terça-feira, 10 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14343: Notas de leitura (690): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte I): a epopeia da pesca do bacalhau à linha, em plena guerra colonial (Luís Graça)


Capa do livro de Tibério Paradela, "Neste mar é sempre inverno" > Ficha técnica: ed. autor, agosto de 2014 (Execução gráfica: Oficina Digital -. Impressão e Artes Gráficas Lda, Aveiro). Depósito legal: 379001/14. Tiragem: 500 ex. 262 pp. Capa de José A. Paradela. O livro pode ser pedido através do mail: paradela.tiberio@gmail.com



1. Comecemos pelo autor, Tibério Paradela [à esquerda, foto de perfil da sua página no Facebook. com a devida vénia]

Tibério Paradela: é o seu primeiro livro. E é um romance (ou obra de ficção) que tem como horizonte temporal a campanha de bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia, entre abril de 1965 e abril de 1966.

A capa é do irmão, José António Paradela, arquiteto. meu amigo e vizinho (*) [, Ábio de Lapara, no Facebook]. 

Tibério Paradela, capitão da marinha mercante, é ilhavense, concluiu o curso de pilotagem da Escola Náutica, em Lisboa, em 1960. Embarcou como  praticante de piloto em 1961, no arrastão  "Santa Mafalda" e, no ano seguinte, como imediato no navio bacalhoeiro à linha "Novos Mares" [o último bacalhoeiro em madeira, construído na Gafanha da Nazaré, fez parte da Frota Branca até 1986, data em que foi abatido à frota  por ordem do Secratário de Estado das Pescas; em 1991 foi oferecido para se transformar em museu, o que nunca se concretizou; por incúria, deleixo ou crime, acabou por se afundar no porto de Aveiro].

Entre 1962 e 1964,  entre os 21 e os 24 anos,  Tibério Paradela andou na pesca do bacalhau, tendo passado depois para a marinha mercante. Fez as rotas comerciais do Índico (Moçambique e África do Sul), do Atlântico (países da África Ocidental, norte da Europa, Açores, Madeira e Canárias) e Mediterrâneo. 

Foi ainda piloto de barra no porto da Beira, Moçambique, entre outras atividades profissionais. Vive na Costa Nova, concelho de Ílhavo, tal como o nosso camarada Jorge Picado (de quem, de resto, os irmãos Paradela são amigos).(**)


2. Romance > Contexto:

Se o livro tivesse sido escrito (e publicado) ainda no tempo do Estado Novo, teria pela certa um título mais prosaico e pitoresco: "Cenas da vida da pesca do bacalhau". Mas não, não de trata de um livro de memórias, muito menos de registo etnográfico das campanhas do bacalhau e da vida a bordo nos últimos barcos da pesca à linha da nossa "frota branca". 

Não é sequer um simples diário de bordo duma viagem, de seis meses, aos bancos de pesca da Terra Nova e da Groenlândia. O que não quer dizer que o livro não tenha uma grande riqueza de informação etnográfica, recomendando-se a sua leitura também por essa razão adicional.

"Neste mar é sempre inverno" é um título de homenagem aos homens do mar. Na pág. 105,  percebe-se melhor a escolha do título. O autor atribui ao filósofo grego Platão a afirmação segundo a qual haveria 3 espécies de homens: "os vivos, os mortos e os  homens que andam no mar"...

Mas por que é que os homens do mar teimam em sê-lo pela vida fora, de modo contínuo ? Para Tibério Paradela, há uma razão, "talvez a única", para explicar por que é que o homem do mar o é para toda a vida: seria o "esquecimento". E esclarece o autor:

"Não o varrimento da memória, mas o alijamento das agruras e amarguras para o sótão das lembranças indesejadas numa sucessão infalível, porque no mar é sempre inverno" (p. 105).

Poderia tresler-se: "neste mar é sempre inferno"... Neste mar, e na frota branca do bacalhau!

É esta epopeia, já esquecida pelos portugueses nascido no pós-25 de abril, que prende o leitor ao longo das mais de 260 páginas do romance. Li e reli o livro e tirei inúmeras notas de leitura, algumas das quais vou aqui partilhar, com todo o gosto,  com os leitores do nosso blogue. (***)

Confesso que o meu convívio e amizade com o arquiteto José António Paradela e outros ilhavenses me têm levado a desenvolver um crescente interesse e viva curiosidade  pela história e pela socioantropologia da pesca do bacalhau, sem de modo algum me poder arrogar o título de especialista. 

É um tópico (a pesca do bacalhau à linha, com botes, com os célebres dóris) que me apaixona. Já aqui, no nosso blogue, fizemos de resto referência a dois livros do capitão Aveiro (****), outro ilhavense que deve ter inspirado o nosso romancista: a figura do capitão Valério tem alguns traços autobiográficos mas também terá algumas semelhanças com o mítico capitão Aveiro, um lobo do mar, ilhavense, pois claro...

Por outro lado, tenho ainda bem presentes as imagens dos anos 60, da benção dos bacalhoeiros, ancorados frente ao Mosteiro dos Jerónimos. De as ver ao vivo, mesmo a uma ceta distância. Era, de resto, uma das imagens recorrentes da Radiodifusão Portuguesa, ainda a preto e branco. Era uma das imagens de marca do regime de Salazar. Portugal era então o único país que ainda mantinha a longa tradição da pesca do bacalhau à linha.

Ora o romance de Tibério Paradela começa justamente em abril de 1965, com a benção e a partida dos bacalhoeiros, "todos eles brancos, talvez por serem negros alguns dos seus destinos" (p. 5). 

Na praça do Império, frente aos Jerónimos, amontavan-se os tripulantes da frota (pescadores e marinheiros) e as respetivas mulheres. É poderosa a imagem desses "cepos axadrezados" que íam partir para um viagem de seis meses., deixando em terra as suas mulheres, nalguns casos já grávidas:

"Mulheres soluçantes apoiavam-se nos ombros daqueles que eram os seus homens, cepos axadrezados, inseguros nas botas de borracha pretas de cano alto, dobradas abaixo dos joelhos, homens desengonçados  de postura inacabada, em dança algo frequente herdada do mar (...)". (p. 6).

O que tinha de especial aquele dia em que o povo humilde do mar, gente recrutada ao longo da costa, de norte a sul (de Viana do Castelo a Olhão, passando por Ílhavo, Aveiro, Figueira da Foz, Nazaré, Peniche, Setúbal). se misturava com os "grandes" da Nação (bispos, cónegos, ministros, armadores,  militares de alta patenta...) ?

A resposta, épica,  vem nas páginas 7/8:

"Naquele dia eles eram os Grandes, os Ínclitos, a Raça. Neles se projectava toda uma história marítima riquíssima nos dons que imortalizam os heróis - a abnegação e  a coragem! Era a eles - sem excepção de classe - dos capitães aos moços de convés -  que se atribuia a capacidade restante de continuarmos a nossa saga de marinheiros galgandos mares, desafiando o ignoto, descobrindo riquezas"... 

A cerimónia  terminava com o bispo, de hissope em punho, benzando barcos e homens e arrematando:

"Eu vos abençoo e aos vossos barcos também! Ide com Deus!...

E lá parte o barco, o "Nova Esperança", para a sua viagem de 2 mil milhas até aos bancos de pesca do bacalhau, a atingir em 10 dias (à velocidade de 200 milhas por dia),  com a sua tripulação de oitenta homens:

"Os pescadores, os moços do convés,  os maquinistas, o imediato e o capitão" (p. 18), com "os paióis carregados de víveres para seis meses, câmaras friogoríficas atulhadas de blocos de lula congelada, para isco, milhares de linhas de pesca e anzóis, muitos cestos de vime, um para cada pescador (...); selhas enormes para lavagem do peixe, baldes  de madeira individuais, para o isco,  garfos de dois dentes finamente acerados com cabo quase do tamanho dum homem para a remoção do bacalhau, muitas pás para a remoção do sal no porão; facas para fins distintos, pedras de afiar; cordas (...), enfim, um sem número de aprestos e parlamentas. Nos tanques duplos-fundos cinquenta toneladas de água potável e outras tantas de gasóleo. E no porão, que é a barriga dos navios, oitocentas toneladas de sal carregadas em terras saleiras" (p. 13).

3. Legislação de 1927: dispensa do serviço militar aos mancebos com seis campanhas ou temporadas na pesca do bacalhau, desde que matriculados em navios nacionais 

O romance tem como personagem principal o "Nova Esperança" e gira à volta de 4 ou cinco figuras da tripulação: 

  • o capitão Valério, comandante do navio, 
  • o seu velho imediato (que foi o único sobrevivente do naufrágio do "São Cristóvão", em finais dos  anos 20), 
  • o Tio Quico (velho pescador que tem um filho a fazer a guerra em Angola), 
  • o Atílio (um homem revoltado contra a sua dura condição proletária) 
  • e o "Serranito" (moço de convés, beirão, que se alistou para fugir à guerra de África)...

Recorde-se que a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia era, então, uma alternativa à guerra colonial: eu ainda  não vi isso escrito preto no branco, no Diário do Governo, mas devia haver um acordo de cavalheiros entre o governo, as autoridades militares e o grémio dos armadores dos navios da pesca do bacalhau e, proventura, os sindicatos (corporativos) dos pescadores, no que diz respeito à isenção do serviço militar dos mancebos, ao tempo da guerra colonial (1961/74)... 

No romance, o "Serranito", a conselho do abade da aldeia, e da sua madrinha,  professora, está convencido de que se fizer 7 (sete) campanhas da pesca do bacalhau está safo da tropa e da guerra... 

Ao que parece, já havia legislação nesse sentido, remetendo aos tempos da Ditadura Militar (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927), como forma de responder às dificuldades de recrutamento de pessoal e às duras condições de trabalho, segundo o historiador Álvaro Garrido (em artigo sobre a revolta dos bacalhoeiros de 1937):

(...) "Entretanto, mantinha-se o incentivo ao recrutamento previsto na legislação de Abril de 1927: os pescadores que tivessem cumprido um mínimo de seis campanhas de pesca consecutivas eram dispensados do serviço militar, sendo transferidos para a 'reserva naval' " (...) (Fonte: Garrido, Álvaro - Os bacalhoeiros em revolta: a «greve» de 1937. Análise Social, vol. XXXVII (165), 2003, 1191-1211, disponível aaqui em formato pdf).

Sobre a pesca do bacalhau vd. entrada da Wikipédia > Pesca do bacalhau pelos portugueses... Recorde-se que durante a II Guerra Mundial foram afundados,  por submarinos alemães, dois lugres da frota do bacalhau  o Delães e o Maria da Glória, o que custou a vida a 36 pescadores (do segundo). No total, a marinha alemã afundou 11 navios de bandeira portuguesa durante a II Guerra Mundial, facto que é desconhecido pelos portugueses mais jovens.










(Continua)

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 30 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10596: Memória dos lugares (194): Ilhavo, Costa Nova... a terra do meu amigo e irmão mais velho e, porque não ?, meu camarada, o arquitecto Zé António Paradela, que hoje celebra 3/4 de século de existência, antigo marinheiro da pesca do bacalhau, último representante de um povo que tem o mar no ADN!... (Luís Graça)

(**)  Vd. poste de 28 de setembro de  2008 > Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)

(***) Último poste da série > 9 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (688): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

(****) Vd postes de:

24 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2300: Memórias de outra tropa, de outra guerra, a da pesca do bacalhau: escovar a história a contra pêlo (José A. Boia Paradela)

17 de outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7137: Agenda Cultural (86): DocLisboa2010, 14-24 de Outubro de 2010: a pesca do bacalhau na Terra Nova como alternativa à guerra colonial (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Vista parcial de Brunhoso - O olmo da esquerda era o do ninho da cegonha, debaixo do qual os ciganos, nos meses de verão se instalavam noite e dia.


1. Em mensagem de 2 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos a sua freguesia de Brunhoso de há 50 anos:


Brunhoso há 50 anos

1 - As Autoridades

Havia o presidente da junta cuja escolha recaía sobre um homem dentre o número restrito das famílias mais ricas.
O regedor, representante da autoridade policial, sendo um cargo com menor prestigio social era escolhido entre os homens das famílias de lavradores remediados.

Tanto o presidente da junta como o regedor eram nomeados pelo presidente da Câmara escolhendo os mais idóneos e respeitados entre estas duas camadas da população.
O regime com esta distribuição de cargos procurava contentar uns e outros, respeitando a hierarquia social e económica.

Em abono da verdade os cargos de um e outro mais pareciam honoríficos pois pouco mais faziam do que afixar às portas da igreja ou noutros locais públicos editais e posturas camarárias, tinham uma autonomia quase nula face ao poder camarário e central. Não recebiam qualquer vencimento, nem tinham direito a qualquer mordomia pelo desempenho do cargo.

Já eu era um rapaz praticamente quando foi construída a escola primária, penso pelo ministério da educação, antes as aulas eram dadas na residência paroquial, pois o padre tinha casa própria e dispensou-a. Alguns anos depois foi fornecida eletricidade, o dia da inauguração teve direito a foguetes e banda de música, perdi a festa pois não estive presente.

As ruas, que em tempos foram construídas com pedra à maneira da calçada romana, estavam muito deterioradas com falta de pedra e no inverno algumas transformavam-se num lamaçal.

O presidente da câmara, muitos anos também deputado da União Nacional, herdou do pai a riqueza e o cargo, grande proprietário, um dos maiores do concelho, com muitos bens ao luar, em várias freguesias sendo uma delas Brunhoso. Hoje, como ontem, o poder político é pertença do poder económico e financeiro, diretamente ou através de serventuários bem pagos para isso.
Era um homem muito poupado, morava numa freguesia a cerca de 7 kms do concelho e levava todos o dias o almoço de casa para não o ter que pagar mais caro no restaurante, nas contas da Câmara, que geria, era igualmente poupado não dispensando dinheiro para o arranjo tão necessário das ruas das freguesias do concelho. Não era urgente, afinal as pessoas e os animais passavam sem ficar presos no atoleiro!

Constava-se que o município emprestava dinheiro, a juros baixos, à Câmara do Porto. Formado em direito, era um homem muito conservador, honesto e trabalhador, cumpria o horário de trabalho como qualquer funcionário. O meu pai gostava muito dele, tinham a mesma idade e fizeram a tropa juntos algum tempo, havia muita consideração entre eles.

Dentro dos condicionalismos familiares e do regime em que foi criado, sem ter um rasgo de visão e inteligência que ultrapassasse essas margens estreitas, foi um bom homem, e que eu saiba não foi importunado por ninguém na mudança de regime apesar dos cargos políticos que tinha ocupado.

O regedor, sendo a autoridade policial durante a minha vida em Brunhoso, somente uma vez o vi atuar nessa qualidade, só ele, sem a companhia dos cabos de ordem, o "Vermelho" e o "Verdinho", cunhados entre eles e dizia-se serem os trabalhadores mais valentes da terra. Por sua vez o regedor tinha fama de ser um campeão do lançamento da relha e do ferro, no concelho e nos concelhos limítrofes.
Eram três homens fortes e altos, como havia poucos na aldeia, com uma boa estrutura óssea, que infundiriam temor e respeito, caso tivessem que intervir os três nalguma desordem. Não sei se isso algum vez aconteceu. Da sua força e valentia ficou a lenda.

 Residência Paroquial onde esteve instalada a Escola Primária até cerca de 1960

Fotos: © Francisco Baptista

Brunhoso era uma terra pacifica, as pessoas iam gerindo alguns pequenos conflitos que iam surgindo sem a intervenção de terceiros. Ouvi falar, era eu muito novo não me apercebi, que foi chamado a intervir num conflito onde houve um ferido muito grave.

O conflito que eu recordo e ao qual sei que ele foi chamado com insistência porque pareceu a alguns habitantes que poderia haver perigo de morte, aconteceu num dia de Carnaval.

O dia de Carnaval na aldeia era o dia da grande borga, da grande descontracção, da grande bebedeira, alguém que me foi muito próximo, o meu pai não, que era abstémio, disse-me um dia, penso que com algum exagero, o seguinte:
- Chico, há alguns anos eu bebia um garrafão de vinho por dia e era isso que me dava força para trabalhar a terra, no Entrudo bebia dois garrafões e à noite transportava os borrachos às costas para casa deles.

Nesse ano, teria eu 16 ou 17, ao cair da noite, os que continuaram a pé pelas ruas, após as festas diurnas, eram todos alegres foliões. Tão excessivos no consumo de álcool em épocas festivas só conheci os bávaros num Carnaval em Munique. Em Munique, cerveja ou vinho quente com aguardentes ou especiarias, em Brunhoso, vinho, in illo tempore, hoje de tudo, cerveja e até água ardente.
Nesse estado de espírito alegre e divertido, com alguns copos a rodar de mão em mão, estavam muitos no Balcão, uma praça pequena, como a aldeia, comparada com Munique, uma grande cidade europeia, equivaleria à Marianplatz, em ponto pequeno e sem a estátua de Maria, mas era a praça central. Surgiram alguns "estrangeiros" que tinham estado a comer e a beber em casas da aldeia, portugueses naturais ou próximos de terras grandes e longínquas, a trabalhar em Mogadouro, que a alguns da terra fizeram perguntas que eles acharam provocadoras e de quem quer gozar com os pobres e ignorantes. Eles estavam na melhor da disposição para lhes dar comida e vinho, mas essas palavras caíram-lhes como rastilho já a arder em pólvora pronta explodir. O grande provocador, o que pronunciou as palavras que incendiaram os presentes, foi agarrado, maltratado, esbofeteado, pontapeado e por fim arrastado por uma rua contígua cheia de pedras e lama.

Quando chegou o regedor, os maus-tratos terminaram e os estranhos foram enviados de automóvel para Mogadouro. Sei que o homem maltratado, que afinal foi só um, esteve um mês no hospital, ainda pensou pôr uma acção em tribunal mas desistiu talvez por não encontrar testemunhas.

As relações entre estas duas autoridades, presidente da junta e regedor, eram corretas, sem serem cordiais ou amistosas, nunca soube qual a razão apesar de conhecer bastante bem um e o outro.
Aparentemente parecia também que não davam especial importância aos cargos e que procuravam fugir das raras cerimonias oficiais.

Parecia-me igualmente que eram indiferentes ao regime, sem terem ideias politicas para lá da defesa da propriedade, da família e da religião, aceitavam esse regime como qualquer outro que aceitasse essas premissas. Noutro contexto, e sem querer fazer uma comparação ipsis verbis, lembrei-me da forma como os homens grandes das tabancas da Guiné recebiam os cumprimentos das autoridades militares. Afinal a sociedade deles tinha resistido a revoluções várias e a regimes diferentes. Não imaginavam que o fim dessa sociedade estava próximo.

Havia duas outras autoridades de quem pensava falar o padre e a professora, fica para outra altura, pois a conversa já vai longa, como não gosto de abusar da paciência de alguém que me queira ler, vou remeter este texto ao amigo e camarada Carlos Vinhal e ele e o grande camarada Luís Graça que decidam se é publicável ou não.

Não sem razão escrevia ontem o amigo Helder Valério, por outras palavras, que estes quadros bucólicos, que pinto mal ou bem, repetiam-se muito com várias cambiantes e matizes por essas aldeias de Portugal inteiro.

Na verdade ao escrever estas estórias para muitos de vós, que já as conheceis no todo ou em parte, devia estar a escrever para os meus netos, desculpai, estou à espera que eles cresçam para me ouvirem com mais atenção. Entretanto vou relembrando aos mais esquecidos ou distraídos, ou aos que nasceram na cidade grande e tenham curiosidade de saber como se vivia à mais de 50 anos nas aldeias, muitas vezes a poucos quilómetros dessa cidade.

A todos um grande abraço
Francisco Baptista

Guiné 63/74 - P14341: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (1): Os Cabos também faziam Planos de Operações

1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento(*), ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71, com data de 10 de Fevereiro de 2015:

Caro amigo Luís Graça,
Vou contar a minha primeira história sobre a Guiné, no entanto ela passou-se aqui na Metrópole, mais propriamente em Portimão.


Recordações da CART 2520

1 - Os Cabos também faziam Planos de Operações

Já não me lembro exactamente da data, mas talvez já tivesse decorrido um ano após o meu regresso, portanto por volta de 1972, quando fui ao casamento de um amigo, que também tinha estado na Guiné.
A certa altura e enquanto decorria o chamado copo de água, ele chamou e apresentou-me um dos convidados dizendo:
- Este rapaz também esteve na Guiné.
- Eu estive no Xime e tu onde estiveste? Perguntei.
- Olha, eu estive em Bambadinca, era Cabo e estive no Gabinete de Operações e também planeei algumas operações para o Xime.
- Planeaste operações para o Xime? - Perguntei estupefacto.
- Sim, estava no Gabinete de Operações, muitas vezes chegava o oficial ao gabinete (não cito o nome por uma questão de ética) e dizia-me para fazer um plano para uma operação a realizar no Xime, Mansambo ou Xitole, por exemplo. Então eu pegava num bocado de papel vegetal, colocava sobre a carta militar da zona, traçava um percurso, definia o objectivo, indicava número de efectivos, etc., dava para ele assinar e depois enviava para a respectiva Companhia.

Ao ouvir isto foi como se o mundo desabasse sobre mim e o meu cérebro foi percorrido por um turbilhão de ideias, levei alguns segundos a reagir. Lembrei-me dos camaradas que morreram, dos ferimentos graves que o furriel Pestana sofreu numa emboscada e dos riscos e perigos por que passámos em operações mal planeadas, mal preparadas e muitas vezes desnecessárias.

Isto que estou aqui a descrever não é invenção minha, foi real e as palavras poderão não ser exactamente as mesmas que foram proferidas.

Com um abraço do amigo,
José Nascimento
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14260: Tabanca Grande (455): José Júlio Dores Nascimento, ex-Fur Mil Art da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo, Quinhamel, 1969/71)

Guiné 63/74 - P14340: Agenda cultural (383): Conversas na Lua com... António Graça de Abreu, dia 13 de Março, às 19h00, na Livraria Lua de Marfim, Amadora

C O N V I T E



Estimadas/os Amigas/os da nossa Livraria
Estão todos convidados para:
Título: China, Ontem e Hoje, Itinerários e Viagens

13 de Março, sexta feira às 19 horas na Livraria Lua de Marfim
Av. Conde Castro de Guimarães 22 A
Amadora

com o Dr. António Graça de Abreu,
Universidade de Aveiro

"Uma abordagem ao passado histórico-cultural do mundo chinês, o fluir da História, seus poetas, romancistas, dramaturgos, pintores, artistas. 
Uma abordagem à China dos sec. XX e XXI, guerras, conflitos, comunistas, nacionalistas, a actual abertura à 'conquista' do mundo." ​

​" Os anos vão passando, e com os anos, a não ser a China, tudo na Terra passa." 
Eça de Queirós, "Os Maias", cap. XVIII
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14339: Agenda cultural (386): Lançamento do livro “Guerra na Bolanha”, da autoria do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, no próximo dia 17 de Março de 2015, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras

Guiné 63/74 - P14339: Agenda cultural (382): Lançamento do livro “Guerra na Bolanha”, da autoria do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, no próximo dia 17 de Março de 2015, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras

Lançamento do livro “Guerra na Bolanha”, da autoria do nosso camarada Francisco Henriques da Silva, no próximo dia 17 de Março de 2015, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras.


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 9 de Março de 2015:

Meu caro Carlos Vinhal, 
Tenho o prazer de te informar, bem como todos os leitores do blogue, do próximo lançamento do meu livro “Guerra na Bolanha”, para o qual estão naturalmente todos convidados, no próximo dia 17, pelas 15 horas, na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras. 

Para o efeito, junto remeto o respectivo convite. 
Já agora, informo os interessados de que existe um amplo parque de estacionamento no Centro Histórico de Oeiras, com entrada pela Avenida Copacabana, mesmo nas traseiras do local, onde tem lugar o evento. 
A localização da Livraria-Galeria é esta. 

Com abraço amigo 
Francisco Henriques da Silva 
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç 2402 e ex-embaixador de Portugal em Bissau (1997-1999)

C O N V I T E 

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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14315: Agenda cultural (385): Apresentação do livro "O Soldado Clarim", da autoria do Cor Paraquedista Nuno Mira Vaz, dia 5 de Março, pelas 15 horas, na Messe de Oficiais, Praça da Batalha, Porto (Manuel Barão da Cunha)

Guiné 63/74 - P14338: Parabéns a você (871): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutor Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14329: Parabéns a você (870): António Marques Lopes, Coronel DFA Ref, ex-Alf Mil da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (689): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2014:

Queridos amigos,

Para quem vivia no regulado do Cuor era obrigatório patrulhar a região da Aldeia do Cuor, que conheci reduzida a imponentes paredes de pedra, dava mesmo para sonhar que tinha havido por ali a capital de um império de ouro ou de caju, tanto fazia. Patrulhava-se toda a margem à procura de sinais de cambança, até perto de Canturé, era a única maneira de saber quando e como os rebeldes procediam a reabastecimento junto dos seus amigos de Mero e Santa Helena.

Sabíamos da sua passagem pelos indícios das vacas, esteiras perdidas, vestígios de sal e tabaco, com mais sorte um carregador de PPSH ou uma granada. Íamos no encalço dos caminhos percorridos, entre Mato Madeira e Chicri. E depois, era montar emboscadas para responder com contra-terror.

Mas a Aldeia do Cuor era um local espantoso, dali se desfrutava, perto da foz do rio Gambiel, de um panorama surpreendente sobre o regulado de Joladu. Gostava de lá voltar, caminhar a partir de Canturé, passar por Gã Gémeos, onde aportava o Sintex, passar por Caranquecunda, onde estacionaram os macuas, em 1908, quando se declarou guerra a Infali Soncó, o régulo rebelde que queria impedir a circulação do Geba.

A minha querida Aldeia do Cuor!

Um abraço do
Mário


A minha querida Aldeia do Cuor!

Beja Santos

Na minha proverbial coscuvilhice na Feira da Ladra, à cata de papelada fora de circulação e que ainda nos possa tocar na razão e coração, encontrei, sem que a emoção pesasse, umas notas sobre explorações zoológicas e história das explorações faunísticas da Guiné portuguesa, uma daquelas obras que se deveu ao período áureo do governador Sarmento Rodrigues. Os temas não são santos do meu culto e penso que no presente só um punhado de estudiosos se interessará em saber que andaram pela Guiné espécies animais como o Gato-de-algália e o Cachorro-de-mango. Pelo menos fiquei a saber que data de 1898 a nomeação de Francisco Newton para fazer a exploração zoológica de Cabo Verde e da Guiné, nova expedição iria realizar-se em 1908. Francisco Newton, de regresso à metrópole, enviou animais para o Jardim Zoológico de Lisboa.

Houve uma missão zoológica que decorreu entre 1945 e 1946, com vastos e importantíssimos resultados, os investigadores ocuparam-se de copépodes, protozoários, crustáceos, insetos, moluscos marinhos, vertebrados, batráquios, repteis, aves e mamíferos, o zoólogo F. Frade rejubila com os resultados alcançados. Vou lendo toda esta exaltação num estado de arrefecimento total. Eis, porém, que vêm estampas a seguir, e aí o sangue alcançou alguma fervura com a bela fotografia do Canal do Impernal, em baixa-mar. Folheei outras imagens, a estrada para Mansoa, a paisagem da Ilha de Bolama, aves de rapina em Bafatá, Rápidos de Cusselinta, no rio Corubal, uma das grandes atrações que tive o privilégio de ver, volto a página e fico estarrecido, não precisei de ver a legenda nem aquelas embarcações, é a Aldeia do Cuor, uma das fronteiras do regulado, do lado de lá é extensa bolanha de Santa Helena, com povoações como Mero, onde os guerrilheiros de Madina e Belel se vinham abastecer. 

Conheci aquele palmar como o fotógrafo, na década de 1940, o fixou. Com a guerra, estas embarcações desapareceram. Continua por resolver o mistério da importância comercial da Aldeia do Cuor, houve quem dissesse que fora aqui que se procurara instalar o comércio de Bambadinca, tais e tantas eram as potencialidades do Gambiel. O mistério fica por resolver, sobra agora esta fotografia de tempos desaparecidos onde até podemos ver em primeiro plano uma chapa de bidão, parece uma relíquia dos nossos tempos. E ponto final para a magra mas emotiva colheita de uma manhã de sábado na Feira da Ladra.


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Nota do editor

Vd. último poste da série de 6 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14336: Pensamento do dia (22): Aprendi na guerra a pôr um pé à frente do outro e continuar a caminhada, mesmo quando tudo era difícil (José Belo)

1. Mensagem, de 28 do passado mês,  do nosso amigo e camarada José Belo que perdeu recentemente a sua querida esposa, Britt-Marie  (*)

Meus caros Luís Graça e Carlos Vinhal

Agradeço as palavras amigas aquando de um bem difícil e inesperado momento da minha vida já algo "experimentada".

Aprendi na Guiné a pôr um pé à frente do outro e continuar a caminhada,  mesmo quando tudo era difícil.(**)

E as nossas caminhadas já väo sendo longas.

Um abraço grato do José Belo.

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

14 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14258: Manuscrito(s) (Luís Graça) (46): Quando o absurdo da morte bate à porta dos amigos...Para o Zé Belo, em memória de Britt-Marie

domingo, 8 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14335: (Ex)citações (265): Sondagem: Mudei muito. Quem é que não mudou? (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 28 de Fevereiro de 2015:

Carlos e Luís
Eu respondi à sondagem que sim, que mudei. Como podia não ter mudado face à distância de mais de 40 anos, num tempo que se escoa todos os dias? Transcrevo aqui as palavras do Torcato: - Por que é que este Blogue é tão importante para o ex-combatentes? E respondo como o Rosales: - Porque me sinto tão bem ao pé deles.

Um abraço
JA


Mudei muito. Quem é que não mudou?

Não sei se entre o melhor e o pior se ganhei ou perdi alguma coisa, mas para mim o que interessa é o que sou hoje, e isso é o somatório do que passei, do que vi e de com quem convivi durante todos estes anos.



Galomaro, 1973 - Juvenal Amado (à direita) com o seu camarada José Luís ("Ermesinde")

Não resisto a usar, que me perdoem a ousadia, o nosso Luís de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

“Incendiário” aos 20 anos e "bombeiro" a partir dos 40, é um dito que ilustra o amadurecimento que acontece e é desejável que aconteça, com todos como o que acontece com os bons vinhos em bons cascos. Mas atenção amadurecimento não é o mesmo que conivência de conveniência, nem em se deixar absorver, porque no meu entender há limites para a mudança entre o que acreditava ontem e o que acredito hoje, pois o meu acreditar residual é ainda a base da minha vida.

Hoje penso ao fazer uma viagem ao passado que no essencial me norteei por valores, sonhos e anseios, atiçados pelas transformações operadas no nosso País, em que víamos um Mundo velho parir um novo e pojante de poder, querer e crer.

Estou mais velho, mais largo em todas as direcções, com menos cabelo, na estrada da vida encontrei gente que me ama e amou, perdi quem amei e me amava incondicionalmente, ganhei e também perdi amigos. Numa vida cheia onde nem tudo foi bom, mas muito foi menos mau, tudo contribuiu para um ser em formação constante que conto ser até ao fim dos meus dias.

Hoje fazia o meu pai 90 anos.
Dedico-lhe o que aqui escrevo, pois lhe devo a criança que ainda existe dentro de mim e o adulto que faz todos os dias por honrar a sua memória.

Um abraço a todos os camaradas
JA
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14310: (Ex)citações (264): Sondagem: Ao fim destes 40/50 anos, mudei muito, física e psicologicamente - Resposta múltipla (Mário Vitorino Gaspar)

Guiné 63/74 - P14334: Libertando-me (Tony Borié) (7): Temos que lá voltar

Sétimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




Temos que lá ir um dia, pá! Esta é a frase que pronuncia, bem alto, sempre que nos encontramos.

O seu rosto mostra alguma amargura ao pronunciar estas palavras, mas logo se modifica, sorrindo, dando-nos um abraço dizendo, quando nos juntamos, pá!

É o José Augusto Nogueira, que no ano de 1964, era um jovem tal como nós que, cumprindo o seu dever de cidadão, se apresentou no Batalhão de Caçadores 10, na cidade de Chaves, onde aprendeu a “marcar passo”, a disciplina de combate e a conviver com os companheiros que o acompanharam no embarque a bordo do navio “Niassa”, no ano seguinte, mais propriamente a 21 de Maio de 1965, onde depois de alguns dias de “mar selvagem”, como ele gosta de dizer, desembarcou em Bissau a 26 de Maio, para combater aqueles que o então governo de Portugal lhe dizia que eram os “turras”.


Como tantos de nós, viu lama, mosquitos e terra vermelha, comeu mangos e mancarra, sofreu calor húmido e abafado, conviveu com fulas, mandingas ou balantas, passou quase toda a sua comissão em zona de combate, foi ferido, para o final, cansado de guerra, já não podia ouvir o som do seu morteiro, que não lhe falassem em arroz e peixe da bolanha e, com aquele sorriso maroto diz-nos também, que teve a “sua lavadeira”.

Após a chegada à então província da Guiné, foi uns dias para o aquartelamento de Brá, onde conheceu uma personagem que mais tarde se tornaria famosa, era o então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, do grupo de Comandos “Os Diabólicos”, que mais tarde actuou com ele em cenário de guerra, pois a sua especialidade era Apontador de Morteiro, pertencendo à Companhia de Caçadores 816, que se foi instalar em Bissorã, mas o seu pelotão foi destacado para o Olossato durante 13 meses, depois Cutia, Encheia e Mansoa, de onde finalmente regressou de novo a Brá, para embarcar de regresso a Portugal, no navio “Uíge”, em 14 de Fevereiro de 1967. Sempre que nos víamos combinávamos encontro, que por isto ou por aquilo nunca se realizava, finalmente encontrámo-nos em sua casa, aqui na Florida, para falarmos das recordações da guerra e não só.


Fica sério alguns momentos, mostra-me a sua tatuagem patriótica no antebraço, ao mesmo tempo que me diz:
- Em criança passei muita fome, na minha aldeia em Santa Cruz do Douro, concelho de Baião, onde o senhor Gonçalo me dava sempre pão, agora, como vês, não tenho razão de queixa.

Voltando à Guiné, participou em 386 saídas para o interior das matas, sendo operações organizadas com outras unidades militares ou simples batidas de zona, teve muitos ataques ao aquartelamento, principalmente no Olossato, foi ferido em combate, com estilhaços de granada num braço e numa perna, num domingo do dia 1 de Agosto de 1965. Também recorda que no dia 14 de Fevereiro de 1966, a sua companhia, junto com outras forças militares, capturaram 3 toneladas de material de guerra na célebre região de Morés.


Enquanto a sua dedicada esposa lhe diz que o lugar da Murtosa, é o mais lindo de Portugal, ele, olha para nós e diz a sorrir, que de Santa Cruz do Douro se vê os barcos a navegarem no rio Douro, depois volta a ficar com aspecto sério, mostra-me as fotos a preto e branco, e diz-nos:
- Estes são os burros que capturámos aos “turras”, este porco foi morto com um tiro, estes unimogues eram todos novos, depois de trabalharmos na construção dos abrigos, jogávamos à bola, as “bajudas”, algumas eram “boas” - E logo, a sua dedicada esposa lhe diz:
- Eram, talvez como o vento que faz na tua terra, traiçoeiro, só faz estragos.

Diz-nos que os companheiros da sua Companhia que ainda restam, se juntam todos os anos, ele carrega a mágoa de nunca ter oportunidade de participar, isto sim é verdadeira amizade, somos irmãos de guerra até morrer. Limpa duas lágrimas de emoção ao lembrar que no dia 1 de Agosto de 1965 saíram do Olossato para Farim, andaram à volta de 15 quilómetros, sempre debaixo de fogo, tanto de um lado como do outro da estrada, que não era mais que um carreiro. Não houve minas nem fornilhos, mas diversos companheiros ficaram feridos, entre os quais ele mesmo, juntamente com o Capitão Luis Gonçalves Fernandes Riquito, onde faleceu, morto em combate, o Furriel Silva, sem o poderem evacuar, pois “eles” acompanharam-nos sempre aos tiros. Foram mais de 12 horas, até que finalmente os “Águias Negras”, (diga-se Batalhão de Artilharia 645), vieram em nosso auxílio e, pudemos regressar de novo ao Olossato, com alguma segurança, aí sim, rezei e vi a cor do medo e da morte.


Para o final da comissão, já todos andavam cansados de guerra, até um companheiro, que era o mais valente, ia levando uma “porrada”, (diga-se castigo), porque se fez doente para não ir para as operações, onde o capitão da Companhia, veio junto dele, no “curral” onde dormiam, o levantou da cama, dizendo-lhe que lhe dava cinco minutos para se apresentar pronto para combate, ou então teria que o enfrentar.

Passámos algum tempo juntos, ao despedirmo-nos ficou a promessa de um destes dias falarmos dos “célebres abrigos do Olossato” que foram copiados por quase todos os aquartelamentos da então Guiné Portuguesa.
- Temos que lá ir um dia, pá.

Tony Borie, Março de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14311: Libertando-me (Tony Borié) (6): Quando fomos à Sede das Nações Unidas

Guiné 63/74 - P14333: Manuscrito(s) (Luís Graça) (49): Primavera, em Dia Internacional da Mulher


Lisboa > Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian > 8 de março de 2015 > A primavera chegou...

Foto: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

primavera

gaivota deusa alada
cortas fundo o branco
da manhã
e até ao cabo mais ocidental
do meu corpo
quero-te e espero-te
a viajar
no último comboio da madrugada

até ao fim até ao sul
paro escuto e olho
os semáforos do nevoeiro no país verde-rubro
mas já a maré enche de azul
as praças da cidade
e tu amor sem arribar

porto seguro e encantatório
ilha secreta gruta radar
com uma palmeira à janela
e uma bandeira branca em cada promontório
dizem que és filha da liberdade
do rio e da foz
do vulcão e da lava
e em dias de neblina também és oásis
aldeia palafita e ponto final
entre as arribas e a praia-mar

não olhei para o calendário
nas paredes da falésia
nem fixei o dia o mês o ano ou a era
mas hoje o teu voo é preclaro sinal
de primavera

ponho um cêdê do fado novo
paro escuto perscruto
o telefone os búzios a guitarra
mas tu amante sibila cartomante
sem aportar

frias são as estrias do poema
e hirto o sax-sex-grito
do último navio na noite
mas a letra do fado me diz
que tu gaivota deusa alada
estás p’ra chegar.

quanto é bom voltar a ver-te
voar.

lisboa, 1985
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Nota do editor:

Último poste da série > 5 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14323: Manuscrito(s) (Luís Graça) (48): Foi você que pediu uma Kalash ?

Guiné 63/74 - P14332: Blogpoesia (402): Um haiku à moda do Japão, em Dia Internacional da Mulher (António Graça de Abreu)

1. Mensagem do nosso amigo e camarada António Graça de Abreu:

Data: 28 de fevereiro de 2015 às 09:01
Assunto: Guiné, Memória e Poesia

Meu caro Luís: Se achas que é de publicar, avança. Não sabia que também era capaz de escrever esta espécie de haikus à moda do Japão  (dezassete sílabas em três versos, de sete, cinco, sete), com a Guiné dentro dos mini-poemas.

Abraço, António Graça de Abreu

Memória da guerra na Guiné

A herança da História, os acasos da sorte,
o estertor do Império, a insensatez das gentes
levaram-nos um dia a servir numa guerra.
Homens-meninos, por bolanhas verdes,
no tarrafo cinza, na picada traiçoeira,
na humidade quente do amanhecer das florestas,
conhecemos o medo, a morte, a coragem.
Quase rasgámos a alma.
Tantos anos depois, tempo de reencontro,
o gosto cristalino de um abraço de irmãos.


Envelhecemos.
Meio século após a Guiné,
beber os últimos prazeres da vida.


Nem derrotas, nem vitórias,
o fluir sinuoso das vontades dos homens
por dentro das lágrimas do tempo.

Nem flores do verde pino
nem o ondular das florestas.
Apenas bolanhas a ferro e fogo.

A menina mandinga
veio comer à minha mesa,
os olhos raiados de tristeza.

No Morés, laranjeiras rubras em flor
ou serão flores da guerra,
desabrochando em sangue, em calor?

Sangue e morte em Cufar,
a demência por dentro da noite.
Abraço a minha espada de guerra.

Guerra e paz em Mansoa,
nós, o coração esfarrapado,
no sonho breve, adiado,
do regresso a Lisboa.

Uma íbis negra. na foz do Cumbijã,
sacode as asas na névoa da pólvora
e esvoaça no horizonte azul.

Varri o chão, perfumei o leito,
mas a bajuda não veio.
Eu sou branco e feio.

Na humidade quente dos dias da guerra,
no leito de ferro,
no colchão de borracha enegrecida,
recordo o perfume faiscante
das dobras do teu corpo,
menina de seios de linho e alabastro.
Adormeci abraçado a ti.
Ao acordar,
apenas o rumor cálido
da ausência e do vazio.


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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P14331: Memórias de Gabú (José Saúde) (52): Um trajeto militar com sentido único.


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua fabulosa série.

Camaradas, segue mais uma pequena história da minha vida militar. De Tavira à Guiné mas enaltecendo a minha especialidade tirada em Penude, Lamego. 

Resumidas histórias militares que terminam com a minha série “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”

O CISMI, Tavira, recebeu-me, os RANGERS preparam-me para a guerra e a Guiné acolheu-me

Um trajeto militar com sentido único

O dia, recordo, encontrava-se solarengo. Estava-mos a 10 de outubro de 1972. A bordo do Morris 1000 do meu amigo Aníbal, saímos da nossa aldeia – Aldeia Nova de São Bento – antes de almoço, sendo o nosso destino uma “mansão comunitária” no encantado e sonhado Algarve. Atempadamente preparámos a viagem e lá partimos rumo à cidade de Tavira, onde assentámos praça.

No decorrer da viagem parámos para saborear uma refeição. Desconhecendo o conteúdo do jantar, precavemo-nos com eventuais prudências que o desconhecido futuro/próximo propunha. Serra do Caldeirão acima, serra do Caldeirão abaixo, vales e montanhas ultrapassadas, curvas e contracurvas quanto bastasse, os pneus do velho Morris a chiar, eu e o Aníbal lá fomos comentando a nossa entrada na tropa. O sonho aprestava-se para ceder o seu lugar à irreversível verdade de um futuro mancebo militar. Preparado? Talvez!

Aprestei-me, com tempo, em cortar o cabelo de acordo com o que se previa minimamente aceitável, e exigível, para as hostes militares. Diziam-me que a revista ao pessoal maçarico era feita com o olho bem aberto e nada de facilitar. Ponderando presumíveis adversidades, ou raspanetes grosseiros de graduados que já botavam ordem na parada, creio que mandei colocar ao meu barbeiro, um homem que ainda hoje me atura, o pente 3 na máquina. No final, olhando o espelho, a imagem constatada dececionou por completo aquele puto que se via a contas com o serviço militar obrigatório.

Dei entrada no CISMI, em Tavira, por volta das 4 horas da tarde. Como todos os recrutas lá fui sujeito à respetiva “inspeção”, sendo que o aspirante olhou-me de atravessado e mandou-me, em passo de corrida, para o barbeiro da unidade, dado que o meu cabelo não estava de acordo como o regulamento previa. E lá fui. Sei que não me livrei de um novo corte de cabelo que roçava uma inconcebível e envergonhada carecada.

Seguiram-se dias de autêntica amargura. Formar o pelotão, antes o receber das fardas, o aprender a marchar (ope 2, esquerdo, direito), o obedecer às normas, o conhecer o regulamento militar, o seu armamento, a vivência com outros camaradas na camarata, a entrega da G3, o encontro “imediato” com as famosas salinas, a semana de campo, enfim, um rol de canseiras ao longo da recruta.

No final desse período fui chamado para testes físicos, tendo como finalidade o meu possível enquadramento nas tropas especiais. A minha disponibilidade física era, digamos, excecional, jogava, oficialmente, futebol e essa minha disponibilidade não passou em branco ao aspirante do pelotão, sendo que a “tombola da sorte” carimbou-me para um rumar a Norte.

Neste contexto, o meu passaporte indicava-me Lamego e a especialidade de Operações Especiais/Ranger. Apreensivo, pois claro, com a sorte que o destino me timbrou, lá marchei rumo ao desconhecido. Sinceramente muitas coisas me ocorreram à memória. Ranger, eu! Mas, no fundo, a especialidade enchia-me as medidas. 

No aquartelamento em Penude, situado em pleno sopé da Serra das Meadas, conheci a dureza militar. A “largada”, escassas horas depois de assentar pé em terras durienses, apresentou-se como o batismo de “fogo” para um rol de jovens que, paulatinamente, conheceriam a dureza de uma especialidade que não dava tréguas.

Aprendi, então, as normas essências para lidar com a guerrilha. Fui o 2º classificado do meu curso, o 1º foi o Meireles, um rapaz do Porto, sendo que fiquei a dar a especialidade ao 1º grupo de cadetes, em conjunto com o aspirante Daniel, natural de Cabo Verde que transitou comigo de Tavira, e com o outro cabo miliciano, o meu grande amigo Pedro Neves.

Em Lamego senti o verdadeiro contacto com potencialidades humanas que existem dentro de nós. Os fatores físicos e psicológicos, associados a uma mente sã, deram-me novos ânimos. Nunca desistir perante as vicissitudes que a vida nos coloca pela frente foi, é e será uma arma capital para não nos deixarmos cair diante de um potencial obstáculo que inadvertidamente nos surge pela frente.

E foi justamente com esses princípios básicos aprendidos em Lamego, nos rangers, que parti rumo à Guiné. Na Guiné conheci a guerra e a paz. Nova Lamego, em plena região de Gabu, recebeu-me e por lá cumpri a minha comissão em terras de além-mar a qual, entretanto, foi reduzida graças à Revolução de Abril de 1974. Regressei à Pátria Lusa a 9 de setembro desse ano, carregando comigo um “oceano” de recordações. 

Para trás ficaram imagens e sons que transportarei um dia para a minha eternidade. Imagens de jovens camaradas que se depararam com a malfadada lei da morte quando muito tinham para dar, sendo que outros ficaram estropiados e outros acusam ainda hoje o conhecido stress pós traumático de guerra. Por outro lado, os sons arrepiantes dos tiros, o corrupio das emboscadas, ou das minas, dos flagelos noturnos aos quartéis, os gritos de dor, os gemidos da morte, ou os ruídos transversais de jovens soldados em pleno palco da peleja, são realidades que jamais apagaremos das memórias.

Relembro, também, a incerteza das colunas e de um mato adensado que escondia manifestos imprevistos. Um rol de hábitos quotidianos que o soldado sem medo se dispunha a enfrentar.

Este é, apenas, um pequeno flash da minha vida militar e ornamentada com as respetivas fotos de um ciclo de vida que já vai longe.

A Guiné estará sempre na tona das “MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”. 





Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P14330: Notas de leitura (688): O livro de Sofia Branco, "As mulheres e a guerra colonial", apresentado em Lisboa, na A25A, em 4 de março (Parte II): a retaguarda dos homens que fizeram a guerra




Vídeo (7'34'') > Alojado em You Tube > Luís Graça




Lisboa, Associação 25 de Abril, 4 de março de 2015. Sessão de lançamento do livro "As Mulheres e a Guerra Colonial" (Lisboa, A Esfera do Livro, 2015). Sofia Branco, a  autora, no uso da palavra (vídeo acima).

Foto: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

Guiné 63/74 - P14329: Parabéns a você (870): António Marques Lopes, Coronel DFA Ref, ex-Alf Mil da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14303: Parabéns a você (869): Luís Moreira, ex-Alf Mil Sapador do BART 2917 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)

sábado, 7 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14328: Em busca de ...(254): António Medeiros, que esteve em Guidaje, com o Barata e o Clemente (Ana Medeiros)



Foto nº 1... À direita o Barata


Foto nº 2... Da direita para a esquerda, o 1º cabo Clemente e o António Medeiros



1. Mensagem (e fotos) da nossa leitora Ana Medeiros:


De: Anna Kwon

Data: 6 de março de 2015 às 17:13

Assunto: Guidage


Boa tarde,  Sr.,

O meu pai esteve na Guerra Colonial e eu queria enviar-lhe duas ou três fotografias para ver se você saberia onde as pessoas das fotografias se encontram atualmente ou se tem o contacto delas, nunca se sabe,  por isso decidi tentar.

O meu pai chamava-os de Barata e Clemente.

Na primeira fotografia, mais à direita é o Barata.

Na segunda fotografia, o da esquerda é o Clemente e o outro é o meu pai, António Medeiros.

Obrigado pela sua atenção,

Ana Medeiros

2. Comentário de LG:

Querida amiga, é um gesto muito bonito da sua parte querer ajudar o seu pai a reencontrar dois camaradas do tempo da guerra colonial. Fez bem em pensar que não custa tentar. Infelizmente, não vai fácil, da nossa parte, responder ao seu pedido, com sucesso. Faltam-nos elementos importantes para identificar a unidade (batalhão, companhia ou pelotão) a que pertenceu o seu pai. 

Diz-nos que ele passou (ou esteve) em Guidage (ou Guidaje) no norte da Guiné, junto à fronteira com o Senegal. Precisamos de saber em que ano. De qualquer modo, aqui ficam publicadas as duas fotos que nos mandou. Pode ser que algum dos nossos camaradas que nos leem, consigam identificar, com alguma sorte,  os militares em questão. (Mais de 200 mil militares, oriundos do continente e dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, terão passado pelo território da Guiné, no período de 1961 a 1974).

Pelo apelido, Medeiros, a nossa amiga (e portanto o seu pai) será de origem açoriana.  Veja se consegue saber, junto do seu pai, o nº da companhia a que ele pertenceu.  E já agora o posto que ele tinha (soldado, 1º cabo, furriel, alferes...) e a arma a que ele pertencia (infantaria, cavalaria, artilharia, transmissões...). Teremos muito gosto em poder ajudá-la a si e ao nosso camarada António Medeiros para quem desejamos muita saúde e longa vida. 

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Guiné 63/74 - P14327: Notas de leitura (688): O livro de Sofia Branco, "As mulheres e a guerra colonial", apresentado em Lisboa, na A25A, em 4 de março (Parte I): o Movimento Nacional Feminino e o papel das madrinhas de guerra



Vídeo (4' 48'') >  You Tube > Luís Graça 

Mitó [, Maria Antónia Mendes], vocalista do grupo A Naifa, lê um excerto do livro, p. 50 e ss. (o Movimento Nacional Feminino e o papel das madrinhas de guerra). 





Lisboa, Associação 25 de Abril, 4 de março de 2015 > Sessão de lançamento do livro "As Mulheres e a Guerra Colonial"... Na mesa, da esquerda para a direita, (i) Mitó, vocalista de A Naifa; (ii) a escritora Dulce Maria Cardoso; (iii)  a autora, Sofia Branco;  e (iv) a representante da editora, A Esfera dos Livros.


1. Foi apresentado, no passado dia 4 de março, pelas 19h00, na Associação 25 de Abril,  sita na rua da Misericórdia, 95, Lisboa, o livro "As Mulheres e a Guerra Colonial", da autoria de Sofia Branco (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2015, 375 pp.).

A mesa era composta só por mulheres: para além da autora (escritora e jornalista, presidente da direção do Sindicato de Jornalistas, natural da Póvoa do Varzim, nascida no pós-25 de abril),  estava a representante da editora (A Esfera do Livro, com sede em Lisboa), a apresentadora do livro, Ducle Maria Cardoso (n 1964, escritora, que viveu a sua infãncia em Angola), e ainda a Mitó, a  jovem e talentosa vocalista do grupo musical A Naifa.

A sala da A25A foi pequena para tanta gente, na sua maioria mulheres, Mas também alguns ex-combatentes, como era o caso do nosso editor Luís Graça ou de camaradas como o Manuel Joaquim ou o Carlos Matos Gomes (que escreveu um inspirado  prefácio para o livro, pp. 9-16, fazendo um paralelismo entre esta obra e o livro pioneiro de Maria Lamas, de 1948, "As Mulheres do Meu País"), e ainda o José Arruda (presidente da direção da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas).

Tive o prazer de conhecer pessoalmente a esposa do José Arruda. e ainda  o Ludgero Sequeira, ex-fur mil comando da 38ª CCmds (Guiné, 1972/74), e hoje professor universitário  reformado, e que já fez parte dos corpos sociais da ADFA, tendo sido ferido em Guidaje, em maio de 1973. Presente também, na assistência, a Teresa Almeida, membro da nossa Tabanca Grande, antiga bibliotecária da Liga dos Combatentes,  e que,  depois de ter enviuvado em meados de 2013, está a passar - segundo nos confidenciou - por um mau momento no seu local de trabalho, queixando-se de ser vítima de "bullying".



A Maria Alice Carneiro e a Deonilde de Jesus (, esposa do nosso camarada Manuel Joaquim),  são duas das 49 mulheres cujas histórias são contadas no livro de Sofia Branco.  Como escreve a autora, Sofia Branco, logo na introdução, "mães, irmãs, mulheres e namoradas, filhas, amigas, meras desconhecidas... sem combaterem nem pegarem em armas, as mulheres viveram a guerra colonial como se lá estivessem" (p. 21).

Diversas esposas de antigas combatentes que estiveram no TO da Guiné foram também entrevistadas pela Sofia Branco: cite-se, a título exemplificativo, Natércia Salgueiro Maia,  esposa do cap cav Salgueiro Maia, ou Madalena Mira Vaz, esposa do hoje cor paraquedista ref, e escritor, Nuno Mira Vaz, do BCP 12, ou ainda Dulcinea Cerqueira, esposa do nosso camarada Henrique Cerqueira... Há também, pelo menos, duas antigas enfermeiras paraquedistas: Maria do Céu Policarpo e Maria Cristina Justina da Silva (Não sei se passaram pelo TO da Guiné)...

O livro está dividido em 12 capítulos, cada um tendo o título de uma canção da época da guerra colonial... É pena que não tenha um índice remissivo.  Comtinuaremos a falar deste livro que tem como subtítulo: "Mães, filhas, mulheres e namoradas: a retaguarda dos homens na frente de batalha".

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de março de  2015 > Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Temos aqui uma surpreendente e atrevida intrusão multicultural, Nhô Filili é um funcionário régio que no último quartel do século XIX irá desafiar leis sociais cabo-verdianas casando com uma escrava guineense.
Luís Urgais está na posse de pleno conhecimento do barro que molda, constrói um romance histórico com muita plausibilidade e pena é que tenha precipitado o final do romance, pondo a galope os acontecimentos que precedem as atividades dos movimentos independentistas.
Uma obra que exalta os valores específicos da cabo-verdianidade e se mostra bem documentada quanto à natureza e importância do comércio negreiro e ao porquê da perda de influência da rota cabo-verdiana no termo da II Guerra Mundial.

Um abraço do
Mário


O Legado de Nhô Filili: Quando a literatura luso-cabo-verdiana se encontra com a Guiné

Beja Santos

“O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012, é um romance originalíssimo escrito por alguém que tem aprofundado conhecimento sobre a mestiçagem e a Cabo-verdianidade, trata-se de um registo poderoso de multiculturalidade em tempos da abolição da escravatura. A figura central é João Bento Rodrigues, conhecido por Filili, filho de minhotos, nascido na Ilha do Fogo. Será proprietário e funcionário régio, diretor local das alfândegas, irá afrontar a sociedade do seu tempo casando-se com a escrava Maguika, capturada nas matas da Guiné. É uma história de amor mas é acima de tudo um muito bem organizado romance histórico que tem o seu ponto de partida em 1869 (ano em que a monarquia portuguesa decretou a abolição da escravatura) e o seu termo será o período em que estão a eclodir as independências africanas.

É mesmo um romance histórico no seu figurino mais rigoroso: um cenário plausível, uma atmosfera de viragem, uma estrita compreensão das economias coloniais, um domínio absoluto da vida cabo-verdiana a partir do último quartel do século XIX. Dado o recorte da personalidade de Filili, a trama irrompe na Praia da Bateria, Filili, conhecido no meio local por Nhô Joãzim compra uma escrava ao corretor Abílio. Chama-se Maguika, mas Filili dá-lhe o nome de Guida, Margarida Gomes Fernandes. Guida é de etnia Papel, os tangomaus, intermediários no comércio de escravos, fora capturada por Bijagós, e ali estava. Os afetos prontamente faíscam:
“À medida que o tangomau desagrilhoava os tornozelos da fêmea nova e Filili pousava nela o olhar, estabeleceu-se uma clara empatia entre ambos. Ele quis saber se a sua nova escrava entendia a língua portuguesa ou o crioulo, mas de repente achou-se ridículo, não era suposto o escravo capturado entender o linguajar dos aculturados, e muito menos o do colonizador. Arrependido da observação, como se tivesse acabado de ofender a menina, Filili emudeceu. Mas ela, a quem jamais se ouvira uma palavra, atirou num português claro de sotaque arredondado: - Sou Maguika.”.

Enceta-se um romance em que a escrava fica como que numa aprendizagem de um Pigmalião, esse Filili asceta, cristão devoto e negociante irrepreensível. É esta menina vinda da Guiné que lhe irá dar coragem para enfrentar os negreiros, pôr em prática as normas régias tendentes a restringir e disciplinar o tráfico de escravos nos portos de Cabo Verde. O romance histórico entremeia informação que contextualiza o comércio negreiro ao longo dos séculos com o amadurecimento da relação entre Guida e Filili. Este restringe a sua vida social, deixa de ir aos bailes dos sobrados da elite, há mesmo uma apaixonada, de nome Antonieta, que não desarma. E as peripécias sucedem-se:
Leila, a amante de Filili, que dele estava grávida, viaja com Abílio, pai de Antonieta, o guarda-costas Abel mata-o a pontapé para lhe roubar uma boa maquia e rapta Leita, leva-a pelo caminho dos desfiladeiros em direção às montanhas dos rabelados, era ali que viviam os escravos fugidos em redutos fortificados. E de uma assentada Antonieta teve dois desgostos: após o funeral do pai, abriu o cofre onde este guardava o dinheiro e descobriu que caminhavam para a miséria; e descobriu que Filili andava perdido de amores pela escrava guineense.

A descrição do processo educativo de Guida é um primor de análise em torno dos meandros do que seria uma educação romântica na colónia portuguesa com maior sedimento cultural. Mesmo a incandescência da paixão é pintalgada com cores ténues, expressões contidas:
“À terceira vez que sentiu passos no corredor, a escravinha tomou coragem e, de um salto, saiu da cama. Ao assomar-se à porta do quarto, deu caras com Filili, que caminhava para a frente e para trás, aparentemente insone. Mas, quando ele se voltou e viu o corpo da sua Guida à transparência da camisa de dormir, não aguentou mais e correu para ela, abraçando-a e beijando-a num sufoco. Ela, evidentemente, correspondeu.
Filili era, porventura, o homem de pele mais clara do arquipélago de Cabo Verde e Guida uma das negras mais escurinhas. Mas, no rolar dos corpos, ter-se-ão, de tal modo, misturado um com o outro que ficou sem se saber, exatamente, onde começaria o branco dele e acabaria o negro dela”.

E Filili confronta-se com os costumes da sociedade cabo-verdiana, passa a viajar na companhia de Guida levando consigo o cónego Teixeira, como se o representante o igreja o protegesse da má-língua. Luís Urgais enquadra com mestria os ambientes, as festas, a vida de interior, os protocolos, a vida rural, é um artífice laborioso, bem documentado, que empurra a leitura de uma página para outra. A viagem entre o Fogo e a Brava, num canal onde subitamente estala a tempestade, é de elevada pirotecnia literária. Igualmente contido quando disseca a sociedade feudal cabo-verdiana. E naquele cheiro de uma África com odores de água salgada e vegetação rasteira, o cónego Teixeira casa os dois amantes, um homem caucasiano de pele muito clara, descendente de minhotos, com uma negra da Guiné.

Não há paixão angelical que sempre dure, vão chegar os filhos, entra-se num período de marasmo de secas e de fomes cíclicas. O filho mais velho, de nome Armando Napoleão, ia a filha mais velha, Leonilde Amélia (Titcha), vão revelar-se dois trastes. Somos inseridos nas atmosferas fúnebres, aquela estiagem é interminável, as nascentes secam, o povo está à míngua. O autor exponencia a importância de Joana, a criada que vem dos tempos da infância de Filili e que há-de acompanhar Guida, tem um papel fundamental na narrativa, realçando pelas histórias que conta a força da esperança, a vibração do sonho. Chega-se à República e ao Estado Novo, há jovens cabo-verdianos que partem à busca de uma vida melhor na metrópole. Durante a guerra, o Mindelo iria funcionar como asilo para muitos europeus. O porto de Dakar irá substituir pela importância que no passado tiveram os portos cabo-verdianos. José, o filho dos amores de Leila e Filili, irá ser educado pelo pai e madrasta, é um modelo de virtudes. No envelhecimento, Filili descobre que os filhos mais velhos lapidaram património. Filili desaparece, Guida vai ser repudiada por esses filhos rapazes. No auge da dor, Joana conta uma história exemplar a Guida, exatamente naquela praia em que se tomara de amores por Filili. Está só, mas confia plenamente nesse enteado exemplar. E toda esta história que tem como cenário a evolução de Cabo Verde, este retrato de uma África bela e sedutora, uma verdadeira metáfora da história da mestiçagem biológica e cultural de que Cabo Verde foi exemplo acabado, termina com um pensamento de Guida para o seu Joãzim, ela dá conta de uma borboleta branca que por ali esvoaça, prenúncio de boas novas:
“Olhou o mar diante de si e abriu um sorriso do tamanho do mundo”.

Uma grande surpresa para a lusofonia, esta promessa literária de Luís Urgais.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14312: Notas de leitura (686): “Nós, Enfermeiras Paraquedistas”, coordenação de Rosa Serra e prefácio do Prof Adriano Moreira, Fronteira do Caos, 2014 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14325: Efemérides (183): 5 de março de 1973, Guileje: a morte de um mártir/herói da guerra, o alf mil Vitor Lourenço, da CCAV 8350 (J. Casimiro Carvalho)


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3 

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1972 (?) > CCAV 8350 (1972/74) > Festa de anos do J. Casimiro Carvalho (?) (ao fundo)  > Fotos do grupo onde estava o malogrado alf mil Victor Lourenço (morto em 5 de março de 1973). São as únicas fotos que temos deste malogrado camarada (de perfil, assinalado com uma seta) e foram-nos enviadas ontem  pelo J. Casimiro Carvalho.

Fotos: © J. Casimiro Carvalho (2015). Todos os direitos reservados


1. Comentário, de ontem, do José Casimiro Carvalho [ ex-fur mil op esp, da CCAV 8350, “Piratas de Guileje”, (1972/74)], ao poste P14324 (*)

Sou (fui) um dos intervenientes desse triste e doloroso episódio na História da CCAV 8350.

Decidiram reabrir a estrada para o Mejo. Tinham que "capinar", por esse motivo havia que manter a segurança aos trabalhos (eu estava com o meu Grupo emboscado, ali, bem na ZA). De repente ouvi/senti, uma violenta explosão. Fui-me inteirar do sucedido. Deparei com o corpo do malogrado Alferes Lourenço estendido, sem metade da cara, e com as "tripas" expostas (já estou a chorar)...

Que aconteceu ????... obviamente, conjecturas, muitas, só ele poderia explicar o que se passou, o resto são isso mesmo, conjecturas.

No entanto depois de me inteirar "in loco" do sucedido, fiquei com dois ou três "filmes"...

Ao desarmadilhar/desactivar uma granada/armadilha, em que é necessário reintroduzir os dois pernos/cavilha, ao mesmo tempo que se segura a alavanca da granada, pode ter havido uma falha na pressão da mão e ter activado o percutor do fulminante.

«In dúbio», ele deve ter-se apercebido que "algo não estava bem", tinha duas opções, atirar a granada para longe dele, e ferir dezenas de militares e civis, ou naquele nano-segundo optar por segurar... sempre com a 2.ª hipótese, que era, não havia problema "estava tudo bem".

Morreu com esse glorioso alferes... a resposta. Eu penso que ele, ao afastar a granada da cara, estendendo o braço, sem largar a mesma, poderia ter ficado na dúvida do eminente perigo, ou não.

Para mim ele foi/é um Mártir/Herói da guerra. Provavelmente tentou minimizar "os danos colaterais", não pensando em si, e é essa imagem que guardo.

O que se seguiu é digno da "bolinha vermelha", já no Quartel, fui um dos voluntários para pegar no cadáver e transportá-lo/depositá-lo... na Capela. Éramos dois, eu peguei nos braços, outro camarada nas pernas, ao levantar o corpo, o mesmo dividiu-se em dois... Que dor, eu fiquei com a cabeça, os braços e o dorso, o outro camarada, com as pernas e a bacia.

Encostei-me na Capela a chorar e com convulsões, que ainda hoje, transporto comigo.

O meu respeito e a minha memória estão com o "Alferes Lourenço".

Quanto a ser o Último Alferes a morrer, não é verdade. O último foi o Alferes Branco, que o veio substituir, morreu numa patrulha que fez comigo (a primeira que fez), em Gadamael... (**)

Tenho tudo isso gravado na minha cabeça. Nunca me esquecerei dos meus Heróis.

José Carvalho
ex fur mil Op Esp
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14324: Efemérides (182): 5 de março de 1973, Guileje: a morte de um herói, o alf mil Victor Paulo Vasconcelos Lourenço, da CCAV 8350, natural de Torre de Moncorvo (Hélder Sousa / Manuel Reis)

(**) Alf mil art Artur José de Sousa Branco. da CCAV 8350, morto em combate, em Gadamael, em 4/6/73. Era natural de Lisboa, e está sepultado no cemitério do Alto de São João.

Recorde-se que na tarde de 4 de junho de 1973, em Gadamael, o alf mil Branco sai com um reduzido grupo de combate (12 homens) para fazer um reconhecimento nas imediações do aquartelamento, na antiga pista, a cerca de 1 km do arame farpado. O grupo cai de imediato numa emboscada e só não foi totalmente aniquilado graças à pronta intervenção das tropas paraquedistas (CCP 122/BCP 12, acabada de chegar a Gadamael, na manhã de 3 de junho, sob o comando do cap paraquedista Terras Marques).

Um pelotão, sob o comando do alf paraquedista Francisco Santos, da CCP 122, vai em socorro do grupo do alf mil Branco e ainda consegue resgatar os corpos e os sobreviventes. "Os cadáveres tinham sido selvaticamente baleados, ainda estavam quentes  e os fatos empapados de sangue" (José Moura Calheiros - A última missão, 1.ª ed. Caminhos Romanos: Lisboa, 2010, pp. 527/528).

Além do alf mil Artur José de Sousa Branco, morreram nesta ação os seguintes camaradas, todos eles sold cav da CCAV 8350 (entre parênteses, o concelho da sua naturalidade):

António Mendonça Carvalho Serafim (Cartaxo);
Fernando Alberto Reis Anselmo (Macedo de Cavaleiros);
Joaquim Travessa Martins Faustino (Santarém);
José Inácio Neves (Alcobaça).
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