciem as fotos que se seguem e o vídeo em http://video.msn.com/video.aspx?mkt=pt-br&cid=2997719327111784874&wa=wsignin1.0.

Zé Teixeira

O Fernando Moita, felicíssimo por ter encontrado a sua comadre em Bula.

A alegria espelhada em lágrimas. O Moita conseguiu localizar em Bissau a afilhada que apadrinhara em Bula

Fotos: © Fernando Moita (2008). Direitos reservados


Quem diria que o João Rocha ia ser interpelado pela sua lavandera, tu és o Alfero Rocha!

Isto aconteceu em 2008 com o João Rocha

Que ternura, passados tantos anos

Recepção memorável em Guiledje

Fotos: © Xico Allen (2008). Direitos reservados


A família da Djobo Ansato juntou-se para parte mantenhas cum Tissera, já que ela estava ausente em Bissau e ficar no postal (foto)

A Ádama e a Djuvae.

A Ádada filha do Aliu de Mampatá, a oferecer-me um ronco para nha mindjer um lindo colar que tirou do seu pescoço

Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados

a) - Muinde Baldé, sapador do PAIGC, que participou na montagem de minas e fornilhos na picada Aldeia Formosa/Gandembel/Guiledge (Célebre carreiro da morte ou caminho da liberdade, como o PAIGC o baptizou) e montou segundo me disse o campo de minas em Txangue Laia onde pereceram cinco camaradas da CCaç 2317 em 1968. A minha Companhia, felizmente não caiu nesse campo de minas, porque os camaradas da CCaç 2317, perante a situação, recuaram e via rádio avisaram-nos a tempo. A coluna de mantimentos voltou a Aldeia Formosa e uns dias depois ao voltarmos ao local, levantamos vinte e sete minas AP, enquanto os Páras levantaram creio que quarenta.

Também esteve no ataque a Contabane em 22 de Junho de1968, do qual resultou a destruição total da tabanca, tendo a tropa da CCaç 2382 ali colocada, retirado para Aldeia Formosa, bem como a população, tendo parte desta sido posteriormente reordenada em Sinchã-Shambel, do outro lado da ponte do Saltinho, onde o Paulo Santiago os foi encontrar. Também me atacou em Mampatá em Novembro de 1968, num encontro memorável em que chegaram a entrar dentro da Tabanca, ele mesmo ultrapassou o arame farpado, segundo me disse, mas tiveram de fugir, perante a reacção do meu grupo de combate aí estacionado e a acção da milícia, comandada pelo Régulo Alíu Baldé, seu primo. Cruzamos nossas vidas de novo no Simpósio de Guiledge, revivemos nossas estranhas aventuras em comum, apresentou-me seus amigos e companheiros de guerrilha e ficamos, por exigência dele, ermons.

_____________

Nota de CV

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3401: Blogoterapia (70): Notícias da Tabanca Grande (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P3412: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (11): Ainda o Honório, o Jagudi... ou o puro gozo de voar (Jorge Félix)

Matosinhos > Restaurante Casa Teresa > 9 de Abril de 2008 > Reunião habitual, às 4.ªs feiras, da Tabanca de Matosinhos, a que compareceram desta vez os seguintes camaradas da Guiné, da esquerda para a direita: de pé, A. Marques Lopes, João Rocha, Eduardo Reis, José Teixeira, Armindo; na primeira fila, Jorge Félix (assinalado com um círculo a amarelo), Xico Allen e Silvério Lobo... À entrada da Casa Teresa, o António Pimentel. A tertúlia mudou, entretanto, de pouso, por falta de espaço.

Foto: © José Teixeira (2008). Direitos reservados


1. Mensagem, de 25/10/2008, do Jorge Félix, Ex-Alf Mil Pilav Helicópteros Alouette III, BA 12, Bissalanca, 1968/70, residente actualmente em Vila Nova de Gaia:

Assunto - O Honório

Caro Carlos:

Junto um mail que enviei ao editor do Blogue Especialistas da BA 12, Bissalanca, Guiné 65/74, e que gostaria que publicasses.

Julgo que pouco mais há a acrescentar, ou melhor, "faltar ao respeito ao Honório era acabar com os gloriosos malucos das máquinas voadoras" no nosso Blogue, [Luís Graça & Camaradas da Guiné,] e não contar outras histórias, mesmo que difícil entendimento, em prol da verdade que se pretende por estes lados.

Já agora: alguma vez tiveram que fazer uma "operação relâmpago", para recuperar o correio que o Honório, "inadvertidamente", atirava em rapadas que fazia enquanto gritava "Correio aéreo, amanhã trago-vos o saco" ?

Quando lhe apetecia verter águas, e continuo a falar das diabruras do Honório, com todo o respeito, o Jagudi (nome de guerra do H), lá aterrava na primeira pista que via. Antes que a protecção à pista tivesse chegado, já meia mijinha tinha sido feita. E o relatório era invariavelmente o mesmo:
- Então, necessitam de alguma coisa?.

Até acontecia,um ou outro, apanhar boleia à custa da bexiga do glorioso.

Por hoje já vou longo. Voltarei com o Honório se mantiverem os gloriosos malucos das máquinas voadoras (*).

Como disse o Luís, aqui a pista é larga. Pode-se fazer o toca e anda e, enquanto formos vivos, assobiar para o lado.

Jorge Félix (amigo pessoal de alguns malucos).


2. Mensagem de 24 de Outubro de 2008 do Jorge Félix para o Vitor Barata:

Vitor:

Já há muito que descobri que tu tens as tuas regras para gerir o Blogue. Pelo facto não deves esquecer que os outros, neste caso eu, também têm as suas...

Escreves para o Blogue do Luís Graça, poste P3351, e em determinada altura dizes:

"Seria possível, tanto humana como tecnicamente , um piloto da FAP rapar na bolanha para acertar nos nativos ...?" (seguem considerandos sobre o Honório que me escuso de escrever. Já não tenho pachorra para essas lengalengas).

Quem opinou deste modo sobre o Honório fui eu no poste P3259, de 1 de Outubro de 2008, e foi desta maneira:

" ... O Branquinho estava convencido que o Honório voava T6. Na verdade o Honório voou na primeira comissão, mas - e daí ficou a sua lenda - como fazia rapadas abaixo do nível do mar, a fim de acertar nos trabalhadores das bolanhas, foi impedido de voar T6 e passou a voar somente DO27.

Fui largado na Guiné depois de voar na companhia do Honório, de 28 Setembro até 17 de Outubro de 1968, e sem faltar ao respeito ao Glorioso Maluco das Máquinas Voadoras Honório, quero te dizer que testemunhei outras "manobras" que tanto técnica como humanamente parecem fora do alcance de "um qualquer" mas eram feitas para "gozo" de quem gosta de voar.

Claro que, na Guiné não se voava abaixo do nível do mar. Foi uma imagem de estilo para dizer que o Honório se mandava para cima dos nativos e os obrigava a saltar para dentro das bolanhas, durante as fugas das picadas dos D027.

Foi dele que escutei:
- Quando voava de T6 era com a hélice que lhes queria acertar!

Logicamente , se tocasse com a hélice "nos nativos", acabaria por ter um acidente.

Neste singelo dito, pretendi transmitir a personalidade do Honório. Tu Vitor, não percebeste.

Vou dar conhecimento deste mail ao Luís Graça

Jorge Félix

3. Comentário de L.G.:

Ainda bem que tu, Jorge Félix, glorioso representante dessa classe, em extinção, os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadores, és o primeiro a reconhecer que esta série é uma homenagem, pura, singela, aos nossos camaradas da FAP que viviam no manicómio de Bissalanca e trabalhavam no inferno da Guiné... Era seria (é) uma razão mais do que suficiente para manter actividade dessa série. É verdade que tem estado muito centrada nessa fígura, mítica, ímpar, da nossa gloriosa FAP, muito popular entre o pessoal do Exército na Guiné... Refiro-me ao Sargento Piloto Aviador Honório...

Mas eu ainda acredito que vão aparecer mais histórias sobre os nossos pilotos e restante pessoal da FAP... Menos importante (ou interessante) pode ser o quid pro quo entre o Jorge Félix e o Victor Barata, resultante de um défice de comunicação entre os dois...

O raio das palavras que usamos, de vez em quando estão a traír-nos... Não quereria, no entanto que os dois únicos representantes da FAP no nosso blogue - se a memória não me atraiçoa - se travassem de razões por causa do Honório... Seria mau para eles, para nós, para a FAP, para todos os amigos e camaradas da Guiné. Sobretudo seria injusto para o Honório que, lá em cima, no Olimpo dos Pilav, deve estar a rir, a bandeiras despregadas, das partidas que nos pregava, e das evocações que delas fazemos, aqui no blogue dos Amigos e Camaradas da Guiné e no blogue dos Especialistas da BA12, dirigido pelo Victor Barata.

Que os nossos dois blogues sejam, por fim, um traço de união e não de divisão.

Um Alfa Bravo para o Victor e para o Jorge.
_____________

Nota de L.G.:

(*) Vd postes da série Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras:

23 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3226: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (1): Honório, Sargento Pil Av de DO 27 (Jorge Félix / J. L. Monteiro Ribeiro)

24 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3232: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (2): O Honório, meu amigo (Torcato Mendonça / Alberto Branquinho)

24 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3234: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (3): O Honório que eu conheci... em Luanda (Joaquim Mexia Alves)

26 de Setembro de 2008 Guiné 63/74 - P3245: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (4): Honório, o cow-boy dos ares (José Nunes)

30 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3256: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (5): Lembrando o Ten Pil Av Bettencourt (Henrique Matos)

1 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3259: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (6): Alguns esclarecimentos (Jorge Félix)

8 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3281: Gloriosos malucos das máquinas voadoras (7): Desfazendo equívocos (Alberto Branquinho)

24 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3351: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (8): Homenagem à memória do Honório e do Manso (Victor Barata)

25 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3355: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (9): Ainda falando do Sarg Pil Av Honório (Rui Silva)

30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3380: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (10): Quanda a guerra era com os copos... ou o elogio do Tosco, em Lisboa (Jorge Félix)


quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira (1), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 4 de Novembro de 2008, contando-nos como foi, nas suas palavras, a sua primeira vez e nas nossas o seu baptismo de fogo (2).

Amigo Carlos,
O texto que se segue, vem um pouco fora de tempo. Estive tentado a nem sequer te pedir a sua publicação depois de saber que na caixa do correio existem milhares de e-mails a aguardar escrutínio. No entanto, como eu acho que não devemos coibir-nos de dar a nossa versão dos acontecimentos quando tal nos é pedido, acabei por decidir deixar ao teu critério o destino a dar ao escrito.
Obrigado pela tua atenção,
VJ

A minha primeira vez …

Há algum tempo que venho tentando corresponder ao desafio que nos foi feito para que reportássemos para o blog, aquela experiência que deveria ser inolvidável: A nossa primeira vez! Pois, queridos camaradas, não sei se por culpa do Dr. Alzheimer ou, por o acontecimento não ter deixado marcas, não possuo qualquer recordação de como a coisa se passou. Sei que terá ocorrido algures na mata do Oio, mais precisamente no triângulo Mansabá, Olossato, Farim, por volta de Novembro ou Dezembro de 1970 – eu até podia ir pesquisar alguns dados aos meus papéis, mas acho que não vale a pena –, encontrando-se a minha guerra, empenhada numa segurança afastada aos trabalhos de reabertura da auto-via Mansabá – Farim. Estávamos na altura acampados nuns escafundós de Judas chamado Bironque, de onde partia diariamente uma expedição com o propósito de retribuir gentilezas com que éramos mimados, diariamente, pelo IN. Aqueles contactos decorriam quase sempre da mesma, pelo que, por mais que puxe pelo bestunto, não consigo recordar-me do primeiro.

Mas recordo como se tivesse acontecido ontem, um episódio em que pela primeira vez senti os ditos realmente entalados e, aquela sensação de arrepio gelado a trepar pelo espinhaço acima. Na mesma região, no mesmo contexto e na mesma época. Se me permitem, vou partilhá-lo convosco, estando certo de que alguns camaradas reviverão também situações idênticas, das quais saímos convencidos de que o Senhor Santo Cristo dos (meus camaradas) Açorianos, para outros o Altíssimo, se não fez fogo ao nosso lado, pelo menos orientou os trabalhos.

Província da Guiné, mostra a zona designada pelo Vitor Junqueira como triângulo Mansabá, Olossato, Farim na problemática região do Óio. O rectângulo encarnado assinala o Bironque onde se encontrava o Destacamento provisório de apoio à construção do troço de estrada Bironque-Farim.

Foto 2 > Destacamento do Bironque, inaugurado pela CART 2732, destinada à protecção das máquinas da Engenharia, utilizadas na construção da estrada.

Foto 3 > Troço novo da estrada Mansabá-Farim.

Fotos: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Sempre ouvi dizer que na tropa, voluntário, nem para cima da filha do comandante! E que a melhor atitude era não fazer ondas, porque quando o mar fica agitado, quem se lixa – com éfe – é o mexilhão. Pois, com este manancial de sabedoria, caí na esparrela e fiz-me notar através de uns bitates que mandei em frente a uma certa individualidade que os terá registado. A factura surgiu na volta do correio, a liquidar em suaves prestações, geralmente semanais, até ao final da comissão.

Eis a primeira tranche: Um belo dia, fui abordado pelo senhor CMDT do Cop 6, major Moura (?), que me propôs uma diligência no sentido desalojar uma guarnição do In que durante meses insistira em perturbar o bom andamento da obra, atacando a frente de trabalhos. Terminados estes, ou em vias de conclusão, a malta do PAIGC tinha agora o desplante de se passear na nossa estrada, novinha em folha, como se aquilo fosse o da Joana. Inaceitável!

Num mapa, mostrou-me a localização do objectivo, os itinerários possíveis – quanto a isso também não havia grande escolha –, transmitiu-me as informações que possuía acerca da composição daquela força (1 bigrupo + 1 secção de sapadores) e… desejou-me boa sorte! Certamente por lapso ou puro esquecimento, não mencionou o facto de àquela data haverem já sido feitas três tentativas para espatifar a barraca aos homens. Todas sem sucesso e, como vim a saber mais tarde, a nossa malta trouxe o que contar dessas incursões. Numa delas participou o CMDT Jorge Picado que a narra num delicioso relato, publicado há meses no blog.

No dia D, alta madrugada, uma vez apeados das viaturas, lá seguimos aos encontrões e apalpadelas, caminhando pela berma com a discrição possível ao longo de, talvez dois quilómetros, no sentido Farim – Mansabá. Em breve nos embrenhámos na faixa de terreno arroteado pelas caterpillars, que corria paralela à estrada, em cujo limite e sem grande dificuldade encontrámos a boca do carreiro que nos havia de conduzir ao objectivo, uma tabanca com o piedoso nome de Fátima, tal como o da filha do Profeta e da localidade mais milagreira de Portugal, situada aqui bem perto do sítio onde moro. Já no coração da mata, abandonámo-lo com receio de que estivesse minado ou armadilhado.

Progressão penosa, lenta, sem outro meio de orientação que não fosse uma bússola e o tino do pica titular, o Cunha de Santa Cruz da Graciosa que, com a vareta sob o sovaco, nos abria caminho tentando desembaraçar-se das lianas. Certo é que, ao clarear, sentimos o cheiro de presença humana pelo que concluímos estar muito próximo do objectivo e da bernarda. A cabeça da coluna estacou na orla da mata que bordejava uma zona quadrangular, limpa, onde tinham sido poupadas apenas as grandes árvores. Fez-se uma curta pausa para retirar as remelas mais persistentes e, com mil olhos, perscrutar cuidadosamente o extenso campo visual que se apresentava pela frente. Não vislumbrámos indícios de qualquer construção, não se via gente nem se ouvia o canto alegre do galo madrugador ou o tan-tan ritmado do pilão. Nada, apenas aquele silêncio sinistro, prenúncio de coisas más. Até os pássaros pareciam estar feitos com o IN, espiando-nos sem soltar um pio.

De repente, fazem-me sinal apontando na direcção de um combatente armado que, à distância, entra na clareira acompanhado por uma mulher. O par está bastante longe, oitenta metros aproximadamente. Naquela altura já não existiam quaisquer dúvidas de que a nossa presença era conhecida. Perdido por um, perdido por mil… o Francisco de Assis de Angra, vira para lá o canudo do LG de 6cm (eles juram que fui eu, mas não me lembro!) e com um único tiro, o combatente interrompe a caminhada. Com a perna esquerda amputada pelo joelho, o homem cai e a mulher segue o seu destino em passo acelerado. Aproximamo-nos avançando pelo lado direito da clareira, no sentido da progressão, ao longo da linha de separação com a mata, contando com a protecção da floresta, ou assim pensávamos. Uma secção da qual faz parte o maqueiro Leonel Melo, desloca-se rapidamente para o local onde se encontra o ferido. Porém, assim que entra em campo aberto é recebida por uma saraivada de tiros e bazucadas que parecem chover de todos os lados.

Vamos tentando dar alguma cobertura à equipe sanitária, fazendo tiro de morteiro para a orla oposta, poupando ao máximo as preciosas munições. Ao abrigo de enormes baga-baga e dos troncos de imponentes árvores, o cabo Melo lá consegue pôr um soro a correr e administrar alguma morfina, enquanto o transmita Osvaldo, por alcunha o Fafe, tentava contactar Bissalanca a fim de evacuar o soldado do PAIGC. Se até então, nunca tínhamos deixado um ferido abandonado não era altura para abrir excepções e por isso, a decisão rápida embora discutível foi, aguentar até à chegada do meio de salvamento.

Decisão errada! Em breve percebemos que a tropa com quem estamos metidos, se movimentara de forma a encurralar-nos. Ouvíamo-los nas nossas costas, na tal mancha de floresta que supostamente nos poderia proporcionar alguma protecção, estavam do outro lado da clareira, da rectaguarda chegava a informação de que a cauda da coluna tinha a retirada cortada enquanto da frente rebentava nos entrementes um fogachal que só visto. Sim senhor, lindo serviço, pensámos todos. Pois bem, como se costuma dizer, a gente dança conforme a música!

Dado que intuí que esta operação ia cheirar ao esturro, preparei na véspera com os elementos de que dispunha, um cuidadoso plano de fogo de apoio. Numa saltada a Farim, fui entregá-lo ao camarada Moreira, senhor de três magníficas peças de 14cm, pedindo-lhe que se mantivesse por perto para o caso de.

Agora era altura de colher alguns frutos da diligência efectuada. Foi dada ordem geral para abrigar, e ao Moreira foram solicitados os tiros, tal e tal e tal. Daí por uns segundos que pareceram minutos, ouvíamos as saídas e uma onda de conforto envolveu-nos a alma. Não tardou, primeiro o silvo das brutas por cima das nossas cabeças e logo a seguir, um estrondo tão grande capaz de acagaçar o mais afoito. Devido aos clarões, o céu ficou cor de laranja e pelo ar voaram chispas de aço incandescente, toneladas de pó, folhagem, ramos arrancados às árvores e o intenso odor característico da combustão de explosivos, criaram um cenário próprio do reino de Lucífer. Aquilo, sim, parecia a guerra. Mas os sacanas já deviam estar habituados à fruta, e não se deixaram intimidar. Ó Moreira, manda lá mais três ameixas para os pontos X, Y e Z. Despachadas as bojardas, vemo-las aterrar ainda mais próximo de nós, na margem oposta da clareira. O camarada artilheiro apanhou-lhe o gosto e continuámos naquilo até limpar esse lado da arena.

Para lá deslocámos metade da nossa força, assumindo o controle de uma zona anteriormente ocupada pelos malandros. A situação melhorou bastante em termos de segurança, o que vinha mesmo a calhar dado que, pelo transmita ficámos a saber que os Helis haviam descolado e deviam estar a chegar. Por precaução suspendeu-se a guerra, e de novo um silêncio pesado se abateu sobre nós acompanhando aquele falso sentimento de paz que se segue a cada escaramuça. Estava no papo! Santa ingenuidade, mais um engano!

Mal chega e helicanhão, faz duas passagens à nossa vertical e logo se ouve o matraquear lento de uma metralhadora pesada tentando derrubá-lo. Só então percebemos que ali mesmo na nossa frente, a escassas dezenas de metros e encoberto por um pequeno declive do terreno, estava o verdadeiro ninho da cobra. O In tinha estado a jogar apenas com reservas, a sua milícia. O heli-maca mal contacta o solo e já os enfermeiros pára-quedistas se despacham a recolher o sinistrado. Partem levando consigo o lobo mau que nos informa … estou a ser batido, tenho de retirar.

E adeus, boa tarde! Ficámos novamente no mato sem cão. Com as precauções habituais e muitas outras motivadas pelo aperto do buraco ao fundo das costas onde certamente não caberia um chícharo, retomámos a progressão, agora a duas colunas e com flancos limpos pela artilharia(*). Percorridos meia dúzia de passos, estaríamos a menos de cinquenta metros do objectivo ou seja, do grupo de moranças ocupadas pelos militares, pois as outras habitadas pela população civil ficavam um pouco mais afastadas, quando uma violenta tempestade de chumbo e aço nos fez amochar. Amochar, aguentar, levantar, mais uns passos e nova cambalhota forçada. Foram os cinquenta metros mais duros que tive de percorrer em África. A cena repetiu-se várias vezes até que, passo a passo, nos fomos aproximando, valendo-nos os seis morteiretes que nos acompanhavam sempre e a perícia dos apontadores dessa arma que não me canso de encomiar, o precioso dilagrama.

Confrontando-se mais com uma inesperada teimosia da nossa parte do que com arte guerreira que certamente não possuíamos, o tal bi-grupo e mais as suas milícias retiraram quando acharam que era oportuno, com prováveis perdas, bastantes, atrevo-me a dizer fazendo fé nos vestígios, deixando para trás algum material, sobretudo muitas munições que foram destruídas in loco, dado não possuirmos meios de evacuação. Foi abatido gado, fizeram-se estragos numa plantação de milho e as construções reduzidas a cinzas como recomendavam as NEPS. Espaldões de morteiro, ninhos de metralhadora e uma trincheira que circundava todo o perímetro da tabanca-quartel lá ficaram à espera de ser reocupados. A população civil não foi incomodada e também não nos causou qualquer problema.

E foi assim, até à semana seguinte …

(*) O êxito alcançado com esta operação só foi possível graças à excelente e nem sempre devidamente valorizada colaboração dos nossos camaradas artilheiros. Em outras que se seguiram e até onde o seu braço chegou, nunca a minha companhia deixou algo por fazer. A todos eles, um serôdio abraço de gratidão.

E para todos os Tertulianos, abraços também.
VJ
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Notas de CV

(1) Vd. último poste de Vitor Junqueira de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2979: Exercício do meu direito à indignação (1): Simplesmente obnóxio, senhor anónimo (Vitor Junqueira)

(2) Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P3410: Memória dos lugares (14): Farim e o monumento ao 5º centenário da morte do Infante D. Henrique (Carlos L. Carreira, arqueólogo)

Guiné > Região do Oio > Farim > BCAÇ 2879 (1969/71) > c. 1970 > Igreja, jardim e monumento. Foto de Carlos Silva, ex-Fur Mil At Armas Pesadas da CCAÇ 2548, Jumbembem, 1969/71, hoje advogado (vd. a sua página na Internet > Guiné da Guiné 63/74, Carlos Silva (BCAÇ 2879).

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados (*).


Guiné-Bissau > Maio de 2007 > Farim > Monumento, da época colonial, ao 5º centenário da morte do Infante D. Henrique. Foto do nosso amigo Fernando Inácio que tinha 10 anos por altura do 25 de Abrild e 1974, mas que lê e ouve com emoção as nossas histórias de combatentes. Viaja com frequência para a Guiné-Bissau, por motivos de negócios. Em Maio de 2007 passou por Farim e mandou-nos um texto e algumas fotos, entre elas, esta que interessa muito em particular ao arqueólogo Carlos Leitão Carreira (**). O último contacto que temos com ele é de Outubro de 2007. É membro da nossa Tabanca Grande e recebe regularmente os nossos mails.

Foto: ©
Fernando Inácio (2007). Direitos reservados (*).


1. Mensagem de Carlos Leitão Carreira, arqueólogo, com data de ontem:

Olá. Como está?

Volto ao seu contacto para saber se há alguma hipótese de me dizerem qual o nome do autor desta foto e a sua data.

Melhores cumprimentos,

Carlos Carreira

2. Mensagem de Carlos Leitão Carreira, com data de 21 de Junho de 2008

Assunto: Monumento

Exmo. Sr.:

Investigando na Internet por alguma informação relacionada com determinado monumento que ando a estudar, deparei-me com esta sua foto [segue-se a respectiva URL, no Blogger; vd. imagens que se reproduzem acima].

O monumento em causa, desenhado e elaborado aquando das comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, encontra-se reproduzido em várias outras cidades do antigo Ultramar, caso único na nossa escultura. Esse monumento existe ainda na cidade portuguesa de Torres Novas, única em Portugal onde este foi erigido.

Este meu trabalho pressupõe a recolha ou angariação de fotos antigas e actuais destes monumentos espalhados e, em muitos casos, esquecidos. Escrevo-lhe na esperança de que me possa ceder esta foto no seu tamanho original e de outras que possua do mesmo monumento.

Acredite que faria uma tremenda diferença na execução deste trabalho, pelo que lhe fico desde já agradecido.

Com os melhores cumprimentos,
Carlos Leitão Carreira
Arqueólogo

Tlm. 93 464 10 23

E-mail: leitaocarreira@gmail.com

3. Comentário de L.G.:

Meu caro Carlos Leitão:

Temos muito interesse em colaborador nesta sua pesquisa, cuja natureza não referiu mas que julgo se destine a fins académicos. O conhecimento da presença histórica portuguesa em África (e no resto do mundo) interessa-nos a todos, nós, portugueses, mas também aos africanos e demais povos que herdaram os vestígios dessa presença. No que diz respeito ao património edificado, há necessidade de ser inventariado, estudado, protegido, conhecido, divulgado. Louvo, por isso, os seus esforços.

No que diz respeito à(s) fotografia(s) que me pede, terá que fazer a gentileza de contactar os respectivos autores (Fernando Inácio e Carlos Silva), com vista a uma eventual cedência. Posso dar-lhe informação adicional sobre as fotos e o seu contexto. Não posso ceder-lhe os originais (que de resto não tenho, tenho apenas cópias em suporte digital, com maior ou menor resolução). Espero que as suas diligências sejam coroadas de êxito. Não tenho dúvida que os amigos e camaradas da Guiné, em questão, Fernando Inácio e Carlos Silva, irão dar-lhe uma resposta positiva.

Quanto ao resto sabe qual é a política do nosso blogue:

Qualquer texto ou imagem publicada no nosso blogue pode ser reproduzida, desde que: (i) não se destine a fins comerciais; (ii) seja pedida a devida autorização por mail ao(s) editor(es) do blogue; e, por fim, (iii) seja feita a citação expressa da fonte (blogue e autor do documento).

Disponha sempre. LG
_________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

3 de Julho de 2007 >
Guiné 63/74 - P1914: Tabanca Grande (21): Em Farim, em 2007, imaginando um Unimog com tropas portuguesas ao virar da esquina... (Fernando Inácio)

1 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2496: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (5) (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P3409: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (1): Entrevista à Gazeta das Caldas

Capa do segundo livro do Beja Santos, Diário da Guiné, 1969/70: O Tigre Vadio. Lisboa: Círculo de Leitores / Temas e Debates. 2008.

Foto: Cortesia da editora.

O Mário já nos tinha antecipadamente, em 10 de Outubro passado, enviado o programa das festas do lançamento:

"É só para confirmar que o Tigre Vadio tem lançamento marcado para 11 de Novembro. Nessa data, serão apresentados ao público [, no Museu da Farmácia,] 3 novos núcleos museológicos que tem a ver com a nossa guerra: Os medicamentos do Laboratório Militar, os equipamentos das enfermeiras pára-quedistas e os primeiros socorros dos aparelhos da Força Aérea que iam levar e trazer os nossos feridos.

"Nesse dia, haverá visitas guiadas ao Museu da Farmácia, único à escala dos museus que têm a ver com o combate ao sofrimento humano. O livro será apresentado pelo general Lemos Pires e pelo escritor António Valdemar. Fico receptivo a organizar um almoço baratinho, caso a malta pretenda fazer uma assembleia-geral do blogue até às 16.30, hora que começam as cerimónias no Museu, com a presença do Chefe de Estado Maior da Força Aérea. Um abraço do Mário".


1. Mensagem de Beja Santos, com data de 30 de Outubro de 2008, para a jornalista Natacha Narciso (*) e conhecimento ao nosso blogue:

Assunto: Respostas ao questionário sobre o livro "O Tigre Vadio"


Prezada Natacha Narciso, Obrigado pelo seu email. Vou procurar responder ao seu questionário, de modo sintético. Se precisar de mais elementos, não hesite em escrever-me ou telefonar-me (213564686). Receba os cordiais cumprimentos do Mário Beja Santos.



Creio que este é um segundo volume de memórias. Porque decidiu agora lançá-los?

Conforme expliquei no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/ ), onde estas narrativas foram inicialmente publicadas, tinha o propósito de escrever todo o diário da minha comissão na Guiné entre 1968 e 1970 (cerca de 25 meses) quando me reformasse. Ora o autor e editor do blogue, o meu camarada Luís Graça, apoiou a minha proposta de escrever um diário sob a forma de um episódio semanal, o que veio a acontecer entre 2006 e 2008.

Há quem se mostre surpreendido nos livros Na Terra dos Soncó e O Tigre Vadio (editados por Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2008) registar de forma inusitada o nome das localidades, dos militares e dos civis, os episódios trágicos e acontecimentos corriqueiros. Tive inúmeros suportes, a começar pelas centenas de aerogramas que enviei à minha namorada.

Foram sobretudo razões de pudor que me impediram de concretizar este projecto mais cedo: receei que toda esta descrição soasse a pretensiosismo, agora que o Beja Santos caminha para velho vamos ter o relato das suas façanhas, a existência heróica que levou na floresta profunda, rodeado de alguns dos soldados mais valentes do mundo.

Que idade tinha?

Combati na Guiné quando tinha entre 23 e 25 anos.

Que impacto é que teve na sua vida a participação naquela guerra?

A guerra, em toda a sua crueza e brutalidade, reforma a nossa existência pelas aprendizagens que exige. Como se escreve no 1º Vol. do diário:

“Era uma vez um menino alferes que chegou à Guiné e foi lançado no regulado do Cuor, no Leste, em 1968. A sua missão principal era proteger o rio Geba, garantindo a sua navegação, indispensável para continuação da guerra. Mas havia outras missões, para além de proteger o rio: emboscar, patrulhar, minar, atacar e defender, garantir um professor para as crianças, reconstruir os quartéis flagelados, levar os doentes ao médico, praticar a justiça com o régulo, um destemido Soncó. Era uma vez um alferes que aprendeu a trabalhar com um morteiro 81, a emboscar na calada da noite, a enterrar os mortos e levar os moribundos às costas”.

Quem teve esta experiência, teve de mudar. É uma aprendizagem radical: matar e ver morrer, ver desaparecer todos os bens consumidos pelo fogo, amar e considerar os seus soldados, aprender a cuidar dos outros. Muda-se para todo o sempre.

Trata-se de um trabalho autobiográfico?

Sim, tudo o que se escreve nestes 2 livros pode ser questionado mas é autobiográfico.

Entre os acontecimentos que relata, o que destaca?

A reconstrução de Missirá, que foi devorada pelas chamas e reconstruímos em tempo recorde, sem diminuir o esforço de guerra. Vivi uma gesta colectiva, limitei-me a puxar pelo ânimo dos meus soldados e dos civis. É muito belo ver uma povoação renascer das cinzas, com o esforço de quem faz a guerra, de quem sonha com a paz. Descrevo esta reconstrução no 1º livro.

No 2º livro há um episódio pungente, a operação Tigre Vadio, entrámos num santuário do PAIGC no pino do calor, no fim de Março de 1970, foi uma chacina. A retirada foi duríssima, com os soldados a morrer de sede.

Considera importante que quem participou nos eventos conte a sua própria história?

É indispensável, toda a guerra da Guiné precisa de ser contada, parcela por parcela. Há muitos episódios mistificados. Leio em quase todos os livros que a luta armada começou em Janeiro de 1963, desencadeada pelo PAIGC. É mentira, começou em 1961, começou a ser feita por uma força rival do PAIGC, no norte da Guiné. Há muitos episódios mistificados porque os relatos das operações não correspondem à verdade. É crucial que cumpramos este dever de memória, todos aqueles que combateram de ambos os lados.

Qual a sua opinião sobre a forma como tem sido contada a História da Guerra da Guiné? Há muita investigação ainda por fazer?

Há muito a fazer, a investigação sobre o princípio da luta armada, a forma como Salazar e o seu regime recusaram a solução política negociada, por exemplo. O trabalho que se está a fazer no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné é da maior importância. Mas os militares e civis que viveram aquela guerra não podem continuar a silenciar os factos.

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Nota de L.G.

(*) Mensagem de
Natacha Narciso, de 30 de Outubro de 2008:

Assunto: Questões Livro

Bom dia Dr. Beja Santos:

O meu nome é Natacha e trabalho na
Gazeta das Caldas. Gostaria de lhe colocar algumas questões sobre o seu livro, que será lançado a 11 de Novembro, de modo a produzir um artigo para este semanário.

Tomo a liberdade de lhe enviar algumas perguntas.

1. Creio que este é um segundo volume de memórias. Porque decidiu agora lançá-los?
2. Que idade tinha?
3. Que impacto é que teve na sua vida a participação naquela guerra?
4. Trata-se de um trabalho autobiográfico?
5. Entre os acontecimentos que relata, o que destaca?
6. Considera importante que quem participou nos eventos conte a sua própria história?
7. Qual a sua opinião sobre a forma como tem sido contada a História da Guerra da Guiné? Há muita investigação ainda por fazer?

Agradeço antecipadamente a sua colaboração.

Com os melhores cumprimentos,

Natacha Narciso
Jornalista

Gazeta das Caldas
Tel.: 262 870 050