sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7228: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (3): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1) 30 de Outubro

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Sem compromisso de continuidade, inicio aqui algumas notas avulsas acerca dos preparativos da viagem.
É a única maneira que me ocorre de vos agradecer essa ideia de terem criado a secção “Operação Saudade”.

Com um abraço do
Mário


Operação saudade 2010 (3)

Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1)

Beja Santos

30 de Outubro

Chove torrencialmente, são bátegas a chicotear os vidros. Está na hora de começar a preparação do que vou fazer à Guiné. Primeiro, e ciente do insucesso, vou catar os álbuns de fotografias, manda a razão que se diga que já deve estar tudo bem embalado em poder do Luís Graça. Afinal há surpresas. Ou a fotografia é um duplicado ou falhou o seu envio em momento oportuno para o Luís. Estamos em Dezembro de 1969, houve um jogo de futebol entre oficiais e sargentos. Aceitei ir para a baliza. Os sargentos marcaram logo quatro golos na primeira parte. Apareço de luvas e quico, de pé, seguem-se depois o então major Cunha Ribeiro, depois o David Payne, médico inesquecível, depois o capitão Brito, comandante da CCaç 12, no extremo o Abel Rodrigues, um dos meus companheiros de quarto e que já fui visitar a Miranda do Douro. De cócoras, não consigo identificar o camarada à minha frente, segue-se o Rodrigues (já falecido), o Carlão (que organizou o primeiro encontro do BCaç 2852 e a CCaç 12, em Fão, nos anos 90) e o Ismael Augusto, o guru das viaturas.

No afã de que apareça um milagre ou uma grande surpresa, continuo a escavar entre a papelada. Encontro uma imagem que a minha mãe me enviou, ela escreve: “O Senhor te ilumine, meu filho”. Data: Natal de 1968. Há outras imagens, fixo-me nesta, creio que ela saiu vitoriosa, recebi todas as bênçãos necessárias para resistir e até para me fortalecer.

Saiu depois uma fotografia tirada em Lucala, creio que no Quanza Norte, Angola. Chegou a Primeira Guerra Mundial, a minha mãe, a segunda a contar da direita, está protegida pela tia Lucília, a minha avó aparece com um amplo chapéu de palha. O que me impressiona são as indumentárias, todos os homens usam colete, estão de chapéu e sapato lustroso. Esta a minha mãe que dizia sempre: “Primeiro sou angolana, depois sou portuguesa”.

Encontro finalmente referências no livro de Luís Cabral à região de Xime e Xitole. No fundo, ele confirma o que escreve Hélio Felgas acerca do início da luta armada: primeiro, o Sul; onde se criou o caos e o isolamento dos aquartelamentos e povoações; a seguir, a floresta do Morés e a turbulência criada à volta, em Mansoa, Olossato, Bissorã, Bula, Farim, etc; e a penetração, com sucessos e revezes, entre o Xime e o Xitole. Telefono ao Queta, ele é o meu dicionário vivo, a central da minha memória. Sim, conheceu muito bem o padre António Galli, de que fala o Luís Cabral, na missão católica de Samba Silate. Domingos Ramos era o nome do dirigente político que agitou a região, ainda em 1962. A partir do segundo semestre de 1963, tudo se começou a desarticular, a guerrilha instalou-se para lá da Ponta Luís Dias, à frente da Ponta do Inglês, a base estava localizada em Mangai, no Fiofioli. Os dados batem certo. A partir daí, só as tropas especiais é que foram coroadas de algum êxito em avançar até ao interior destas bases. Na operação “Lança Afiada”, em 1969, todo o território foi percorrido a pente fino, os guerrilheiros e as populações transferiram-se para a outra margem do Corubal, finda a operação, retiradas as tropas especiais a partir da Ponta do Inglês, os guerrilheiros e a população voltaram calmamente para os seus locais habituais.

O Queta lembrou depois o fim da grande tabanca de Samba Silate, ele chegou a viver em Taliurá, perto da Ponta Coli, um dos lugares mais temidos para emboscadas, na estrada Xime-Bambadinca. Perguntei ao Queta se ele não se lembrava de que tínhamos estado ali quase todo o mês de Julho de 1970. “Lembra, lembra muito bem. Era tempo de chuvas, íamos noite escura buscar os materiais da Tecnil ao Xime, sempre a picar a estrada cheia de lama. Tu falas disso no livro grosso que escreveste, em que eu estou na capa”.

Peço o número de telefone do filho, de nome Mamadu, que vive em Amedalai. Ligo e sou atendido prontamente. Mamadu sabe que eu vou chegar em breve. Esclarece: “Nasci em 1968, em Missirá. O meu pai fala muito do senhor. Sei que vai haver uma festa dos homens grandes que estiveram consigo em Missirá. Eu vou aparecer”. Pergunto por Mamadu Djau, o meu bazuqueiro. Mamadu tem uma resposta pronta: “Mamadu é comerciante, já recebeu informações de Fodé, de Bambadinca, o pessoal vai concentrar-se quando ele mandar”.

Despeço-me deste Mamadu, parece que nos conhecemos desde o princípio do mundo. Sinto que tenho a voz embargada. Tive com o Mamadu Djau um dos episódios mais lindos mas pungentes da minha vida. Em 1990, não o consegui visitar, foi uma estadia de uma semana só para preparar a missão de 1991. O mais longe que fui foi a Missirá, um acontecimento lancinante, ainda encontrei a mãe do Quebá Soncó, com mais de 80 anos, viu partir todos os seus filhos, como vira desmembrar-se todo o regulado do Cuor, em Missirá passou todo o tempo da guerra. Foi uma recepção inesquecível. Esta descrição irá aparecer na Viagem do Tangomau. O que importa agora é referir que mal cheguei à Guiné, em 1991, através de Mamadu Soncó, sobrinho de Abudu Soncó, mandei notícias para Bambadinca, com indicação de quando passaria por Amedalai e que iria visitar Mamadu Djau. Recebeu-me como se recebe um filho pródigo ou um pai muito amado de que se perdeu o rasto, há muito. Passeámos por Amedalai, tirei fotografias com as suas duas mulheres e sete filhos. Como eu gostava de ter essa fotografia aqui! Nunca mais lhe pus os olhos em cima. Caminhava para o fim da tarde quando eu pedi licença ao Mamadu para voltar a Bissau. Ele vestia à europeia, um fato cinzento e uma camisa branca, imaculada. Disse-me: “Não demoro nada, já tenho as malas prontas para seguir contigo”. Foi nesse preciso instante que eu me senti à beira de um precipício, tratara da organização desta visita sem pensar nas consequências. O Mamadu, com a sua lógica, esperava que eu o viesse buscar. Apercebeu-se rapidamente que eu estava atordoado, titubeante. Eu olhava à volta pensando naquelas tabancas de fulas e biafadas que tinham estado sempre com os portugueses, sem vacilar, eu olhava para o fundo como se procurasse Taibatá, Demba Taco e Moricanhe, durante anos e anos flageladas e até destruídas, mas sempre com a bandeira portuguesa a tremular no alto de um poste. Com a tristeza estampada no rosto, Mamadu disse-me: “Estava mesmo à espera que me viesses buscar, esperei estes anos todos, tu sabes muito bem como eu lutava, tu sempre confiaste em mim”. Seja como for, separámo-nos depois de um abraço muito apertado, muito próprio de uma estima profundíssima. Nem o Mamadu Djau sabe o erro crasso que cometi não tendo posto em destaque o seu comportamento heróico naquela noite fatídica de 16 de Outubro de 1969, em Canturé, quando ele ficou a comandar o que restava da força que defendia um Unimog 404 desfeito, com o Manuel Guerreiro Jorge moribundo. Na fotografia do livro “O Tigre Vadio” ele é o primeiro a contar da esquerda, que está de pé, com uma chibata parece afugentar mosquitos. O meu inesquecível Mamadu Djau. Perguntei duas vezes ao telefone ao filho do Queta sobre o estado de saúde de Mamadu Djau e ele disse-me: “Está bem, graças a Deus. Melhor ficará quando daqui a um bocado lhe falar neste telefonema”.



Jogo de futebol em Dezembro de 1969, Bambadinca. Deixei entrar 4 frangos, mas não consegui encontrar um guarda-redes suplente…

Imagem que a minha mãe me enviou no Natal de 1968

Dia de festa, lá para o Norte de Angola. A minha mãe teve uma infância cheia de felicidade e amor.

Mamadu Djau é o primeiro à esquerda; de pé, a seguir, está Jobo Baldé e depois o Queta
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7223: Notas de leitura (165): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7206: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (2): Os meus anfitriões em Santa Helena - Bambadinca

Guiné 63/74 - P7227: Tabanca Grande (253): Carlos Carvalho, ex-Fur Mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche e Ponte Caium, 1970/72, residente em Fânzeres, Gondomar, irmão da nossa querida Júlia Neto

1. Mensagem de Carlos Alberto Rodrigues Carvalho, ex-Fur Mil da CCAV 2749/BCAV 2922, Piche e Ponte Caium, 1970/72, com data de 28 de Outubro de 2010:

Adesão à Tabanca Grande

O meu nome é Carlos Alberto Rodrigues de Carvalho, fui Furriel Miliciano de Cavalaria, no 4.º Pelotão da CCav 2749/BCav 2922, que se formou em Estremoz, e foi destinado à zona de Piche (ou Pitche). Além desta localidade, estive também por três vezes no nosso Destacamento da Ponte Caium.  Estou já na Tabanca de Pitche e Arredores, e começarei a frequentar os almoços dos Gondomarenses que estiveram na Guiné, na companhia do nosso estimado Carlos Silva.

Resido em Fânzeres-Gondomar, e encontro-me reformado há cerca de ano e meio, do Banco BPI.

Posso informar que sou irmão da Júlia Neto, que está já na vossa companhia, por falecimento do meu cunhado José Neto

Envio os meus cumprimentos de amizade.
Carlos Carvalho


2. Comentário de CV:

Caro Carvalho, bem aparecido na Tabanca Grande (*) onde te poderás instalar à vontade e começares a trabalhar. Passas a ser o nº 460...

A ideia é que cada um de nós possa, a seu modo, colaborar com as suas histórias e fotografias para aumentar este espólio de memórias, já importante, dos ex-combatentes da Guiné.

Seres cunhado do nosso saudoso Capitão Zé Neto (1929-2007), acarreta-te alguma responsabilidade porque ele deixou-nos um património de memórias bem recheado, principalmente sobre Guileje do seu tempo, e sobretudo o rastro de grande afecto, continuado pela Júlia que está connosco por mérito próprio.

A colaboração do Zé Neto, essa, começou na nossa primeira série (**). Se ele fosse vivo, seria o nosso decano, com 81 anos.

No teu próximo contacto manda uma foto actual para te reconhecermos, se nos cruzarmos contigo nos caminhos de Portugal.

Da CCAV 2749 temos, para já, entre nós, há cerca de 2 anos, o camarada Luís Borrega.

Um abraço do Carlos Vinhal, em nome dos demais editores e de toda a Tabanca Grande.
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Notas de CV:

(*) Último poste da série de 3 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7220: Tabanca Grande (252): Jochen Steffen Arndt, estudante do programa de doutoramento da Universidade de Illinois em Chicago, EUA

(**) Vd. poste de 25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba

(...) (Publica-se a 10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (...).

Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje: "Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativadas memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"...

Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG (...)

Guiné 63/74 – P7226: Controvérsias (107): O que era ser ranger entre 1960 e 1974? (José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 4152/73)


1. O nosso Camarada José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER, CCAÇ 4152/73 (Gadamael e Cufar, 1974), enviou-nos, em 30 de Outubro de 2010, a seguinte mensagem:


Camaradas,

Já há muito tempo que estou faltoso em enviar as fotos da praxe, uma das condições do “alistamento” no Blogue.

Aqui as envio agora, com mais uma que já havia enviado, da cerimónia da entrega do aquartelamento de CUFAR ao PAIGC.
O que era ser ranger entre 1960 e 1974?
Camaradas de armas,

Ultimamente tenho estado a pensar nas condições e formação militar que a nossa tropa tinha para enfrentar, um inimigo com uma experiência profunda do terreno, armamento melhor e uma experiência que em alguns casos era superior a 10 anos de combate, assim como uma cultura e formação de guerreiro. Acho que já aqui foi escrito que, para certas tribos na Guiné, um homem, para ser homem, tinha que beber por um crânio humano.

Como todos nós sabemos, os nossos soldados, na sua maioria, eram agricultores, pedreiros, pastores, etc. e iam para a guerra com cerca de 6 meses de treino e os oficiais e sargentos milicianos com cerca de um ano de instrução e uma idade muito perto dos 20 anos.

Na minha opinião este treino era absolutamente inadequado, principalmente quando era administrado por pessoas que não tinham vontade, capacidade nem conhecimentos para o fazer como era o caso dos milicianos.
Muitos dos oficiais milicianos eram recrutados no curso de sargentos milicianos e não tinham idade e, ou, maturidade suficiente para assumirem as responsabilidades de comando.

Vejamos: um alferes miliciano, que era responsável por administrar uma recruta e depois a especialidade aos soldados que eventualmente iam consigo para a guerra, aprendia o “ofício” de militar instrutor e comandante em 6 meses (dos quais 3 eram para a sua própria introdução no Exército e os outros 3 para frequentar um curso intensivo - a especialidade), no meu caso “Operações Especiais”.

A maior parte dos milicianos não tinha convicção para esta guerra e o seu principal objectivo era sobreviver, ele e aqueles que serviam sob o seu comando.

Isto era totalmente demonstrado pela dedicação que a grande maioria dos milicianos dava à formação dos praças, que eventualmente iam arriscar a vida na Guerra do Ultramar.

A formação militar era insuficiente e inadequada!

Isto era sabido pelos escalões do nosso Exército e um dos remendos que tentaram fazer, foi colocar pessoal de operações especiais na formação de companhias para que, estes milicianos melhor treinados mas muito longe de profissionais, conseguissem uma melhor formação operacional nas suas companhias.

Esta filosofia era-nos transmitida em Lamego, mas eu penso que era uma “táctica” muito mal pensada, pois os Rangers nunca foram aceites e não queriam, nem se podiam impor, aos seus demais camaradas e aos capitães milicianos que, na sua maioria, não tinham conhecimento de tal estratégia ou ignoravam-na por completo. Na minha opinião não havia metodologia implementada para esta integração.

Os 10 Mandamentos RANGER lidos todos os dias em Penude, na formatura matinal
Então o que era um Ranger nos anos da guerra?

Um Ranger, era um miliciano recrutado nas fileiras dos milicianos (após prestação de testes às suas capacidades físicas e psicológicas), para serem chefes militares de elite, preparados e treinados para isso, e que no fim de cursos duríssimos e altamente exigentes (a nível de equipa, grupo de combate e companhia de instrução no C.I.O.E.), eram distribuídos pelas diversas unidades de tropa normal.

Esta política, na minha opinião pessoal, não fazia absolutamente sentido nenhum a não ser que houvesse uma estratégia perfeitamente definida e melhor delineada, para que os conhecimentos que os Rangers adquiriam (apesar de eu os achar inadequados), fossem disseminados por todos os militares que compunham uma companhia.

Isto estava muito longe do que acontecia na realidade, pois quando da formação das companhias, aos Rangers eram-lhe atribuídos uma equipa (no caso de um 1º Cabo Miliciano) ou um pelotão (no caso de um Aspirante Miliciano), para serem treinados para a guerra.

Os outros pelotões e equipas eram treinados pelos outros milicianos que não tiveram o treino de Ranger.

Por outro lado muitos dos Rangers que foram integrados nas companhias “de tropa macaca como alguns lhe chamavam”, com as suas melhores formações físicas e psicológicas incutidas na sua especialidade, impunham treino rigoroso e muito exigente a homens mal alimentados que, como é óbvio, os debilitava nas suas melhores aptidões físicas e pior animados nas suas capacidades mentais.

Cometeram-se muitos disparates que, por vezes, resultaram em ferimentos graves nos soldados que estavam sob os seus comandos.

Como devem saber, porque acho que aqui já foi referido, o treino dos Rangers era realizado, na sua quase totalidade, com bala real, mas havia muita preocupação por parte do pessoal instrutor e monitor, altamente competente em minimizar a eventualidade de provocação de acidentes.

Vários Rangers, acabada a especialidade e integrados nas unidades a que eram destinados, decidiam incutir o mesmo treino que lhes foi ministrado em Penude, aos soldados que lhes foram destinados, mas sem as condições (alimentação, equipamento, armamento, munições e outros sistemas de suporte), que lhes permitissem que estes treinos obtivessem os sucessos desejados.

Em diversos casos estes métodos foram completamente desastrosos devido, essencialmente, às faltas de capacidade de transmissão das técnicas e conhecimentos adquiridos, pelo lado dos instrutores e, por outro lado, à falta de poder de assimilação dos instruendos.

Grande quantidade dos soldados que eram incorporados nunca se convenceram que iam lutar feroz e mortalmente contra outros homens, numa guerra (ainda por cima de guerrilha), perigosa e traiçoeira, que os poderia mutilar ou que lhes poderia ser fatal.

Eu tive militares que foram comigo para a Guiné, que não consegui no seu período de instrução que dessem uma simples cambalhota. Ao forçá-los a fazerem isso, caíam mal e, num caso específico, um deles inclusivamente partiu a clavícula.

Pensei na altura que talvez 50% ou 60% tivessem reunidas as capacidades mínimas (físicas e psicológicas), para enfrentar a guerra.

Mas era óbvio que isso, para o poder político e militar, não era importante e o que se pretendia era carne para canhão e formar os tais dispositivos de quadrícula (linha dianteira da guerra espalhada por todo o lado na Guiné).

Era assim que se formava a “tropa macaca portuguesa”, que aguentou 3 frentes de guerra durante 14 anos, apesar de todas as vicissitudes, como treino insuficiente, fraco armamento, péssimas acomodações, transportes deficientes e uma alimentação de bradar aos céus.

Quero só acrescentar um acontecimento que se passou numa das poucas vezes que fui em patrulha, antes do 25 de Abril, e que me foi relatado por um dos oficiais do PAIGC, em Gadamael-Porto, durante uma das nossas conversas.

Qual não foi o meu espanto, quando um chefe do PAIGC nos perguntou, se nos lembrávamos de uma patrulha que tínhamos feito no dia X, pelas tantas horas, na região de Unsiré e Gadamael fronteira.

Respondemos que sim e perguntamos porque nos fazia essa pergunta.

Mais espantado fiquei, quando ele nos disse que, nesse dia, tínhamos passado por uma emboscada montada por eles nessa zona.

Perguntamos logo porque não abriram fogo e a resposta foi algo que ainda hoje me regozijo: “NÃO ABRIMOS FOGO PORQUE PENSAMOS QUE ERAM COMANDOS”.

Como oficial que fui, quero dizer a terminar que nunca mais quero ir para uma guerra, nem comandar ninguém, mas se tivesse que ir de novo hoje só aceitaria desde que me acompanhassem os mesmos militares portugueses desse tempo, porque demonstraram capacidades invulgares de enorme de sacrifício, tolerância e adaptação às circunstâncias mais adversas.

Espero que este texto gere novos “postes” sobre este assunto, pois considero-o como um dos pontos fundamentais, para compreendermos como conseguimos aguentar uma guerra daquelas durante tanto tempo.


Cufar > 07SET1974 > Cerimónia da entrega do aquartelamento ao PAIGC
Cumprimentos para todos
José Gonçalves
Alf Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 4152/73
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7190: Controvérsias (106): Venho aqui para vos dizer que estou vivo! (António Matos)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7225: Contraponto (Alberto Branquinho) (17): Vão cuidar dos netos

1. Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 17 de Outubro de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Aí vai a "transcrição" de um ponto de vista para o CONTRAPONTO (17).
Há milhentos "pontos de vista" àcerca de tudo o que seja actividade humana (e não só).

Com um abraço do
Alberto Branquinho



CONTRAPONTO (17)

Vão cuidar dos netos

Senhores Editores do Blog “luisgraca&camaradasdaguine”

Dirijo-me a V. Exªs. na qualidade das funções que desempenham, tal como vai endereçado, funções que, creio, implicarão, por certo, também a recepção, coordenação, escolha/triagem dos textos que vos são remetidos para postagem.
Ora, com o devido respeito, os textos publicados são, na sua grande maioria, de muito duvidosa qualidade e falta de gosto.

Talvez devido à minha provecta idade, não consigo compreender como é que tanta gente tem tanto para escrever, sempre à volta do mesmo tema, depois de quarenta anos volvidos sobre os acontecimentos. E, além disso, parece resultar dos escritos que não há, nunca houve outra guerra. Esquecem, até, as outras Províncias Ultramarinas que passaram por idêntico transe como o da vossa... guerra na Guiné.
Guerra, guerra… mais correcto seria designá-la de operações militares de contra-insurreição.

Em guerra esteve o Povo Português em 1914-1918, com mortos, feridos, estropiados, gaseados… E alguém fala disso?

Os textos que os Senhores publicam são, com o devido respeito, repetitivos, lamechas, por vezes quase infantis ou, então, falando de “heroicidades” próprias, revelado egocentrismos, seguindo, outras vezes, a via da vitimização. Por outro, encontro demasiado diletantismo, intelectualismo barato, literatice barata e até… poesia. Poesia…

Pavoneiam-se pelos seus escritos como se fossem o centro do Universo. Outros aplaudem os posts em comentários boçais e, mesmo quando discordam, não demonstram bom gosto, inteligência e educação.
Mas o mais caricato é que entendem que estão a fazer História ou que são fonte para ser feita História.
Haja decoro!

Ponham os olhos na modéstia do antigo alferes médico e laureado escritor António Lobo Antunes, que, nos seus livros, aborda muitas vezes a temática dessa “guerra” chamada “colonial”. “En passant”, repito, simplesmente “en passant”, ele conta-nos que, durante as colunas militares, seguia sentado nos garda-lamas das viaturas “rebenta-minas”. Que coragem, lição e desprendimento de si! Claro que os vossos escreventes vão considerar que se tratava de “temeridade gratuita” ou coisa assim. Não se esqueçam, meus senhores, que ele era um médico, a prestar serviço militar. Que desprendimento e doação de si mesmo!

Eu também cumpri as minhas obrigações de serviço militar (já não sou uma criança), embora nunca tenha tido a honra de servir em África.

Meus senhores, se me permitem, termino dando-vos um conselho. Na vossa idade deviam ter outras preocupações e actividades – por exemplo cuidar dos netos e, em alguns casos, dos bisnetos. Mas não lhes falem, por favor, dessas vossas guerras óptimas e únicas, dessas vossas sempre repetidas experiências africanas.

Apresento os meus respeitosos cumprimentos.
(Remetente devidamente identificado)

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Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7144: Contraponto (Alberto Branquinho) (16): Assinatura ilegível

Guiné 63/74 - P7224: Patronos e Padroeiros (José Martins) (19): Patrono do Curso 1964/1969 da Academia Militar, Major Caldas Xavier


1. O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma mensagem, em 3 de Novembro de 2010, da série “Patronos e Padroeiros do Exército”:
Patronos do Exército Português
Patrono do Curso 1964/1969 da Academia Militar

Foto: Wikipédia, com a devida vénia

Major Caldas Xavier

A 25 de Setembro de 1852 em Lisboa, na freguesia das Mercês, filho de Henriqueta Pereira Caldas Xavier e António Prado Xavier, nasce Alfredo Augusto Caldas Xavier que, face à sua habilidade manual, os pais pretendiam que seguisse a carreira de escultor mas, por influência de seu avô materno Pereira Caldas, oficial superior do exército e com quem viveu desde novo, acabou por abraçar a carreira das armas.

Em 1871, terminando o curso no Liceu Nacional de Lisboa, pretende entrar para a marinha de guerra, mas assenta praça no Regimento de Caçadores nº 5 enquanto se matricula no curso de infantaria na Escola do Exército, hoje Academia Militar. No ano seguinte casou com Amélia do Nascimento Conti.

Efectua uma primeira comissão, civil, em Moçambique, chegando a Lourenço Marques no dia 7 de Março de 1877, com o objectivo de colaborar no levantamento de obras públicas necessárias naquela província.

Não esqueceu a sua condição militar colaborando nas Campanhas de Pacificação realizadas na zona de Inhambane e distinguiu-se, especialmente, no apaziguamento da revolta do Batalhão de Caçadores de Inhambane (1877) e nas negociações com o régulo de Zavala, em Outubro de 1879. Das negociações com o régulo fazia parte o estabelecimento de um quartel em Nhagondel, que fortaleceria a presença portuguesa a sul do Inharrime, na direcção das terras do Império de Gaza.

Regressa ao Reino durante um curto período, altura em que, a 11 de Agosto de 1881, foi promovido ao posto de Tenente, tendo regressado a Moçambique em 1883, mas na qualidade de administrador da Companhia de Ópio da Zambézia. Constata que o quartel apenas tinha sido iniciado. A sua materialização, estabelecimento de um comando militar ao sul do Inharrime, só foi conseguida em 1884, por imposição de uma portaria de Agostinho Coelho, governador-geral.

Enfrentou, ainda, problemas originados com a forma como contratava trabalhadores para a companhia que administrava, como o ataque por grupos armados, a 20 de Junho de 1884 de que resultou a morte do Capitão Victoriano Queirós, a família deste e a quase totalidade dos elementos do destacamento, sendo apenas poupado o Alferes Curado, por ser genro de um dos assaltantes.

Aquando do assalto às instalações da Companhia de Ópio da Zambézia, os revoltosos acabaram por ser desbaratados, rendendo-se ao Capitão-mor de Manica em 11 de Agosto seguinte.

Quando a Companhia do Ópio passa a ser dirigida por ingleses, o que acontece em Janeiro de 1886, Caldas Xavier tem de abandonar o lugar e regressa a Portugal.

De 1887 a 1890 vai para a Índia Portuguesa, agora já com o posto de Capitão, para cumprir mais uma comissão de serviço. Ocupa os cargos de inspector-geral do Caminho-de-Ferro de Mormugão, chefe da repartição militar de Mormugão e, por pouco tempo, governador de Diu. Quando termina a comissão e regressa ao país já tinha sido promovido a Major.

Chegado a Lisboa, parte de novo para Moçambique, a convite do engenheiro Joaquim José Machado, para integrar a comissão de técnicos para delimitação das fronteiras entre o distrito de Lourenço Marques e a República do Transvaal, mas, face aos problemas levantados com o ultimato inglês, estes vieram a sofrer algum atraso.

Com a posição de força tomada pela Inglaterra no ultimato, uma força da British South Africa Company provoca incidentes em Manica, reclamando a sua posse e aprisionou as autoridades estabelecidas.

Em reunião pública de 10 de Dezembro de 1890 na Câmara Municipal de Lourenço Marques, é aceite a proposta de organizar uma força militar para expulsar o invasor, pelo que, estando presente Caldas Xavier, é o mesmo nomeado para comandar a mesma.

Enfrentando grandes dificuldades, consegue reunir uma força constituída por elementos do Regimento de Caçadores nº 4, do Corpo de Policia e uma companhia do Batalhão de Voluntários, constituído na altura, partindo para a Beira em 10 de Janeiro de 1891, a bordo do vapor Rovuma.

A 11 de Maio a expedição entra em combate com a força ocupante, tendo de bater em retirada. Face a concessões feitas por Portugal à Grã-Bretanha, a força retira, chegando a Lourenço Marques em 4 de Setembro de 1891.

Ao Major Caldas Xavier, apesar de não ter obtido êxito na expedição efectuada, foi-lhe reconhecido o mérito do seu empenhamento, sendo condecorado com a medalha de Oficial de Ordem Militar da Torres e espada, a juntar ao grau de Cavaleiro, que já lhe tinha sido atribuído, anteriormente.

Regressa à Metrópole em 1893, onde profere várias conferências sobre a necessidade da ocupação efectiva de Moçambique, à luz dos requisitos impostos pela Conferência de Berlim.

Regressa a Moçambique em 1894, chegando a Lourenço Marques na altura que uma rebelião punha em causa a presença portuguesa na área.

Apesar da comissão de serviço de Caldas Xavier ser de carácter civil, foi o escolhido para efectuar um reconhecimento, pelo que, á frente de uma força do regimento de Caçadores nº 2, de uma secção de artilharia de montanha e tropas auxiliares do Batalhão de Caçadores nº 3 parte, a 21 de Janeiro de 1894, patrulhando a área circundante sem que tenha havido qualquer contacto.

António José Enes, Comissário Régio, determinou que Marracuene fosse ocupada pelas forças portuguesas, onde se reconhecia existir o maior foco de resistência.

Criada nova força, com elementos das unidades que tinham constituído a anterior, reunindo 37 oficiais e 800 soldados, Caldas Xavier parte como 2º comandante da força, comandada pelo Major José Ribeiro Júnior.

A expedição parte de Lourenço Marques em 28 de Janeiro de 1895. O comando passa para a responsabilidade de Caldas Xavier, uma vez que o comandante que continua a acompanhar a força, adoece, chegando a Marracuene por volta das 4 horas da tarde do dia 29.

Após ter bivacado na zona durante três dias em aparente calma, a força foi atacada no que ficou conhecido como o Combate de Marracuene.

Apesar do inimigo ter conseguido penetrar no quadrado defensivo, mas rapidamente reconstituído, a sorte das armas pendeu para o lado português, tendo esse combate sido o primeiro das Campanhas de Pacificação em Moçambique.

A coluna regressa a Lourenço Marques em 5 de Fevereiro de 1895 e, Caldas Xavier que não se encontrava na província devido à sua condição militar, volta a ocupar a missão para a qual tinha sido designado. No entanto, ainda colabora no apoio logístico às colunas que estavam empenhadas na campanha.

Sofrendo de doença tropical, veio a falecer em 8 de Janeiro de 1896, na cidade de Lourenço Marques, poucos dias depois da chegada aquela cidade de Gungunhana, principal opositor às pretensões portuguesas naquele território.

José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 5
02 de Novembro de 2010
__________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

23 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7163: Patronos e Padroeiros (José Martins) (18): Nossa Senhora do Cheche

Guiné 63/74 - P7223: Notas de leitura (165): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,

Trata-se de um livro com muita informação, é de leitura obrigatória para quem quer juntar as peças do puzzle, ter as versões das duas forças em presença.

Considero que foi uma feliz oportunidade ler primeiro o Hélio Felgas, a seguir o Luís Cabral e estar agora a acabar a história dos fuzileiros na Guiné. Há muitas peças que encaixam, outras continuam a pedir múltiplos esclarecimentos.
 
O fundamental é deixar a informação inventariada, os historiadores, de posse de muita coisa que ora não está esclarecida (são indispensáveis apanhar relatos orais de alguns dos protagonistas ainda vivos, por exemplo) poderão aperfeiçoar o quadro e interpretá-lo, em bases científicas.

Um abraço do
Mário



“Crónica da Libertação” (2), por Luís Cabral

Beja Santos

Estamos chegados a Agosto de 1959. Luís Cabral escreve:

 “A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos. O capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de “civilizado”. Os restantes membros da tripulação, sendo considerados “indígenas”, tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias”. 

O descontentamento organizou-se, na manhã de 3 de Agosto, centenas de homens estacionaram no cais do Pijiguiti, estavam em greve, uma greve que escapara totalmente ao controlo das autoridades. Estas lançaram o ultimato: se à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho haveria um correctivo exemplar. Os trabalhadores portuários não vergaram, fecharam o portão de acesso ao cais, armaram-se de paus e pedaços de ferro. A reacção da polícia e dos soldados foi brutal, abriram fogo, indiscriminadamente. 

A partir daí, escreveram-se rios de tinta acerca do número de mortos. De acordo com alguns relatos, houve cerca de 50 mortos e muitas dezenas de feridos. (Tem o maior interesse o relato então elaborado pelo Comando da Defesa Marítima , e publicado no livro sobre os fuzileiros na Guiné por Luis Sanches de Baêna, de que iremos fazer a recensão.).

Muito provavelmente, a agitação foi liderada por Rafael Barbosa. A seguir, a polícia política iniciou a caça às bruxas: era imperioso encontrar a fonte da agitação. O grupo formador do PAIGC procura reunir-se e, em concreto, puseram fora do país um dos principais suspeitos, Carlos Correia. 

Mais tarde, Amílcar Cabral veio a Bissau, encontrou-se com Rafael Barbosa e tomou-se a decisão de acelerar a selecção dos jovens mais capazes para receberem no estrangeiro preparação para a luta da libertação. Amílcar, a seguir vai a Paris encontrar-se com os dirigentes nacionalistas das outras colónias e segue para Tunes onde se iria realizar uma importante conferência pan-africana. 

É por essa época que se dissolveu o Movimento Anticolonialista e que se criou a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas. Luís Cabral e Elysée Turpin encontraram-se meses depois com Amílcar em Dakar. Vem aqui uma observação ácida, generalista:

 “Muitos dos nossos compatriotas radicados no exterior há muitos anos, e até descendentes seus que nunca conheceram os nossos países, viam-se já como os grandes libertadores e dirigentes da Guiné e de Cabo Verde, sem sequer abandonarem a sua vida mais ou menos estável de emigrantes, em Dakar ou Conacri, ou mesmo na Europa”.

Luís Cabral decide partir para o exílio, reúne-se pela última vez em Bissau com os seus camaradas e dissimuladamente parte para o Senegal, chega a Dakar. Uma avalancha de jovens vem reunir-se, ele refere os seus nomes: Vitor Saúde Maria, Sanazinho e Dembazinho Mané, Samba Lamine Mané, Gil Fernandes, Arafan Mané e José Turé. 

Em Conacri, Amílcar começara a organizar o “Lar do Combatente”, onde eram instalados os jovens saídos do país. Carlos Correia, Luciano N’Dao, Mussa Fati e outros juntaram-se a esta iniciativa. Apareceram mais tarde Chico Mendes, Nino Vieira, Armindo Monteiro, entre muitos outros. 

Para ganhar a vida, Amílcar era conselheiro técnico no Ministério de Economia Rural, da Guiné Conacri. Segundo Luís Cabral, Amílcar procedeu a estudos muito importantes mas as autoridades não deram execução às suas propostas. Em Conacri, entretanto, começaram intrigas de outros compatriotas, o racismo veio à tona isto enquanto acreditados em Conacri concediam bolsas de estudo a esses “pseudomovimentos de libertação”.

Em Conacri estava igualmente instalada a base do MPLA, tendo à frente o seu presidente de então, Mário de Andrade. Amílcar Cabral faz a sua primeira viagem à China que, para o irmão, marcou uma nova etapa da vida do partido: a seguir a esta visita, seguiram para a China vários jovens para receberem preparação militar. Por essa época também a sigla PAI mudou para PAIGC (o PAI era um partido senegalês que se opunha a Senghor). Após o trabalho de agitação, começou a luta armada. Os dados revelados têm incontestavelmente uma grande importância histórica.

Após o encontro de Dakar com o grupo de Rafael Barbosa, consagrara-se a existência de uma só organização de luta. Em Bissau, continuava o recrutamento de jovens que iriam receber formação na Academia Militar de Pequim. 

Em de Dezembro de 1960 era publicado o primeiro número do jornal “Libertação” órgão de libertação do PAIGC. Em 4 de Fevereiro de 1961 eclode a guerra em Angola. A primeira fornada de quadros já está na China, alguns deles virão a ser comandantes de guerrilha e até dirigente eminentes: Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Constantino Vieira, Manuel Saturnino Costa, Chico Mendes, Nino Vieira entre outros. 

O trabalho acumula-se na vida de Luís Cabral, é decidido que ele deve deixar Dakar e ir para Conacri, junta-se a Amílcar e Aristides Pereira. Em Abril de 1961, em Casablanca, é criada a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP). Continuam a chegar jovens, novos quadros do PAIGC. Luís Cabral fala em Corca Só, que chegará a comandante da região de Madina-Belel, quando cheguei a Missirá ouvi falar no seu nome, mais tarde veio a notícia de que teria sido morto num bombardeamento aéreo. Uma nova fornada de quadros parte para a Checoslováquia.

No final de 1961, um conjunto de quadros preparados para a guerrilha e com noções teóricas ministradas na China avançam para a luta, partem para a mobilização das populações. Luís Cabral escreve:

 “Nino Vieira dirigiu o grupo do Sul, com os sectores de Quitafine, Cubucara, Unal, Como; Rui Djassi, o do Centro-Sul que incluía Tite, Cubiseco, Buba e N’Djassani; Osvaldo Vieira, Chico Mendes, Loló e Saturnino partiram para o Norte, devendo instalar-se em Morés. A área de Xitoli, Bafatá, foi confiada à responsabilidade de Domingos Ramos; Vitorino Costa, tendo Pascoal como adjunto, seguiu para o Gabu. Luciano N’Dao, Constantino Teixeira e Pedro Ramos ficaram ligados a Bissau a Zona Zero”. 

É o trabalho principiante, vão armados de pistolas, levam na bagagem uma fotografia de Amílcar, uma pequena bandeira, o emblema do partido. Começam os insucessos e os sucessos. Vitorino Costa é obrigado a retirar apressadamente. Nino encontrou no Sul uma população bastante receptiva. A população balanta ou nalu adere com facilidade. Em finais de 60, o grupo agitador da região de Bissorã é capturado. Amílcar Cabral tenta negociar com os manjacos liderados por François Mendy, que actuavam na região senegalesa. 

Em Outubro de 1961, Amílcar assinou uma carta aberta ao Governo português. No início de 1962, a PIDE desmantelou a organização do partido em Bissau. No Morés, Chico Mendes e os seus companheiros começam por ter uma vida difícil, depois chegam as adesões da população. Na região de Quínara, a situação também se tornou difícil, Vitorino Costa foi capturado e morto. Em agosto de 1962, a FRELIMO começou uma nova etapa da luta de libertação em Moçambique. 

E muito material de guerra concedido pelo Governo marroquino começa a chegar a Conacri.  Inicia-se um período de grandes tensões, as autoridades guineenses começam por desconfiar se aquele material não irá servir para um golpe de Estado no país. Alguns dirigentes do PAIGC são presos. Amílcar Cabral esclarece às autoridades, o armamento passa a entrar pela fronteira Sul, sem dificuldades. Pistolas-metralhadoras, muitas munições são descarregadas na região Sul. 

Na região do Xime, a base principal da guerrilha é o Fiofioli, junto do Corubal. Domingos Ramos e Abdulai Barry começam a ter sucesso na mobilização. Luís Cabral escreve:

"Samba Silate é uma pequena aldeia da área de Bambadinca, perto da estrada do Xime. A diferença entre esta tabanca e as outras vizinhas vem do facto de ter sido ali instalada uma representação da missão católica, com todas as vantagens sociais que ela trouxe à população local. Os jovens de Samba Silate manifestaram um grande interesse pela luta, acabando por se juntar na sua grande maioria, aos guerrilheiros do mato”. 

Mas mesmo aqui as dificuldades subsistiram, os guerrilheiros foram obrigados a retirar para mais longe, junto do Corubal, aguardando armas. Os jovens rebeldes de Samba Silate voltaram à sua tabanca, foram denunciados, conseguiram escapar por terem sido avisados pelo padre António Grillo que denunciou a violência cometida pelos agentes enviados à tabanca. Segundo Cabral, muitos desses jovens acabaram por sucumbir, vítimas de torturas, em Bambadinca e Bafatá.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7216: Notas de leitura (164): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7222: Blogues da nossa blogosfera (39): Vitor Mendes, marinheiro radiotelegrafista, N.R.P. Orion, 1970/1971






O Blogue do Vitor Mendes, com uma bela foto da LFG Orion, algures na Guiné...Legenda: " LFG (Lancha de Fiscalização Grande) Orion, da classe Argos, num rio da Guiné [ 1970/71].Deslocamento: 210 toneladas; Dimensões (em metros): 41,7 x 6,7 x 2,1; Armamento: 2 canhões Bofors 40mm/70, metralhadoras 7,62mm e granadas de dilagrama; Propulsão: 2 motores diesel Maybach Tunel MD 440/12 accionando dois hélices, totalizando 2400cv; Velocidade: 17,3 nós; Autonomia: 1660 milhas náuticas; Tripulação: 24. Os navios desta classe usados na Guiné eram parcialmente blindados"...


1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Vitor E.I. Mendes, que foi tripulante do NRP Orion (1970/72) (*)


De: Vitor E. I. Mendes [vitorinacio.mendes@netvisao.pt]
Enviado: quinta-feira, 4 de Novembro de 2010 16:17
Assunto: N.R.P. "Orion" Guiné 1970/1971

Caro Luís Graça:

... e eis senão quando, em busca de dados sobre a "Orion", eu,  que durante quase dois anos fui dela um dos dois marinheiros Radiotelegrafistas, durante as operações e nos anos acima citados o mais antigo, (a antiguidade era um posto, não era?...), descubro um blogue de ex-camaradas de guerra e não apenas da Marinha!

Tenho estado a ler alguns posts do seu blogue e a minha memória já de 61 anos transporta-me para muitas das situações idênticas às descritas e às reflexões inevitáveis do que todos vivemos -  e o Luís Graça no mesmo período que eu...

Tenho estado a escrever qualquer coisa parecido com memórias no meu blogue http://comunidade.sol.pt/blogs/vitormendes/default.aspx  que gostaria de partilhar consigo. Recordar é viver - máxima que poderá também ser o contrário... Dizia um poeta: "partir é morrer um pouco"!...

Disponha, se quiser e puder responder-me.

Com consideração
Vitor (Emanuel Inácio) Mendes
vitorinacio.mendes@netvisao.pt


2. Comentário de L.G.:

Anda tão discreta, escondida  (ou submersa ?),  a nossa marinha, que é difícil encontrar um marinheiro, mesmo dos velhinhos como tu que bateram os rios e os braços de mar da Guiné...A surpresa também é, pois, da nossa parte, ao deparar nas andanças da blogosfera um camarada como tu, marinheiro radiotelegrafista... Parabéns pelo teu blogue. Fico à espera dos próximos episódios do teu herói de carne e osso(**). Incentivo-te a que continues e convido-te, inclusivamente, a ingressar na nossa  Tabanca Grande que já conta com cerca de 460 camaradas, todos eles heróis de terra, mar e ar... E claro, de carne e osso, como o teu. Não estranhes o tratamento, romano, por tu: afinal, fomos todos camaradas de armas...Bons ventos para as tuas viagens de regresso ao passado. Prometo voltar a visitar-te. Um Alfa Bravo. Luís


PS - Registo a primeira frase que escreveste no teu blogue, em Março de 2007: "Então por que é que não havia eu de entrar neste mundo algo misterioso da blogomania?...No fundo tenho tanta necessidade de me fazer ouv(e)r como qualquer outro pobre mortal deste planeta"...Registo igualmente uma das tuas citações da Bíblia, que é um dos teus livros de cabeceira: "O que foi, isso é o que há-de ser, e o que se fez, isso se tornará a fazer; DE MODO QUE NADA HÁ DE NOVO DEBAIXO DO SOL. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós." (Livro do Eclesiastes, ou do Pregador).
_____________

Notas de L.G.:

(*) Último poste desta série > 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7066: Blogues da nossa blogosfera (38): Breve História da Tabanca dos Melros (Carlos Silva)

(**) Com a devida vénia este teu primeiro naco de prosa:

(...) Chegara a Bissau, capital da então Guiné Portuguesa, no dia 1 de Fevereiro de 1970. Após uma longa madrugada a enganar o sono enroscado em cima de um caixote de madeira, a bordo de uma lancha de desembarque grande (LDG), cujo nome esqueci, desembarquei na ponte-cais que servia também de base naval. Saco-mochila de lona às costas, como se dentro dele transportasse um cadáver, aos primeiros alvores da madrugada tropical, tinha de encontrar o navio para o qual eu havia sido destacado. 

Havia vários, lanchas de fiscalização grandes e outras embarcações menores, mas qual a “Orion”, que esperava um radiotelegrafista para rendição individual? Interroguei um africano, eventual estivador que por ali estava à espera de trabalho em navio mercante prestes a chegar, se me podia satisfazer a curiosidade. Admirado pela pergunta de um marinheiro branco alvamente fardado, supostamente no seu ambiente, apontou-me a mancha cinzenta característica da pintura dos navios de guerra ali atracados. Peças de artilharia à vante e à ré, antenas de radar e de TSF verticais e horizontais, pára-raios, balanceavam ao sabor da viragem da maré no Rio Geba. Ouviam-se os sons do marulho da água nos pilares de sustentação do cais enquanto descia, meio ensonado e vagueando, a escada do primeiro portaló dos vários “patrulhas” atracados de braço dado.

O primeiro ser humano surgiu – um escola, como nos tratávamos, o “cabo de dia”, de familiar pistola “Walter 9 mm” à cintura, a sair estremunhado de uma noite de vigia. Não estava no navio que eu procurava, mas reconhecendo em mim um “piriquito”, algo pálido até pela falta de descanso, ofereceu-me café quente que tinha acabado de fazer para ele e disse-me que estávamos a bordo ou da “Cassiopeia”, ou da “Lira” ou da “Hidra”, os "patrulhas" ou LFG’s gémeas, eu sei lá, mas que a “Orion”, a outra irmã, estava numa das posições seguintes e que eu tinha tempo porque ainda estava tudo a dormir… O apito da alvorada ouvir-se-ia daí a instantes. (...)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7220: Tabanca Grande (252): Jochen Steffen Arndt, estudante do programa de doutoramento da Universidade de Illinois em Chicago, EUA

1. Mensagem de Jochen Steffen Arndt*, estudante do programa de doutoramento da Universidade de Illinois em Chicago, EUA, com data de 1 de Novembro de 2010:

Exmos. Senhores,

Li no blogue a seguinte mensagem: "Fica aqui também o convite para ele integrar a nossa Tabanca Grande (e mandar-nos uma foto sua), à semelhança do que fizemos com a Tina Kramer, também alemã, doutoranda em etnologia, e que entende o português, coisa que não acontece com outro doutorando, que apoiámos, o Ten Cor da Força Aérea dos Estados Unidos, Matt Hurle."

Muito obrigado pelo convite. Gostaria de aceitá-lo (no entanto admito que não sei se tenho de subscrever em algum lugar no site?). Também anexo uma foto minha a este email.

Muitos cumprimentos,
Jochen S. Arndt
PhD Student
Department of History (MC 198)
913 University Hall 601 South Morgan Street
University of Illinois at Chicago
Chicago, IL 60607-7109



ForgottenAfricanSoldiers.org é, como se pode ler no site criado por Jochen Arndt, um projecto de pesquisa académica, cujo propósito é chamar a atenção para a vida, acções, experiências e memórias dos africanos e mestiços que serviram nas forças armadas ou nos serviços policiais da República da África do Sul ou das colónias portuguesas em África entre 1961 e 1994.


2. Qual a melhor forma de apresentar o nosso novo tertuliano, se não com as suas próprias palavras ?!


Primeiro comentário no Poste 7200:

Caros Membros do Blogue,

Concordo plenamente. Os interesses e a segurança dos ex-combatentes tem de ser protegidos. Tive consciência disto desde a primeira hora. Eu acho que é possível para os soldados que o desejam de ficar anónímos. Não se trata de uma solução óptima do ponto de vista académico, mas tendo em conta a situação no terreno é preciso manter esta opção em aberto.
Cumprimentos,
Jochen Arndt

Pensando melhor, acho que vale a pena dar mais detalhes sobre o meu projecto embora ainda se encontre numa fase inicial.

I.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos administradores do blogue por terem publicado o meu pedido. Acho que este blogue e outros deram aos ex-combatentes um meio fantástico de ficar em contacto com camaradas com os quais passaram momentos importantes e formativos das suas vidas. Para os historiadores,  como eu, os blogues também são importantes porque permitem abrir vias de comunicação com pessoas que podem fornecer informações que só eles possuem porque estiveram lá na altura e viram as coisas com seus próprios olhos. Neste contexto, também gostaria de aproveitar esta oportunidade e agradecer àquelas pessoas que responderam ao meu pedido. Eu estou consciente do facto que sem a colaboração delas e de outros ex-combatentes este projecto não vai ter pernas para andar.

II.
No entanto as dificuldades são muitas e talvez impossíveis de superar. Mas não quero desistir já porque acho que,  sem a perspectiva dos soldados de origem africana que combateram lado ao lado com soldados de origem europeia, a historiografia da guerra do ultramar vai ficar incompleta. Embora esteja apenas no início da pesquisa e tendo mais perguntas do que respostas, acho que a perspectiva dos soldados de origem africana é fundamental para compreender melhor o carácter do colonialismo português, a dinâmica da guerra do ultramar, e os problemas pós-coloniais que afectam a Guiné-Bissau. Uma coisa que é certa, a meu ver, é que rótulos  como "colaborador, traidor, ou reacionários" obscuram muito mais do que revelam e fazem pouco para ajudar os ex-combatentes (soldados africanos e guerrilheiros africanos) a  verem-se uns aos outros como simples seres humanos.

III.
Gostaria também aproveitar esta oportunidade para explicar melhor um dos objectivos do estudo. O meu objectivo não é julgar o propósito da guerra, de investigar uma campanha ou uma operação. Para mim o objectivo importante é compreender melhor como o que às vezes é chamada “a africanização” da guerra do ultramar afectou os soldados portugueses (de origem africana) e os soldados portugueses (de origem europeia). Admito que eu gostaria de dar mais atenção ao lado dos soldados de origem africana porque penso, como tenho dito em cima, que a historiografia da guerra do ultramar não lhes deu a atenção que merecem. Também acho que é muito importante perceber melhor por que os soldados de origem africana lutaram por Portugal, enquanto outros tomaram o lado dos movimentos anti-coloniais. Acho que as respostas podem complicar o nosso entendimento do colonialismo e do nacionalismo anti-colonial em África.

Para atingir estes dois objectivos, acho que não seja necessariamente preciso falar com os ex-combatentes africanos sobre coisas delicadas que aconteceram durante a guerra, mas será preciso tentar reconstruir a formação das suas identidades como “africanos” e como “portugueses.” Neste contexto será preciso falar com eles sobre muitos factores que moldaram as suas identidades. Estes factores podem estar relacionados com a guerra mas podem estar relacionados com muitos outros factores (educação, religião, etnia, etc.). No entanto admito que penso que a experiência de guerra molda a identidade de qualquer pessoa. Por isso seria também importante falar com eles sobre esta experiência. Mas isto não tem de significar que detalhes delicados tenham de ser revelados.

Para mim seria mais interessante saber como soldados de origem europeia e de origem africana se relacionaram durante a guerra e como ambas as partes experimentaram este relacionamento. Neste contexto a experiência de combate é importante, mas também os festejos, as cervejas bebidas juntas, os jogos de futebol jogados juntos, as prendas trocadas, as conversas, as brincadeiras, os convívios (etc.). O facto de os ex-combatentes europeus e africanos às vezes ainda manterem laços de amizade, mostra, a meu ver, que estas experiências tiveram algo de especial que contribuem para um entendimento preferencial entre europeus e africanos.

IV.
Penso que entrevistas com ex-combatentes em Portugal e na Guiné-Bissau são fundamentais para se compreender melhor estes aspectos. O problema da língua vai ser significativo, mas gostaria de salientar que é habitual contratar intérpretes para entrevistas deste tipo. Os historiadores que pesquisaram o contributo de soldados africanos para a primeira e a segunda guerra mundial utlizaram intérpretes (Joe Lunn, Memoirs of the Maelstrom: A Senegalese Oral History of the First World War; Gregory Mann, Native Sons: West African Veterans and France in the Twentieth Century; Nancy Ellen Lawler, Soldiers of Misfortune: Ivoirien Tirailleurs in World War Two).

O problema da segurança dos ex-combatentes é um problema que me preocupou desde do início do projecto. Eu acho que é possível para os ex-combatentes que o desejam ficar anónimos. Não se trata de uma solução óptima do ponto de vista académico, mas tendo em conta a situação no terreno é preciso manter esta opção em aberto.


Finalmente gostaria de aproveitar esta oportunidade para explicar melhor quem eu sou.

Sou alemão. Vivi durante sete anos em Vila Nova de Gaia trabalhando para uma empresa alemã na Senhora da Hora, Matosinhos.  É por isso que, como o Paulo disse, tenho saudades das francesinhas.

Depois fui para os EUA para estudar.
Sou casado com a minha esposa Sheri desde 2004.


Agradeço mais uma vez aos administradores e participantes do blogue por esta oportunidade de falar sobre este projecto. Se ele merecer a vossa ajuda, por favor não hesitem de contactar-me com quaisquer perguntas.

Muitos cumprimentos,
Jochen Arndt



3. Comentário de CV:

Caro Jochen Arndt:

Antes que me esqueça, os meus parabéns pelo seu português escrito que merece nota 8 em 10.

É desde agora tertuliano do nosso Blogue, com o nº 459, o que muito nos honra. Como vê as formalidades são mínimas.

Pelo que diz, viveu em Vila Nova de Gaia e trabalhou na Senhora da Hora. Eu vivo em Leça da Palmeira, localidade que deverá conhecer, não pelas praias já que as de Gaia são bem melhores, mas pelos inúmeros restaurantes que por aqui se podem encontrar e onde se come muito bem, especialmente peixe.

Para possível ajuda às suas pesquisas, não terá no nosso blogue, infelizmente, muita informação relativa ao outro lado da luta armada na Guiné, o do PAIGC, relatada na primeira pessoa, derivado aos condicionalismos daquele país e resultante dificuldade de acesso das pessoas à informação de uma maneira geral e à informática principalmente.

Em Portugal, no nosso grupo etário (60/70 anos) isso faz-se sentir, imagine-se como será na África lusófona, Guiné-Bissau em particular.

Como afirma, só através de entrevistas, no local, poderá recolher informação credível. Tanto quanto prova a nossa experiência nos contactos havidos na actualidade, o povo guinéu é colaborante e pacífico para os estrangeiros. Quem lhes falar em português ainda é recebido com mais carinho e consideração.

Os antigos combatentes do PAIGC têm para connosco, ex-combatentes portugueses, a maior cordialidade. Quando camaradas nossos visitam a Guiné-Bissau, não são raros os encontros entre antigos inimigos, e nas trocas de impressões revivem-se operações em que cada um dos lados tomou parte. Um abraço sela sempre o facto de não se terem matado por um acaso de guerra.

Momentos marcantes são aqueles em que antigos camaradas guineenses reconhecem os seus companheiros portugueses, e a emoção e comoção atingem o limite das lágrimas. Até a população consegue lembrar-se de militares portugueses que por lá passaram há mais de quatro décadas.

Caro Jochen Arndt

Receba um abraço de boas-vindas, e sempre que precise não hesite em nos contactar, porque dentro das nossas possibilidades terá a melhor colaboração.

Pelos editores e pela tertúlia
Carlos Vinhal
__________

Notas dos editores:

(*) Jochen Steffen Arndt completou a sua licenciatura em Administração de Empresas e Marketing Internacional, em 1995. Depois de ter vivido e trabalhado na Alemanha, Portugal e Estados Unidos entre 1996 e 2005, entrou para o programa de mestrado em História, na Stephen F. Austin State University, programa que acabou com sucesso em 2007. Está actualmente no terceiro ano do programa de doutoramento em História Africana, na Universidade de Illinois em Chicago, onde a sua investigação se centra na relação entre o colonialismo, a violência e a formação da identidade. Arndt publicou artigos em revistas científicas como A Revista de História do Mississipi e O Jornal de História Militar. Colabora também frequentemente na publicação online Do olho de Clio.

Vd. postes de:

30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7192: O Mundo é Pequeno e o Nosso Blogue... é Grande (30): Forgoten African Soldier / O Soldado Africano Esquecido (Jochen Steffen Arndt, Universidade de Illinois em Chicago)

31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7200: O Soldado Africano Esquecido / Forgotten African Soldier (2): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp do Pel Caç 52 e da CCAÇ 15 (1971/73)

Vd. último poste da série de 26 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7178: Tabanca Grande (251): José Manuel Marques Pacífico dos Reis, Coronel Cav Reformado, CCAÇ 5 e CIM/Bolama (Guiné, 1968/70)

Guiné 63/74 - P7219: Blogpoesia (83): Respeito, esse pau da bandeira foi colocado pelos Lassas de Cufar (Mário Fitas)




 

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4152 (1971/74) > Agosto de 1974 (?) > Cerimónia da entrega do aquartelamento de Cufar ao PAIGC. Foto de José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp, da CCAÇ 4152, a residir no Canadá há mais de três décadas. Vd. poste P7212.


Foto: © José Gonçalves (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

A todos os membros desta Tabanca:

A foto da entrega de Cufar ao PAIGC,
é uma afronta a quem foi cortar a palmeira
para servir de mastro de bandeira
e aos soldados que lá a colocaram.

Foi colocada por soldados do Exército Português,
Negros e Brancos.
Não me irei pronunciar politicamente,
pois muito teria a dizer,
mas simplesmente em termos de guerra de guerrilha.

Respeito!
Esse pau de bandeira palmeira,
foi colocado pela CCAÇ 763,
a quem 'Nino' apelidou de Lassas.

Para um homem que foi
Furriel de Operações Especiais,
e sabendo o que significa o ser possuidor desse curso,
refiro aqui, sem problemas,
o que já foi escrito em livros.

Ainda hoje com Maria, mulher Balanta,
ligada ao PAIGC por familiares
(Seu pai Come Fanda foi morto em Biambe
pelo exército Português,
Negros e Brancos;
seu irmão Joaquim Come,
chefe de grupo do PAIGC,
foi morto no Morés,
pelos companheiros de partido,
por ciúmes em relação ao posto)...

Tudo isto para que não haja confusões
nem dúvidas
sobre a minha posição,
quanto a formas e factos da guerra.

Porque aquilo que me doi hoje,
não é morte de sete companheiros
nem os cinquenta e três feridos em combate
que os homens que ergueram Cufar
e esse pau de bandeira
tiveram.
Aquilo que me doi
é a falta de respeito por aqueles que lá ficaram,
e foram iludidos por situações falsas.

A minha dor é ter combatido ao lado de um Preto
a quem foi dada das maiores honras do Exército Português
com a Torre Espada, chamado João Bacar Jaló.
A minha dor é ter combatido com um Preto
que ajudou a pôr esse pau de bandeira,
de nome Gibi Baldé,
que se suicidou,
após a independência da Guiné Bissau,
pois lhe cortaram as duas mãos.

Só peço um pouco de respeito por tudo isto.
Hoje em conversa com Maria,
que felizmente era menina
e não entendia a guerra,
aqui neste cantinho Ocidental,
disse no meio de várias pessoas:
 - Se estou aqui, negra, e vocês brancos,
porque não estarmos todos naquele Chão?

Veras as palavras de Maria!
Dor ver esta foto de Cufar!


Do tamanho do Cumbijã,
para todos aqueles que amam a Guiné,
o grande abraço.

(ex-Fur Mil Op Esp
CCAÇ 763, Os Lassas,
Cufar, 1965/66,
autor do romance 
Pami Na Dondo, a guerrilheira, ed. autor, 2005)



[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

__________

Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P7218: Dossier Guileje / Gadamael (24): Em 1995, garantiram-me que o PAIGC tinha granadas perfurtantes para destruir os nossos abrigos (Manuel Reis)

1. Comentário de Manuel Reis, com data de 22 de Outubro último, ao poste P7154 (*)

Amigos, camaradas:

Eu sei que não devia mexer no tema (**), atendendo a que sou considerado advogado em causa própria por um lado, e por outro lado o tema estar demasiado gasto. Longe de mim mais polémica sobre isto, apenas pretendo tecer alguns comentários sobre as fotos e esclarecer alguns pontos que foram referidos.

Diz o Indjai [, foto à direita,] que não possuíam armamento que destruíssem as placas de betão dos abrigos , o que contradiz o que nos foi relatado, em 1995 [, no antigo aquartelamento de Guileje,] pelo então Coronel (não me ocorre o nome) responsável pela Artilharia. Afirmou, então, que possuíam granadas perfurantes para o efeito.

Verdade? Mentira? Pouco importa.  O que posso afirmar com total rigor é que nenhum dos abrigos com a placa de betão foi destruído, apesar de atingidos. Um abrigo antigo, de construção diferente, foi atingido e destruído, tendo aí morrido um furriel.

Ainda em 95 era bem visível o trabalho da nossa aviação, pelas crateras de grande dimensão que abriram no solo.

As granadas que se vêm, na sua maioria, estavam a descoberto em 95. É provável que, entretanto, tenham surgido mais. Na altura era impossível vasculhar todo o interior do aquartelamento.

O abrigo que se vê é idêntico a todos os outros, construídos com uma grossa placa de betão (40 cm?)

As granadas 11.4 eram em número elevado, já não existiam peças de artilharia  para as despejar, em Maio de 73, e aguardavam a sua deslocação para outro local. As de calibre 14 foram despejadas às 3 da manhã, do dia 22, por 2 obuses.

À volta do aquartelamento existiam fornilhos comandados electricamente, mas o sistema não funcionava por deficiência da parte eléctrica. No meu meu tempo reviu-se uma parte da instalação, com alguns custos: 3 feridos, 2 deles com alguma gravidade.

Fora do aquartelamento praticamente não havia minas, a segurança exterior funcionava à base de armadilhas duplas nos 3 sentidos mais sensíveis: Gadamael, Mejo e Fronteira. Nesta última, havia uma mina, junto ao tronco de uma árvore, já próximo da picada que ligava Gandembel a Gadamael. As nossas milícias conheciam a sua localização, eram eles que a sinalizavam quando saíamos em patrulhamento para essa zona.

O modo como saímos de Guileje não nos permitia fazer as limpezas no interior e/ou exterior.  Limpos éramos nós!

Permitam-me o atrevimento desta opinião: Se acaso Guileje tivesse o mesmo tipo de abrigos e valas que existiam em Gadamael, talvez não houvesse ninguém para contar.

Um abraço amigo.

Manuel Reis
[Ex-Alf Mil
da CCAV 8350, 1972/74] (***)
________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 21 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7154: (De) Caras (5): Silate Indjai, um dos primeiros guerrilheiros do PAIGC a entrar em Guileje, dirige agora os trabalhos de detecção e limpeza de UXO (Pepito)

(**) Úl timo poste desta série > 7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6331: Dossiê Guileje / Gadamael (23): Algumas das razões do insucesso militar do PAIGC em Gadamael, Maio/Junho de 1973 (Nuno Rubim)

(***)  Informação do próprio Reis:

(...)  Tivemos 5 Comandantes de Companhia que passo a referir.

1º Abel Quintas- esteve no Cumeré e Guileje, sendo evacuado de Gadamael no dia 1 de Junho de1973;

2º Caetano - Esteve em Gadamael durante a permanência da C.CAV 8350 (2 de Junho de 73 a 18 de Julho de 73);

3º Patrocínio - Esteve no Cumeré e em Quinhamel de Agosto a Dezembro de 1973;

4º Reis - Esteve em Cumbijã e Colibuía,  de Janeiro a Maio de 1974; [... mas este Reis não sou eu!!!]

5º Santos Vieira - Esteve em Cumbijã e Colibuía,  de Maio a Agosto de 1974.

Guiné 63/74 - P7217: O Nosso Livro de Visitas (102): Parabéns pelo vosso fantástico projecto (Maria João Rocha)





Guiné > Zona Leste > Geba > CCART 1690 (1967/69): Croqui do monumento erigido, em Geba, aos "mortos que tombaram pela pátria"... Em 1995, a jornalista e realizadora Diana Andringa visitou Geba e escreveu, a propósito deste monumento, semi-destruído, uma peça pungente, no Público,de 10 de Junho de 1995... Terá sido a "pedra de Geba" que motivou a realização do documentário As Duas Faces da Guerra (em co-autoria com o guineense Flora Gomes; filme, em duas partes, disponível no portal A Guerra Colonial).

 A esta martirizada companhia pertenceu o nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes.


Foto: © A. Marques Lopes (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de uma nossa leitora, Maria João Rocha, com data de 29 de Outubro último... É mais uma voz no feminino a fazer-se ouvir no espaço aberto, heterogéneo e plural da nossa Tabanca Grande... Sabemos que muita gente, homens e mulheres, nos lê e nos vê, sem dar (nem ter que dar) a cara... Reconforta-nos, anima-nos e motiva-nos saber que o nosso  blogue também atinge outros segmentos de público, para além da sua população-alvo, natural, que são os antigos combatentes... Gente do teatro, do cinema, da cultura, das artes, das letras, da ciência...Tratando-se de um mail pessoal, enviado ao editor L.G., transcreve-se apenas o excerto que pode interessar aos amigos e camaradas da Guiné que se sentam sob o poilão da Tabanca Grande e, por extensão, a todos os nossos leitores. Muito obrigado, Maria João. Boa sorte também para os seus projectos  (LG) (*)

Caro Luís Graça:

Muitos parabéns pelo seu FANTÁSTICO projecto. Visito-o muitas vezes por curiosidade histórica (sou licenciada em História), por necessidade de relembrar o passado (tenho 60 anos) e também por alguma afinidade com a Guiné, onde estive, em 95, a realizar um documentário da autoria da Diana Andringa. Foi com ela que visitei e filmei o quartel de Geba (já li, neste blog, alguém falar de um texto que ela escreveu sobre isso) e lá me emocionei, não só com o memorial aos mortos mas também com as pinturas murais, com o silêncio que impera no local e com o "peso" da memória colectiva que lá perdura (**).

A passagem por aquele quartel foi um momento impressionante na minha vida. Nunca imaginei que um exército se alojasse em instalações tão pequenas, quase parece uma aldeia com pequenas casinhas. E o estado de degradação é arrepiante... Quantas vidas... Parece um local paradisíaco... (...)

Com os meus melhores cumprimentos.
Maria João Rocha
Lisboa

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Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série > ;27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7043: O Nosso Livro de Visitas (101): "O pobre camarada de Crestuma" (José Campos, presidente da Sociedade Filarmónica de Crestuma, Vila Nova de Gaia)

(**) Vd. poste da I Série do nosso blogue > 23 Junho 2005 > Guiné 69/71 - LXXIII: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 [Diana Andringa]

(...) Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.


Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).

E esta pedra caída, tumular.

Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.

A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.

De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?

Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.

"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.

Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-

Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.

Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória. (...)

Guiné 63/74 - P7216: Notas de leitura (164): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,

Prossegue esta aventura dos livros e esta crónica de Luís Cabral é uma peça demasiado importante para a tratarmos com a ligeireza de uma curta recensão.

Já estou a sonhar com a noite de 17 de Novembro em que vou para a Guiné, levo uma mala de livros e uma série de encomendas.
 
Tremo de emoção só de pensar que haverá um dia em que me reúno com toda aquela malta que resistiu a 40 anos, o Fodé Dahaba está a preparar o grande encontro.

A minha homenagem mais sincera era escrever sobre eles, dar-lhes a posteridade que por aqui lhes negámos, com a nossa indiferença.

Um abraço do
Mário



“Crónica da Libertação” (1), por Luís Cabral

Beja Santos

As memórias de Luís Cabral, digo sem qualquer hesitação, estão no topo da hierarquia das leituras obrigatórias no que toca ao conhecimento da vida do PAIGC, da personalidade de Amílcar Cabral e da evolução das lutas de libertação, dos anos 50 aos anos 70 (Cónica da Libertação”, por Luís Cabral, Edições O Jornal, 1984).

É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas. 

É um apanhado de recordações que abarca a história familiar, que passa pelo nascimento do PAIGC, por um certo olhar pela vida colonial portuguesa, uma invocação das figuras fundadoras daquele movimento, temos depois o desencadeamento da acção armada, tudo vai culminar com o assassinato do líder histórico.

É uma obra fundamental até pelo que não se diz ou aparece em tons cinzentos ou numa redacção que permite a leitura ambivalente. Porque o seu autor, uma das primeiras figuras do PAIGC, também não descura a verve crítica, mais ou menos intensa, sobre pessoas dentro e fora do partido. Uma obra assim, com centenas de páginas, e com informação de valor excepcional, merece ser tratada em longos haustos. É essa a intenção que vai acompanhar esta curta série de textos.

Tudo começa na intimidade da família Cabral, onde pontificou Juvenal Cabral, ainda hoje guardado no coração dos cabo-verdianos. Luís Cabral considera que foi neste ambiente inconfundível que nasceu a divisa do PAIGC: unidade e luta, pela vida de gente sujeita às secas inclementes e a muita pobreza.

 Falecido Juvenal Cabral em 1951, Luís Cabral lançou-se ao trabalho, pouco depois Amílcar vai trabalhar nos serviços agrícolas na Guiné. Em 1953, Luís Cabral transfere-se para a Guiné e assiste às primeiras movimentações do irmão em torno da criação de um clube. O trabalho profissional de Amílcar Cabral permitiu-lhe percorrer todo o território da Província. Nasce um núcleo de amigos que pretenderam militar pelas liberdades políticas, tal foi o caso de Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte e os irmãos Cabral. 

Uma farmacêutica, Sofia Pomba Guerra, aparece como líder da oposição no processo eleitoral para a presidência da República e foi de uma grande influência sobre estes jovens. Depois, tem lugar uma reunião em 19 de Setembro de 1956, na casa onde residiam Aristides Pereira e Fernando Fortes, o n.º 9 C da Rua Guerra Junqueiro, em Bissau em que compareceram não só Aristides e Fernando Fortes como os irmãos Cabral, Júlio Almeida e Elysée Turpin (sobre este, consultar o site http://www.paigc.org/DEPOIM~1.HTM.

Luís Cabral descreve este último assim: 

“Elysée, natural da Guiné, trabalhava numa empresa francesa que veio a cessar as suas actividades no país. Descendente de uma antiga família cristã de Bissau, também tinha parentes bastante perto no Senegal e na então Guiné francesa, o que lhe proporcionara a oportunidade de visitar aqueles países e seguir de perto a evolução política que ali se estava operando”. 

O que se passou nessa reunião? Amílcar Cabral começou por falar na Guiné de Cabo Verde, sugerindo que embora a situação parecesse diferente nos dois países, o seu conteúdo era o mesmo, enumerou os fundamentos que tinham ligado os dois povos no passado. Procurou provar que a população cabo-verdiana tinha origem guineense e que para além dessa origem comum os dois povos estavam empurrados para a unidade. Luís Cabral escreve: 

“Ou seríamos capazes de unir os nossos dois povos ou os colonialistas acabariam por levar guineenses para se baterem contra os cabo-verdianos em Cabo Verde, e cabo-verdianos para se baterem contra os guineenses, na Guiné”.

 Li demoradamente este argumento cuja falsidade brada os céus. O espantoso é a convicção de Amílcar, uma inteligência superior, um intelectual conhecedor das poderosas diferenças entre os dois povos, declarar a enormidade sem uma hesitação. Continuando com a argumentação que terá sido usada por Amílcar nessa reunião histórica, ele referiu que a união destes dois povos ia reforçar a posição de gente que estava decidida a ser independente, a ter a sua própria personalidade. 

Amílcar vaticinou uma luta longa e difícil. Prevendo a repressão, propôs a criação, na vanguarda do movimento nacionalista, um núcleo de militantes seguros, homogéneos e bem estruturados: 

“A este núcleo de militantes saídos do nosso vasto trabalho de mobilização não devia pôr-se como objectivo unicamente a libertação nacional e independência. Isso seria, sim, a primeira etapa do grande combate e constituiria o meio indispensável para a grande obra que viria depois: a construção, na unidade forjada na luta, de uma nação guíneo-cabo-verdiana forte e progressiva”. 

Não bastava pois a criação de um movimento de libertação, impunha-se um partido com programa. Fica-se sem saber o teor das discussões, se houve réplicas ou contestações. Luís Cabral diz que tinha acabado de nascer o PAIGC, com a sigla PAI. Amílcar, Aristides Pereira e Fernando Fortes adoptaram pseudónimos: Amílcar, Abel Djassi; Aristides, Alfredo Bangura; Fortes, Seidi Camara. Quem garantia as ligações deste núcleo era Luís Cabral. Aristides e Fortes começaram a sensibilização e a mobilização nos CTT e noutros ramos do funcionalismo público. Luís Cabral procurou na Casa Gouveia recrutar militantes. Foi assim que Vitor Saúde Maria, empregado de balcão da empresa, entrou nas fileiras do PAIGC, seguiu-se Carlos Correia, mais tarde figura proeminente. Foram logo bem-sucedidos na acção sindical, no caso o Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria da Guiné.

Amílcar Cabral, entretanto, transfere-se para Angola e assiste à fundação do MPLA, foi um dos seus promotores mais entusiastas. Mais tarde, em Paris, com os angolanos Mário de Andrade e Viriato da Cruz e moçambicano Marcelino dos Santos contribuiu para a criação do Movimento Anti-Colonialista, que passou a ter algum impacto nos meios estudantis.

Em 1958, tudo mudou com o não da Guiné dita francesa a De Gaulle. Amílcar viu a oportunidade de se lançar na luta de libertação. Em Bissau, com discrição, os fundadores do PAIGC intensificam o trabalho de mobilização. Amílcar aparece na Guiné e toma conhecimento de um outro grupo de nacionalistas, dirigido por Rafael Barbosa. Conversam e decidem a reunificação de esforços.

E chegamos ao episódio do massacre do Pijiguiti, estamos em 1959.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7209: Agenda Cultural (89): Lançamento dos livros Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota e Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7199: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (4) (Mário Beja Santos)