terça-feira, 17 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6862: (Ex)citações (93): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (António J. Pereira da Costa)

1. Mensagem de António José Pereira da Costa*, Coronel Art na reserva, na efectividade de serviço, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 16 de Agosto de 2010:

Caro Camarada
Se ainda for a tempo, quero deixar um comentário para o Carlos Geraldes**.

Primeiro quero recordar que as revoltas e as revoluções não se improvisam nem surgem por geração espontânea ou por loucura súbita dos povos.

Creio que já lembrei que nos 20 anos anteriores à chegada do Teixeira Pinto houve 12 sublevações das populações da Guiné. Em 1924 creio que terá a última em grande antes do Pidjiguiti.

Claro que as actuações condenáveis (escravatura, roubos, devastações, etc.) começaram logo à chegada, como ele diz. Mesmo vistas no contexto do tempo não podem deixar de criar e acumular revolta nas populações locais. A tensão foi-se acumulando e depois... o resto já sabemos.

Foi mais um caso de nascimento de uma nação, como já afirmei no meu último poste.

A reacção das nossas autoridades foi a que sabemos e a nossa também. Recordo que a nossa atitude foi-se alterando ao longo da guerra que durou 13 anos. O ânimo e a "mentalização" (aceitação activa da necessidade de combater) foi diminuindo ao longo dos anos. Como acabaria não sei.
Creio, por isso que o Geraldes não foge à verdade pelo menos até ao 4.º parágrafo.

Depois...
Depois cada caso é um caso. Mas eu não creio que a generalidade de nós tenha o perfil que ele desenha.

Não o terá tido no passado e não o será na actualidade. Não creio mesmo que "os mais selvagens entre 1000" tivessem sido tantos e não tenham sido "repreendidos" pelos outros (nós todos). Relembro que nas unidades operacionais a grande maioria eram cidadãos fardados.
Claro que cada bala pode matar um chefe-de-família, uma mãe, uma criança, mas isso faz parte da guerra.

Contaram-me que, em Cacine, antes de eu chegar, um dia uma das primeiras companhias que por lá passou foi atacada com armas pesadas e o 1.º Sargento, depois do ataque, gritava e chorava com a perna de uma criança na mão:

- Podia ser a minha filha!... Podia ser a minha filha!

Eu próprio ainda por lá encontrei um miúdo - um "português suave" - o Manel que, na sua cor de café com leite e cabelo quase liso e semi-louro, tinha a cabeça descascada com pequenos estilhaços.

Um Alfa Bravo do
António Costa
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6805: Controvérsias (99): O que é que o País pode dar aos ex-combatentes? (António J. Pereira da Costa)

(**) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P6861: (Ex)citações (92): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), dirigida ao nosso Blogue em 16 de Agosto de 2010:

Camaradas
Cito: "Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?" (Do poema em Linha Recta de Álvaro de Campos).

Imagino que uma boa parte do pessoal já atingiu a idade do condor (do sexo com dor), mas a razão ainda nos vai escapando. Somos uns emotivos, por isso, reagimos emotivamente, dando pouca, muito pouca atenção aos conteúdos. Neste caso, posso dizer, o bombo saiu à rua. Mas a malhar nele não se faz música. O bombo também obedece a regras musicais, ou abafa os restantes instrumentos e fere-nos o ouvido.

Vamos a detalhes:

1 - Logo no começo refere-se: "E nem se lembram de que tudo foi uma mentira, com mais de quinhentos anos". Penso eu, que se refere a eventual manipulação de factos históricos, filtrando os motivos de vergonha, para exaltar e despertar qualidades do génio lusitano, pois acrescenta a seguir: "Desde tempos imemoriais... quem tinha a força tinha o direito". Assim, à moda do Bush quando mandou invadir o Iraque.

Posso concordar. De facto, todos sabemos que a nossa instrução primária, e os subsequentes estudos secundários, obedeciam a programas aprovados pelo regime, logo, em consonância com o discurso oficial, frequentemente capcioso. E essa foi a nossa cartilha. Foi nesse tempo que aprendemos a odiar os espanhóis. Foi nesse tempo que nos fizeram aceitar as ideias de unidade territorial e de Pátria. Ideias, que, ainda hoje, são determinantes ou condicionantes para os nossos comportamentos. Estranhamente, quando foi a nossa geração a apadrinhar a democracia (às vezes bárbara democracia) que resultou do 25 de Abril.

Quantos daqueles milhares do 1.º de Maio estavam politicamente esclarecidos? Quantos saneamentos levados a cabo por trabalhadores, não lhes serviram de trampolim para benefícios próprios? Refiro-me a contradições da nossa geração, a experiências que denotam insuficiência cívica. Será que hoje já estamos convenientemente formados, com maturidade, sentido do rigor, da ordem, da justiça e não pactuamos com aventureirismos?

2 - Segue-se o 2.º parágrafo que parece suscitar a grande confusão: "quando lá chegavam com as G3 em riste..."

Bem, não se pode tomar a nuvem por Juno, mas lá que houve excessos... houve. E o governo cristão, e a civilização cristã, chegaram a homenagear e condecorar alguns "heroísmos revanchistas". Até hoje parece que os aceitamos como bons, pois a Pátria, no conjunto do seu Povo, ou representada pelos eleitos do Povo, ainda não veio dizer que exagerámos, e que o antigo regime, por isso, deu cobertura a injustiças. Garanto-vos que na África sob jurisdição portuguesa, até aos anos cinquenta do século passado, praticou-se o esclavagismo (vide Norton de Matos - Biografia, Bertrand Editora).

Argumenta-se com o terrorismo, como se os portugueses, em 1640, tivessem tido um comportamento de protecção a acto terrorista. Mas, mais grave ainda, o estado português em 1961 estava informado sobre o que iria acontecer, e continuou a caminhar contra as instâncias internacionais sob o comando do velho néscio.

Em que é que exagerámos?

Na maneira descriminatória relativamente a muitos daqueles povos, pois a par de uma missão religiosa, existia um crápula que negociava mão de obra sem direitos, quer para o estado, quer para as grandes companhias; exagerámos, não dando atenção à Carta da ONU, anterior à nossa adesão, que ficou a dever-se a um truque com a transformação de colónias em províncias, criando expectativas sobre a sua regulação e governo; exagerámos no estúpido orgulhosamente sós, que durou de 1958 a 1974, enquanto, se tivéssemos seguido o caminho da Carta, teríamos 30 anos para construir sociedades modernas e submeter o modelo a referendo; exagerámos, condenando e não convidando os emancipalistas a colaborar na construção das novas sociedades; exagerámos, ao admitir que a nossa capacidade para prosseguir a guerra seria inesgotável, com grandes argumentos em S. Bento e no Terreiro do Paço.

3 - Segue-se uma alusão ao romance do Zé Brás, Vindimas no Capim, que, no entanto, me parece despropositada, na medida em que interpreto o romance como um retrato da vivência de uma geração subjugada ao trabalho duro e mal pago, por vezes em condições de indignidade, desinstruída, que era mobilizada para a guerra de África a dar o corpo ao manifesto, onde apenas tinha como prémio, a sorte de se salvar, ou os namoros de ocasião com as meninas do Jorge.

Não sei se quer referir-se ao heroísmo desses desgraçados, levados das suas famílias e das esperanças que alimentavam, para em condições infra-humanas obedecerem cegamente à cadeia de comando, a ponto de darem tudo pela Pátria. Esta dádiva máxima não era percepcionada, nem nas causas, nem nos efeitos, mas, naquele momento, causava grande perturbação aos sobrevivos.

4 - Pátria. Peço-vos para reflectirem no lugar onde nascemos, no que queremos e fazemos dele, na capacidade do colectivo em intervir no destino da nação. Peço-vos para reflectiram sobre o que pensamos de relações sociais no lugar da Pátria, como aceitamos, ou reagimos, à impunidade dos gestores bancários, dos sectores privado e público, mediante actos de fácil reprovação; peço-vos para reflectirem sobre PIN - Projectos de Interesse Nacional, que delapidam o público em favor do privado; peço-vos para reflectirem sobre tantas manigâncias neste país, e para pensarem porque é que isso acontece.

5 - O que vos pedi em 4) tem a ver com o último parágrafo do Geraldes, que critica os encontros onde se apresentam alguns, com laivos de heróis, boinas e medalhas, em manifestações marciais que, em vez de celebrarem a camaradagem solidária, cimentada nas dificuldades, antes exaltam qualidades guerreiras ou brutais, por vezes sem correspondência com os sentimentos perante o perigo.

Talvez concorde, se o Geraldes pensa na solidariedade que devia resultar do sofrimento colectivo durante a guerra, para, agora, (digo eu) guiar-nos para acções colectivas, de regeneração moral, de orientação para o interesse público, de repúdio pelos oportunistas que, de lés-a-lés, desprestigiam instituições, comprometem equilíbrios da natureza, hipotecam o futuro, acções que dariam de nós, antigos combatentes, a imagem de esforço, seriedade e vontade de actualizar e incrementar o progresso colectivo. Nunca em Portugal um governo se lembrou de mobilizar o Povo para o progresso. Afinal, andámos lá fora a malhar os costados, e aqui cruzamos os braços perante tanta leviandade.

6 - Da generalidade dos comentários, que evocaram Camões, mas esqueceram-se de Fernão Mendes Pinto, retenho uma liminar condenação ao Geraldes. Afinal o texto fez-me reflectir, sobretudo nesta belíssima vida moderna, adornada de Mercedes e Audis, com casas a espelhar sucessos pessoais, ainda que, algumas, sem mão de arquitecto, nem licenças camarárias, mas uma "boa vida", ou a fingir uma boa vida, em hossana ao individualismo. Para mim o poste valeu como exercício de introspecção.

Abraços fraternos
JD
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6855: Controvérsias (102): Polémica M.Rebocho / V.Lourenço, resposta a António Graça de Abreu (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (90): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (91): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

1. Comentário de Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), deixado no poste 6854 de autoria de Carlos Geraldes, com data de  16 de Agosto de 2010:

Caro Geraldes,
Li o teu texto, e pergunto-me que mal te fez o mundo para teres este tipo de relação conflituosa contigo próprio...
Depois de me ter habituado a ler-te, fiquei deveras surpreendido com este fel destilado, que em minha opinião se não coaduna contigo.

Todos temos momentos de revolta com a vida mas deveremos procurar os mecanismos de contenção que impeçam que ofendamos gratuitamente quem quer que seja, especialmente aqueles que tal como nós, militares à força, atravessaram os mesmos problemas, sofreram na carne as mesmas vicissitudes, conheceram as mesmas dúvidas, os mesmos medos, as mesmas revoltas.

Aquilo que lês aqui e ali sobre as bajudas, os galos, as tainadas, não são, estou certo, quaisquer loas a um bacoco heroísmo, mas tão só o reavivar de momentos que por esta ou aquela razão ficaram gravados no subconsciente de quem os narra e que no fundo são comuns praticamente a todos...

Os tiros, foram a resultante da nossa presença na guerra e muitas vezes o exteriorizar dos medos, que dizes ninguém contar...

Todos tivemos medos, todos pensamos muitas vezes na impossibilidade de regresso, mas todos tínhamos vinte e poucos anos e a pujança da vida dessa idade.

Nunca assisti a situações como as que descreveste (fiz a guerra entre 72 e 74) e no meu tempo posso testemunhar que a acção psicológica funcionou não havendo crimes ou abusos como os que narraste...
Cabia também aos condutores de homens (e tu eras comandante de um grupo de combate...) a obrigação de dirigir, responsavelmente, os seus militares, por forma a evitar manifestações de primitivismo criminoso como referiste...
Se os testemunhaste e não agiste, então sentes esse peso na consciência.

A súmula que apresentas relativamente à história deste país a que pertences, este reduzir de nove séculos de construção e sustentabilidade de um povo com capacidades e heroicismo incomuns, um povo que se atreveu mar adentro à cata de novos mundos, a uma miserabilista insinuação de que se tratou de bandos de salteadores, violadores, ladrões, burlões, é de facto demasiado redutora, curta de vistas, e decididamente evidenciadora de que estarás doente, provavelmente a sofrer.

O Carlos Geraldes que também foi cordeiro em África, o Carlos Geraldes, homem culto, não pode apresentar um discurso deste jaez...

As almoçaradas dos homens de cabelos ralos e caiados pelo branco da velhice, contrariamente ao que dizes, são extremamente salutares, e mau grado este teu posicionamento que redundou no poste alvo destes comentários, estou convicto que no próximo convívio da Tabanca Grande, estarás presente com um arejamento de ideias.

Sei que provavelmente estarás a remoer-te por dentro a tentar perceber o porquê de assinares um texto tão caustico, tão violento, diria mesmo tão ofensivo.

Peço-te para reflectires, acalmares, contares até dez antes da explosão.

Um abraço
Manuel Maia
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6837: Blogopoesia (79): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (6) (Manuel Maia)

(**) Vd. poste de 15 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

Vd. último poste da série de 9 de Agosto de 2010 Guiné 63/74 - P6840: (Ex)citações (90): O nível das modalidades desportivas amadoras de Bissau tinha baixo nível e recorria aos militares ali estacionados (Rogério Cardoso)

Guiné 63/74 - P6859: Parabéns a você (139): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

1. Mais um ano se passou e eis-nos de novo a felicitar o nosso camarada José Manuel Cancela (ex-Soldado AM da CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70), pela passagem de mais um aniversário.

Caro Cancela, neste dia 17 de Agosto de 2010, aqui está a tertúlia a renovar os seus votos de uma longa vida para ti, cheia de qualidade, sempre junto dos que te são mais queridos, deixando desde já marcado novo encontro para o próximo ano.

Em nome da tertúlia deixo-te um fraterno abraço de parabéns.


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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4829: Parabéns a você (18): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 10 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6841: Parabéns a você (138): Alberto Nascimento da CCAÇ 84 (Bambadinca, 1961/63) e Tomás Carneiro da CCAÇ 4745 (Binta, 1973/74) (Editores)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6858: Em busca de... (139): Fur Mil Enf Carlos Alberto e outros camaradas da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, Biambe e Nhala, 1969/70 (Armando Pires)

1. Mensagem de Armando Pires, ex-Fur Mil Enf.º da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70, com data de 16 de Agosto de 2010:

Meu Caro Carlos
Camarada
Através do mural da nossa Tabanca são já muitos os que tenho encontrado, ou que me têm encontrado a mim.

Grandes momentos, esses.

Foi por aqui, nomeadamente, que resolvi o enigma do crachá dos "coriscos" que trazia ao peito.

Tu próprio, Vinhal, me "apresentaste" o Rebola, um corisco que, primeiro desconfiado, mas depois, perante o santo e a senha do blogue, me levou de volta a Bissorã onde ele, terminadas as bingalhadas de sábado, dedilhava a viola para eu lançar uns cantos ao fado e me iniciou na condução de uma motorizada que ele comprara em Bissau.

Pois foi este mesmo Rebola que agora me enviou um par de fotos perguntando se eu dali identificava algum gajo.

Claro que identifiquei.
O Carlos Alberto, Furriel Miliciano Enfermeiro da CCAÇ 2464, companhia do meu Batalhão, o 2861.

A CCAÇ 2464, nos anos de 69/70, operou no Biambe e em, Nhala.
Era comandada pelo Cap. Pratas.

E vem tudo isto para eu te pedir que ponhas no nosso mural este apelo:

PROCURA-SE ALGUÉM DA CCAÇ 2464, BIAMBE E NHALA, 1969/70 OU ALGUÉM QUE CONHEÇA ALGUM DOS CAMARADAS DA MESMA COMPANHIA.

O objectivo é não apenas poder reencontrar o Carlos Alberto, mas também poder oferecer-lhe a foto dele com o Rebola.

Um muito obrigado a todos e a ti, Carlos Vinhal, em particular.
Armando Pires
armandofpires@gmail.com
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6536: Em busca de... (136): O nome desta ave e identificação desta estrada (Armando Pires)

Vd. último poste da série de 5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6830: Em busca de... (138): Procuro o ex-Fur Mil Carvalho ferido numa emboscada, em meados de 1965 no Gabú (Rogério Cardoso)

Guiné 63/74 - P6857: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5): Memórias das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
É caso para dizer que enriqueci em leituras quando a canícula me tirou energia para os passeios pedestres ou qualquer outro tipo de entretenimentos campestres. Deixei a biblioteca limpa, arrumada segundo os meus critérios duvidosos e com o risco de ninguém ali se entender quando o Alzheimer me atingir de chofre... infelizmente (ou felizmente, segundo as opiniões), as férias foram curtas, mas ficou-me esta saborosa ilusão de que as posso continuar com novos livros à minha volta.
Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5)

por Beja Santos

As guerras coloniais, múltiplos códigos nas vertentes da memória

A ver se hoje de manhã dou por concluída esta empreitada de livros, catálogos, revistas espúrias, folhetos de viagens, se ponho alguma ordem nesta estranha demência de guardar postais, tanto os recebidos como os comprados em décadas de viagens. A aragem é convidativa, toca de pôr no gira-discos algumas das sinfonias londrinas de Haydn. Finda a tarefa, temos, como sempre, aquela sensação ambivalente da missão cumprida e da infinidade de coisas por cumprir. À cautela, passa-se a escrito o que parece útil dizer sobre “Memórias das Guerras Coloniais” de João Paulo Guerra (Edições Afrontamento, 1994). Confesso que estou a gostar destas férias, aqui na região não tem havido ameaças de fogos, mas ontem à tarde, sob a barragem do Cabril avistou-se o fogo que lavra para lá de Dornes, na região do Ferreira do Zêzere, a espiral de fumo tapa o sol, há uma fuligem que dança no éter. Ainda não sabemos, dentro de dois dias, quando chover inusitadamente, vai deixar os carros polvilhados.

João Paulo Guerra esquematiza a luta do PAIGC como partido multinacional, uma futura união de povos da Guiné e Cabo Verde. O fundamental a reter é que a luta de independência pôde centrar-se na Guiné e foi muito ténue nas ilhas. Os quadros cabo-verdianos acabaram por constituir, por excelência, a direcção do PAIGC. Mesmo Pedro Pires, preparado em Cuba, acabou por ser figura grada da Guiné, mais tarde, depois do golpe de 1980, expulso do PAIGC, tendo-se tornado presidente de Cabo Verde. Todos os planos de desembarque em Cabo Verde falharam. Não interessa determo-nos sobre a evolução dos acontecimentos em Moçambique, que o autor analisa com igual atenção como já fez com Angola e Moçambique. Abreviadamente, fala da criação da FRELIMO, da vida efémera dos grupos rivais, da luta armada a partir de 1964, da personalidade do seu primeiro líder, Eduardo Mondlane, das cisões profundas dentro da FRELIMO, a caracterização das diferentes fases da guerra, o significado das operações Nó Górdio e Fronteira (em 1978, o general Costa Gomes considerou a operação Nó Górdio como a mais ruinosa que se fez durante as guerras de África), as concepções geoestratégicas e geopolíticas do enquadramento de Moçambique com os acontecimentos da Rodésia e África do Sul, a degradação do teatro de operações à volta da Beira a partir de Dezembro de 1973, as manobras de Jorge Jardim e os seus planos de golpe de Estado.

Concluída a panorâmica da evolução nas três frentes, o autor dá-nos conta de importantes questões colaterais à evolução da própria guerra: o tabu na intransigência nas negociações quer para a autonomia quer para a independência (elas só vão surgir quando o regime está à beira do colapso) e sobretudo depois de publicadas as teses de Spínola no seu livro Portugal e o Futuro; a incapacidade de Marcello Caetano de pôr em prática as suas teses federais, enunciadas no início dos anos 60; a crescente tensão entre as forças da direita radical, sobretudo quando propuseram o Congresso dos Combatentes (Junho de 1973) que mereceu uma enorme contestação dirigida por apoiantes a Spínola, incluindo alguns dos militares mais condecorados pela sua acção em combate, nas guerras coloniais; o esfarelamento na coesão entre o regime e a Igreja, havendo a registar que a Igreja manteve posições diferentes e contraditórias sobre o colonialismo português e as próprias guerras, tais tensões irão acompanhar o espírito do Concílio Vaticano II, o apoio de Paulo VI à descolonização e a organização interna dos católicos à Guerra Colonial; a posição da oposição ao regime a partir de um republicanismo altamente favorável ao Portugal ultramarino passando pela simpatia dos partidos da esquerda, a partir dos anos 60, a favor da independência de todas as parcelas desse império.

Qualquer guerra só pode ser contabilizada pelos números e cifras, ninguém sabe medir o sofrimento, a desagregação psicológica, as marcas para todo o sempre, os vincos deixados por erros da inexperiência ou ignorância praticados numa atmosfera militar para a qual os jovens não estavam preparados. Toda essa estatística, de modo inconfundível, consta da Resenha Histórico-Militar do Estado Maior. João Paulo Guerra regista alguns dados incómodos como os prisioneiros de guerra e lembra que falar de faltosos, refractários desertores não é linear, sabendo-se que de 1960 a 1974 emigraram só para França mais de milhão e meio de portugueses, cerca de oitenta por cento dos quais “a salto”. Questão controversa tem a ver com as “unidades de segunda linha” ou “tropas nativas” e o seu desempenho. A Guiné foi o território com mais baixa percentagem de tropa nativa: enquanto, em 1973, esta percentagem era próxima de 54% em Moçambique e de mais de 42% em Angola, não ultrapassava os 20% na Guiné. O primeiro cessar-fogo foi o da Guiné e em 26 de Agosto de 1974 foi assinado em Argel um acordo pelo qual Lisboa reconheceu a independência da Guiné-Bissau e o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência. Citando o autor, “Desde meados de Junho que as tropas portuguesas não desenvolviam actividade ofensiva na Guiné e que a actividade operacional do PAIGC era praticamente nula, com excepção do abate de um helicóptero por um míssil SAM 7 Strella no dia 6 de Junho. Mas nem tudo foi pacífico e durante o processo de negociações por duas vezes houve ordens para reatar as acções bélicas, embora as unidades da quadrícula portuguesa e as tropas do PAIGC confraternizassem no terreno. Em 10 de Setembro de 1974, Portugal foi o 87.º país a reconhecer juridicamente a República da Guiné-Bissau”.

É verdade que cresceu a massa de informações sobre a guerra que se travou em África, basta confrontar o que João Paulo Guerra escreveu e o levantamento recentemente efectuado por Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso. Mas estas primeiras memórias tiveram o condão de levar os historiadores a perceberem que para além do chamado fenómeno da descolonização e das lutas de libertação subsistem dimensões de grande complexidade que requerem um laborioso trabalho multidisciplinar, desfazendo tabus e iconografias, revisitando parcela a parcela o pulsar da graduação das guerras e o comportamento dos protagonistas. E o mais difícil ainda está por fazer: cotejar os dois lados da contenda, isto quando se sabe que há muita documentação desaparecida em África (desaparecida ou sonegada, entenda-se).

Exemplo da propaganda utilizada para captar jovens para as forças armadas, neste caso para os pára-quedistas. Esta foi a imagem escolhida para a capa do livro “Memória das Guerras Coloniais”

Pego agora no livro que Luís Gonzaga Ferreira me ofereceu em 2000: “Quadros de Viagem de um Diplomata”. Luís Gonzaga Ferreira começou a sua carreira diplomática no Senegal em 1960. Irá viver uma experiência extraordinária quando se tornou no “homem grande” de Portugal em Dakar, tornou-se cônsul e procurou negociações com grupos de nacionalistas, tendo mesmo levado Salazar, pela primeira e única vez, a receber em privado um dirigente independentista da Guiné. Logo à noite volto a esta biblioteca a arder e vou falar-vos deste livro. Infelizmente, este curto período de férias caminha para o fim.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 14 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6852: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

Publicação da sétima e última parte das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que o autor me facultou um exemplar, em Bissau, em Março de 2008,  tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

A partir de hoje, o empresário e nacionalista Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai, pai do actual 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama, em 1949) passa a integrar a nossa Tabanca Grande. Desejamos-lhe muita saúde e longa vida. E estamos-lhe gratos por nos ter disponibilizado o texto policopiado  com as suas memórias que vão de 1946 até 1974. Cadogo Pai nasceu em 1929, terá portanto 81 anos. Foi conselheiro de Estado no tempo de 'Nino' Vieira. Teve também funções governativas antes do golpe de Estado do 1998 (L.G.)

Parte II (pp. 13-17)

Num belo domingo à tarde, numa visita a casa de uma amiga no Bairro da Ajuda, a Dona Micteia, encontrei dois amigos, Eugénio Peralta e Valdemar Oliveira. À chegada encontrei-os na rua. Um deles disparou-me:
- Já sabe que prenderam o Pipi Pereira ? - respondi, dizendo que sabia. Informaram-me que foi preso de madrugada. Sem resposta mais a dar, traí-me de emoção, disparei para casa do Sr. João Vaz, para obter a confirmação. Bati à porta, ele saiu e confirmou-me a notícia da prisão do nosso companheiro Pedro Pinto Pereira, dando-me a notícia de que a seguir seríamos nós. Ele, João Vaz, eu e António Augusto Carvalho (ANCAR).

24. Tudo aconteceu no domingo. No dia seguinte, segunda-feira, encontrei o nosso companheiro António Carvalho, dei-lhe a notícia da prisão do Pedro Pinto Pereira, e a informação que tinha, que a seguir seríamos nós. Alarmou-se, foi informar a esposa, uma senhora portuguesa. Sem controlo, decidiram ir pedir protecção ao Sr. Tenente Castro, que era elemento ligado à PIDE. Este levou-os à PIDE para serem ouvidos em declarações, o que nos complicou a vida a todos após as declarações prestadas.

25. O Sr. António Carvalho, reconheço que não tinha intenção de me prejudicar, porque a seguir às suas declarações, veio-me avisar que eu seria chamado para ser ouvido em declarações. Só que ele não sabia, por motivos de segurança como já disse, cada um só sabia os contactos que tinha. Eu não podia ser ouvido, sem avisar o João Vaz e ele aos que ele sabia dos seus contactos.

26. Informei a minha mulher da situação e da aflição que tinha de contactar os companheiros dos meus contactos. Que tinha de partir de João Vaz ou de um deles. Sugeriu-me sair à rua. Deparei por sorte com o Sr. Armando Lobo de Pina, de passagem, vindo do serviço da [Casa] Ultramarina onde era empregado. Informei-o da situação e da urgência de contactos com os companheiros e da resposta. Aconselhou-me, cerca das 11h45, para estar à porta, que estaria de passagem. Assim aconteceu, a senha foi para eu suportar tudo e não mencionar nomes, porque seria perigoso. Aceitei porque eram muito graves as declarações do Sr. António Carvalho, comprometiam altas figuras que não nos convinham que fossem figuras tocadas, caso do  Mário Lima, Artur Augusto Silva [, pai do nosso nosso amigo Pepito, preso pela PIDE em 1966, no aeroporto de Lisboa, encarcerado na Prisão de Caxias durante 5 meses sem culpa formado, libertado por influência de Marcelo Caetano, impedido de regressar à Guiné], Severino Gomes de Pina, etc.

27. Eram 15 horas e mais alguma coisa, apareceram dois agentes da PIDE, abordaram-me, que me me queriam falar, disponibilizei-me, mas deram-me a entender que não era no meu escritório, mas sim lá em cima. Quando perguntei em cima, aonde, virou a gola da camisa, um deles, de nome Silva, para me mostrar o distintivo da PIDE. Foi assim que se deu início ao que iria ser a prisão do nosso alargado grupo, alguns dos quais só na prisão viríamos a conhecer.

28. A seguir à prisão do Pedro Pinto Pereira, prenderam o João Vaz, deixando todos alarmados, a aguardar os acontecimentos, cada um nas suas ocupações. Deram-nos o tempo de passar as festas de Natal e Novo Ano, eram fins do ano de 1966.

29. Já em 1967, certo domingo, dia 16, estava eu de volta das obras das minhas actuais instalações, apareceu-me o Sr. Domingos Maria Deybs, com um jornal na mão, a anunciar um convite para almoço de confraternização dos amigos do Inspector da PIDE. Perguntou-me se eu ia tomar parte no almoço. Naturalmente a minha resposta foi desabrida, a perguntar a que título iria tomar parte em tal almoço!!!

Afinal era a senha, o mesmo aparato de força ocorreu com os companheiros a seguir citados e, a partir do nosso mesmo conterrâneo, contactou os camaradas: Armando Lobo de Pina, Elisée Turpin, Milton Pereira de Borja, Lindolfo, ex-empregado de Mário Lima Wanon. Assim fomos todos presos na madrugada do dia 17 de Janeiro de 1967, os quatro camaradas contactados e comigo cinco prisões.








_________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior:

13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações

domingo, 15 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6855: Controvérsias (102): Polémica M.Rebocho / V.Lourenço, resposta a António Graça de Abreu (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), dirigida a António Graça de Abreu, com data de 12 de Agosto de 2010:

Meu Caro António

Acabei de ler o teu post 5275, já com um tempinho, que deriva da publicação de uma tese de doutoramento sobre a formação de oficiais, mas tem servido mais para alimentar a polémica sobre a rivalidade entre pessoal do QP e do QC, principalmente ao nível de comandantes de companhias de combate. Digamos, que nesta dicotomia, está contida uma desvirtuação ao conteúdo do livro. E assim, o arriscado, é embrenharmo-nos na polémica, sem o conhecimento suficiente dos dados em questão, que nos dêem suporte e racionalidade às intervenções.

Constatei que, quando escreveste o post, ainda não tinhas lido o livro. Mas manifestas, mais uma vez, o teu carinho pelos oficiais do QP, defendendo-os como se, entre eles, não houvesse bons, assim-assim e maus. Devo dizer-te que houve. Não posso, naturalmente, é quantificá-los conforme as espécies. Mas isso é como tudo e em todas as profissões: no Sporting nem todos os jogadores dão o mesmo rendimento, nem todos revelam o mesmo empenho. Lembro-me do Oceano, quando era bastante tosco, e que acabou a carreira com grande nível, porque foi sempre empenhado. Mas em todas as actividades encontras pessoas mais ou menos diligentes.

Ao longo da sua explanação, o Rebocho enaltece vários oficiais, e desanda noutros. Nunca transmite essa ideia bipolar de que o pessoal do QP aferia por igual e era cobarde. O que ele sustenta, com recurso a diferentes conceitos e experiências, é que o comportamento desses oficiais do QP que se refugiaram da guerra, ou que se revelaram inaptos para a guerra, resultou da má estruturação dos métodos de selecção e da qualidade dos cursos ministrados. A tese do Rebocho não pode ser reduzida a uma vingança, antes, deve ser avaliada pelas diferentes análises ali expostas, e que terão criado um fio condutor relativamente às conclusões finais (são várias as conclusões, em função da conjugação de muitos e diferentes dados). Digamos que a tese pode ser comparada a um estudo sobre a proeficiência de uma empresa.

Portanto, ousaste escrever o post com base num artigo jornalístico, provavelmente de muito má qualidade, que vai além do objecto da questão, e explora sentimentos desavindos em 25 de Novembro. De que interessa as acções judiciais que correm termos, entre o autor e o V.Lourenço, para apreciação das ideias-chave? E porque é que vens referir que no blogue tem havido alguns defensores da tese da derrota militar na Guiné? Acaso não levas em consideração que uma qualquer guerra torna-se um conjunto de vários factores de influência, que tem mostrado, com frequência, serem os mais fracos a obterem o melhor resultado? Então nos centros de decisão que frequentaste essas questões não eram debatidas? Ou nunca tiveste acesso a esses níveis?

A tua formação é em História, curso que não frequentei, mas adivinho que os historiadores sejam alertados para as fontes, que aprendam técnicas, que sejam instruídos na selecção dos meios que permitam identificar o facto histórico. Por isso pisco-te o olho, por teres tomado uma manipulação jornalística, como uma fonte para a apreciação das élites militares em Portugal, no que respeitou à guerra de África.

E quando leres o livro, certamente ficarás surpreendido com as declarações prestadas pelo teu ídolo, o general Durão. E ainda mais, quando chegares à página 488 e não encontrares a frase que citas da peça jornalística. No entanto, eu tenho memória de um ou mais conteúdos daquela frase, juntos ou separados, embora contextualizados, sem o valor meramente especulativo da inserção que fazes. Falta de cuidado!

Quanto ao estudo já escalpelizado da autoria do Sr Coronel Morais da Silva, porque não apresenta argumentos, apenas a crueza da evolução dos números, se tiver que ser utilizado neste processo, só pode confirmar que cada vez havia mais milicianos no comando das companhias de combate, e o autor, relativamente ao remanescente dos anos anteriores, não sabe onde é que se encontravam, ou o que teria influenciado as alterações relativamente a capitães do QP, o que fragiliza qualquer intervenção.

Decorre do anterior, arrisco eu, a resposta à tua pergunta final: o que é que te tem levado a alinhavar tantas páginas?

Se não te importas, darei conhecimento deste texto aos editores, para eventual publicação no blogue.

Entretanto, recebe um abraço com muita amizade.
José Dinis
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6730: Controvérsias (95): Não me move, nem alimento, qualquer querela QP-Milicianos (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6825: Controvérsias (101): Puros e Espúrios 2 (Mário Gualter Rodrigues Pinto)

Guiné 63/74 - P6854: Questões politicamente (in)correctas (40): A guerra colonial: todos querem ser heróis! (Carlos Geraldes)

1. Texto de Carlos Geraldes, membro da nossa Tabanca Grande, de 69 anos, residente em Viana do Castelo, ex-Alf Mil, CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66):


A Guerra Colonial: Todos Querem Ser Heróis! (*)

E nem se lembram de que tudo partiu de uma mentira, com mais de quinhentos anos. Mentira piedosa dirão alguns, mentira necessária, dirão outros, mas na verdade não passou de uma redonda e grosseira mentira, repetida vezes sem conta! Foi a nossa epopeia!

– Mas descobrimos novos mundos!
– Como? Não existiam já antes?
–  Desbravámos novos caminhos, novas rotas! Evangelizámos!
– Mas onde plantámos os nossos Padrões (quais marcos de propriedade), e nos estabelecemos com fortificações, não foi para mais facilmente assaltar, roubar e reduzir à mais cruel escravidão outros seres humanos como se fossem gado para exploração, abate e consumo?

 Desde tempos imemoriais que a regra foi sempre a mesma. Quem tinha a força tinha o direito. E como povo “civilizado” que éramos (!?) considerávamo-nos também superiores aqueles que não tinham os nossos costumes e que até nem praticavam nem conheciam a nossa religião. Eram os “infiéis, os gentios, gente bárbara e sem a alma que apenas a fé cristã proporcionava aos convertidos, conforme então piamente se acreditava.

E a pretexto que era urgente converter essas multidões de gentios, aproveitava-se, já agora também, para os aligeirar dos bens que possuíam e até de outras riquezas que eles nem sabiam serem objecto da nossa cobiça, só porque nos considerávamos com muito mais direitos a essas riquezas do que eles. Assim devastámos tudo o que de tentador se nos aparecia pela frente. Ouro, pedras preciosas, especiarias, minério, tudo era avidamente carregado a bordo de caravelas, naus, e todos os navios mercantes que vieram depois. Como paga deixávamos algumas bugigangas, espelhos, facas, aguardente… e os nossos rudes costumes também, nunca conforto e civilização!

Mas mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, já dizia o poeta sábio. E os povos das nossas colónias ganharam coragem e sublevaram-se. Veio por isso a guerra colonial.

Dos altares da Pátria teceram-se louvores, cânticos e hinos aos soldados que rumaram em armas para as terras africanas. A juventude de um povo analfabeto e desinformado, cego e magnetizado por tanto aparato, seguia como uma legião de cordeiros para uma matança sem fim à vista. Quando lá chegavam, com as G-3 em riste, assaltavam as tabancas, as moranças, correndo pelas picadas mais distantes, disparando a torto e a direito. O que é que interessava uma ou duas centenas de pretos a mais ou a menos? Ninguém lhes pedia contas disso, só tinham de lhes dar uma “ensinadela”, de os meter na “ordem”. Estavam “superiormente” autorizados a matar, dizimar, desfazer tudo quanto lhes desse na real gana. Não era a ali a África selvagem, o lugar de todos os infernos, o cenário perfeito onde os brancos podiam praticar impunemente todas as espécies de atrocidades? Então…?

Inchados de orgulho pateta, contam como eles trataram como “vinha vindimada” as terras dos “pretos”, como corriam atrás das raparigas de impudicos peitos nus, como suaram as estopinhas, mergulharam na lama até aos peitos, passando pelos maiores perigos e tormentas, como só eles passaram!

Mas não admitem, nunca, como tremeram de medo no meio da escuridão da mata e que, sempre que sentiam as “costas quentes”, também fizeram o gosto ao dedo, só para aliviar um agora denominado de “stress” (para não lhe chamarmos “pura selvajaria”), chacinando velhos, crianças e mulheres indefesas, galinhas, cabras, vacas e, até morros de “baga-baga” tudo varrido na frente, com umas boas rajadas da velha G-3, tiros de “bazooka” ou granadas de morteiro atiradas ao acaso.

E agora, porque voltaram, até já se julgam heróis, apenas porque também lá estiveram. Só porque fizeram aquela viagem por um mundo que não entendiam, escondidos atrás de uma arma, cumprindo “ordens” que não compreendiam nem discutiam, julgam ter direito a um estatuto de heróis!

Periodicamente, os que ainda restam dessas “expedições” reúnem-se para confraternizar à mesa de um qualquer restaurante. Pançudos, com os ralos cabelos já esbranquiçados exibindo, por vezes, as velhas boinas das “Campanhas de África”, contam chalaças marialvas, recitam os nomes das velhas armas que usaram, riem-se e choram com saudades dos tempos que já lá vão. No fim fazem juras e saudações militares. Qual Vietname, qual carapuça! Ninguém é mais digno de crédito e admiração do que eles!

.../...

Ao chegar a casa, dão um beijo na mulher, calçam as pantufas e com um profundo suspiro de alívio e sentimento do “dever cumprido”, ficam para ali a “ruminar” o inevitável Telejornal, porque a seguir vai dar a bola!

E não é que agora, vêm todos dizer que foram uns heróis?!

Carlos Geraldes
carlos.geraldes@live.com.pt

2. Nota do editor L.G.:

Este texto, com data de 7 de Julho,  vem no contexto de algumas reacções à publicação do conto do Mário Cláudio, Para o livro de ouro do Capitão Garcez.

O Carlos queixou-se de ter sido "silenciado"... Ora não é prática nossa silenciar ninguém, muito menos um camarada que costuma cumprir com lealdade e fair play as regras de convívio do nosso blogue, e é um activo colaborador. O que aconteceu é que os editores foram de certo modo surpreendidos pela "crueza" da sua linguagem e pelas considerações (menos felizes) que faz da generalidade dos antigos combatentes da guerra colonial... Ora essa generalização é abusiva, meu Caro Carlos, na falta de um verdadeiro retrato, sócio-antropológico,  a corpo inteiro,  da nossa geração que combateu em África...

O próprio autior entendeu meter esse texto, inicialmente na gaveta,  por o achar "um pouco forte"... Três meses depois de o terescrito, decidiu reenviá-lo em 7 de Jullho...

Arrefecida, entretanto, a polémica à volta do conto do Mário Claúdio, perdeu-se a oportunidade (editorial) de publicar o texto do Carlos Geraldes... Mas, enfim, nunca é tarde para o fazer... O texto fica postado (bem como as explicações das a seguir pelo autor):

Olá queridos amigos:

Tenho estado de facto a "hibernar" se bem que a estação não seja muito propícia a isso.

Fui despertado pela "polémica" sobre um belíssimo texto, inédito (?), de Mário Claudio, escritor que mal conheço, apenas pela notoriedade que lhe advém dos inúmeros trabalhos que publicou e consequentes prémios arrecadados. Aliás, sinto até um certo orgulho por me ter cruzado com ele duas ou três vezes numa pastelaria em Paredes de Coura, onde ele, me parece, deve ter residência temporária. Facto que muito enobrece tais idílicas e serenas paragens do nosso Minho profundo. Mas nunca me atrevi a falar-lhe, nem sabia tão pouco que também tinha estado na Guiné a cumprir o serviço militar.

Estamos todos de parabéns, portanto. A Tabanca Grande ficou MAIOR!

Quanto à tal "polémica", deixem que vos diga que não vale nada! Até faz lembrar as "bacocadas" à volta da obra do Saramago. Como sempre, quando a caravana passa, ficam cães a ladrar. Não é que não tenham o direito de ladrar. É a maneira de eles se expressarerm e, o direito à livre expressão, foi uma das mais importantes conquistas de Abril. Mas atenção à responsabilidade! Responsabilidade para com os outros, para os que estiveram, os que estão e os que estarão nesta terra que nos criou. Responsabilidade pelo futuro que construímos com os nossos exemplos pois isso, infelizmente, ainda não é muito perceptível pela maioria. Apenas nos interessamos pela notoriedade de aparecer, de dizer coisas, muitas delas toscamente apreendidas, imitadas sem delas nos apercebermos totalmente, sequer. E assim se cria agora esta estéril "polémica" que já cheira a coisa morta logo à nascença.

Nos princípios deste ano tinha escrito um pequeno texto, inspirado num comentário pouco abonatório sobre o nosso blogue.  Declarava alguém que a existência deste e de outros blogues do género, só serviam para certos indivíduos fanfarrões se virem pavonear de hipotéticos feitos nas guerras de Àfrica.

Como achei, depois, que o texto estivesse um pouco forte, guardei-o na gaveta. Mas agora perante as palavras de Mário Cláudio e as consequentes reacções, vou servir-me dele como mais uma testemunha de defesa do "réu", embora nunca tivesse sido para aqui chamado, apenas porque assim sempre foi a minha percepção da realidade vivida na Guiné.

Também eu fui testemunha (ainda nos benévolos tempos de 1964/66) do ambiente denso que a guerra arrastava atrás de si. Nunca a leitura de Joseph Conrad me parecera tão real ("O Coração das Trevas"). Estavamos ali a viver num cenário quase idêntico, emoções de tal maneira semelhantes, que a nossa mentalidade ia-se moldando a pouco e pouco à tenebrosa lógica da guerra com as suas obscenas crueldades tornadas puras banalidades. O acto de maltratar outro ser humano, mutilá-lo, matá-lo, esventrá-lo, esmagá-lo contra uma parede, trazia tanta impacto moral, tanto remorso, como matar um insecto importuno. E além disso até era um acto legal! A guerra tudo justifica!

Matar uma jovem mãe, com um tiro certeiro de G-3 que a atravessasse de lado a lado e esmigalhasse também a cabeça do bebé que ela transportava à costas numa fuga alucinada, era um acto merecedor de aplausos pela pontaria certeira do bravo soldado ansioso de mostrar uma valentia que nunca iria ter de outro modo.

Quem falou mais nesse crime? E em muitos outros que se seguiram? E os prisioneiros mantidos em Nhacra ( a "idílica" Nhacra!) dentro de uma jaula de arame farpado? E o prisioneiro morto com um canivete sucessivamente espetado no pescoço, só para o calar, na atrapalhação de uma noite de operação em território IN?

Bom, a guerra tem os seus fantasmas e é bom que os saibamos enfrentar de uma vez por todas.

Hoje parece que lidamos ainda com essas recordações, como se se tratassem de bilhetes postais de um passado heróico, feliz e distante. Por isso me repugnam certas basófias, certas festanças e jantaradas como se quisessem comemorar factos gloriosos do nosso passado comum. Feitos glorificados por uma "história" embelezada por uma certa doutrina política e nada interessada em mostrar a pura realidade.

Desculpem-me este desabafo mal amanhado, mas assim de repente é o que sinto cá por dentro.

Um grande abraço. Viva Àfrica, viva a Humanidade!
Carlos Geraldes

PS. Em Anexo envio o tal texto escrito em Abril deste ano [A guerra colonial: todos querem ser heróis]
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4357: Questões politicamente (in)correctas (39): Havia racismo nas Forças Armadas Portuguesas ? ... E no PAIGC ? (Nelson Herbert)

Guiné 63/74 - P6853: Futebol e nacionalismo na década de 1950 (Nelson Herbert, filho do jogador da selecção da província, Armando Lopes ou Búfalo Bill)





1. Foto e texto de Nelson Herbert, com data de 6 do corrente:

Caro Luis

Segue uma foto ilustrativo do poste referente a futebol e nacionalismo na Guiné (*)...A selecção provincial da Guiné de 1964 [ou de 1954?]... se não me falha a memória...integrada na sua maioria por futebolistas originários de Cabo Verde...

Dos futebolistas na foto, ainda consigo identificar alguns...mas quiçá o Mário Dias ne possa ajudar na identificaçãao dos restantes...

De pé da esquerda para a direita: Antero Bubo (caboverdiano); o jogador seguinte é guineense, cujo nome me escapa; Armando Lopes (Búfalo Bill,  meu pai) (**); o nome dos restantes também me escapa...

Agachados: terceiro a contar da esquerda, o guarda redes principal Júlio Almeida (antigo funcionário da granja de Pessubé que trabalhou com Amilcar Cabral e é referenciado como um dos fundadores do PAIGC); quinto atleta, Joazinho Burgo; o último...escapa-me o nome mas sei que é avô do Miguel, da selecção de Portugal... que esteve no Mundial.

Mas o Mário Dias quiçá seja a pessoa indicada para ajudar na identificação destes futebolistas ...

Mantenhas

Nelson Herbert (foto à esquerda)
USA

2. Comentário de L.G.:

Meu caro Nelson, salvo melhor opinião, a foto que me mandaste, não pode ser de 1964, mas sim do princípio dos anos cinquenta, como a própria legenda manuscrita sugere... Nessa altura, o teu pai  já tinha mais de 30 anos... Recorde-se que ele nasceu em 23 de Agosto de 1920, é 4 dias mais novo do que o meu pai, Luís Henriques.

Aproveito para saudar os nossos dois velhos, que passaram, como militares, pelo Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, na II Guerra Mundial. Oxalá eles continuem a dar-nos a alegria do seu convívio. O meu velho já começou a comemorar o feito que é, para um homem da sua geração,  chegar aos 90: hoje mesmo vai a um convívio luso-alemão de "velhas guardas"... que incluirá uma partida de futebol entre portugueses, da Lourinhã,  e alemães, em férias... Entre os portugueses da minha terra há muita gente que ele, o meu velho, treinou quando meninos e moços... Ele próprio praticou futebol até meados dos anos 50... E hoje é o sócio nº 1 do Sporting Clube Lourinhanense.

O futebol é (ou pode ser) um traço de união entre os povos. Acabo de ler, no blogue do BART 1914, que o português Norton de Matos é o novo treinador da selecção de futebol da Guiné-Bissau.

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Notas de L. G.:

(*) Vd. poste de 6 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6831: (Ex)citações (88): Futebol e nacionalismo nos anos 50/60 (Nelson Herbert)

(**) Vd. postes de:

 15 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5109: Meu pai, meu velho, meu camarada (18): Do Mindelo a... Bambadinca, com futebol pelo meio (Nelson Herbert / Luís Graça)

12 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5101: Meu pai, meu velho, meu camarada (17): Ilha de S. Vicente, S. Pedro, 1943: Armando Duarte Lopes (Nelson Herbert)

sábado, 14 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6852: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4): Memórias das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
O que se passou nas minhas férias não foi exactamente assim mas andou lá perto.
Não entrego a limpeza dos meus livros e a desorganização disciplinada dos meus papéis a quem quer que seja. Tinha o corpo molengão, as leituras eram convidativas para fugir à fornalha do sol.
Prometo extinguir o fogo à minha biblioteca nos próximos dias...

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4)

por Beja Santos

Uma vasta memória de factos de três guerras, entre 1961 e 1974

O projecto inicial está cumprido, quer dizer, foram limpas 6 estantes e cerca de 700 livros, está ali acumulada papelada avulsa que precisa de ordem para uma utilização possível em A Viagem do Tangomau. Vamos para nova empreitada, limpar 8 estantes para onde anarquicamente vou acumulando o que vem de Lisboa, desde catálogos de exposições, livros de ficção, ensaio e, inevitavelmente, as coisas da Guiné. A temperatura não abranda, o melhor é pôr no gira-discos uma música suave, talvez uns metais do período barroco. É nisto que a vista se queda no tampo da secretária: “Para ler em breve. É o primeiro livro com uma visão conjunto sobre as guerras coloniais. Está datado, mas levanta dúvidas pertinentes. É matéria para o blogue”. Olho displicentemente para vassouras, balde, detergentes e panos de limpeza. Pego no livro e deito mãos à obra.

“Memória das Guerras Coloniais” , de João Paulo Guerra (Edições Afrontamento, 1994) foi o primeiro esforço individual de memorizar as três frentes da nossa guerra colonial. O autor, no prefácio, avisa-nos que deve haver cautelas, mecanismos de leitura que travem a vontade de ver certezas em tudo quanto se lê: “Não são juízos. São factos, muitos deles postos em dúvida no próprio texto, porque é por vezes difícil de distinguir nas fontes a informação da propaganda. Separadas por um abismo ideológico, o regime colonial português e os movimentos de guerrilha que o combateram partilhavam uma mesma concepção oficial e única da verdade histórica. Vem daí a inquinação das fontes”. Findo o império, importa pôr de pé o contexto em que decorreram os factos, iluminar o palco onde tiveram lugar os acontecimentos, conhecer as reacções e as atitudes políticas nesse percurso onde se adejaram espectros como o complexo da Índia, o confronto de várias linhas conservadoras dentro das Forças Armadas, a gradual contestação entre a Fé e o Império, quem foram os apoiantes da causa portuguesa nos diferentes territórios, isto sem esquecer refractários e desertores e como se processou, nos três territórios, o cessar-fogo. Essa, em síntese, a tarefa a que se arrogou João Paulo Guerra.

Primeiro, o papel do colonialismo na História, como nasceu o sentimento das independências no chamado Terceiro Mundo, um fenómeno inevitável se bem que tenha sido alimentado pelos grandes actores da guerra fria. A partir dos anos 50, os areópagos internacionais põem na mira de fogo o trabalho forçado, os colonatos, o estatuto dos indígenas e os equívocos da presença portuguesa em África. A eleição de Kennedy veio desequilibrar irreversivelmente a natureza dos apoios que Portugal tinha no chamado mundo ocidental. Para escapar à solidão, a política externa portuguesa é forçada ao malabarismo de negociar em permanência com os diferentes vizinhos, nos três territórios. A solidariedade africana adensa-se, com o apoio do bloco soviético, dos nãos alinhados, dos países árabes e da China.

Segundo, as campanhas militares não escapam à lógica da qualidade dos dirigentes, da coesão dos princípios, da energia na mobilização, na gradual superação das contradições. O autor estuda Angola em primeiro lugar, desvela a estratégia dos três movimentos e da resposta das autoridades portuguesas, assim concluindo: “No final de 1973 e no início de 1974, a FNLA estava confinada à fronteira com o Zaire, a UNITA constituía uma pequena reserva entre o Moxico e o Bié; o MPLA estava reduzido a pequenas bolsas de guerrilha ao longo da “Estrada do Café”, tinha irradiado do Leste para Sul, com bases localizadas a Sul de Gago Coutinho (Lumbala) e a Leste de Mavinga e pela acção combinada das tropas portuguesas e da UNITA tinha retrocedido para o Cazombo, após o impetuoso avanço a partir da fronteira com a Zâmbia, em parte devido ao abandono da guerrilha pelos líderes e combatentes da Revolta do Leste. A situação em Angola era, do ponto de vista militar, a única dos três teatros de guerra que podia considerar-se favorável às posições portuguesas. O regime colonial não tinha ganho a guerra em Angola. Mas estava a ganhar tempo”.
E chegamos à leitura dos acontecimentos na Guiné, as chamadas guerras da pacificação, a chegada, em 1927, da CUF que nunca impediu que a economia colonial da Guiné tivesse saído de um estado primitivo. Apresentadas as populações, o autor convoca Amílcar Cabral, a sua vida e a sua obra, o seu papel até na fundação do MPLA e como, com este, coordenou a luta contra a dominação colonial na esfera internacional. E chegamos à surpresa de 1963: em vez de atacar postos de fronteira, o PAIGC aparece em Tite, Bedanda, Fulacunda e Empada. Em escassos meses, o Sul ficou desarticulado. Em Junho desse ano o PAIGC instalou-se no Oio. As tropas portuguesas viram-se confrontadas com um inimigo que separara populações e criara santuários que se podiam atingir e até eliminar, mas temporariamente, tropas e populações do PAIGC podiam voltar horas depois, findas as operações: foi esta a lógica implacável que Cabral e os seus companheiros estabeleceram para a luta de libertação. A partir de 1964, se bem que com menos ímpeto, a guerrilha progrediu para o Norte, Nordeste e Leste. A partir de 1966, Madina do Boé é alvo de intensas flagelações com artilharia. O historial dos acontecimentos veio a conhecer agravamentos de todos os tipos.

O aspecto tumultuoso da evolução da guerra obviamente que foi acompanhado de divergências e contradições entre os políticos e militares. Em 1964, Schultz proclamara que a paz tinha voltado ao território. Em 1970, Spínola declarava que a situação evoluía num sentido francamente favorável. Bethencourt Rodrigues, o último governador confessou muito mais tarde que a situação se tornara duríssima para as nossas tropas. João Paulo Guerra descreve essas diferentes linhas de força e evidencia como o espectro da guerra sem saída vai mudando a mentalidade dos militares, a começar pelo próprio Spínola que ficou atónito quando Caetano lhe terá dito em 1972 que “Não é forçoso que vençam”.

Impõe-se uma pausa, o que se irá ler a seguir tem a ver com a Guiné e Cabo Verde, depois o autor detém-se longamente em Moçambique e por último temos a complexidade das questões que eram omissas na imprensa, desde as desinteligências entre a igreja e o regime até aos cessar-fogos. Coisa estranha, está agora a arrefecer, vou para as limpezas e depois acabo a leitura do livro. Não deixa de ser agradável passar uma boa parte das férias numa biblioteca a arder. Poiso o livro de João Paulo Guerra ao lado dos livros que constituirão as arremetidas seguintes: “Ébano”, de Ryszard Kapuscinski, e “Quadros de Viagem de um Diplomata (Senegal, Guiné e Cabo Verde) ”. Verão que esses conteúdos não os irão desapontar.
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Nota de CV:

Vd. poste de 13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6850: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6851: Estórias cabralianas (63): As Sereias do Rio Geba... ou a violência doméstica subaquática (Jorge Cabral)...


Guiné-Bissau > Regiião de Bafatá > Bafatá > Rio Geba > 15 de Dezembro de 2009 > A magia do Rio Geba que o nosso Jorge Cabral, aquando da sua longa viagem por estas paragens, em 1969/71, povoou de sereias...  (Na foto, o músico e médico João Graça; editada por L.G.).

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do Jorge Cabral, com data de 12 do corrente:

Amigos,

Com este calor, só no fundo do Geba, brincando com as Sereias…

Abraços

Jorge Cabral



2. Estórias cabralianas  > AS SEREIAS DO GEBA: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SUBAQUÁTICA
por Jorge Cabral (*)

Foi na Guiné que aprendi a contar estórias às Crianças. Comecei lá e nunca mais parei. Ainda ontem conheci uma Menina. Disse-me que tem um gato e eu falei-lhe das minhas duas moscas, uma de cama, coitada, cheia de febre… Em Missirá, na Escola, comecei com a Branca de Neve e os 7 Anões, mas logo desisti.
- Neve? O que é Neve?
- Muito branca!
- Então era Branquinha, irmã do Furriel.
- E Anão? O que é?
- É um Homem Pequenino!
 - Suma, Alfero?

Impossível continuar…

Parti então para a invenção. No fundo do Geba viviam as sereias, metade mulheres, metade peixes, que de noite abandonavam o rio e vinham brincar para a floresta. Há muitos, muitos anos, levaram um rapaz, que hoje ainda lá vive…
O sucesso foi imediato.

Gostaram tanto que contaram às Mães e estas aos Pais, os quais consultaram os Homens Grandes, que obviamente garantiram a veracidade do relato. Agora de noite as sentinelas redobravam a atenção… e passei a contar com muitos voluntários nas idas ao Mato Cão…

Na altura andava muito zangado com o meu Soldado Daíro que batia na Mulher… Ainda por cima era atrevido e apresentava justificações absurdas…
- Alfero, Boi bate na Vaca, Galo na Galinha, Homem na Mulher…É assim!

Ameacei-o com uma valente porrada e parecia ter acalmado, até que numa tarde, oiço os prantos da Mulher.

Regressado, ele e os outros do Mato Cão, vinham muito excitados. Tinham assistido ao Macaréu.
- Desta vez não escapas, Daíro -  avisei logo.
- Alfero, pergunta ao Furriel, se não ouviu no Macaréu, as sereias a gritar… Elas também levam dos Maridos… É assim.

Jorge Cabral

___________
 
Nota de L.G.:
 
(*) Vd. último poste desta série > 26 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6787: Estórias cabralianas (62): À Tesão, Pelotão!... Este é o Alfero Souza, meu amigo (Jorge Cabral)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6850: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3): Amílcar Cabral, de Oscar Oramas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Não há aqui nenhuma encenação, ler foi o melhor remédio para o braseiro que vivemos na semana passada.
É mentira que dentro das florestas a temperatura é mais amena, eu já tinha esquecido a tortura dos suores viscosos dentro das florestas galeria, na época seca, naquela guerra que vivemos.
Defendi-me a ler, sempre reverenciando a Guiné, como a nossa agremiação merece.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (3)

por Beja Santos

Amílcar Cabral lembrado por Oscar Oramas

Nem ao anoitecer sopra uma aragem. Não é para me gabar, as estantes estão limpas e as aranhas removidas. Socorro-me de um música de fundo pletórica, avassaladora, já andou aí pelos ares a banda sonora da Lawrence of Arabia, depois o Blade Runner, agora Passage to India. Aspirei, bruni, até relampeja o óleo para as madeiras. Agora começa a arrefecer, é tempo de pegar num testemunho de alto nível, o do embaixador cubano Óscar Oramas Oliva, a primeira pessoa fora do PAIGC que viu Amílcar Cabral morto naquela noite de 20 de Janeiro de 1973.

A tradução é abaixo de cão, é muito difícil haver tantas gralhas por página (“Amílcar Cabral, para além do seu tempo”, por Óscar Oramas, Hugin, 1998). Mas o conteúdo é suculento, para além da má tradução e das obrigações propagandísticas de um embaixador cubano. Talvez não valha muito a pena determo-nos nas origens, do meio em que cresceu e dos estudos em Portugal de Amílcar Cabral, é matéria consabida, não é por aí que se encontrará inovação no retrato político. Cabral pertenceu à linha dos visionários africanos, numa linha de compromisso entre a praxis marxista e a lucidez em escapar ao envolvimento proporcionado pelas garras da guerra fria. Conhecia o suficiente das estruturas sociais da Guiné e Cabo Verde a ponto de se saber que foi por puro fanatismo que misturou uma com outra, como se o fosso histórico e cultural pudesse ser iludido. E nesse fanatismo se conduziu à perdição e comprometeu as relações entre dois povos.

Oramas tem razão em contextualizar a luta de Cabral nesse momento particular em que África se lançou nas independências, no estabelecimento hábil de relações de vizinhança que estabeleceu com o déspota de Conacri e o intelectual Senghor, sempre timorato de uma guerra de secessão que roubasse Casamansa ao Senegal. O Amílcar Cabral dos anos 50 é um guineense filho de cabo-verdianos que tem consciência de que não existe proletariado na Guiné e de que o papel das empresas coloniais se distingue de tudo quanto se passa em Angola ou Moçambique, por exemplo. Juntou-se a outros intelectuais e assalariados, assim se constituiu a linha dirigente do PAI, berço do PAIGC. Nesses anos 50 formam-se diferentes grupos ditos de autonomização e libertação e parecia claro que era imiscível qualquer forma de associação natural entre cabo-verdianos e guineenses. Cabral consegue dar a volta, tal a sua determinação, estabelece linhas gerais para a mobilização, ideologização, formação dos quadros, tenta o agrupamento de todas as forças de independência, e enquanto no interior começa a subversão, instalado em Conacri Cabral movimenta-se na cena internacional, capta apoios, recebe ajudas na formação para a luta armada, incluindo armamento. No congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, faz reprimir aqueles que praticaram abuso do poder nas chamadas zonas libertadas e denuncia a perversidade da “regulandade” (a criação de grupos de súbdito em torno dos chefes), a “catchorindade” (o servilismo) e a “mandjoandade” (espírito de clã). A região Sul é o primeiro trunfo do PAIGC. Em 1965 a organização da unidade africana reconhece o PAIGC como o único interlocutor válido. Cabral dá provas de ser um exímio organizador, um educador vigoroso, dotado de oratória vibrante e convincente. 1968 marca o grande confronto com um Spínola que não quer só vitórias militares, vem disposto a grandes concessões no terreno social e traz um plano de desenvolvimento económico. Cabral continua a achar prematuro a captura e ocupação das localidades que possam representar ser um presente envenenado para os guerrilheiros. O relacionamento com o Senegal é normalizado e vai levar a uma viragem na frente Norte. Oramas inclui um capítulo sobre a participação cubana na luta da libertação da Guiné, tem muitíssimo interesse refere que Cuba está muito próxima das concepções de Cabral e que recebeu lança-roquetes GRAP, canhões sem recuo de 82 mm e roquetes portáteis Strella 2 que só tinham sido usados pelos soviéticos em manobras internas. Outros pontos que merecem amplo desenvolvimento no trabalho de Oramas é a actividade internacional de Amílcar Cabral, que aparece profusamente documentada e as suas ideias políticas, e é aqui que Oramas deixa uma nota inequívoca dos princípios doutrinários de Cabral. Admira a obra de Frantz Fanon, considera que África pode e deve fazer a sua própria contribuição para a luta geral de libertação nacional, designando esta luta como um acto de cultura. Considera que o conceito de partido é o resultado da luta de classes e que compete a esse partido ser o instrumento de transformação da sociedade: para atingir e ferir de morte o colonialismo e para construir o progresso da nação. Defende acerrimamente a centralização dizendo com ironia: “Sou um ditador democrático, pois tomo decisões e delas informo os meus companheiros”.

E chegamos ao capítulo crucial em que Oramas descreve o assassínio de Cabral.

Minutos depois de se terem ouvido os disparos, Oramas é chamado por Otto Shacht, chefe de segurança do PAIGC. Cabral apresenta um orifício de bala na parte posterior da cabeça, já está morto. Shacht informa o embaixador que já sabe quem assassinou Amílcar Cabral. Ouvem-se tiros perto, o embaixador retira, alguém o informa que ouve pessoas a correr em direcção à praia e que se ouviram motores de barcos. Fica-se a saber que Aristides Pereira fora sequestrado. Acompanhado por um ministro da República da Guiné, vão ter com Sekou Touré que estava rodeado pelos conjurados que explicam ao presidente da Guiné Conacri que a direcção do PAIGC tem estado controlada pelos cabo-verdianos que humilham os guineenses. Sekou Touré manda prender os revoltosos. Os vários diplomatas presentes contestam a Sekou Touré que mande prender todos os militantes do PAIGC. Sekou Touré recua e manda alojar os dirigentes do PAIGC em hotéis. O que mais impressiona em todo este testemunho de Oramas é sentir-se que o complot é constituído exclusivamente por guineenses.

Oramas não se compromete seriamente a acusar a PIDE, limita-se a explanar algumas hipóteses e deixa mesmo no ar a possibilidade de um envolvimento indirecto de Sekou Touré. Convém recordar que todos os testemunhos escritos e gravados sobre os revoltosos desta conjura de 20 de Janeiro desapareceram, cada um é hoje livre de especular sobre os motivos de fundo deste assassínio. Oramas termina o seu depoimento lembrando uma frase de Amílcar Cabral: “Eu sou simplesmente um africano cumprindo o meu dever no meu país, no contexto do nosso tempo”.

Quisera eu que a canícula abrandasse, o ar continua abafado, à cautela começo a ouvir o 1.º Acto da Ópera “Parsifal”, com a direcção de Pierre Boulez. Contrariando a lógica das coisas, em vez de uma leitura ligeira vou de emersão para “Memórias das Guerras Coloniais”, de João Paulo Guerra. À falta de genica, embalado pela aragem, entro na leitura. Preparem-se.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6847: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 – P6849: Memórias de Mansabá (11): Sexta-feira, dia 13 de Agosto de 1971 (Carlos Vinhal)

1. Esta estória poderia fazer parte da série Efemérides, mas na verdade não teve importância nenhuma no desfecho da guerra colonial.


Mansabá, Sexta-Feira, 13 de Agosto de 1971*

Tarde quente do dia 13 de Agosto de 1971 que se adivinhava enfadonha. Como não tinha nada que fazer, estava deitado na cama deixando correr o tempo, ouvindo pela milionésima vez uma das duas cassetes que tinha.

O meu Pelotão estava de Serviço ao Aquartelamento e eu estando de Sargento de Ronda, só entraria ao serviço lá para a 1 hora da manhã. De repente lembrei-me que era Sexta-feira e ao mesmo tempo dia 13.

Como não sou supersticioso, saltei da cama e logo pensei que era o dia indicado para se fazer aquelas tarefas que se não devem fazer nestes dias ditos azarentos.

Vesti-me e fui ao quarto dos condutores procurar um voluntário para ir comigo ao exterior do arame farpado rebentar granadas velhas. Não foi difícil encontrar alguém, porque toda a gente gostava assistir ao espectáculo dos rebentamentos.

Enquanto o condutor foi aprontar um Unimog 411, fui levantar um Rádio e avisar o meu Alferes, que estava de Oficial de Dia, dos meus intentos, para que ele por sua vez avisasse todos os Postos de Sentinela à volta do Aquartelamento e mais quem achasse por direito ser prevenido.

Carregada a viatura, dirigimo-nos para o exterior do arame farpado, estrada de Mansabá para o K3, como quem vai para um picnic, para junto de uma árvore morta onde eu costumava, num buraco existente junto a ela, destruir o material que ia armazenando e que não tinha cumprido a sua missão de explodir quando lançado contra o IN.

Depois de dispostas, com cuidado, as granadas velhas no buraco, juntei-lhes uns pedaços de TNT providos de detonadores eléctricos para provocar o rebentamento controlado à distância.

Após o rebentamento e enquanto o fumo se dissipava, aproximei-me do local para verificar se tinha corrido tudo bem ou seja que nenhuma das munições ficasse inteira. Mal me abeirei da árvore, fui recebido por um enxame de abelhas selvagens, em polvorosa, que me perseguiram enquanto eu fugia a sete pés.

Como não fui suficientemente lesto fui picado na cabeça e nas mãos. Enquanto corria, pelo Rádio começaram a chamar por mim. Quando pude, parei e atendi. Era um militar das Transmissões a comunicar-me que o Comandante ordenava que me apresentasse imediatamente no seu gabinete.

Desmontei o serviço, carregámos as tralhas na viatura e lá fomos a caminho do Aquartelamento, não prevendo eu já nada de bom.

Quando entrei na porta da Secretaria, o gabinete do Comandante só tinha acesso por lá, fui alvo do riso por parte dos presentes. O meu aspecto era algo caricato pelos inchaços na testa provocados pelas picadas das abelhas, mas ao mesmo tempo vi caras de preocupação pelo que me esperava lá dentro.

Bati à porta e à voz de ENTRE, entrei, fiz a continência da praxe e em sentido esperei pela pancada. Indiferente ao meu aspecto, perguntou-me o Comandante, muito furioso:

- Nosso Furriel, quem o autorizou a ir fazer rebentamentos para o exterior do quartel?

Respondi que ninguém, e que julgava ter competência suficiente para saber qual era a melhor ocasião para destruir material perigoso, depositado na Arrecadação do Material de Guerra, à minha responsabilidade, desde que antecipadamente desse conhecimento do facto.

- Mas eu não soube de nada!!!

Disse-lhe que previamente tinha avisado o nosso Alferes Bento que estava de Oficial de Dia, para que ele por sua vez alertasse os postos de vigilância e providenciasse pela minha segurança e do condutor que me acompanhava.

- Vá chamar imediatamente o nosso alferes.

Fui ao Bar dos Oficiais procurar o Oficial de Dia para ele me acompanhar ao gabinete do nosso Capitão. Com os dois já na sua presença, foi a vez de o alferes ser interpelado:

- Nosso alferes, o nosso furriel Vinhal deu-lhe conhecimento de que ia fazer rebentamentos?

- Sim, meu Comandante, deu.

- E você avisou-me?

- Não meu Comandante, avisei toda a gente mas não me lembrei do senhor.

- Nosso furriel, pode retirar-se. Por esta vez escapou de uma porrada, mas tenha cuidado comigo!!!

O que se passou no Gabinete do Comandante depois de eu sair não sei, mas adivinho que o alferes tenha ouvido das boas.

Cá fora, na Secretaria, fiquei a saber pelo nosso Primeiro Rita que, quando se deu o rebentamento, o Capitão, julgando tratar-se de um ataque ao aquartelamento, deitou a fugir pelo gabinete fora, mas quando viu que toda a gente continuava sentada a trabalhar, impávida e serena e, ainda por cima com ar de riso, ficou furioso. Sabendo posteriormente que tinha sido eu o autor do rebentamento, julgou chegada a hora de dar a porrada que  me havia prometido tantas vezes.

Restabelecida a ordem, dediquei-me a tratar as picadas das abelhas e a reflectir sobre a tarde que tinha passado. Não foi enfadonha, mas convenhamos que naquela Sexta-feira dia 13, melhor tinha sido ficar na cama, sossegadinho, a ouvir pela milionésima vez a música de uma das duas cassetes que tinha e da qual sabia de cor e salteado a sequência das canções.

Perdendo agora um pouco de tempo a falar do meu inesquecível e caro Comandante, Capitão C, sempre digo que foi um dos meus melhores amigos na tropa que, não me conhecendo de lado nenhum, me tinha um amor cego. Quantas vezes aquele homem me ameaçou com porradas, nunca tendo, felizmente, pretexto suficientemente forte para levar avante a sua vontade.

Felizmente, para mim, mais tarde este senhor, depois de uma série de baixas por doença (?) ao Hospital Militar 241 de Bissau, foi definitivamente evacuado para o HMP de Lisboa.

Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil Art.ª MA
CART 2732
Mansabá, 1970/72

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Notas de CV:

(*) Esta estória foi publicada na I Série do nosso Blogue (Poste DCLX)

Vd. poste de 21 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6770: Factos e Feitos mais importantes da CART 2732 (3): De Agosto de 1971 a 19 de Março de 1972 (Carlos Vinhal)

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 – P6792: Estórias avulsas (90): Recordações (José Marques Ferreira, ex-Sold Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462)

Guiné 63/74 - P6848: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que me chegou às mãos, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

II Parte > Excertos (pp. 8-11)

14. Numa sessão da Câmara Municipal, o Major Matos Guerra que era o Presidente anunciou-nos que ia destruir, com uma bulldozer nova encomendada, e por ordem do Sr. Governador Arnaldo Schultz, o bairro do Cupelom, suspeito de ser um ninho de terroristas.

Repliquei, pedindo-lhe para nos informar onde é que a população iria ser alojada. Respondeu que não sabia. Dei-lhe como exemplo o bairro de Alvalade, em Lisboa, onde se cosntruiu o bairro, primeiro, para depois se desalojar as pessoas.

Foi uma discussão que durou, foi suspensa para o jantar e depois retomada até de madrugada. Nós, a vereação, coesa, recusámos a proposta de decisão, que ficou suspensa. Isto pode ler-se na acta da Câmara Municipal.


A seguir, houve uma nova provocação, sempre para estudo das minhas reacções. O secretário da Câmara Municipal, António Barbosa, natural de Cabo Verde, telefonou-me a dizer que havia uma proposta para mandar uma delegação da Câmara Municipal de Bissau a Lisboa, para representar a Guiné, a exemplo das outras províncias, numa manifestação de apoio ao Professor Salazar por ter decidido desencadear a guerra contra as províncias colonizadas.

Pediram-me para ir assinar a proposta. Perguntei de quem era a decisão. Respondeu-me que fora decidido pelo Governador e o Sr. Presidente da Câmara. Respondi que, por mim, eram eles que deviam assinar. Insistiu e eu respondi para dizer ao Sr. Governador e ao Sr. Presidente da Câmara que eu recusava-me a assinar a proposta. Passou o telefone ao Presidente da Câmara que me confirmou o pedido. Dei-lhe a mesma resposta, negativa, com pedido de para a transmitir ao Sr. Governador.

16. Aconteceu esta cena de manhã. Desligaram o telefone de imediato. Telefonei ao Sr. Benjamim Correia, a dar-lhe conhecimento do ocorrido. Combinámos recusar assinar. O Dr. Armandino Pereira não tinha telefone em casa. Desloquei-me de carro para o avisar. Combinámos recusar assinar a proposta.

17. À tarde, recebemos uma convocatória para uma reunuião na Câmara após o jantar. Eu e o sr. Benjamaim Correia comparecemos, mas o Dr. Armando Pereira desculpou-se, dizendo que estava incomodado, pelo que não poderia deslocar-se à Câmara, de noite.

18. No dia seguinte, quinta-feira, era o dia normal das sessões de Câmara, o Presidente da Câmara veio ao nosso encontro, à porta, com uma amabilidade fora do habitual. Cumprimentou cada um e, ao dirigirmo-nos para os nossos lugares, convidou-nos para um encontro no seu Gabinete, com o Dr. Manuel Marques Palmeirim, que fora mandado pelo Sr. Governador Arnaldo Schulz para ter uma reunião com os vereadores.

19. Fui o primeiro a entrar. Convidou-me a ficar na cadeira mesma à sua frente e, depois de cada um ocupar o lugar que lhe fora oferecido, disparou:
- Senhores Vereadores, parece que se estabeleceu na Câmara uma confusão, para se atender o pedido do Sr. Governador, de se mandar uma delegação da Câmara a Lisboa para tomar parte numa manifestação em apoio ao Professor Salazar.

Respondi, pedindo desculpas, para dizer que não havia confusão nenhuma. Apontei para o livro que tinha aberto à minha frente, a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU), que diz que é a Câmara que decide e delibera, não é o Sr. Governador que desencadeia a iniciativa. Respondeu-me:
- Tem razão o Sr. Carlos Gomes.


20. Fez-me três perguntas. A primeira foi a seguinte:  Sendo a Câmara que iria reunir para tomar a decisão, qual seria a minha opinião.

Respondi-lhe que, por mim, se fosse a Câmara a decidir teria que indicar o Presidennte, a quem compete a representação da Câmara.

Fez-me a segunda pergunta:
- E se o Presidente não puder ir ?

Respondi que, por mim, nesse caso seria o Sr. Vice Presidente, Dr. Armando Pereira, no caso de aceitar a missão.

Fez-me a terceira pergunta:
- E se o Dr. Armando Pereira não puder ir ?

Respondi-lhe que teríamos que decidir por escrutínio secreto… Mas se a escolha recaísse na minha pessoa, recusaria aceitar a missão.

21. O Sr. Governador teve que ser ele a decidir, mandando o Sr. Presidente da Câmara representar a Guiné.

22. A partir dessas provocações, nunca mais tive vida sossegads, sucederam-se prisões e mortes (Durante Vieira e outros)… A minha construção continuou a evoluir, mas com desassossego.

 [ Revisão / fixação de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]