sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3747: Fauna & flora (9): Do macaco-cão ao macaco-fidalgo... à mesa (José Nunes / Artur Conceição)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > Visita ao Cantanhez dos participantes do Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > 2 de Março de 2008 > Os macacos-fidalgos vinham, de manhã, acordar-nos e dar-nos as boas vindas (*)...

Foto: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do José Nunes, com data de 11 do corrente:

Como descrevi no poste sobre a Missão Católica ou missão heróica (**),comi macaco-cão à mesa com os missionários italianos na Missão,não por mero prazer mas por necessidade. O caçador da Missão era um jovem de nome Cabi, os missionários entregavam-lhe uma espingarda de caça e ele saía à caça. Quando regressava tanto podia vir um macaco,como meia dúzia de patos farons,era o que aparecia.

A carne é muito adocicada,como se temperassemos a carne de vaca em vez de sal pormos açucar.
Nas tascas do Pilão e de Bandim era normal ver-se assarem macacos para petiscarem, desde que houvesse água de lisboa sabe!

Sempre me causou muita náusea ver o animal inchar por acção do fogo,muitas vezes era assados tal cpomo eram caçados,e quando espreitei para a panela de bianda que era cozinhada, a primeira coisa que vi foi a cabeça. Fez-me muita náusea,e desde então,nunca mais tive curiosidade de ver.

Para dar comida aos leprosos era necessário recorrer de engenho e tudo era comestível.

Por onde andei vi macacos na ilha de Bissau, ali para os lados de Prabis, na Ponta do Inglés [Xime], e em Bissum-Naga.

Mas parece que eram muito ariscos e não facilmente domesticáveis.

Cordiais Saudaçoes a toda a Tabanca.

José Silvério Nunes
1º Cabo Mec Elect de Centrais
Beng 447
Brá, Bissau, 1968/70

2. Mensagem de Artur Conceição (ex-Sold Trms Inf e Cond Auto, CART 730, Bissorã, Farim e Jumbembém, 1965/67 ):

Meus caros Luís graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote:

Este será o meu modesto contributo para uma causa tão nobre como é a defesa do nosso “primo” babuíno, em que está empenhada Maria Joana Ferreira da Silva, investigadora portuguesa, a fazer, no Reino Unido, a sua tese de doutoramento sobre o macaco-cão da Guiné,

Quando da minha passagem pela Guiné nos anos de 1965 a 1967, existiam muitos macacos, e de várias espécies.

Insisto: no meu tempo - e com isto quero ressalvar o facto de que a Guerra na Guiné não pode ser tomada como sempre igual, tudo evolui, para não se correr o risco de entrar em contradições inexistentes. A guerra durou 13 anos, e teve várias fases, que eu não me atrevo, por incapacidade, a definir, mas todos sabemos que os militares que passaram pela guerra na Guiné, essa guerra foi muito pior para alguns do que para outros, em função do período em que por lá passaram.

No início da guerra, a fauna era muito mais abundante do que no final da guerra, e não vale a pena inventar as razões, dado que são tão óbvias que todos percebem.
Em relação aos macacos, conheci três espécies diferentes, embora saiba que existem mais para além destas:

(i) O macaquinho sagui, pequenino, engraçado, e que era propriedade de algum militar que os tinha a seu cargo;

(ii) O macaco-cão, o tal babuíno que se procura e que quase todas as unidades militares possuíam como mascote. (Era pertença de todos, embora mais amistosos com alguns, que lhes dedicavam mais atenção);

(iii) E finalmente o macaco-fidalgo, que talvez por ser bastante mais ágil e muito mais barulhento, nunca o vi em cativeiro na Guiné.

Comi macaco em Bissau num restaurante que tinha essa especialidade, e que ficava localizado numa rua em frente aos Correios, para o lado do Forte da Amura, uma ligeira subida do lado esquerdo. O nome cabrito pé da rocha para mim é novidade (***).

Para colocar alguma ordem, eu comi porque me garantiram que era macaco fidalgo, porque. sem tal garantia, o macaco cão penso que não seria capaz de comer, sendo que uma das razões era exactamente o contacto que tinha com eles, o macaco cão.

Para além de macaco fidalgo confeccionado em restaurante, e que já não posso dizer se gostei ou não, comi também gazela, uma ou duas vezes, javali, várias vezes, águia e raposa uma vez. Cobra... embora digam que é um petisco, penso que era mais fácil comer capim.

Utilização de macacos para fins medicinais ou outros nunca me apercebi. Os nativos capturarem macacos para os comer também não me parece, pelo menos na zona dos Fulas onde estive 18 meses.

Macacos cão em grupo também nunca vi, mas macacos fidalgo era frequente aparecerem na estrada que liga Jumbembem a Canjambari, a Oeste de Farim, na região do Oio. Eram grupos constituídos por duas a três dezenas, de pelagem bastante mais escura que o macaco cão, muito ágeis e muito barulhentos, de cauda mais alongada e que pareciam voar de uma árvore para a outra.

A captura do macaco é muito fácil, uma vez que o macaco fecha a mão para apanhar o isco e nunca mais a abre, também há humanos assim…!! Se o orifício for pequeno, a mão não sai e o macaco fica preso.

Uma das grandes virtudes do macaco é ser o grande propagador da semente do cajueiro, uma vez que ele vai roubar as castanhas do cajú e foge, levando-as na boca. Quando tenta trincá-las, a castanha liberta um liquido amargo e ele deita-a fora, dando origem a um novo cajueiro naquele local.

Um abraço do tamanho do Cacheu porque o Cumbijã eu não conheci...

Artur António da Conceição
Damaia - Amadora

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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes desta série:

13 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3734: Fauna & flora (8): O estudo do Papio hamadryas papio (Maria Joana Ferreira Silva)

13 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3733: Fauna & flora (7): Babuínos, chimpanzés, caçadores, militares, pitéus e... turismo científico (Pepito)

13 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3732: Fauna & flora (6): A mensagem da Maria Joana e a resposta do Patrício Ribeiro

12 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3727: Fauna & flora (5): Coluna de Macacos Kom dizimada na estrada de Cutia para Mansabá. (Jorge Picado)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3722: Fauna & flora (4): Tudo o que sabemos sobre o macaco-kom (Jorge Teixeira / António Costa)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3721: Fauna & flora (3): Mais histórias de macacos (Henrique Cabral / Luís Faria)

11 de Janeiro de 2009 > Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)


10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3714: Fauna & flora (1): Pedido de apoio para investigação científica sobre o Macaco-Cão (Maria Joana Silva)

(**) Vd. poste de 13 de Setembro de 2008 >Guiné 63/74 - P3202: Estórias avulsas (22): Missão Católica ou Missão Heróica? (José Nunes)

(***) Vd. poste de 11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3746: História da CCAÇ 2679 (12): O Carregamento e a RVFM (José Manuel Dinis)

1. Continuação da história da CCAÇ 2679.
Episódio enviado por José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, em mensagem de 10 de Janeiro de 2009

O Carregamento

A coluna saíu de Piche pela manhã cedo, embora o sol tropical, lá do alto, já emanasse o calor fustigante. A finalidade da deslocação a Nova Lamego era para proceder ao carregamento de munições para obus 14, destinado às peças de Canquelifá. Estrada fora, o Foxtrot escoltava o pelotão do Bart encarregado do carregamento e a cavalaria, com três viaturas, duas white e uma fox, reforçavam a segurança.
Ali chegados, o alferes do Bart constatou o grande volume das caixas para carregar e a dificuldade inerente, pois cada caixa pesava cerca de sessenta quilos. Assim, veio pedir ajuda, quer a nós, quer ao pessoal da cavalaria, e logo anuímos. Decidimos dividir o número de caixas pelos três grupos. Ao Foxtrot calhou carregar em segundo lugar, pelo que dei alguns minutos para quem quisesse ir à cervejinha. Afigurava-se tarefa difícil a transferência daquele material, exigindo vários elementos em cima das viaturas para recepção e acondicionamento, outros a transportar do armazém, dois homens para cada caixa, com esforço evidente.
Quando chegou a vez dos madeirenses, o pessoal já tinha tirado um plano e passaram à execução. Era impressionante a desenvoltura na manobra: dois homens elevavam uma caixa, que colocavam às costas de cada um dos que transportavam até à viatura, onde outros dois a recolhiam e arrumavam, tudo acompanhado com larachas e boa disposição. Comparado com o desempenho anterior, a malta parecia estar na brincadeira. Ao meu lado, alguns militares olhavam com surpresa. Num pequeno grupo, um major perguntou quem eram aqueles gajos.

- É o pessoal do Foxtrot, meu major - respondi com vaidade. Quis saber mais duas ou três coisitas a propósito do pessoal e respondi, causando alguma admiração.

Foi sempre um grupo fantástico, onde se cultivou a solidariedade e a boa disposição

RVFM

Regressava do mato às tantas da noite. No aquartelamento a escuridão casava com o silêncio da noite. Dirigia-me para o meu quarto, quando reparei haver luz no quarto que antecedia. Olhei, e no interior estava um furriel de transmissões do Bart dedicando-se a qualquer trabalho. Entrei, e quando o vi com um ferro de soldar, sobre uma tábua, a alinhar e a fazer ligações com pequenos transistores, que eu não sabia o que eram, perguntei-lhe, na paródia, se estava a fazer o T.P.C.
Sorriu e explicou-me que estava a fazer uma mesa de mistura. Arrebitei as orelhas. Qual era o interesse dele? Nada em particular, mas como tinha a profissão de sonoplasta na Emissora Nacional, deu-lhe para aquilo, sem qualquer objectivo. Perguntei-lhe de quantas entradas dispunha a misturadora, e se poderia ter aplicação prática. Concluímos que sim, poderia ter aproveitamento. Falámos sobre a E.N., já que eu era ouvinte da Rádio Universidade, transmitida por aquela estação.

- Então, e se fizéssemos uma emissora em Piche? - Perguntei-lhe.

Podia ser, utilizando um rádio militar como emissor, mas seria necessária uma licença, em conformidade com o que lei exigia.

- Licença? Interroguei-me. Se isso fosse imprescindivel, era melhor esquecer a ideia.
- Calma - disse ele - Se abafarmos a emissão, ninguém fora de Piche vai ter conhecimento da rádio.
- Porreiro, e como é que se abafa a emissão? - Voltei a perguntar.
- É simples - serenou-me - Recorremos a uma antena horizontal, com cerca de vinte metros, o comprimento do ediíficio, colocada a pouca distância do telhado, porque o zinco encarrega-se do abafanso.
- Porra, pá, sabes do assunto, referi admirado.
- Sim, mas não temos discos, nem prato, torna-se necessário comprar disso.

Pus-lhe à consideração, se o meu gravador e as minhas cassetes, não serviriam para fornecer a música, expliquei-lhe a minha ideia, de seleccionar a gravação e entrar com a voz durante a mudança de cassete ou emitir música, simplesmente.
Servia, claro, e podíamos tentar.

Ok, estava decidido, ele acabava de construir a mesa de mistura, a partir de uns transistores gamados dos rádios portáteis que lhe levavam a reparar. Rapidamente esboçámos uma programação simples, para emissões de uma ou duas horas, talvez a partir das vinte da noite, para entreter, especialmente o pessoal dos abrigos.

Assim nasceu a RVFM - a Rádio Voz do Furriel Miliciano, em homenagem ao construtor do equipamento, que funcionou com emissões irregulares e onde tive pouca participação, pois dormia metade das noites no mato e, pouco depois, saí de Piche por dois períodos, estive de férias em seguida e, no regresso, fui para Bajocunda, definitivamente.

O França

Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa

João Baptista França de seu nome, foi um brioso militar. Oriundo do meio rural, onde exercera actividade no campo até à incorporação no BII-19. Foi um elemento de grande valia, sempre pronto para qualquer actividade, amigo dos amigos, com bastantes provas de solidariedade, destemido quanto baste, porque o arrojo deve ser controlado pelo bom senso.
Bem disposto e jovial, foi dos elementos que mais contribuíu para a coesão do Foxtrot, o Segundo Grupo de Combate, manifestando-se com orgulho relativamente ao colectivo.
Educado, disciplinado e voluntarioso, foi um camarada que grangeou a estima de todos os que o conheceram e com ele privaram.

JMMD
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Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3685: História da CCAÇ 2679 (11): Encontro imediato e estórias contemporâneas (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P3745: O Nosso Livro de Visitas (52): Fernando Cepa, ex/Fur Mil, CART 1689 (1967/69), natural de Esposende

1. Mensagem enviada por Luís Graça ao nosso camarada Fernando Cepa, ex-Fur Mil da CART 1689 (Catió, Cabedul, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em 7 de Janeiro de 2009:

Fernando Cepa:

Obrigado por me teres telefonado. Fiquei a saber que és de Esposende, que estás reformado, que estás ligado hoje a vários projectos sociais, que lês o nosso blogue com regularidade, que estiveste na Guiné, na CArt 1689, 1967/69 (a que também pertenceu o nosso amigo e camarada Alberto Branquinho, ele Alferes e tu Furriel, mas de outro pelotão), que estiveste na construção do aquartelamento de Gandembel… e que queres comprar e ler o livro A retirada de Guileje: a verdade dos factos, escrito pelo ex-comandante do COP 5, hoje Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima, o homem que tomou a difícil decisão de retirar de Guideje, em 22 de Maio de 1973 (e que também faz parte do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)…

Como te disse ao telefone, és bem vindo ao nosso blogue, podes e deves fazer parte da nossa Tabanca Grande e ficas desde já convidado a contar algumas das tuas histórias…

O livro do Coutinho e Lima terá que ser encomendado pessoalmente. Escreve (ou telefona para o autor):

Rua Tomás Figueiredo, nº. 2 - 2º. Esq.
1500 – 599 LISBOA
Telefone: 217608243
Telemóvel: 917931226

Email: icoutinholima@gmail.com

Com portes de correio, o livro (preço de capa: 20 €) deve custar entre 22 e 24 euros… Podes mandar um cheque ou mandar vir à cobrança.

Mais informação aqui: 14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3618: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (2): A festa ... e a solidão de há 35 anos (Luís Graça)

Um abraço do camarada
Luís Graça
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3742: O Nosso Livro de Visitas (51): Luís Socorro Almeida, ex-Alf Mil da CCAÇ 19, Guidage

Guiné 63/74 - P3744: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (12): Spínola podia ter feito muito mais... (Rui Alexandrino Ferreira)


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia (*)> Dois homens de Guileje e membros da nossa Tabanca Grande: à direita, (i) o Cor Art Ref Coutinho e Lima, que acabou de lançar em 13 de Dezembro último o livro A retirada de Guileje: a verdade dos factos (Recorde-se que foi ele quem, então major e comandante do COP 5, tomou à revelia do Com-Chefe a decisão de retirar as NT e a população civil de Guileje, em 22 de Maio de 1973, sob a pressão das forças do PAIGC) ; e à sua esquerda, (ii) o ex-Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (aqui, na foto, agradecendo ao seu antigo comandante, em seu nome pessoal e da sua família, a decisão de abandonar Guileje, decisão essa que terá salvo a vida a muita gente) (*).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem do Rui Ferreira, membro da nossa Tabanca Grande (**)

Assunto - Guiné e sempre a retirada do Guileje

Meu caro Luis

Não conheço pessoalmente nem o então major Coutinho e Lima nem o então piloto da Força Aérea Portuguesa António Martins de Matos (***). Não me move portanto nenhum interesse na causa, não estou ligado a nenhum deles, não me devem nada e idem, idem aspas, aspas, no que comigo se passa.

Li com toda a atenção o texto do segundo, que considero isento, corajoso, claro e totalmente em consonância com o que sempre pensei sobre o acontecimento. Discordando de muitas coisas e da forma de agir, prepotente e autoritária, do marechal Spínola, numa coisa infelizmente tenho de com ele concordar. Não se fez tudo quanto se podia para conservar o Guileje.

Não quero aqui fazer julgamento de tantos heróis anónimos, soldados de Portugal que comeram o pão que o Diabo amassou naquele recanto perdido no cu de Judas, como diria a gíria militar. E, se é bem verdade que a Guiné era um inferno e que por lá ficaram tantos jovens como nós eramos então, ainda que fosse só em memória de quantos se bateram e sacrificaram a própria vida na sua defesa bem merecia que se tivesse ou pelo menos se tentasse ter feito bem mais do que se fez.

Sem pretender ser belicista que nunca o fui, sem invocar as duas cruzes de guerra que ostento ao peito, sem invocar a Torre e Espada que me era devida por acumulação de condecorações por feitos em combate, sem lembrar que fui ferido nas duas comissões que cumpri na Guiné, considero que era imperioso que os oficiais, sobretudo os do Quadro Permanente, perante os soldados, filhos do povo que miseravelmente pagos e explorados serviam a Pátria, era imperioso, dizia, que, quem escolheu a carreira militar como forma de vida, livremente, no mínimo honrasse o Juramento que a ela fez. A meu ver não foi isso que aconteceu.

Mas conservo em mim a angústia que senti, o mal estar, o desconforto, uma certa dor de alma quando em Monte Real o Con Ref Coutinho e Lima pretendeu explicar o que se passou no abandono do Guilege. Não conseguiu minimamente cativar a plateia, nem despertou o interesse da maioria. A instalação sonora tambem pouco ajudou. E apesar do tema continuar a ser actual, como comprova a vasta publicação de novos depoimentos sobre a Guiné e [o número] cada vez maior de memórias de antigos combatentes, de visitas ao nosso blogue, de encontros de gente que se sente bem junto de quem estve consigo na guerra. E nada de novo nos prendeu a atenção.
Votos de longa vida para a nossa tertulia que é sempre uma companhia agradável.

Um grande abraço do

Rui Alexandrino Ferreira

2. Comentário do L.G.:

Meu caro Rui, não me compete fazer comentários aos teus comentários sobre o caso Guileje. Faço votos apenas para que o debate sobre Guileje e, no caso presente, sobre a versão dos acontecimentos feita por Coutinho e Lima no seu livro, continue a pautar-se pela correcção, objectividade e elegância com que estamos habituados no nosso blogue.

Quero apenas corroborar o que disseste sobre a intervenção do nosso camarada Coutinho e Lima, no III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia, em Monte Real, em Maio passado: não foi, de facto, feliz, por um conjunto de circunstâncias adversas, a começar pela falta de condições acústicas da sala e da má instalação sonora...

A excitação da pessoal à mesa (cerca de 100 pessoas, que acabavam de se instalar) e o improviso do Coutinho e Lima também não ajudaram a passar a mensagem... Foi pena, sobretudo para ele, que há trinta e muitos anos não tinha a oportunidade de falar para um auditório, como aquele, composto de antigos combatentes da Guiné. Foi pena também para nós, que podíamos estar mais atentos e receptivos e mostrar um pouco de mais de simpatia por um militar português que esteve condenado ao silêncio durante metade de uma vida... De qualquer modo, todos nós aprendemos com os erros. Felizmente que há outros, bem mais graves.

PS - Rui: A triste história do Iero Embaló não está esquecida. Recebi o documento que me mandaste pelo correio. Como sabes, estive de férias no Natal e Ano Novo. Mas o caso vai apreciado pela nossa equipa editorial. Cuida de ti, também. Vê hoje na RTP 1, às 9.30h, a II Parte do filme-documentário As Duas Faces da Guerra. Guileje ocupa um parte substancial do documentário, com visita ao local e entrevistas a vários protagonistas de um lado e de outro, incluindo o Coutinho e Lima. Ontem passou a I parte.
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2854: O nosso III Encontro Nacional, Monte Real, 17 de Maio de 2008 (1): Foi bonita a festa, Joaquim e Carlos: Obrigados!

(**) O Rui Alexandrino Ferreira é natural de Angola (Lubango, 1943) e vive em Viseu, terra que adaptou e onde tem muitos e bons amigos.
Fez o COM em Mafra em 1964. Tem duas comissões na Guiné, primeiro como Alferes Miliciano (CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67) e depois como Capitão Miliciano (CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72). Fez ainda uma comissão em Angola, como capitão. Publicou em 2000 a sua primeira obra literária, Rumo a Fulacunda (2ª ed, Palimage, Viseu, 2003).

É hoje coronel, na reforma.

(***) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)

Guiné 63/74 - P3743: Estórias do Jorge Fontinha (3): O meu Grupo de Combate (Jorge Fontinha)


1. Mensagem de Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 9 de Janeiro de 2009:

Caro Carlos Vinhal:

Tenho andado entretido a ler os Posts do Sampaio Faria que me fazem reviver melhor que as minhas próprias memórias. Todavia ocorreu-me hoje mandar uma outra Estória, esta a do meu Grupo de Combate, que enviarei em anexo deste Email. Será a 3.ª e será: "O MEU GRUPO DE COMBATE".

Tenho pena de não ter uma réplica do Crachá que eu próprio, na altura fiz. Mando no entanto uma fotografia em que ele está, ao lado do da Companhia, à entrada do então destacamento de MATO DINGAL.

A encabeçar a Estória gostaria que figurasse a foto militar e o Crachá da Companhia.

Um abraço para toda a Tertúlia.
Jorge Fontinha

O MEU GRUPO DE COMBATE

O meu Grupo de Combate, constituído já em Bula, é organizado inicialmente sem Oficial, tendo de começo, uma formação atípica de 3 furriéis. O Sampaio Faria, que o comandou de início, eu próprio, Jorge Fontinha e o também Furriel Antonino Chaves. Um mês passado, chega finalmente o Alferes Rua Gaspar, que o passaria a comandar até ao desembarque em Lisboa, tendo saído da composição, o Sampaio Faria que viria a integrar o 2.º Grupo, comandado pelo Alferes Carlos Barros.

Como furriel mais antigo, passo a substituir o Alferes, nas suas ausências, que diga-se de passagem era a maioria das vezes...

Foto 1 - Alferes Gaspar e Jorge Fontinha

Foto 2 - Furriéis Jorge Fontinha e Antonino Chaves

A minha secção era a 1.ª, a da frente, que desbravava caminho e levava os restantes, em bicha de pirilau, ao objectivo e por vezes até par o evitar!...

O meu desempenho nessas funções, chegou a ser famoso, ao ponto de quando saía mais que um Pelotão ou mesmo a Companhia completa, era sempre o meu que ia na frente. Na verdade, uma bússola um mapa e um rádio Banana, para além da G3, eram os meus instrumentos permanentes de trabalho.

Foto 3 - Da esq. para a dir: Alferes Gaspar, Soldado Mário Lobo, Furriel Fontinha, Soldado Sampaio (de pé) e Cabo Tony Pinho

Houve até quem me baptizasse de Inchalazinho!... Foi o Bom e grande amigo, Antonino Chaves. (Há trinta e seis anos que não o vejo, todavia sei onde está e com ele mantenho troca constante de Email's. O velho Obelix, que vive na sua ilha nos Açores!... Ainda contarei o contexto em que ele no auge da sua fúria contida, mas amiga e compreensiva o fez!... O esgotamento era tal e a minha persistência também... eu sei que ele compreendeu.

Inchalá, era o guia mais famoso, em toda a região de Bula e quase todos o pretendiam para servir de guia. Eu não o fazia e nem queria nenhum à minha frente. À minha frente eu só queria o Octávio Domingos, com a sua HK 21 e logo atrás de mim, o Azevedo, em 3.º na progressão.

Eram constantes as missões que nos foram confiadas, na primeira fase, da nossa permanência em Bula, tendo aí ocorrido o nosso baptismo de fogo, já descrito na minha primeira História publicada no Blogue, e igualmente ocorrido a primeira morte no Grupo e concretamente, na minha secção, o Celestino. Hoje não me disponho a contar os pormenores. Será para uma outra oportunidade. Honra à sua memória.

Ano Novo, vida nova. Nos primeiros dias de Janeiro, somos destacados da sede da Companhia e rumado para Teixeira Pinto, onde fomos postos à disposição do CAOP 1, Comandados na altura, pelo Sr. Coronel Rafael Durão.

Foto 4 - Na "Ponte" Alferes Nunes, entre Teixeira Pinto e Cacheu

Nesse período que decorreu até 25 de Maio, altura a que o resto da Companhia se veio juntar a nós, passamos a colaborar activamente com patrulhamentos, seguranças e emboscadas, no avanço e cadência de ritmo dos trabalhos da estrada Teixeira Pinto-Cacheu que é accionada pelo CAOP 1. Por outro lado, em parceria com Fuzileiros Especiais, Paraquedistas e Comandos, são efectuadas Operações de grande envergadura, sobretudo na Região de BURNÉ e na Península do BALANGUEREZ.

Foto 5 - Com o Enf. Silva, no Balanguerez

A vinda do resto da Companhia, sem o 3.º Grupo que entretanto havia sido deslocado para BISSUM, veio reforçar-nos no esforço de colaboração com as Tropas Especiais do CAOP. Nem por isso a nossa actividade viria a diminuir.

Entretanto, Bissau começou a ficar carente de protecção urbana e eis que a Companhia para lá foi, a fim de colaborar também, com guardas, escoltas, rondas, patrulhamentos, etc. Foi durante o mês de Agosto.

De regresso a Teixeira Pinto, voltamos à rotina anterior, que viria a estender-se até ao fim de Novembro.

Findo este período, a Companhia reagrupa-se finalmente em Bula, mas em missão diferente.

O meu Grupo de Combate, juntamente com alguns Cabos e Soldados Especialistas, foi para uma missão de Reordenamentos, aliás como a restante Companhia. A nós coube-nos o Destacamento de MATO DINGAL

Foto 6 - Entrada do destacamento de MATO DINGAL, com o Crachá da Companhia e o do 4.º Grupo de Combate (da minha autoria)

Aí fizemos de tudo. Construímos casas de tijolo, demos aulas às crianças, prestamos assistência medicamentosa à população local e com eles até assistimos à exibição de filmes, naturalmente e superiormente organizado pelo saudoso e grande amigo já não entre nós, do Furriel Fotocine que nos visitava com frequência

Foto 7 - Ensinando as crianças a fazer uma horta, nas traseiras da escola

Foto 8 - Dando aulas em Mato Dingal na escola local, por nós improvisada

Foto 9 - Festejando o Natal de 1971, com parte do Grupo de Combate, em Mato Dingal

Jamais esquecerei o Furriel Fotocine, Fernando Barradas. Paz à sua alma! Foi um grande Homem. As minhas homenagens. Já na altura era Jornalista de “O Comércio do Porto”. Nesta missão, os bravos soldados foram trolhas, carpinteiros, pedreiros, etc. O Alferes Gaspar, o Engenheiro, Arquitecto e Construtor Civil. O Furriel Antonino Chaves, o Vagomestre, o Ministro da Administração Interna, o homem do sistema… O Cabo Silva, o médico, o Enfermeiro, o parteiro e até o Furriel Chaves lhe serviu de assistente na sala… de Partos. Eu fui o professor, coadjuvado pelo Cabo Tony, o homem do Lança –Rockets! É evidente que a maioria das aulas foram dadas por ele. A esta missão, confesso que me baldei um pouco. Eu era mais, não um homem do sistema mas da guerra!...

De regresso a Bula, a Companhia reagrupa-se e prepara-se para os últimos meses de Comissão.

A partir de Julho de 1972 o Grupo de Combate, juntamente com a restante Companhia, retoma a missão original, Operações ao Choquemone, patrulhamentos ao redor da cidade de Bula, protecção aos grupos de desminagem, escoltas e outras acções de protecção à população civil.

Finalmente o regresso a Lisboa, no final do mês de Setembro

Foto 10 - Alferes Gaspar, Capitão Mamede Sousa, Furriéis Fontinha e Sampaio Faria, de frente e Furriéis Antonino Chaves e Madaleno, de costas

A festa da despedida.

Foto 11 - de pé Furriel Sampaio Faria, de bigode e sentado no banco: Furriel Jorge Fontinha. De braços abertos outro furriel do Batalhão cujo nome me não recordo

Foto 12 - Furriel Sampaio Faria, Furriel Mecânico Auto Santos Mealha, Furriel de outra companhia do Batalhão e Jorge Fontinha

Fotos : © Jorge Fontinha (2009). Direitos reservados [Legendas: JF]

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3186: Estórias do Jorge Fontinha (2): Estrada de Teixeira Pinto-Cacheu (Jorge Fontinha)

Guiné 63/74 - P3742: O Nosso Livro de Visitas (51): Luís Socorro Almeida, ex-Alf Mil da CCAÇ 19, Guidage

1. No dia 3 de Janeiro de 2009, Luis Socorro Almeida deixou este comentário no nosso poste Guiné 63/74 - P2939: No 25 de Abril eu estava em... (1): Guidage (João Dias da Silva, CCAÇ 4150, 1973/74:

Olá gente!
Foi com um misto de estupefacção e surpresa que acabo de ver narrados pelo João Dias da Silva, alguns dos episódios vividos em Guidage no mês de Abril de 1974 e em especial a reunião com os membros do PAIGC em pleno Senegal na qual estive presente e tenho lá por casa algumas fotos desse simpático encontro e ainda outros factos como a grande agitação dos pós 25 de Abril que se viveu em Guidage.
Logo que possa enviarei essas fotos

Luis Socorro Almeida
Ex-Alferes Miliciano
CCaç19
Guidage


2. Caro camarada Luís Almeida

Muito obrigado pelo teu comentário.

Esperamos que queiras aderir à nossa Tabanca Grande, onde não abundam ex-combatentes do pós-25 de Abril. Queremos entre nós camaradas desse tempo que contem aos mais velhos como foram aqueles conturbados tempos cheios de incerteza, durante os quais infelizmente ainda se registaram mortos em combate.

Se nos leres, ficarás a saber do nosso interesse na tua colaboração neste Blogue que é de todos nós.
Envia-nos uma foto dos tempos de tropa e outra actual, tipo passe de preferência e em formato JPEG, para seres apresentado à Tertúlia.

Como poderás ler no lado esquerdo da nossa página, o preço para seres admitido como tertuliano é o envio das fotos que te pedi mais uma pequena história.

Recebe um abraço em nome da Tertúlia.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3739: O Nosso Livro de Visitas (50): O interesse de António Araújo, pelas nossas cartas das ilhas

Guiné 63/74 - P3741: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Porra, meu alferes, sou cabrão, eu mato-a...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça... duas facetas do quotidiano.

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Torcato Mendonça:

Caros Editores: Já estamos em 2009. Nunca mais enviei nada.
Comentário aqui ou acolá, vontade de outros fazer...por vezes é preferível ficarem no 'tinteiro'.

Andam por aqui uns escritos... coisas do passado e outras a merecerem revisão. Falta-me garra e, por outro lado, estava muito visível.

Posso vir a escrever sobre os macacos cães...posso..., pois: deram-me cabo de uma emboscada...Seguiam-nos, à devida distância, nas colunas. Berravam se fossem incomodados... Fui fazer uma operação na zona de Nova Lamego, caminhando pela rua tres ou quatro militares velhos e um macaco cão. Diz um Major: "Ora aí está. O militar mais apresentável é o macaco"... Sacana, o macaco, claro.

No Leste haviam muitos. Que me lembre nunca comi. Era e sou de boa boca. Comi javali, gazela, vaca de mato, etc. Cá já comi cobra, lagarto, rã (pernas). Ora com as fomes que por lá passei, nunca me faria rogado a um bom naco de macaco....até uns peixes (quatro címetross o máximo) os putos apanhavam-nos, esfregavam na areia para sair a viscosidade e eram fritos em azeite e piri-piri. Proteínas e deliciosos se engolidos com vinho e coca-cola....Era melhor que feijão frade ao pequeno almoço, almoço e jantar...Vida de mato...
Torcato Mendonça

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça e o seu grupo de combate, no regresso a casa...

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


2. Estórias de Mansambo (14) > Frio de Inverno (*)

por Torcato Mendonaça


Quase chocaram ao dobrar a esquina. A culpa seria do vento frio, pois ambos iam de cabeça baixa. Fizeram rápido desvio. Nas suas caras, dois sorrisos foram um cumprimento.

Ele olhou-a, sorrindo ainda e desejou-lhe:
- Tudo de bom.

Ela agradeceu. Olhou-o a mostrar a felicidade que só uma mulher grávida de muitos meses consegue deixar transparecer.

Entrou na Praça, sentindo o ar gelado descendo da Estrela. Apressou o passo na direcção do Café logo ali e enrolou-se mais no cachecol.

Sentou-se junto à vidraça olhando o movimento da rua cá em baixo. Ao mesmo tempo, interrogava-se:
- Porque teriam as mulheres grávidas uma feminilidade tão grande e uma beleza infinita? Era a vida a vir… não … coisas de deusas…

- Aí está o café curto e quente - disse-lhe o dono do café. - Parece estar muito bem disposto hoje e não ter frio.

Mas tinha. O frio vai passando… e a disposição é da crise…

Sem querer, olhando através da vidraça, regrediu cerca de quarenta anos. A memória… a memória… tem razão o Professor, tem razão quando, logo no início O eco silencioso” diz:
- De todas as funções cognitivas, de todas as armas do intelecto, aquela cuja perda mais assusta a vítima... é sem dúvida a memória…
- Bolas, de facto a memória.

Quase instantaneamente regredia quarenta anos e lá voltava. Quase se sentia lá. O mesmo ambiente a envolvê-lo. Quase... e tão longe no tempo e no espaço. Recordava-se bem de tudo. Diacho, diacho, porque correlacionava certos acontecimentos do seu quotidiano com esse longínquo passado? Com vivências tão díspares? A case study ou uma parte dele teria lá ficado...louco.

Partilho, então, esta recordação. Se quiserem ouçam:

Estavam naquela tabanca enorme, talvez a servir de tampão ao avanço da guerrilha, aí pelo décimo sexto mês da comissão. Foram reabastecidos nesse dia logo a seguir ao almoço e, finalmente, veio correio. Veio também um envelope “oficial”.

Deu uma vista de olhos pelo correio pessoal e abriu a sua escrivaninha pessoal – uma velha caixa de granadas 60 – leu então o correio oficial, tirou uma velha carta e esticou-a no chão. Olhou-a demoradamente, escreveu meia dúzia de linhas no bloco e berrou cá para fora:
- Chamem os nossos furriéis…

Pouco depois aí estavam eles, um ainda a esfregar os olhos e olhavam-no com cara de caso. Devia vir aí borrasca.
- Vamos sair daqui amanhã. Mandaram-me apresentar no Batalhão. Os sacanas atacaram Candamã, Afiá e querem saber qualquer coisa… ou onde eles estão… Merda para isto. Leiam a mensagem e.. - não continuou.

Espavorido, olhar meio tresloucado, entrou um soldado e, de pronto, berrou apontando para um aerograma:
- Meu alferes, recebi carta da sujeita com quem vivia. Diz que está prenha…
- Pára com essa merda. Entras aqui, não pedes licença, berras e falas do quê?

O soldado começou a falar e ele, virando-se para um furriel fez-lhe um sinal. Este saiu e voltou logo.
- Não há ninguém.
- Conta lá então.
- Recebi o correio e agora, ao fim deste tempo todo, diz-me estar grávida? Desde que viemos que não a vejo. Quanto tempo está uma mulher grávida? O meu alferes sabe ou não? E os nossos furriéis?
- Sou solteiro. Somos solteiros. Mas é capaz de ser tempo demais. Não falas disto a ninguém. Como amanhã vamos embora, falo com o médico.
- Porra meu alferes, sou cabrão, eu mato-a…eu…
- Não és casado e pode ter havido qualquer problema. Não matas nada. Vamos tentar resolver o assunto. Não dizes a ninguém. A ninguém. Logo falamos depois os dois ou com os nossos furriéis.

Depois do soldado sair, acendeu um cigarro e esperou alguma palavra dos furriéis. Nada.
- Temos um problema. Além da saída de amanhã e o raio que parta. Qual a vossa opinião? - disse, cortando o silêncio.
- Ele mata-a… mas deixe-me ir falar com ele antes do jantar.
- Tirem informações e falamos depois. Aqui está longe mas olho nele. E agora? Esta agora…que chatice. Há cada uma…

Ia sabendo o que se passava pelo furriel e mais tarde por um soldado. Tratou-o sempre normalmente. Um dia, talvez quase um mês depois, falaram, sentados noutra tabanca com duas cervejas a balizarem terrenos.
- Então? Mais calmo, tudo está mais esclarecido e a vida …continua…

Nem o deixou acabar. Numa voz calma e grossa disse:
- Meu alferes, já a deixei. Mas mato-a. Isto não parece conversa do meu alferes. Esta conversa não é de si.

Calaram-se e foram bebendo em silêncio. Acendeu um cigarro, estendeu-lhe o maço e só depois falou.
- Não quero falar mais disto. Aqui há dois homens. Eu não quero que estragues a tua vida. Cada um é como cada qual e a vida por vezes é uma merda.

Calou-se. Que mais havia a dizer?

O outro abanou a cabeça, cuspiu para o chão, agarrou a garrafa. Num gesto fez o alferes agarrar na garrafa e, batendo uma na outra, beberam longos tragos. Esboçaram sorrisos. Por algum tempo foram bebendo e fumando em silêncio.

Passados meses, muitos meses, numa noite fria apertaram as mãos e com os olhos disseram tudo.

Palavras para quê... uma despedida.

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste desta série de 28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (2): De Évora a Mansambo... instrução, viagem... Adeus ao meu País

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3740: Historiografia da presença portuguesa em África (15): Filatelia, da medicina tropical à Missão do Sono (Beja Santos / Luís Graça)

Guiné > 1970 > Selo de 2$50 > I Centenário da Comissão Arbitral de Bolama [1870-1970] . No lado esquerdo, a efígie do presidente norte-americano Ulysses Grant (1822-1885). Bolama foi uma ilha disputada por ingleses e portugueses, já na 2ª metade do Séc. XVIII. Em 1860 foi anexada pelos ingleses à colónia da Serra Leoa. Uma comissão arbitral internacional, presidida por Ulysses Grant, devolveu a soberania aos portugueses. Foi capital da Guiné entre 1879 e 1941. (LG)

Guiné > 1952 > Selo de $50. 1º Congresso Nacional de Medicina Tropical, Lisboa, 1952. Sobre a emergência da saúde pública e da medicina tropical em Portugal, no virar do Séc. XIX, vd. textos de Luís Graça. Entre nós, a Escola de Medicina Tropical de Lisboa foi criada em 1902, por iniciativa do Ministro dos Negócios Estrangeiros, da Marinha e do Ultramar, Teixeira de Sousa, também ele médico, poucos anos depois das Escolas de Medicina Tropical de Liverpool e de Londres (1899) e de Hamburgo (1900). Tinha como objectivo: (i) o ensino teórico e prático da medicina tropical; e (ii) a realização de missões científicas às províncias ultramarinas portuguesas bem como a colónias estrangeiras.

Em 1901, Aníbal Bettencourt (1868-1930), médico bacteriologista, director do internacionalmente prestigiado Instituto Bacteriológico, realiza a Missão do Sono a Angola para investigar a doença do sono (tripanossomíase) (**). Esta missão ajudou a reforçar, entre nós, o desenvolvimento da medicina tropical, ligada ao projecto de expansão colonial, nomeadamente em África.

Tem cabimento recordar aqui as palavras de um dos grandes nomes da medicina portuguesa, Miguel Bombarda (1851-1910), em comunicação de 26 de Outubro de 1901 à Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa:

"(....) A colonialização não é somente uma questão social e económica, mas ainda uma questão de higiene e uma questão de patologia. A prosperidade e a riqueza de uma colónia dependem primeiro que tudo das facilidades de vida que lá podem encontrar os elementos colonizadores.

"Desgraçado povo aquele que das sua colónias só pode arrancar ouro à custa de sangue! Desgraçadas riquezas aquelas que se conquistarem à custa do depauperamento da metrópole pelas vidas ceifadas e pelas existências mutiladas! Todos os dispêndios empregados em salvar vidas não podem senão redundar em riqueza e prosperidade nacionais.

"O remédio para os graves riscos que importa uma colonialização empreendida às cegas está na intervenção da medicina, com os altamente poderosos recursos de que dispõe na actualidade. A Inglaterra, a Alemanha e a França acabam de o reconhecer pela criação de centros de estudo e de ensino que hão-de simplesmente converter-se em facilidades colonizadoras e em prosperidade colonial" (...).

Historicamente falando, o herdeiro desta Escola é o actual Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade Nova de Lisboa, mais conhecido por alguns de nós, amigos e camaradas da Guiné, pela sua sua Consulta do Viajante (LG)


Guiné > 1959 > Selo de 2$50 > 1º Centenário da morte de Honório Barreto [1813-1859]. Honório Pereira Barreto, natural do Cacheu, filho de pai caboverdeano e mãe guineense, é nomeado provedor de Cacheu, por decreto de 30 de Março de 1843; em 3 de Fevereiro de 1844, domina a revolta dos Manjacos no Cacheu, com o auxílio do seu tio, Francisco Carvalho Alvarenga, comandante de Ziguinchor; no mesmo ano, em 11 de Setembro, eclode a "guerra de Bissau"; Honório Barreto domina depois a revolta dos grumetes do Cacheu, com reforços vindos de Ziguinchor; concede-lhes depois perdão, uma vez feita a paz ... Em 26 de Abril de 1859, morre na Fortaleza de São José de Bissau. (LG)

Guiné > 1964 > Selo de 2$50 > 1º Centenário da Fundação do Banco Nacional Ultramarino (BNU). Efígie do seu seu fundador, Francisco Oliveira Chamiço. Originalmente criado como Banco Emissor para as ex-colónias portuguesas e como banco de desenvolvimento, o BNU foi abrindo sucessivamente sucursais e agências em Angola (1865), em Cabo Verde (1865), na Índia (1868), em S. Tomé (1868), em Moçambique (1877), na Guiné (1903), em Macau (1902) e em Timor (1912).

Como se pode ver selo acima reproduzido, o logótipo do Banco era um emblema com um navio a vapor e a legenda, “Banco Nacional Ultramarino”, na parte superior, e “Colónias, Comércio e Agricultura” , na parte inferior. (LG)

Fotos : ©
Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2009). Direitos reservados [Legendas: LG]


1. Mensagem do Beja Santos:

Malta, fui à Feira da Ladra no sábado passado, dia 7 de Janeiro, continuo a ser um sortudo: para além de livros que me serão indispensáveis para um dos meus próximos empreendimentos, fui até aos filatelistas e aqui vos deixo uma selecção de selos com mais de 20 anos.

Alguns são muito belos, como o de 1952 alusivo ao 1º Congresso Nacional de Medicinal Tropical; o de 1959, dedicado a Honório Pereira Barreto, e o alusivo ao centenário da sentença arbitral de Bolama também são muito belos.

As colecções temáticas de selos da Guiné têm grande importância filatélica, caso das dedicadas aos insectos, répteis e fauna. Esta série que aqui hoje mostro vai para o blogue, espero que um dia se façam leilões que permitam angariar dinheiro para as despesas de manutenção com que nos devemos solidarizar.

2. Comentário de L.G.:

Agradeço, em meu nome e em nome da Tabanca Grande, estes mimos do nosso camarada e amigo Beja Santos, o maior rato de biblioteca que eu conheço e que nunca mais cortou o cordão umbilical dos afectos e das emoções que, desde 1968, o liga à Guiné e às suas gentes...
Agradeço a sua generosidade mas também o exemplo pedagógico que nos dá a todos: mesmo um pequeno selo, insignificante, pode ajudar-nos a contar uma história, a história da Guiné, das gentes que por lá passaram, incluindo estes tugas que teimam em cultivar a saudade saudável e preservar uma frágil memória...

Aqui fica um apelo: quem tiver velhos selos da Guiné, por favor guarde-os, digitalize-os e mande-nos as imagens em formato.jpg... É preciso alimentar a nossa memória... e este blogue (voraz).
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3658: Historiografia da presença portuguesa (15): Postais antigos, um relicário de João Loureiro (Beja Santos)
(**) Mário: Tens memórias trágicas da Missão do Sono, sita na tabanca de Bambadincazinha onde ficava o Grupo de Combate (da CCAÇ 12, do Pel Caç Nat 52...) que guardava as costas aos snehores de Bambadinca, durante a noite....
Era uma antiga estrutura sanitária, criada no âmbito do Programa de Luta contra a Doença do Sono, e na altura desactivada - presumivelmente em consequência da guerra. Era um edifício térreo, de tijolo de adobe, rachas de cibe e telhado de zinco (ou de colmo ?, já não me recordo). A nossa posição era mais do que conhecida pela população e pelos elementos simpatizantes do PAIGC que havia em Bambadincazinha e em Bambadinca. Em caso de ataque ao aquartelamento de Bambadinca (sede de batalhão), éramos um alvo fácil. Uma simples roquetada punham-nos a todos fora de combate.
Ali morreu um dos teus homens, num estúpido acidente com uma G3...

Guiné 63/74 - P3739: O Nosso Livro de Visitas (50): O interesse de António Araújo, pelas nossas cartas das ilhas

1. Mensagem de António Araújo, nosso leitor, que se nos dirigiu no dia 26 de Dezembro passado:

Assunto: Cartas da Guiné

Boas Festas e muito boa noite

Gostaria em primeiro lugar de o felicitar pela louvável iniciativa. Não fiz a guerra na Guiné mas vivi alguns anos por lá entre 90 e 98, conheço bastante bem o país e regresso regularmente.

A informação disponível no blog é interessante e útil. As cartas topográficas agora acessíveis são uma ferramenta de prospecção insubstituível para todos os que se interessam pela GB mas infelizmente, à parte Bolama, não consigo encontrar as cartas das ilhas: Bubaque, Galinhas, Orango, Unhocomo, etc.

Agradecia informações a este respeito pois gostaria de aceder às cartas do arquipélago.

Muito obrigado, parabéns uma vez mais e até breve.
António Araújo

2. Hoje foi enviada esta mensagem a este nosso leitor

Caro Senhor:

Muito obrigado pelas suas amáveis palavras.

Provavelmente ainda este ano irão ser alojadas na nossa página algumas cartas em falta, nomeadamente as da zona do Boé e Ilhas. Temos digitalizadas (mas ainda não disponíveis em linha, na Internet) as cartas de 1 / 50.000 de Beli, Bubaque, Caio, Cansambel, Capebonde, Cassumba, Dalaba, Gobije, Ilha Caravela, Ilha de Carache, Ilha de Jeta, Ilha de Orango, Ilha de Orangozinho, Ilha de Unhocomo, Ilha de Uno, Ilha Formosa, Ilha João Vieira, Ilha Roxa, Ilhéu do Meio, Jufunco, Sare Jaube, Tarije, Tendinto, Vendu Leidi... Trata-se de uma oferta do nosso mecenas Humberto Reis...

Temos dois problemas para resolver: (i) falta de espaço (não temos um site próprio, que de resto custa dinheiro; as restantes cartas estão alojadas na página pessoal do nosso editor, alojado por sua vez num servidor institucional...); (ii) falta de tempo...

By the way, dqui mandamos um SOS a quem puder e quiser ajudar-nos a resolver estes dois problemas...

Entretanto, se o nosso amigo Araújo nos disser porquê do seu interesse nas cartas da Guiné (científico, turístico, económico, sentimental, etc.), é possivel que o Editor do Blogue, Dr. Luís Graça, as faça chegar até si em CD Rom.

Deverá utilizar preferencialmente o endereço luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com

Com os melhores cumprimentos

Carlos Vinhal

Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3719: O Nosso Livro de Visitas (49): Mateus Sousa, suzanense que vive em Aveiro, Portu

Guiné 63/74 - P3738: Recortes de Imprensa (13): A minha Guerra - José Paulo Pestana, Correio da Manhã, de 4/1/ 2009 (José Martins)

Mensagem do José Martins, de 5 de Janeiro de 2008

Caros amigos

Como não podia deixar de ser, mesmo antes de tomar o café adquiro o CM, que de imediato me leva ao texto Especial Guerra.

Para mim é uma história pessoal, por isso contada na primeira pessoa, mas que traduz, na realidade, uma vivência colectiva: ninguém esteve sozinho na guerra, pelo que cada história pessoal, passa a história colectiva.

O texto do Cor Ref Nogueira Pestana

No texto enviado pelo nosso camarada, hoje Coronel na Reforma, José Paulo Abreu Nogueira Pestana, consta que viu descarregar, no cais de Pidjiguiti, 47 caixotes de madeira tosca, que continham os restos mortais dos camaradas falecidos em 6 de Fevereiro de 1969 no rio Corubal, aquando do desastre havida com a jangada que fazia a última travessia do rio Corubal, durante a operação "Mabecos Bravios".

Os corpos dos nossos Camaradas não foram recuperados

Foi mal informado, porque os corpos daqueles camaradas não foram recuperados. Os restos mortais encontrados, mais tarde, foram sepultados numa ilhota no meio do rio, enquanto os restantes foram sendo enterrados nas margens do rio pelos elementos do PAIGC.

Sobre este triste acontecimento há muitos textos, inclusive do autor destas linhas que, por inerência das funções que exercia na altura e no local mais próximo do desastre (Furriel de Transmissões e Adjunto do Centro Cripto), Destacamento de Canjadude guarnecido na altura pela CCaç 5 e CArt 2338, foi quem obteve os elementos de identificação dos que NÃO RESPONDERAM À CHAMADA no final da operação.

Este é apenas um contributo para que, cada vez mais, se conheçam os contornos que aquela guerra teve.

José Martins

Fur Mil Trms Inf CCaç 5
Nova Lamego e Canjadude
Guiné Junho/68 a Junho/70

Com a devida vénia, seguem-se algumas passagens do artigo de 4 Janeiro 2009, "Correio da Manhã" , revista Domingo,A Minha Guerra - José Paulo Pesta na

"Conheci os três majores assassinados"

(....) A minha história refere-se à comissão na Guiné, onde cheguei no princípio de Fevereiro de 1969. Estava com a companhia que comandava no cais do Pijiguiti, em Bissau, à espera que o resto do batalhão desembarcasse do navio que nos transportara da Metrópole, quando se aproximou uma lancha da Marinha que depositou no cais, ao pé de nós, 47 caixotes de madeira tosca, que continham os corpos dos camaradas falecidos no desastre da jangada no rio Corubal, no Sudeste do território, durante a evacuação de Madina do Boé.

Nós estávamos destinados a Catió, na foz do rio Corubal, 'chão Manjaco', que não escapava a flagelações diárias de concentrações de tiros de canhão sem recuo. O quartel tinha uma antena de comunicações que fornecia ao inimigo um ajuste perfeito da direcção. Outra das companhias foi para Cufar, onde ficou sujeita ainda a uma maior intensidade diária de fogos.

O sector dispunha de uma companhia adida aquartelada em Guileje, que era a 'carreira de tiro' do inimigo, após a evacuação de Madina do Boé. Fomos sempre ripostando com a nossa artilharia pesada, tarefa a que me dediquei por ser de Artilharia, efectuando tiros de retaliação sobre os constantes ataques de morteiros pesados dos bigrupos comandados pelo Nino (Bernardino Vieira, actual presidente do país) ou seus subordinados, quer ao nosso quartel, quer aos quartéis vizinhos das nossas tropas.

Mais tarde fui substituir o capitão Santana Pereira, ferido com uma mina antipessoal na zona de Có-Pelundo ('chão Felupe'), onde se construía uma estrada entre Bula e Teixeira Pinto. Nunca podíamos descurar as minas colocadas nos trilhos, que já haviam vitimado um alferes e ferido o capitão.

A minha companhia foi depois destacada para Teixeira Pinto, no Oeste, onde substituiu a actividade operacional das três companhias de Forças Especiais, deslocadas para Buba, onde a situação se complicara. Teixeira Pinto estava sob tréguas fingidas, propostas por um suposto grupo dissidente do PAIGC, que convenceu tudo e todos que se iria deixar integrar no Exército Português, chegando a ter postos atribuídos. Após algum tempo, a minha companhia, bastante experiente, pois vinha da zona do Morés, foi de novo deslocada para Norte, para a zona do rio Cacheu, na fronteira do Casamance, onde reforçou o batalhão de Cavalaria 'Os Chicotes', em intensa actividade operacional.

Passámos a actuar na zona onde vieram a ser barbaramente assassinados com catanas os três majores mais prestigiados do Exército (Raúl Passos Ramos, Joaquim Pereira da Silva e Esteves Osório) e um alferes miliciano que os acompanhava em missão pacífica de estreitamento de relações com o falso grupo de integracionistas, que os traiu e os matou de surpresa.

O major Pereira da Silva havia sido meu comandante na minha primeira comissão em Angola; o major Osório, que era o oficial de operações, ia sempre à entrada e à saída da minha companhia em todas as operações em que participei, fosse a que horas fosse, para dar uma palavra de estímulo ou de apreço, e o major Passos Ramos, chefe de Estado-Maior, normalmente sobrevoava num avião de reconhecimento DO27 o agrupamento na mata, referenciando-me aí com granadas de fumo.


O capitão destinado a substituir-me, requisitado à Metrópole, chegou entretanto, mas eu mantive-me em sobreposição com ele várias semanas, pois sendo aquele um oficial de qualidade faltava-lhe a necessária experiência para uma área de risco elevado, visto tratar--se da sua primeira comissão no Ultramar e a minha já era a terceira. Depois, o oficial superior que me comandara uns meses antes em Có achou por bem convidar-me para seu oficial de operações no batalhão que, entretanto, iria comandar. Por isso, segui em demanda de Piche, no Leste , 'chão Fula', onde estive uns meses em operações intensas até à chegada de um batalhão de Cavalaria.

72 (setenta e duas) baixas num só ataque...


(...)Destaco nessa zona uma forte actividade inimiga que havia já produzido 72 baixas num só ataque. Os corpos de militares e civis reunidos no posto de socorros produziam na valeta da rua um apreciável caudal de sangue.

(...) Numa noite, ao princípio da madrugada, enquanto aguardava a hora aprazada para embarcar com parte da minha companhia para mais uma operação, ouvíamos rádio e bebíamos uma última cerveja, quando de súbito irromperam gritos do locutor em linguagem nativa, transparecendo algo de grave.


Radio Conakry



O administrador do posto, dono do rádio, informou que estávamos sintonizados para a rádio Conacri. Os guarda-marinhas que nos iam pôr no mato com as suas lanchas de desembarque ouviam atentamente e concluíram que era um ataque àquela capital feito pelas nossas tropas, pois na véspera todo o material naval da base de Bissau tinha saído para parte incerta.

Era a operação 'Mar Verde', cujo melhor resultado foi a libertação de 35 elementos do nosso Exército presos em Conacri e o pior a deserção do grupo de 17 homens pertencentes ao batalhão de comandos africanos que efectuou o ataque. (...) "


__________

Notas de vb:

1. Títulos e sublinados da responsabilidade do editor.

2. Sobre a op "Mabecos Bravios" ver artigo em

25 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

3. Último artigo da série em

6 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3706: Recortes de Imprensa (12): Jornal de Notícias: Trasladações de camaradas nossos, mortos em Moçambique (Jorge Picado)

4. Conforme consta nos comentários apensos a este artigo, no depoimento do Cor José P. Pestana ao "Correio da Manhã" existem alguns lapsos que merecem ser esclarecidos:

(I). Catió não fica na foz do rio Corubal;
(II). Catió não pertencia ao "chão manjaco";
(III). Não existem relatos de alguma vez terem ocorrido na Guiné 72 baixas num só ataque;
(IV). Os PDG libertados pela op "Mar Verde", segundo os relatórios oficiais, foram 24 militares do Exército, 1 da FAP e 1 civil.

Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (1964/65) > Vista aérea do aquartelamento e tabanca, após o ataque de 8 de Dezembro de 1964. Foto Alberto Pires (o Teco). São vísiveis os estragos provocados nas moranças, uma parte das quais ficaram totalmente queimadas.

Cortesia da AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (que nos disponibilizou o acervo fotográfico de Guileje, a figurar no futuro museu).



1. Mensagem de António Martins de Matos, ex-Ten Pilav (BA12, Bissalanca, 1972/74):

Amigo Luis Graça (permite-me tratar-te por amigo, já que, não te conhecendo, ambos andámos por terras da Guiné)

Após a leitura do livro A retirada de Guileje, junto te envio um pequeno texto que me senti na obrigação de escrever.
Dispõe dele como melhor te aprouver.

Saudações amigas

António Martins de Matos



2. Guileje vista do céu (*)
por António Martins de Matos

[Título e subtítulos, a negrito, da responsabilidade do editor, L.G.]

Confesso ser assíduo leitor do blogue e ter hesitado durante largos meses sobre a ideia de, um dia, quebrar esta barreira e contribuir, também eu, para esta tertúlia.

A leitura do livro A retirada de Guilege pelo Cor Coutinho e Lima (*) e os vários comentários sobre este tema foram a pedra de toque que me levaram a escrever estas linhas.

Não pretendo demonstrar que a minha verdade é melhor que a verdade de outros; digo-o simplesmente porque, ao contrário da maior parte dos comentadores, participei nos combates em Guidaje, Guileje e Gadamael, com uma visão “de cima”, nunca antes explorada neste blogue.


(i) Conhecer a Guiné de DO-27 e de FIAT G91...


Passada esta introdução, aqui vão as minhas coordenadas:

Era, ao tempo da guerra, Tenente piloto aviador, enviado para a Guiné em 10 de Maio de 1972, aí permanecendo até 10 de Fevereiro de 74.

Em relação à controvérsia (estúpida) instalada a quando do programa PRÓS E CONTRAS da RTP sobre o nome da guerra, Colonial, do Ultramar, ou de Libertação, confesso ter ido para a Guiné pensando que aquele território era Portugal, mas bastou-me uma semana de observação in loco para me aperceber que estávamos lá apenas e só como potência colonizadora.

O que me fez continuar? A ideia de que os 40.000 portugueses espalhados pela Guiné precisavam do meu apoio.

Sendo verdade que todas as noites dormia no ar condicionado de Bissau, também é verdade que, durante o dia, percorria todas as áreas da Guiné, de Susana a Cacine ou de Bubaque a Buruntuma.

Entre Maio72 e Abril73 voava os aviões DO-27 e FIAT-G91.

Voar o DO-27 permitiu-me conhecer todos os aquartelamentos que tinham pista (à excepção de Nova Sintra, vá-se lá saber porquê)

Levei víveres para o Guidaje, correio para o Guilele, comandantes engomadinhos do QG para Tite, Fulacunda ou Cabuca, padres e artefactos de missa para S. Domingos.

Também dormi em Pirada e fiz destacamentos em Nova Lamego.

Para abastecer a messe em Bissau, fui buscar peixe ao Cacheu e carne com moscas a Bafatá.

Fiz muitos PCVs com os Coronéis/Majores a controlarem a guerra de cima (alguns eram completamente enganados pela tropa, outros nem tanto).

Com eles fiz pequenas, médias e grande operações, no Morés, Caboiana, Cantanhez, Porto Balana.

Fui buscar feridos e doentes (militares e civis) a muitas unidades .

Sempre fui recebido nos aquartelamentos com estima e simpatia.

E descobri que quanto pior e mais isolado fosse o quartel, melhor era recebido, Paunca e, em especial os Gringos do Guileje, os campeões.


(ii) A chegada dos mísseis Strella e mudança de 'modus operandi'


Em Abril73, com a chegada dos mísseis Strella passei a voar apenas FIAT-G91.

A Força Aérea foi forçada a alterar o seu modo de operar, deixando de ir a algumas unidades por manifesta falta de segurança na aterragem e descolagem (vide o caso do DO-27 que transportava o Major Comandante do COP de Bigene e que desapareceu ao sair do Guidaje).

No que respeita a apoio de fogo e apesar dos aviões voarem a uma maior altitude e isso ter influenciado negativamente o moral das tropas, as missões passaram a ser muito mais efectivas (novo armamento até aí não utilizado).

Contrariamente ao que é habitual ouvir dizer, a Força Aérea aumentou substancialmente o número de saídas de combate, muitas delas ao estrangeiro ( Kandiafara, Kumbamori, Kandara, ...) o que aliviou a nossa tropa de inúmeros ataques do PAIGC.


(iii) Principais conclusões a retirar da análise do livro do Cor Art Ref Coutinho e Lima

Do que vivi in loco e da leitura do livro leva-me a concluir:

Desde 6 de Maio que os GC do Guileje não efectuavam qualquer saída do quartel (excepção à tentativa de coluna a 18Maio), o que os deixou sem uma segurança avançada e sem saber o que se passava para além do arame farpado.

Ao contrário do que muitos pretenderam fazer crer, o Guileje não podia estar cercado.

Prova disso é o facto de terem fugido cerca de 600 pessoas sem que o IN desse conta. Há mesmo quem afirme que saíram com grande confusão e barulho, o que teria forçosamente de ser notado.

Prova disso é igualmente o facto do IN ter continuado os ataques (sempre e só de artilharia) já com o quartel deserto.

Felizmente que o Guileje não estava cercado pois que se o estivesse ter-se ia verificado o maior desastre da guerra colonial.

Na exploração do inesperado sucesso o PAIGC pretendeu fazer crer à posteriori que teria executado dois cercos em simultâneo (Guidaje e Guileje), o que não é verdade. Duas operações de grande envergadura e em simultâneo não estava ao alcance de nenhum dos contendores.

O PAIGC limitava-se a flagelar o Guileje de longe (morteiro 120, canhão sem recuo, ...), sem mesmo entrar no território da Guiné. Há a confirmação de que as bases de fogo se situariam para além da fronteira (não é fácil transportar centenas de munições e elas não nascem nas árvores).

Com o seu alcance, os obuses de 14cm seriam das poucas armas aptas a contrariar o fogo inimigo. No entanto só muito esporadicamente foram usados. Há mesmo um depoimento de alguém afirmando que o pessoal que as operava nem sequer saía dos abrigos.

Passados todos estes anos ainda hoje não consigo perceber por que razão os quartéis equipados com potente artilharia não se defendiam mutuamente.


(iv) Guileje, uma manobra de diversão, para desviar a FAP de Guidaje...

Os ataques ao Guileje destinavam-se apenas a tentar desviar as saídas da Força Aérea em direcção ao Guidaje, o que em parte foi conseguido, visto que entre 19 e 21 de Maio a FAP foi obrigada a dividir o apoio, com 16 missões no Guidaje e 14 em Guileje, 8 das quais no dia 21.

Pelo acima referido, não se pode afirmar que o apoio ao Guilege tenha sido menosprezado.

A questão que se põe é a de saber porque razão as missões no Guileje não terão tido sucesso?


(v) 'Vamos comprar um B52 e já voltamos'...

A meu ver por falha do QG Bissau que até essa data, e ao contrário do que se passava em Guidaje, não autorizava a FAP a ir ao estrangeiro, e igualmente por falha do Guileje, que já não era capaz de indicar de onde tinham partido os ataques, limitando-se a afirmar “bombardeiem todas as matas à volta do quartel”.

A afirmação do homem do rádio (que no livro vim a descobrir ser o Fur Alfaiate), a mando do seu comandante, de que “não usamos a nossa artilharia para que o IN não referencie o quartel”, resultou na minha resposta, de mau gosto, “vamos comprar uma B-52 e já voltamos”, dita com a raiva de quem sente que o seu apoio estava a ser inútil e era mais necessário noutro lado.

Havendo apenas 6 pilotos de FIAT-G91 a acudirem aos pedidos de apoio de toda a Guiné, a comparação dos números de mortos e feridos em Guilege e Guidage é, por si só, clarificadora do que efectivamente ocorreu nesse período e de quem mais necessitava de apoio.

Ao contrário do que a maioria do pessoal do Exército pensava (pensa), o apoio aéreo em voo baixo, com metralhadoras e foguetes, ainda que possa aumentar o moral das tropas, era, é e será sempre, completamente inadequado.

O facto dos aviões voarem mais alto não tem a ver com a sua segurança mas sim com o tipo de armamento transportado, sendo que um apoio eficaz só poder ser conseguido com a utilização de bombas.

A FAP foi pioneira a ser alvejada com mísseis Strella e igualmente pioneira neste tipo de apoio próximo, procedimentos semelhantes foram utilizados anos mais tarde no Kosovo ou actualmente na Faixa de Gaza.


(vi) Um homem sem perfil, ou um 'erro de casting'


Não obstante já ter feito duas comissões na Guiné, o Maj Coutinho e Lima não tinha o perfil adequado para chefiar o COP 5 e algumas das suas decisões não terão sido as mais correctas.

O estabelecimento da sede do COP 5 em Guileje em vez de Cacine ou mesmo Gadamael, a troca de armamento sem razão aparente, a suspensão da actividade operacional, foram alguns dos factores que contribuíram para o agravamento da situação.

Tais decisões deveriam ter sido questionadas por quem o indigitou para o lugar.

Houve no entanto outros militares que contribuíram para a queda de Guileje, a saber:

- Os que no QG Bissau entendiam que o Guileje era tão só um local para onde mandar os corrécios;

- Os que no QG Bissau não avaliaram correctamente a situação;

- Os que, de uma maneira ou de outra, demoraram a cadeia logística;

- Os que não autorizaram os FIAT a passarem a fronteira (o ataque a Gadamael foi sustido depois de se ter bombardeado Kandiafara);

- Em última análise, a responsabilidade tem de ser atribuída a quem, conhecendo o perfil do militar, o nomeou para o cargo.


Na introdução do seu livro A retirada de Guileje, por Cor Coutinho e Lima põe a questão de se saber qual o termo correcto, entre “amnistiado” e “ilibado”.

Não é minha intenção julgá-lo, mas confesso que me incomoda as várias tentativas que vêm sendo feitas de o apresentar como um herói, que não foi.

Todos nós, que estivemos na Guiné, temos alguns fantasmas que, de tempos a tempos, nos vêm lembrar quem fomos, o que fizémos e como nos comportámos.

Há 35 anos que os meus fantasmas estão em fuga de Gadamael e continuam mortos e entalados no tarrafo do rio Cacine.

Como nota final, a minha homenagem ao BCP 12 (CCP121, CCP122 e CCP123). Sem eles, Gadamael tinha seguido o destino do Guileje.


António Martins de Matos (**)


3. Comentário de L.G.:

Caro camarada:

Não é todos os dias que recebo, na caixa de correio, um texto como o teu: claro, conciso, preciso, assertivo, elegante... e ao mesmo tempo politicamente incorrecto, incómodo, lúcido, desassombrado, sofrido, solidário...

É um privilégio para mim dar-te, em meu nome e dos meus dois co-editores, as boas vindas à nossa tertúlia ou Tabanca Grande, enfim, ao nosso blogue, que é teu, é meu, é de todos nós... O nosso maior denominador comum é a Guiné (1963/74)... O resto é periférico...

Como já te apercebeste, aqui ninguém precisa de puxar dos galões ou dos títulos ou das medalhas para aceder à palavra: basta entrares, dizeres bom dia ou boa tarde, puxares de um banco e contares a tua história... Eus ei que há diferenças de literacia, de talentos, de conhecimentos... Procuramos atenuá-las...

O nosso blogue serve isso mesmo, serve - modestamente - para a nossa geração que combateu na Guiné (não interessa o posto, a arma, a especialidade, o local, o ano...) contar a história que os outros nunca poderão contar... por nós.

E aqui está, em corpo inteiro, a tua história, a tua personalidade, os teus valores, o teu CV (***)... E com que elegância fazes a tua análise!... Não dizes: "o homem (o comandante do COP 5) era fraco e incompetente"... (de resto, como muitos de nós, a começar por alguns dos homens que nos comandavam....); dizes simplesmente, houve um "erro de casting", o homem não tinha o perfil... Mas a culpa foi de quem o nomeou... (Esclareça-se: quando digo, "competente", referindo-me à generalidade das NT na Guiné, do meu tempo, quero significar "treinado, preparado, equipado, motivado")...

É muito diferente de um "juízo moral" ou de "carácter", que evitamos fazer em relação ao "comportamento operacional" de qualquer camarada, ainda vivo... Coutinho e Lima, ao publicar o seu livro, passa a expor-se em público... E mais, ele pede explicitamente o veredicto do leitor... (Por outro lado, ele não é um operacional qualquer: é um profissional, um oficial superior do Exército, comandante de um COP, com responsabilidades muito superiores às de um simples furriel ou alferes, milicianos; e isso não quer que ele não tenha, da minha parte, a simpatia e a solidariedade que me merecem todos os os camaradas da Guiné que se identificam com este blogue, e que escrevem neste blogue).

António Martins de Matos, camarada e doravante amigo António: Tu és mais do que um leitor atento e interessado do livro do Coutinho e Lima. És um actor de Guileje (bem como de Guidaje e de Gadamael)... És um actor, não és um simples figurante. O teu ponto de vista, ao ser publicitado no blogue, vai ser escutado, analisado, divulgado, discutido, aplaudido, criticado... Vai ser escutado com o respeito que merecem todos os que "estavam lá", no sítio, na hora, na terra, no ar, na água... Só esses podem falar de cátedra... No fim, os que visitam e nos lêem podem concordar ou não concordar com o teu raciocínio e a sua fundamentação...

Tu mesmo o dizes: esta é a minha verdade (leia-se: a minha leitura dos acontecimentos), não tem que ser a verdade dos outros, ou imposta aos outros. Mas o que importa sublinhar é que trazes novos elementos para o conhecimento e o debate sobre Guileje (e não só, sobre os três GG)... Tu és o primeiro "ver Guileje de cima"... (É pena não termos acesso a uma cópia dos registos da tua caderneta de voo nesses dias no subsector de Guileje).

Eu, que não estava lá nessa época nem nesse local (sou de 1969/71 e estive no leste), não posso nem quero "tomar partido"... Nem acho que seja importante "tomar partido": também sou, por princípio, contra programas do tipo Prós e Contras, que fazem do conflito espectáculo, em vez de promover a pedagogia do debate...

Como editor do blogue, também tenho que ser o garante da pluralidade de pontos de vista, logo equidistante, uma tarefa que seguramente não é fácil. Não confundo, de resto, amizade e camaradagem, com objectividade e independência de pensamento e análise...

Também acho que a verdade é uma construção: há o verso e o verso, o texto e o contexto, o discurso e as condições de produção do discurso... A única coisa que detesto, nalgumas pessoas (incluindo algumas camaradas nossos) é a tendência para o juízo sumário (que é sempre uma execução sumária), própria de quem vê o mundo a preto e branco, dicotomizado: o herói e o cobarde, o bom e o mau, nós e o inimigo... Felizmente, não é o teu caso...

Vou publicar o teu texto, com uma ou duas imagens (que irei seleccionar), mais logo... Já está em edição. Mais para o fim da noite, poderás ver o teu texto en linha, no nosso blogue, na série "A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima"....

Em minha opinião, é um valioso contributo para o conhecimento de Guileje e do que se passou entre 18 e 25 de Maio de 1973... De Guileje e dos seus actores. De Guileje visto dos ares.

Espero que aceites ficar entre nós, voltando a dar a cara, a aparecer em público e, portanto, a escrever... O blogue é teu...

Um Alfa Bravo (ABraço). Luís


4. Comentário do co-editor vb:

O artigo do PilAv dos Fiats é valioso. Não só acrescenta inf de um interveniente que via a guerra de cima (e que portanto podia ver os acontecimentos mais a frio, especialmente porque tinha a paz de espírito para o fazer, o que não acontecia com os "despachados" para os Guidajes, Guilejes e Gadamaéis) como também pelos docs a que certamente tinha acesso. É interessante ver a história, ainda a ser feita ainda pelos vivos...Ao nosso blogue o deve.

Um abraço

vb
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 11 de Janeiro de 2009 >
Guíné 63/74 - P3725: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (10): PAIGC dispara um milhar de granadas entre 18 e 22 de Maio de 1973

(**) Quando o meu comentário já está escrito, vim posteriormente a saber, por uma pesquisa no Google, em casa, à noite, que o autor da mensagem é, com muito provavelmente, o tenente general António Martins de Matos, aqui referido numa notícia da Lusa, publicada pelo Público, de 18/12/2006 ("Força Aérea: novo chefe do Estado-maior sublinha unanimidade da sua escolha"):

(...) "A ultrapassagem na antiguidade militar e o carácter eminentemente político da escolha do ex-director-geral de Política de Defesa Nacional terão estado na origem da decisão dos tenentes-generais Hélder Rocha Martins (actual vice-chefe do Estado-maior da Força Aérea), António Martins de Matos (comandante da Logística e Administração da Força Aérea), David Oliveira (adjunto operacional do chefe do Estado-maior general das Forças Armadas) e João Oliveira (comandante operacional da Força Aérea)" (...). (Negritos, da responsabilidade do editor, L.G.)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3736: (Ex)citações (13): Às vezes, tão perto e tão longe das coisas... (João Coelho)

1. Por sugestão do Mário Fitas que comentou o comentário (*):

Este texto [, do João Colho,] merece um Poste, pela sua singeleza, realidade e escrita. Alguém assistiu a um choro? Eu vi choro de verdade, em representação, com coreografia de sonho. Velhos tempos de malta que passou por Mato Farroba (Cufar). Mário Fitas

2. (Ex)citações (13) > Às vezes tão perto e tão longe das coisas...
por João Coelho

Boa tarde. Este episódio (*) faz-me lembrar uma situação que vivi quando, por razões profissionais estive na Guiné-Bissau, felizmente já em tempo de paz.

Com o padre António Rego,fui dar uma volta pelo país; em dada altura, para cruzarmos um rio - não recordo qual - tivemos de esperar por uma jangada que fazia a ligação entre as margens. Cigarrito fumado apreciando a paisagem, notei,quase que inconscientemente, que pairava por ali um som que me era familiar... e reparei que o António também tinha dado por isso...Olhámos à volta e, prá aí a uns 50 metros, estava um indivíduo, aguardando também pela jangada; encetada uma voltita, chegámo-nos ao homem e vimos que era militar,não muito novo, (percebemos depois que tinha feito a guerra no PAIGC) com um transistor encostado à orelha... ouvindo a Tarde Desportiva da RDP...Saudações trocadas, pergunta o António:
- Então, ouvindo os relatos? - E eis que o tropa nos diz, de memória, e em português coxo, todos os resultados, ao intervalo, da 1ª Divisão do nosso futebol... Sem uma falha!

No mesmo dia regressámos a Bissau e, noite feita, esperámos de novo pela jangada; no negrume, só os isqueiros, de vez em quando, traziam uma chispa de luz...O silêncio quase total começa entretanto a ser quebrado por sons que se aproximam da margem onde estamos e, pouco depois está connosco um grupo de mulheres e homens, gente alta e elegante,vestida com roupa tradicional, que canta e dança, completamente alheados do que os rodeia e sem nos darem nenhuma atenção...

Chega a jangada e embarcamos todos... O grupo continua no seu embalo, como se estivessem em movimento perpétuo... e é o nosso cicerone guineense que nos diz que vêm de um choro algures no interior... Desembarcamos, e eles lá vão, com a sua melopeia, o seu ritmo, entrando pela noite dentro, até os perdermos de vista...

E eu e o António ficámos a pensar como estamos, por vezes, tão perto e tão longe das coisas..

Abraço, bom 2009

João Coelho
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 12 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3730: (Ex)citações (12): Um dia choraremos os tugas, por nos faltar a água de Lisboa (Osvaldo Vieira)

(**) Vd. poste de 20 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3485: Gloriosos malucos das máquinas voadoras (13): Os MAN - Mecânicos de Material Aéreo e o outro lado da guerra (João Coelho)

(...) "O João Coelho, que é um leitor atento e apaixonado do nosso blogue, e membro da nossa Tabanca Grande, é daqueles camaradas das Força Aérea que, nunca tendo estando em serviço na BA 12, Bissalanca, Guiné, esteve perto de nós, dos nossos feridos graves, recambiados para Lisboa, para esse outro inferno que era (imagino!) o Hospital Militar Principal, à Estrela, mais os seus anexos...

"É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela" (...)

Guiné 63/74 - P3735: As Nossas Tropas - Quem foi quem (4): Cap Art Ricardo Rei, CART 1792: Lixaram-no, não passou de coronel (Joseph Belo)

1. Mail do José (ou Joseph) Belo, com data de 3 de Janeiro último:

Obrigado pela possibilidade que me foi dada de ler o comentário enviado por anónimo referente ao Cap Rei (*). Para muitos de nós foi um privilégio servir sob as suas ordens, tê-lo como Amigo e, muito principalmente, como um exemplo de integridade pessoal, num tempo e local em que tais exemplos não abundavam (**).

Soube sempre, quando necessário, assumir frontalmente posições politicamente incorrectas (como hoje tanto se diz!) num período em que bem poucos murmuravam entre dentes o que ele se atrevia a dizer em voz alta.

Eu, que andei metido em muita politiquice do antes, durante e pós-25 de Abril, sei que ele nunca empunhou bandeiras de esquerda, centro ou direitas, tendo mesmo um dia comentado:
-Sou um Oficial do Exército de Portugal e nunca esqueço que o meu dever é servir os portugueses e, logicamente, o governo... quando este os representa!

Terminaram a sua carreira militar reformando-o no posto de Coronel. Nesta tão simples manobra de secretaria, conseguiram, pouco tempo passado, literalmente, acabar com a sua vida.

De Estocolmo um abraço amigo do

José Belo
_________

Notas de L.G.:

(*) Comentário de um anónimo ao poste de 19 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2062: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (5): O General que não gostava de bigodes

(...) "Aquando da ida dos obuses 14 cm para Aldeia Formosa, como não podia deixar de ser integrei a coluna, Buba/Aldeia Formosa, comandada pelo Cap Rei, comandante da CCAÇ 1792, o de bigode. O Cap Rei foi o militar mais organizado e mais valente que encontrei nos dois anos de comissão, na Guiné, Fev 67/Fev 69.

"Lixaram-no. Não passou de coronel" (...)

(**) Vd. postes da série Tuags - Quem é quem:

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2207: As Nossas Tropas - Quem foi quem (1): Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549 (1969/71) e capitão de Abril

4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: As Nossas Tropas  - Quem foi quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)

21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2569: As Nossas Tropas - Quem foi quem (3): João Bacar Djaló (1929/71) (Virgínio Briote)