sexta-feira, 5 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14700: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II): Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui"...



Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 4 >  Abrigo



Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 6 > Posto de vigia  




Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 5 > Posto equipado com metralhadora pesada


Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 1 >  Picada... para Cantacunda  


Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 2 > Convívio com a população local.


Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 7 > Arame farpado...   Não impediu que o destacamento fosse atacado na noite de 10 para 11 de Abril de 1968, de que resultaram 11 prisioneiros (incluindo 1 furriel, o Vaz, e dois cabos)  e 1 morto. Os prisioneiros foram depois levados para Conacri. Foi um dos maiores roncos do PAIGC, em toda a história da guerra colonial.,.. Onze tugas "apanhados à unha", com a alegada cumplicidade de alguém do pelotão de mílícia local...



Guiné > Zona leste > Setor de Geba > CART 1690 (1967/68) > Cantacunda > Foto nº 8 > Chifres: quem não os tem, pede-os emprestados...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição  e legendagem complementar: LG]


Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Geba > CART 1690 (1967/68) > Destacamentos e aquartelamentos >  A CART 1690, com sede em Geba, tinha vários destacamentos: Cantacunda, Sare Ganá, Sare Banda, Banjara... Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. Banjara (a noreste) e Cantacunda (a norte) eram o destacamento mais distante: ficavam a 45 km e 50 km, respetivamente, da sede da companhia, que era em Geba... Banjara não tinha população civil e estava cercada por mata;  era defendida por um pelotão, 30 efectivos; a  um quilómetro havia uma fonte onde, alternadamente, os NT  e o PAIGC se iam fornecer de água. Às vezes, encontravam-se… Mas havia uma fuga concertada dos dois lados, sem tiroteio.

Como se pode ver pelo "croquis" supra,  o destacamento de Banjara tinha, a norte, a base IN de Samba Culo, e  sul a base IN de Sinchã Jobel. Os abastecimentos eram feitos por terra, com grandes dificuldades. Às vezes demoravam muito tempo, pelo que era necessário recorrer aos "produtos da terra", isto é, apanhar algum bicho para comer (javalis, pássaros, macacos e, até cobras).


Infografia: © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.


1. O A. Marques Lopes já nos descreveu, em poste anterior (*),  as circunstâncias (que eu diria  insólitas, quiçá caricatas e até burlescas, se não tivessem sido tão dramáticas) em que ele se perdeu no mato e descobriu, atónito, a base do IN em Sinchã Jobel, no decurso da Operação Jigajoga, na noite de 24 para 25 de Junho de 1967.

É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o infermo físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das suas poderosas (mas pouco comvincentes) razões de Estado...

Há 10 anos atrás eu já tinha a visão (premonitória) de que esta história sairia em livro (**):

Na altura, em 2005, fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, o texto que voltamos a reprodzuir, poderia ser o excerto de um livro em curso:

"Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia"....

O A. Marques Lopes é um de nós,  que regressei do inferno e ainda está  vivo para contar, a única diferença talento literário para nos dizer como é que um  homem é capaz de sentir, pensar e fazer numa situação-limite como a guerra. Naquele já longínquo  dia 25 de Junho de 1967, de manhã, na região de Massomine, perto de uma antiga tabanca chamada Sinchã Jobel, ams barbas dos homens que o queriam matara ou apanhar vivo, o alferes mil Lopes, antigo seminarista,  regressava ao  mundo dos vivos, sob a proteção dos bons irãs da floresta, exclamando e ordenando aos bravos do seu pelotão:  "É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui".



2. Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte II):  Depois de uma noite, perdido, na bolanha, de 24 para 25 de junho de 1967, "é tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!... Bora, Braima, bora, rapaziada, toca a sair daqui" (***)...


Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... Eles não nos deixaram aproximar mais por outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas...

Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.

Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me veem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau!

Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina?

Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exato e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.

Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres[, no seminário], ttnha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.

Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu, aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... Aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... Avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde, por aqui, mais ou menos, estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.

A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo reto. Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio,  era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima.

Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.

Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?...

Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.

A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...

Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa. Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas.

A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa. Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.

Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.

Relaxa e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "IN" e o "turra" são, de facto, expressões meramente referenciais e sem o significado profundo contido nas palavras "inimigo" e "terrorista". Se não abreviasse, é claro que eu acabava por me cansar a pronunciar as palavras por inteiro. Passaria, enfim, a tratá-los com demasiada familiaridade, teria que me arrimar aos inevitáveis "os gajos", ou "os tipos" ou mesmo "os filhos da puta". Era tratá-los como trato, às vezes, os que me são indiferentes, os que me pisam ou dão um empurrão...

Isto seria, seguramente, o abandalhamento da guerra. Em vez de balas a malta começava a amandar-lhes com nomes feios, a gritar-lhes que fossem levar no olho, que não chateassem, que nos deixassem em paz... Era complicado. Não havia guerra que durasse. Poderia ser uma das consequências, resultante do cansaço pelas palavras difíceis e compridas demais para inserir na linguagem corrente da soldadesca. E poderia dar noutra coisa, se o maralhal não usasse profusamente estas abreviaturas: ao pronunciar por inteiro as palavras "inimigo" e "terrorista" é natural que começássemos a interrogar-nos sobre a correspondência entre o significado e o significante...

Ai estas aulas de linguística!... O que é isso de "inimigo"? Aqui, na terra deles, são eles meu inimigo?... Atacam-me para me roubar, para ficar com o que é meu?... Têm interesses opostos aos meus e atacam-me, por isso?... Para eles, sou eu o inimigo? Venho roubar o que é deles? Tenho interesses opostos aos deles?... Claro, cinco séculos de história, civilização, blá, blá, blá..., como diz o Salazar. O facto é que isso se traduz nos libaneses a dominar o comércio, no nazi Landorf, fugido da Alemanha depois da guerra, a vender quinquilharias aos pretos de Geba.

Eu, aqui, só estou a perder uma coisa: o curso de filologia românica que estes filhos da puta não me deixaram continuar. ... Não me parece que o "IN" seja meu "inimigo". Eu sou, com certeza, o "inimigo" deles. Linguística à parte, isto é mesmo uma situação aberrante.

Há pouco, quando os vi ali todos juntos, ainda pensei em disparar. Acabei por não o fazer e acho que fiz bem. É claro que eles devem ser muitos mais do que os que andam por aqui... E, sei lá, disparar, assim à queima-roupa sem que eles esperassem, sem mais, ainda era capaz de ficar com algum peso na consciência... Os meus anseios nunca foram matar. Só por medo o faria, por necessidade, pela situação.

Tenho encarado isto como uma aventura. A verdade é que nunca desejei vir para a guerra. Se me tivessem dado o adiamento da incorporação, estaria, agora, a terminar o segundo ano de românicas. Eu até gostava daquilo. Mas aos senhores da guerra não interessam os doutores em letras. Se eu estivesse em engenharia ou medicina, isso sim... há sempre pernas e braços para cortar, certidões de óbito para passar, há que fazer quartéis, arame farpado para erguer e picadas para abrir. Para os doutores ou candidatos de letras há que pôr-lhes mas é uma canhota nas mãos. Na guerra não servem para mais nada...

Se eu tivesse continuado nos padres, o mais certo era não ter vindo à guerra ou, então, vinha como capelão, um ofício que, aliás, também faz muito jeito na guerra. Há preconceitos a alimentar, consciências a adormecer e angústias para apaziguar. Sou vítima da vingança concertada dos senhores da guerra e dos senhores da consciência: já que não quiseste reconhecer os imensos benefícios da religião, sentir a honra de pertencer ao número dos eleitos, vais sentir as agruras da guerra... que é um inferno na terra.

Dentro em breve será noite. Já se estendeu sobre a bolanha um manto enorme de sombras, sinal de que o sol se começou a esconder por detrás da grande floresta de poilões que rodeiam a clareira de Jobel.

Já não estou tão calmo e seguro. A previsão do perigo eminente, a expetativa da emboscada ou do ataque repentinos não são nada comparados com um perigo que nos rodeia mas que não sabemos qual é, nada em comparação com este manto de escuridão que se abate sobre nós, que se entranha na minha farda, que me cobre as mãos, as pernas, o local onde estou. As trevas, meu Deus, é o pior que me pode acontecer. Mil vezes a emboscada que desaba sobre o grupo, mas que eu vejo, que acabo por limitar em todas as suas proporções, do que o perigo que só se imagina mas que nunca se vê, nem mesmo quando está em cima de nós.

Nesta terra de ténues ondulações,  a noite surge depressa. Começo a não distinguir as minhas próprias mãos. Não percebo como os outros ao longe as poderão ver. Mas vou fazer o que mandam as regras, barrá-las, e à cara também, com esta lama onde me assento. Mas, antes, vou beber desta água que me tem de molho há várias horas. Os outros já estão também com falta de água...Que remédio, tenho sede. Nunca a fome me atacou durante todo este tempo, mas a sede é um tormento e eu quero que se lixe a limpeza. Vou mesmo beber esta água, agora que já não consigo ver o seu grau de sujidade e inquinação.

Os sons noturnos assumem proporções descomunais em relação aos diurnos. Aquilo que durante o dia me parece uma grande algaraviada, uma sinfonia de cacofonias, aparece-me agora como uma execução em estereofonia. Consigo distinguir todos os sons e vozes de pássaros. Aquilo que me parecia uniforme na promiscuidade de vozes aparece-me agora como o conjunto de várias espécies de pássaros e mamíferos. Não sei identificá-los pelo nome, a não ser o dos macacos, mas sou capaz de os contar através das diferenças de vozes. Na margem da bolanha, entre as árvores, são os macacos e os periquitos que dominam. Aqui, por aqui mais perto, são as moscas e mosquitos que não cessam de zumbir aos meus ouvidos. De vez em quando há um ruído na água. Pode ser um peixe a saltar, mas também pode não ser... Ao longe, um pássaro, penso eu que é um pássaro, lança um pipilar modulado que mais me parece um uivo de lobo. Mas, segundo sei, aqui na Guiné não há desses bichos...

Quem me dera a mim que se ouvissem só os macacos, os periquitos, as moscas e os mosquitos! O que me enerva e causa medo são os mil sons que eu desconheço. Este borbulhar na água pode ser uma cobra e aquele chapinhar mais além pode ser um javali, o resfolegar que vem das palmeiras pode ser uma onça...

Lá mais para a frente, do outro lado da clareira, precisamente daquele sítio onde os guerrilheiros montaram a emboscada, vêm ruídos que parecem provocados por pessoas. Ia jurar que há uma tabanca para estes lados... Como é que eu não me apercebi destes ruídos durante o dia? Seria mais lógico que os ouvisse melhor , uma vez que as pessoas fazem mais barulho durante o dia do que à noite. As marteladas, ou outras pancadas em madeira, deveriam ser mais audíveis durante o dia, quando não há tanta preocupação em manter o silêncio, em não incomodar.

A explicação tem de ser esta: a tal enorme cacofonia diurna, que não deixa qualquer hipótese de identificação dos sons a que nos habituámos no nosso dia-a-dia. Porque a noite não deve ter sons, qualquer um que surja é identificável e sobressai no meio do silêncio, como milhares de pirilampos que, apesar de minúsculos, sobressaem na escuridão sem, no entanto, se conseguirem juntar num sol que torne a noite em dia.

Distingo perfeitamente os toques na madeira. Pilão ou martelo, é bater de gente. E surgem agora sons que só podem ser vozes de gente também. Então, contrariamente ao que me garantiram, esta zona não é desabitada! Isto explica a emboscada. Entrei no terreno deles, com tanto à vontade... e estupidez! Tenho de falar com o palerma do major de operações... se conseguir sair daqui.

De olhar no escuro, tentando fazer luz com os olhos e com a mente, ver mais além do que esta escuridão me permite, na expectativa. Esta noite faz-me lembrar outras noites que passei à janela, de olhar perdido no escuro ou na barreira de ciprestes que cercavam aquele pequeno mundo do seminário. Mas bem pior estava então, apesar de tudo. Neste momento, estou esperando, pacientemente; nervoso, mas não desesperado; receoso, mas não em pânico; sozinho, mas não perdido. Não estou triste, não choro e não desejo a morte. Pelo contrário. Impaciente, desesperado, perdido, em pânico e desejando a morte... assim era eu, não há muito tempo. Passaram-se apenas três anos. Tinha vinte anos e não tinha outros horizontes senão uma vida de torturas e recalcamentos, ou o inferno como alternativa.

Mais do que as obrigatórias meditações em conjunto no seminário, no meio dos maus cheiros dos "irmãos em Cristo", de olhos fechados em atitude piedosa, este é o ambiente ideal para meditar, ligado pela escuridão à natureza. Naquelas mais de mil noites nunca consegui estar sozinho, apesar de me lamentar de uma solidão terrífica. Os outros e a organização estavam sempre presentes em mim, quando lutava sozinho para me ver livre deles. Por isso mesmo. Enquanto tive dúvidas nunca me largaram. Só me deixaram quando eu passei a ter a certeza do que queria e do que não queria.

Aqui, na guerra, não há outra coisa que me ligue aos outros a não ser o desejo de sobrevivência, e este desejo liga-me efetivamente, mas não o sinto como prisão. Pelo contrário, liberta-me para este tipo de meditações, para aceitar e tirar partido desta noite, para estar com todos no desejo de regressar, de não morrer, de viver. Lá, não. Os laços que me prendiam aos outros só me arrastavam para desejos de morrer e de os odiar. Aqui, na guerra, não há perigo de ter dúvidas, a certeza surge-nos dos factos do dia-a-dia. É tudo muito real, muito direto, entra-nos pelos olhos dentro, por todos os sentidos. Quando se nos revela assim, e surge sempre, mais tarde ou mais cedo, é um facto que faz parte de nós e é, portanto, uma certeza. Quando vim para cá não sabia nada o que era esta guerra. Mas já estou a saber o que é.

Tenho-me interrogado variadas vezes sobre as razões por que entrei para o seminário. Mais para carpir uma mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sei. Foi a minha condição de menino pobre que me pôs perante essa necessidade. Mas nem por isso, naturalmente, fui responsável por essa decisão. A necessidade foi dos meus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se arvorou em meu protetor. As pressões daí decorrentes, o meio em que passei a ter de me mover, fizeram o resto.

À distância, sinto em mim uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-me mais cedo dessa catástrofe que sucedeu na minha vida. Mas, nem sei se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspetiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se cheguei, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?...

Já tenho desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não consigo. Numa guerra, nesta guerra em que me encontro como interveniente ativo, a fuga, os desejos, a esperança, a ideia de quem morre são os outros e não eu, tudo está depositado em Deus, que me há-de proteger e guardar... Mas porquê a mim e não aos outros?... aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos?

É uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afoga e perde naquilo que a minha formação religiosa chama "os insondáveis desígnios de Deus"... Quer dizer que, se eu morrer ou ficar estropiado, foi desígnio de Deus, se eu sair bem disto tudo, será também vontade de Deus. E posso, desta maneira, encontrar em Deus a "explicação" de todas as coisas, poderei continuar tranquilamente a fazer a guerra. Posso matar, porque nos desígnios de Deus tanto pode estar o castigo como o prémio. O desígnio que eu mate, o desígnio que o outro morra. O prémio para mim que matei e não morri e o castigo para o outro que não me matou e morreu? Ou serei eu castigado porque matei e o outro terá um prémio na outra vida porque não me matou? Se eu comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, serei condenado às penas eternas ou entrarei no rol dos bem-aventurados? Serei condenado ou premiado se tiver obedecido aos meus "legítimos superiores", àqueles que " têm sobre si a pesada responsabilidade de governar e mandar"? Serei condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César". A citação fatal do diretor do instituto filosófico onde andei, quando seminarista, o qual, desta forma, tentava calar as minhas dúvidas. Que confusão, se o que interessa a César vai contra o mandamento "não matarás"! É uma resposta hipócrita. Procura justificar a passividade da Igreja perante a guerra... Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra?

Antes de vir para a Guiné, o meu batalhão foi obrigado - é o termo - a assistir a uma missa na parada do quartel. Tal como no tempo das cruzadas, quando se partia para combater os infiéis e libertar os lugares santos. O padre capelão, o senhor major-capelão, fez uma eloquente exortação ao cumprimento do dever para com a pátria, da necessidade de defender os valores da civilização ocidental e o património legado pelos nossos antepassados... Enfim, a mesma conversa dos senhores da política, abstrata, situada em algo que não me toca, em valores que não compreendo, em património que não possuo. E, ainda por cima, era um dos padres do seminário onde andei, um que eu bem conhecia.

Pode a Igreja justificar a sua atitude perante a guerra pela necessidade que há de acompanhar, assistir os soldados que passam dias e meses, anos até, de profunda angústia e desespero? Que o objetivo não é apoiar a guerra, mas sim servir de consolo religioso a quem necessita da religião? Para mim, não serve. Tentando diluir as contradições que naturalmente emergem da mente de quem é religioso, está-se a colaborar na manutenção de uma situação que o soldado não deseja instintivamente, está-se a diluir as dificuldades para que essa situação indesejável se mantenha o máximo possível. E, o que é mais grave para mim, não se responde às angústias e interrogações de quem se vê confrontado com uma realidade que é pura negação de tudo o que lhe incutiram de bom, de justiça, de amor, de fraternidade.

Utilizando uma única frase dos Evangelhos - dar a César o que é de César - subverte-se todo o restante texto dos livros sagrados. Por oportunismo, pela mais rematada hipocrisia. São muitas as críticas que tenho a fazer àqueles que dizem representar-te cá na terra, ó Deus. Mas confio que me hás-de ajudar a sair deste aperto.

Tenho os membros anquilosados de tanta imobilidade. A pele das mãos está toda encarquilhada pelo permanente e prolongado contacto com a água. O mesmo deve suceder com os pés e com o material, devo ter tudo mirrado e encolhido.... Sinto nas mãos, nos braços e pelo corpo todo uma imensa comichão que, curiosamente, nunca tive vontade de coçar. Estou cheio de bolhas e ampolas, que só vejo nos braços e nas mãos mas que devem estar por todo o corpo, até na cara. À minha volta há milhares, talvez milhões de mosquitos e moscas tzé-tzé. A minha esperança é que só tenha sido picado por novecentas e noventa e nove moscas do sono... segundo dizem as estatísticas, só uma em mil é portadora da doença do sono, não é?... De qualquer modo, não sei se me fariam efeito: estou tão cheio de vacinas contra tudo que essa tal milésima, se me picou, deve ter morrido intoxicada, com certeza...

Devo ser um nojo completo. Uma merda da cintura para baixo.

Começa a surgir uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma luz branca muito mortiça. Por aqui, começo a vislumbrar uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Há outro silêncio neste despertar da mata e dos seres que a povoam. Imagino-os dolentes, agora conscientemente enrolados sobre si mesmos, sem se mexerem, como fazem inconscientemente durante o sono. Procuram forçar o prolongamento desse sono. Por isso, este, agitado ou tranquilo, deu lugar a modorra prolongada e estática, intencionalmente silenciosa, para não acordar. No entanto, porque não é só o ouvido que está desperto e atento, como sucede na mais completa escuridão, toda esta imensa calma que precede a agitação e luta de mais um dia na vida da natureza é apenas perceptível ao nível dos sentimentos mais íntimos do meu ser, pois a luz que penetra nos meus olhos desperta nestes uma segunda dimensão que faz sentir as coisas de uma forma avassaladora e total. Tudo aquilo que povoou a minha mente, os ruídos que se apossaram de mim através do ouvido, tudo isso passou a estar submerso pela impressão visual do que me é exterior. Durante estas horas de vigília noturna estive dominado e cercado por mim mesmo, por toda a minha vida, pelo passado.

Agora não. Sinto que tudo se vai diluindo, que a realidade externa se apossa de mim, que a posse da totalidade dos meus sentidos me introduz novamente no seio do meu destino, composto também de exterior. É uma visão "ruidosa", na medida em que este contacto com a realidade da manhã consegue abafar o domínio exclusivista do ouvido e do raciocínio. O conjunto harmonioso da vida não deixará que prevaleçam as sensações parcelares e limitadas. A total percepção da realidade não deixará que me deixe dominar por um único dos seus aspetos. A perfeita e clara perceção em todos os sentidos, agora, não deixará que me domine o medo do desconhecido ou do indefinido.

É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui.

A. Marques Lopes

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João

Guiné 63/74 - P14699: Parabéns a você (916): Manuel Traquina, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14692: Parabéns a você (915): António Azevedo Soares, ex-1.º Cabo At do CMD AGR 2957 (Guiné, 1968/70)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14698: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (11) - Reportagens da Época (1967): Buruntuma

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Prezado Luis Graça:
Envio mais alguns dados, respeitantes aos últimos dias do mês de Junho de 1966, que poderão ser publicados.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

11 - Buruntuma

Dia 24 de Junho de 1966

Ainda cedo saí de Nova Lamego escoltando seis viaturas carregadas de géneros alimentícios.
Deixando para trás uma imensa nuvem de pó as viaturas fizeram-se à estrada.

Ao fim de três quilómetros uma viatura avariou-se e a coluna-auto imobilizou-se na estrada.
Impacientes, os soldados murmuravam:
- Raios partam as viaturas... Linda maneira de entrar na guerra...

Apoiando-os, um furriel insinuava, convencido:
- Sempre a mesma porra... Mandam-nos escoltar umas viaturas que já deviam estar na sucata. Isto é tudo uma porcaria...

Como não havia solução para a avaria mandei distribuir a carga que a viatura transportava pelas restantes, pedi o reboque para levar o camião avariado ao ponto de partida e segui viagem.

Em Piche juntaram-se à coluna duas viaturas militares e quatro civis.

No destacamento da Ponte do Caium esperava-me um pelotão da companhia de Buruntuma, que picou a estrada.

Sem qualquer incidente atingi Buruntuma pouco depois do meio-dia.

Estrada Nova Lamego-Buruntuma

Os cerca de quarenta homens que comandava praticamente nada almoçaram após a chegada.

Em Nova Lamego não nos distribuíram a ração de combate com a desculpa de que haveria uma refeição quente quando chegássemos a Buruntuma...
Em Buruntuma não havia a tal refeição quente porque não esperavam que chegássemos antes do almoço.
Valeu a todos a camaradagem da guarnição local e o desenrascanço imaginativo de cada um.

De tarde o capitão levou-me a casa de um comerciante branco que nos ofereceu Whisky com Água Castelo.
Diz-se que o homem é um ex-degredado que, após o cumprimento da pena, ficou por estas paragens.
O capitão de Buruntuma é um homem de aspecto pachorrento, alto e gordo, compreensivo e bondoso. Parece-me um homem inteligente e sensato.

O aquartelamento e a povoação localizam-se quase sobre a linha da fronteira com a República da Guiné-Conakry.
É a única povoação no raio de alguns quilómetros.

A guerra obrigou as populações ao abandono das tabancas de que, um pouco por todo o lado, ainda restam vestígios.
Uns retiraram-se mais para o interior do território português. Outros fugiram para o Senegal, ou para a República da Guiné-Conakry. É principalmente entre esses que fugiram, que os terroristas recrutam os seus combatentes.

À noite ouviu-se um tiro dentro do aquartelamento. Gerou-se alguma confusão mas, afinal, não se tratou de ataque do inimigo.


Dia 25

De manhã saí com duas secções e alguns “milícias” à procura de lenha para a cozinha do quartel. Carregaram-se, sem grande dificuldade, duas viaturas de madeira seca, utilizada na construção das tabancas abandonadas.
O ambiente que reina entre a tropa é bom.
O calor não deixa de ser um martírio mas o trabalho ao Sol não é muito.

À noite, pelas dez horas, não longe do arame farpado, ouviu-se uma explosão, talvez de granada de morteiro.
A tropa manteve-se serena e não aconteceu mais nada.
No entanto, basta isto para manter todas as pessoas num “stress” permanente, num ambiente de medo e angústia... São os nervos sempre à flor da pele...


Dia 26

Às quatro horas e meia da manhã o capitão acordou-me e deu-me ordem para mandar equipar o meu pelotão com a finalidade de abrir o itinerário até ao Caium.

Piquei a estrada de Buruntuma a Caium, escoltei uma coluna de viaturas de Caium, Buruntuma e de novo até Camajábá.
Pela manhã, quando nos dirigíamos ao Caium, ouviram-se rajadas de armas automáticas lá para os lados da fronteira.
Estes disparos têm um efeito psicológico bastante negativo. Obrigam-nos a uma tensão quase permanente.

Ao entardecer rebentou uma armadilha colocada pelas nossas tropas perto da fronteira.
Um alferes da guarnição local com o respectivo grupo de combate, reforçado por alguns dos soldados do meu grupo, comandados por mim, foi verificar as causas da explosão.
Junto do local das armadilhas, que não sei se era em território português, ou da Guiné-Konacry, encontravam-se duas vacas quase mortas. Com alguns tiros de G3, acabou-se-lhes com a vida.
Imediatamente, do outro lado da fronteira, bastantes armas pesadas começaram a disparar sobre Buruntuma, enquanto que, as armas ligeiras, alvejavam o terreno fronteiriço onde nos encontrávamos.

Cautelosamente conseguimos retirar do local, mais para o interior, sem, contudo, conseguir entrar no nosso aquartelamento que, durante cerca de uma hora, ficou sob o fogo cerrado das armas do inimigo.
Abrigados por um ligeiro declive do terreno, e pela protecção do arvoredo, sentíamos nos ares o silvar das granadas que, às dezenas, choviam sobre Buruntuma.
Aqui e além as explosões provocavam incêndios, principalmente nas casas dos nativos, cujo telhado era feito de capim.

Quase em simultâneo as armas de Buruntuma também abriram fogo. As bazookas e o canhão sem recuo vomitavam granadas ininterruptamente. Os morteiros cuspiam, para o outro lado da fronteira, os seus tenebrosos projécteis. Através das seteiras dos abrigos as metralhadoras consumiam centenas de munições. As armas ligeiras, os canos já aquecidos, disparavam, um pouco ao acaso, contra um inimigo que não tinham capacidade de atingir.
De um e outro lado era ensurdecedor o ruído da fuzilaria e o detonar das granadas.

Anoiteceu.

De ambos os lados começou a abrandar a intensidade do combate.
Lentamente, o silêncio foi caindo sobre a povoação martirizada. Era o fim de uma pequena batalha.

Cautelosamente, os soldados que estávamos fora do aquartelamento, longe da protecção dos abrigos subterrâneos, fomo-nos aproximando do arame farpado e entrámos no quartel.

Dirigi-me ao posto de socorros. Lá dentro, aguardando tratamento, já havia muitos feridos. Outros, brancos e negros, foram depois chegando.
O médico, que na vida civil era cirurgião, trabalhava afanosamente, ajudado pelos enfermeiros, extraindo estilhaços, colocando ligaduras, injectando soro... Só muito tarde deu por findo o seu trabalho.

Contabilizados os prejuízos verificou-se que havia três mortos entre a população e bastantes feridos tanto entre os soldados como entre os civis.
Para além disso o nosso sistema de transmissões estava inutilizado, as instalações danificadas e alguns indígenas tinham perdido as suas casas.

Trabalhava em Buruntuma um agente da PIDE que, através do sistema de transmissões particular, de que dispunha, alertou Bissau para o sucedido e pediu que fossem evacuados para o Hospital Militar os feridos mais graves.

Eram já altas horas da noite quando nós, os oficiais, nos fomos deitar.
No abrigo onde dormíamos comentavam-se os acontecimentos com alguma insensibilidade.

Já deitado, o capitão murmurava:
- Os filhos da puta não nos deixam em paz...

A guerra para ele era algo a que já estava habituado e pouco o impressionava. Quando em conversa se referia a acções de combate transmitia até a ideia de gostar das sensações da guerra.
Eu sentia-me de certo modo aterrorizado com a baptismo de fogo que, sem o desejar fui obrigado a receber.
Foi um baptismo sério e prolongado... E cheio de calor!...


Dia 27

A noite passou-se rapidamente.
Pela manhã, o que já era hábito na localidade, a tropa levantou-se cedo.
De tronco nu, os oficiais abandonaram o abrigo, subiram para o jeep, deram um volta pela tabanca para verificar os estragos causados pelo ataque, contemplaram as cinzas de algumas moranças dos nativos, as ruínas da capelinha da virgem onde os soldados costumavam rezar, as viaturas danificadas, as paredes das casas esburacadas pelos estilhaços das granadas, e dirigiram-se para o edifício da messe.

Enquanto tomavam o pequeno almoço, descontraído, o capitão comentava:
- O pior foi terem-nos causado bastantes feridos e haver mortos entre a população. Os prejuízos materiais podem remediar-se. São transitórios, superáveis. O sangue é que não tem preço. Mas chegará o dia em que eles (os terroristas) receberão o pagamento com os respectivos juros.

Os alferes apoiavam-no e expunham também os seus pontos de vista.
Espíritos calmos e frios, habituados, pela força das circunstâncias, à dureza da guerra, aqueles homens enfrentavam-na com a maior das naturalidades.
Foi no meio deles que a guerra me surpreendeu. Em nenhuma outra parte da Guiné eu teria, por certo, oportunidade de a sentir tão sinistra e tão dura.

*

A manhã ia alta.
O Sol surgia misterioso, quase triste, rompendo, a custo, num céu plúmbeo, carregado de vapores e neblina.

Ao longe, nos ares, sentiu-se um ruído, a princípio quase imperceptível, que foi aumentando de intensidade, até que no céu tristonho de Buruntuma se avistou a “Dornier 27”, a pequena aeronave que vinha proceder à evacuação dos feridos do ataque do entardecer anterior, para o hospital militar de Bissau.
Um pelotão de atiradores deslocara-se já do aquartelamento para a zona da pista de aterragem, que ficava muito perto do arame farpado, para que tudo decorresse com a segurança necessária.

Quando das imediações se transmitiu a ordem para aterrar, o pequeno avião começou a perder a altitude e iniciou a manobra de aterragem.
De repente, a avioneta começou a ser alvejada com rajadas de armas automáticas instaladas do outro lado da fronteira.
Avisado pelas transmissões das tropas terrestres o piloto tomou de novo altitude e manteve-se afastado da localidade.

Entretanto começou uma nova batalha. De ambos os lados os morteiros e as bazookas funcionaram de novo, os canos das espingardas voltaram a vomitar centenas de projécteis, e os tiros do canhão fizeram de novo tremer o céu e a terra.
As explosões sucederam-se por mais de uma hora martirizando, do nosso lado, a população e a tropa de Buruntuma, e do lado deles, República da Guiné-Konácry, a população civil e a tropa estacionada em Kadica, antigo posto fronteiriço.

E o funcionar das armas trouxe de novo a morte e mais sofrimento às povoações martirizadas.

De repente, quando a batalha parecia não ter fim, surgiram no céu dois bombardeiros da FAP, em auxilio das forças terrestres.
Eram os FIAT, aviões a jacto, que pela primeira vez fizeram a sua aparição no teatro de guerra da Guiné.
Os aviões salvadores sobrevoaram, a pequena altitude, a área do combate, e foi o suficiente para que o inimigo calasse as suas armas.

Entretanto, chegavam mais quatro aviões T6, que se mantiveram nos céus de Buruntuma até que os helicópteros e a “Dornier 27 levassem os feridos para o Hospital Militar.
Mais tarde soube que os aviões FIAT que sobrevoaram, naquela manhã, a tropa de Buruntuma, andavam ainda desarmados.
Bastou apenas o efeito psicológico dos seus voos rasantes para que o inimigo se retirasse.

As consequências do ataque foram graves. Tivemos um militar que morreu com os ferimentos causados pelos estilhaços de uma granada, dois alferes feridos, um dos quais com bastante gravidade, e bastantes feridos ligeiros.
Entre a população civil voltou a haver mortos e feridos.

*

Fixei, com dor, aquele corpo quase nu, mutilado e coberto de pó.
E senti pena, medo, tristeza, horror...Quantas coisas mais...
Ajudei a retirar do abrigo, que não abrigou nada, o corpo do soldado morto, e o sangue, ainda quente, tingiu-me as mãos...
E pensei na morte... A morte que todos pressentimos e adivinhamos à nossa volta, mas que não entendemos.
Li algures, ou alguém me disse ou ensinou, que a alma é igual à diferença entre o cadáver e o homem vivo. E que diferença avassaladora e enorme!...

Olhando a corpo inerte e ensanguentado do jovem soldado, assim de forma tão súbita e cruel arrancado ao fulgor da juventude e à vida ainda por viver, pensei:
- O corpo é o nada!... A sombra!... A miragem!... A ilusão!...
A alma é tudo!... Confunde-se com a vida!...
E dizem-nos tantas mentiras sobre a morte!...
Ensinam-nos que é isto... Que é aquilo...
E, afinal, o que será?
Ninguém sabe!...
É uma experiência individual, a última, da qual, que se saiba, ninguém regressa para dizer como é.
Acontece à nossa volta sob as formas mais bizarras
É o passar sereno e imperceptível... E é, também, convulsão e violência...
É suave como o lento apagar de uma ténue luz, e é rápida e fogosa quando chega montada no veloz projéctil cuspido por uma espingarda, ou no estilhaço quente de uma qualquer granada de morteiro...
Mas, é sempre ela... O fim... Ou, talvez, o princípio de uma realidade nova...
De uma realidade que todos desejam que nunca chegue... Que permaneça longe... Muito longe... Para além do tempo.
Mas, que me leva a estar aqui a martirizar-me com estes pensamentos, se não é com este tipo de ideias, ou de ilusões, que a vida se constrói? O mais importante é, efectivamente, pensar em viver... É pensar no hoje... No amanhã...No futuro que é preciso construir...


Dia 28 e seguintes

O major das transmissões, do Quartel-General, veio instalar um novo sistema de rádio.
Mandaram para cá, também, um pelotão de Cavalaria, com as auto-metralhadoras blindadas.
A tropa e os nativos iniciaram a construção de novos abrigos, e a melhoria dos já existentes.
Quem sabe...Talvez estejam para vir dias ainda piores...
Temos que estar preparados para o que der e vier... Buruntuma fica mesmo junto da linha de fronteira e os gajos não têm grandes dificuldades em se aproximar do aquartelamento para nos atacar.
Eles têm a protecção de um santuário.
Nós encontramo-nos em terreno descoberto.

*

Buruntuma esqueceu depressa aqueles dias terríveis e regressou a uma vida pacata e normal, feita do labutar diário dos seus homens, das orações balbuciadas em comum, na pequena mesquita, várias vazes ao dia, e da esperança em Alaah, o Deus que maioritariamente este povo adora.
As populações enterraram os seus mortos, com mágoa e preces, e embora vivendo no receio de um novo ataque, ao verificarem que chegavam mais reforços militares continuaram a confiar na protecção do homem branco.

De além fronteira, quando os ânimos se acalmaram, começaram a chegar algumas informações trazidas pelos nativos que se deslocavam ao nosso território.
Os ataques que sofremos tinham sido concretizados pelas tropas regulares da República da Guiné-Conakry, aquarteladas em Kadica. Mas, o preço que pagaram foi bastante pesado. Grande parte das suas instalações ficaram arrasadas pelo fogo dos nossos morteiros, e a guarnição, devido às pesadas baixas sofridas teve de ser imediatamente substituída.

Por outro lado, vendo quanto era frágil a protecção que o Governo de Conakry lhes garantia, as populações começaram a abandonar a zona fronteiriça, o que para as nossas tropas não deixou de ser negativo.
Com efeito, não havendo tabancas habitadas e movimento de pessoas, deixa de haver fluxo de informações sobre o movimento das forças da guerrilha e sobre a sua localização, o que dificulta a programação das nossas actividades.

A partir do ataque, como nas casernas e messes a protecção contra armas de tiro curvo (morteiros) era quase nula, todos os soldados passaram a dormir em abrigos subterrâneos.
À entrada dos abrigos, que mais não eram do que pequenos antros, improvisaram-se pequenas plataformas cobertas com panos de tenda, e todas as noites permanecíamos ali jogando as cartas e bebendo Whisky. Só mesmo quando os mosquitos se mostravam insuportáveis, ou os últimos cubos de gelo acabavam por derreter-se, ao mesmo tempo que o Whisky desaparecia da garrafa, cheios de sono, íamos dormir.

De noite, quando acordava, sentia os ratos, sem grandes cuidados, mexerem-se por entre os toros da madeira de que era feito o tecto do abrigo.
Pelas seteiras daquela espelunca, durante a noite, entrava uma aragem muito branda, ligeiramente fresca, que enchia de prazer o meu corpo seminu, estendido sobre a cama, que em simultâneo ia ficando coberto pelo pó que os ratos, ao deambular pelo tecto do abrigo, iam soltando do madeirame.

As noites passavam-se depressa e o despertar era sempre muito cedo.
Na messe, ao pequeno almoço, havia sempre café com leite condensado, chá gelado e pão com manteiga.
Ao meio da manhã era sempre costume fazer-se algum petisco.

De quando em quando, de jeep, fazíamos visitas à tabanca.
Era sempre o capitão a conduzir a viatura.
Ele andava sempre em tronco nu, muito à vontade, exibindo sem qualquer complexo os quilos de banha que se lhe escapavam dos calções, superiormente apertados por um cinto de lona.
Ele parava a viatura à porta das palhotas, recebia cumprimentos da população que o estimava, abraçava-se às bajudas que se lhe vinham sentar sobre os joelhos e, sempre a sorrir, o jeep superlotado de criançada, regressávamos ao quartel..

E foi assim que Buruntuma esqueceu os últimos dias de Maio de 1966, o terror e a morte, o sangue e as lágrimas, o desespero e o ódio, regressando a uma existência pacífica, despreocupada e feliz, da qual todos os homens sentem a fome.
Após uns dias de pesadelo, sombrios e sinistros, a gente boa e simples desta terra teve de novo a existência calma que merece.

As preces a Allah, o Deus que este povo adora, e a quem se reza muitas vezes ao dia, puderam de novo, serenamente, sair dos lábios destes muçulmanos bons e generosos, convictamente devotos.
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (10): Operação Cernelha

Guiné 63/74 - P14697: Inquérito online: "Os 'nosso filhos da guerra' deveriam poder ter acesso à nacionalidade portuguesa"... A grande maioria (84%) dos respondentes (num total de 94) está de acordo


Foto de Júlio Tavares (1945-1986), publicado no blogue da sua filha Marisa Tavares, Are  you my brother ? (http://omadragoa.blogspot.com/ ) (*).

 O Júlio Tavares, mais conhecido por "O Madragoa",  foi sold cond auto, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69), a mesma unidade a que pertenceu o nosso saudoso Victor Condeço (1943-2010).

O blogue foi criado em 2010, com o objectivo de encontrar um irmão  guineense, um filho que o seu pai terá tido em Catió, conforme confissão feita por ele na hora da sua morte, em 1986. Qualquer informação sobre o paradeiro do seu meio-irmão guineense (,hoje com 46/47 anos, se  ainda estiver vivo,) pode ser enviada para o email da Marisa Tavares, hoje canadiana,  e de quem também já não temos notícias há muito:  mt_iphone@rogers.com



I. SONDAGEM: OS "NOSSOS FILHOS DA GUERRA" DEVERIAM PODER TER ACESSO À NACIONALIDADE PORTUGUESA


Resultados finais (n=94):


1. Discordo totalmente  (n=1) / 2. Discordo  (n=1)  (2%)

3. Não discordo nem concordo / Não sei  (n=13) (14%)

4. Concordo (n=38) (40%)


5. Concordo totalmente  (n=41) (44%)


A sondagem fechou às 22h do dia 30 de maio p.p.


II. Comentários,  para quê ? 

A grande maioria dos amigos e camaradas da Guiné, leitores deste blogue, estão de acordo quanto á possibilidade de atribuição da nacionalidade portuguesa àqueles/as dos/as filhos/as, concebidos/as durante a guerra colonial (grosso modo, entre 1961 e 1974), filhos de pais, militares portugueses,  e de mães guineenses.

A nossa sondagem parece ser conclusiva: 84% dos respondentes (numa amostra não aleatória de 94 votantes) está de acordo com a proposição, segundo a qual "os 'nossos filhos da guerra' deveriam poder ter acesso à nacionalidade portuguesa", se assim o desejarem ou requererem.

Os também conhecidos como filhos do vento poderão ter hoje entre 40 e 50 anos e, no caso da Guiné-Bissau, não deverão ultrapassar os 500 indivíduos de ambos os sexos, a viver em Portugal e a Guiné-Bissau, segundo estimativas da Conservatória de Registo Civil de Bissau que recebe os pedidos de nacionalidade com base na paternidade portuguesa (Fonte: Catarina Gomes, "Embusca do pai tuga", Público, 14/7/2013).

 A Associação "Fidju di Tuga", com sede em Bissau, que luta pela defesa dos direitos destes homens e mulheres, achava a estimativa conservadora. O mesmo pensam outros observadores (e atores) da realidade guineense como o nosso amigo Cherno Baldé.

A jornalista Catarina Gomes, que é uma profunda conhecedora deste dossiê, recorda a situação, algo similar, dos filhos dos soldados americanos no Vietname:

(...) "A história de guerras em que os combatentes que vão lutar fora do seu país deixam filhos não é uma realidade nova. No século XX, há, por exemplo, casos de alemães que, na Segunda Guerra Mundial, deixaram filhos de francesas que depois foram ostracizadas.

"Nos Estados Unidos, os filhos dos soldados americanos com mulheres vietnamitas até têm nome, chamam-lhes amerasians (fusão das palavras americanos com asiáticos). De tal forma o assunto se tornou público, que estes 'filhos do pó', como eram conhecidos no Vietname - cresceram muitos deles em orfanatos ou tornaram-se sem-abrigo - ganharam direito ao estatuto de imigrante americano de forma automática. Em 1987, o Amerasian Homecoming Act deu-lhes esse direito, sem necessidade de haver provas de paternidade, bastava terem a mínima presença de traços físicos ocidentais. 

"Ao abrigo da lei, emigraram para os Estados Unidos 26 mil filhos e mais 75 mil dos seus familiares.
Um estudo publicado no Journal of Multicultural Counseling and Development sobre este universo concluiu que 76% desejavam conhecer os seus pais, mas só 33% sabiam os seus nomes. Outros 22% tinham tentado estabelecer contacto, mas só 3% tinham tido a oportunidade de conhecer os seus pais biológicos" (...) (Fonte: Catarina Gomes, "Embusca do pai tuga", Público, 14/7/2013).

Pode perguntar-se: amigos e camaradas, o que é que o nosso blogue pode fazer, mais e melhor, por estes "nossos filhos da guerra" ? Para já vai dando visibilidade a um problema que era também, até há alguns anos atrás, mais um dos "esqueletos guardados no armário" da história da guerra colonial.

A Catarina Gomes tem um endereço de email expressamente destinado ao envio de informações julgadas relevantes para "a busca destes filhos de ex-militares portugueses":
filhosdovento@publico.pt.

O seu trabalho de investigação jornalístico já se estendeu entretanto também a Angola. No dia 29 de maio último, ela voltou á Guiné-Bissau, "por sua conta e risco". Ou seja, ele já não é apenas uma jornalista, é uma também  ativista na luta pela defesa dos direitos destes homens e mulheres, "nossos filhos da guerra",  que carregam às costas um passado de humilhação. discriminação e sofrimento. Na realidade, é esperado que os governos de Portugal e da Guiné-Bissau possam fazer algo mais por estas vítimas, colaterais, da guerra.

Apraz-nos registar, por outro lado, que a reportagem Filhos do Vento, de Catarina Gomes (texto), Ricardo Rezende (vídeo) e Manuel Roberto (fotografia), foi distinguida, em 2014, com o Prémio Gazeta na categoria Multimédia, atribuído pelo Clube de Jornalistas.

E, por fim, recorde-se que não são apenas os filhos (guineenses) a procurar o "pai. tuga".. São também os irmãos (portugueses) a procurar os irmãos guineenses... Recorde-se aqui o caso, comovente,  da Marisa Tavares, que vive no Canadá (*). O seu blogue ainda continua ativo; Are you my brother ? [Em português, és meu irmão ?], sinal de que ainda não encontrou o irmão de Catió, que a estar vivo deverá ter 46/47 anos...  O pai, ex-sold cond auto, esteve em Catió e Ganjola, entre 1967/69 (vd. foto acima).

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quarta-feira, 3 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14696: Efemérides (192): finalmente uma justa homenagem às enfermeiras paraquedistas, no 10 DE JUNHO de 2015; programa do Encontro Nacional dos Combatentes no próximo 10 de Junho, em Belém, Lisboa (Rosa Serra)

1. A nossa Camarada Enfermeira Paraquedista Rosa Serra enviou-nos o programa das cerimónias do próximo 10 de Junho - Encontro Nacional dos Combatentes em Belém. 







Caros Amigos e Amigas:


Se quiserem reencaminhar para os vossos amigos e conhecidos tal como estou eu a fazer, aqui envio o programa para o dia 10 de Junho. 

Beijinhos,  Rosa


Vivam, bom dia. 

Envio este poster com o programa do Encontro Nacional dos Combatentes no próximo 10 de Junho em Belém.

Este ano teremos finalmente uma Homenagem ás Enfermeiras Paraquedistas, acto da maior justiça e satisfação para todos nós.

Convocamos todos a participarem e a divulgarem esta tão importante Cerimónia!

Francisco Van Uden 
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

31 DE MAIO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14682: Efemérides (191): Aquele dia inextinguível (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

Guiné 63/74 - P14695: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I): Op Jigajoga, 24 de junho de 1967, o meu dia de São João


Guiné > Zona leste >  Carta de Bambadinca (1955) > 1/50 mil > Posição relativa de Sinchã Jobel, no regulado de Massomine. Bambadinca ficava a sul, e Bafatá a leste.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)


I. Por sugestão do nosso grã-tabanqueiro nº 2 (em termos de antiguidade), Sousa de Castro,  e por empenho do nosso coeditor Carlos Vinhal, resolvemos republicar alguns postes do A. Marques Lopes, e nomeadamente sobre Sinchã Jobel, uma base ("barraca") do PAIGC, em pleno coração da Guiné, na zona leste, no regulado de Mansomine, a norte de Geba. São os postes nº 35, 36, 39, 40 e 45... Mais tarde, o A. Marques Lopes escreveu um outro, o nº 763, na sequência de uma das suas viagens de "viagem de saudade". Fizemos a revisão de texto (e atualizámos o texto de acordo com a ortografia em vigor). (*)

Como muito bem lembra o Sousa de Castro, "são postes publicados há 10 anos, numa altura em que o número de tabanqueiros era diminuto, o blogue [, I Série,] era visto por poucas pessoas", pelo que, em sua opinião, "deveriam voltar a ser reeditados, não só estes como muitos outros".

Pois aqui vai a nossa resposta ao repto do Sousa de Castro, Recorde-se, entretanto,  que o A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situção de reforma, foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968)  e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), era membro, em 2005,  da direção da delegação do norte da Associação 25 de Abril (A25A), e é em termos históricos, o nosso quarto grã-tabanqueiro mais antigo, depois de mim, do Sousa de Castro e do Humberto Reis.

Por outro lado, ele acaba de lançar o seu primeiro livro de memórias "Cabra-cega: do seminário à guerra colonial" (Lisboa, Chiado Editora, 2015),  (**) E as estórias/histórias de Sinchã Jobel não podiam deixar de lá entrar... (LG)



Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > Dois homens que combateram, um contra o outro, em 1967/68: nosso camarada A. Marques Lopes e o comandante do PAIGC Lúcio Soares. (***)

Foto: © Xico Allen (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


II. Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte I)


1. Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel (*). Sem querer, fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, ministro da Defesa. O responsável político era Cabral de Almada, conhecido como comandante Gazela, que foi depois vice-presidente da Assembleia Nacional Popular.
Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, “mas teve de ser assim”...)... e demos um abraço de despedida.

O objetivo do que mando hoje é lembrar tudo aquilo que nenhum de nós pode esquecer. Para mim também pode ser a, tão vilipendiada, por alguns, catarse de mágoas e fantasmas, não tenho problemas em ter consciência daquilo que fui e daquilo que sou.

2. Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967:

"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas no regulado de Mansomine, ataques a tabancas, a aquartelamentos e outras flagelações. Deve existir algum acampamento que lhe sirva de base para a execução de ações sobre as NT e populações que nos são fieis.

"Missão:

"Assegura a ocupação do Setor, tendo em atenção os regulados da faixa oeste e as linhas de infiltração que conduzam ao interior. Deteta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no setor, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afetadas.

"Força executante:

- 1 Gr Comb da CART 1690 reforçada 1 PEL MIL/CMIL 3 [Dest A]
- 1 PEL do EREC 1578  [Dest B]

"Desenrolar da acção:

"O PEL REC/ EREC 1578 saiu de Bafatá pelas 05h00, tendo-se-lhe reunido em Sare Geba o Gr Comb da CART 1690 e em Sare Gana o PEL MIL. Entretanto o Dest da CMIL 3 em Sare Madina efetuava a picagem do itinerário Sare Madina-Ponte Rio Gambiel.

"Em Sucuta (Madina Fali) o Dest A iniciou a progressão apeada em direção a Sinhã Jobel e o Dest B o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel. Depois de atravessar a bolanha de Sucuta, o Dest A detectou pegadas bastantes recentes, deduzindo que se tratasse de una sentinela IN. Junto a Sinchã Jobel as NT foram emboscadas por um grupo IN numeroso, com mort. 82, LGF, MP e Armas Aut., tendo sofrido um ferido grave e 5 feridos ligeiros. Da reação das NT o IN sofreu 3 mortos confirmados e 3 prováveis.

"Em consequência do pequeno efetivo das NT, da manobra efetuada com pequenos grupos, do grande potencial de fogo IN e da mata bastante densa desapareceu o cmdt do Dest A,  Alferes Lopes, que havia saído de um grupo de manobra para ir a outro trazer um LGF. 

"Como o grupo já não se encontrasse no local previsto pelo Cmdt do Dest A, este viu-se sozinho e a ser alvejado pelo fogo IN pelo que se internou na mata. Pelo que em cada grupo se pensava que o cmdt estava no outro, não foi dado grande importância ao facto. Só depois de reunidos todos os grupos se verificou a falta do cmdt. O furriel, agora cmdt do grupo de combate, resolveu - porque sendo o seu efetivo reduzido, para o potencial de fogo IN, porque tendo 6 feridos, um dos quais grave e tendo ainda o LGF avariado - regressar a Sucuta para pedir reforços. 

"Em Sucuta, onde já se encontrava o Dest B ao corrente do sucedido por via rádio, foi resolvido pedir reforços ao comando do BCAÇ 1877.

"Comunicado ao comando do BCAÇ 1877, saiu imediatamente um Gr Comb / CCS constituído pelo PEL REC Inf e pelo PEL Sap. que juntamente com forças da CART 1690 efetuou uma batida na área de Sinchã Jobel até cerca das 21h30, sem resultado e sem contacto com o IN. 

As forças empenhadas na batida e o PEL EREC 1578, que estava a fazer a segurança às viaturas e o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel regressaram a Geba e Bafatá cerca das 23h30.

"Pelas 09h30 do dia 25 de junho de 1967  saiu o Gr Comb CCS/BCAÇ 1877 que, juntamente com as forças da CART 1690, iriam novamente bater a zona de Sinchã Jobel. Ao chegar a Sare Geba foi-lhes comunicado que o alferes Lopes já tinha aparecido, tendo o Gr Comb CCS regressado a Bafatá.

"Resultados obtidos:

-A deteção de um grupo IN numeroso e bem armado na região;
-A morte confirmada de 3 elementos IN mortos e alguns feridos prováveis.»

3. Foi o meu dia de S. João,  em 1967. O alferes Lopes referido era eu. Fui o principal interveniente, mas não fui eu que fiz o relatório (foi feito antes de eu aparecer e enviado para Bissau logo que apareci, e eu fui dado como desaparecido em combate antes de aparecer).

O que sucedeu é que eu tive uma certa sensação de perigo (o subconsciente a funcionar?...) e deixei duas secções na clareira de Sinchã Jobel (onde havia essa aldeia, mas que estava destruída já) e avancei eu e um furriel com outra para atravessar a clareira. 

Talvez um dia, quando eu acabar de escrever a minha estória, se saiba tudo o que aconteceu. Não vale a pena referir todas as inverdades nele contidas - há gente ainda viva e culpas no cartório. Só uma: eu que estive lá e que passei lá toda a noite (e sobre isso escrevi o tecto "Na bolanha dá para pensar"...). Eu sei muito bem que não morreram nem ficaram feridos quaisquer elementos do IN!

E uma outra coisa: como podem ver pelo início do relatório ("Situação particular"), os burocratas já suspeitavam que podia haver ali uma base de guerrilha. MAS NÃO ME DISSERAM NADA! Eu e trinta mecos fomos carne para canhão!! Por alguma razão deram à operação o nome de Jigajoga: em qualquer dicionário de português, quer dizer jogo da cabra-cega, ou, em sentido figurado, ludíbrio, engano, coisa pouco firme... Foi assim que nos trataram.

Vou contando, depois, mais estórias de Sinchã Jobel.

_________________

Notas do editor:

(*) Vd, poste de 30 de maio de 2005 > Guiné 63/74 - P35: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

(**) Vd. poste de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14662: Agenda cultural (403): Lançamento do livro de memórias "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", Biblioteca Florbela Espanca, Matosinhos, 3 de junho, 15h30: convite do nosso camarada A. Marques Lopes, cor inf DFA, reformado

(***) Vd. poste de 16 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P761: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)

(..) Desta vez, este encontro não meteu tiros, como sucedeu naquele dia 24 de Junho de 1967, durante a operação Jigajoga (...). Ao invés, tivemos que nos haver, em conjunto, com os belos pratos do restaurante Colete Encarnado, em Bissau, e isto sucedeu na noite do dia 21 de Abril de 2006, já eu e o Allen estávamos sozinhos (os restantes tinham regressado a Portugal no avião da tarde).

Através do nosso grande amigo Pepito, consegui o telefone do comandante Lúcio Soares, convidei-o para jantar e ele acedeu prontamente a estar comigo e com o Allen. Não tenham dúvidas que foi um encontro emocionante para mim, estar com o chefe guerrilheiro que montou a emboscada que me fez ficar uma noite na bolanha de Sinchã Jobel (...) e que, mais tarde, me mandou nove meses para o hospital (...).

Falámos sobre isso, e mostrou ser um homem calmo e comedido. Ele tem agora 64 anos e chegámos, pois, à conclusão que andámos aos tiros um ao outro, eu com 23 anos e ele com 25, eu mandado para lá sem quaisquer objectivos pessoais, a não ser sobreviver durante a missão que me foi imposta, e ele, como me disse, com o objectivo muito assumido de lutar pela independência da sua terra.

Concordámos que foi pena as coisas se terem passado como passaram, que era melhor ter encontrado outra forma menos dolorosa de resolver o conflito imposto.(...)

Guiné 63/74 - P14694: Os nossos seres, saberes e lazeres (97): Tomar à la minuta (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 4 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
Junto mais alguns retalhos alusivos à magnífica cidade de Tomar.
A fatia de leão vai para o Convento de Cristo e depois para a Igreja dos Templários, chamam-na Santa Maria dos Olivais.
Não querendo cansar-vos, informo que a viagem não acaba tão cedo, porque há matas e arvoredos, há o Nabão, há monumentos soltos que nos prendem a atenção, há detalhes de edifícios que são assombrosos, há casas de pasto onde apetece estar, para além do bom comer, há arte, há natureza e acima de tudo a calma peculiar desta cidade que já foi fabril em terrenos de lezíria.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (2)

Beja Santos


O passeio é mesmo despretensioso, qual Salomé a dançar em frente a Herodes, procuro cativar o leitor para os múltiplos atrativos da cidade do Nabão. Já se falou no Museu dos Fósforos, percorreu-se a Igreja da Misericórdia, aqui fica o seu belo teto de caixotão, tão severo como a arte da Contra-Reforma que D. João III impôs lá em cima no Convento, bem perto da Charola Templária, subimos ao castelo e deu-se conta de que a deambulação tem sempre melhores resultados quando se pode contar com guia fiável. O Paço está arruinado, corre-se o risco de olhar para aquilo como boi para palácio. Há que descodificar, ler sinais esfumados, veja-se este fresco que não sabemos interpretar.


Um desses orgulhos efémeros dos fotógrafos amadores tem a ver com os ocasos da sorte, veja-se este céu turquesa, a quase transparência das pedras e o fresco a exigir um comentário, uma contextualização. Por aqui andou quem comandou a Ordem de Cristo, muitos cavaleiros templários e por aqui passam os visitantes ansiosos de contemplar a charola renovada. No fim deste texto, indica-se um link onde o leitor mais interessado encontrará matéria para refletir sobre o futuro deste edifício ímpar, foi sempre um encontro de culturas, é compreensível que continue assim, com muitos acertos e boas intervenções pelo caminho.


É a janela mais bonita que há em Portugal, chamada do capítulo por corresponder à claridade por ela pode entrar para iluminar a Sala do Capítulo, dele se avista, num ângulo espetacular a entrada da charola, D. Manuel I deve ter feito deste espaço um dos acometimentos da sua magnificência, não se poupou a gastos para ser cantado na posteridade, deve ter um entusiasmo muito sui generis, e acertou, ninguém lhe leva à palma, toda a janela é esplendorosa bem como os motivos ornamentais que a cercam.


Não é por acaso que os apaixonados pelo esoterismo, pela cabala e pelos mistérios demiúrgicos aqui vêm buscar sinais de um transcendente que um dia se decifrará mais além das investigações da pujança do estilo manuelino. A guia falou-nos da apoteose entre o mundo terreno e o do altíssimo, aqui bem espelhados pelo génio do cinzel, e o mais curioso de tudo é que as dezenas de visitantes olhavam para isto tudo com estupefação, não é só o inesperado, é o delírio caligráfico e, como é óbvio, haver aqui enigmas que permitem que cada um tenha a sua verdade.


Passa-se pelo claustro de D. João III, anda-se pelos corredores conventuais, encontra-se uma cela monástica com a porta aberta. E estamos frente a frente com o delírio manuelino, o cordame marítimo, os elementos náuticos, o céu e a terra, a ascensão até Cristo. É uma pena o líquen amarelecer a pedra, nem quero imaginar a despesa para pôr a pedra ao tempo do século XVI. Há felizmente na cela um assento em pedra para ficar a meditar sobre certas grandezas deste Portugal, este arroubos de uma vontade indómita que certamente foram tidos em conta quando Fernando Pessoa escreveu a Mensagem.


Tem havido intervenções no convento, esta que vos mostro é bem feliz, patenteia a sobriedade com harmonia, gosta-se do equilíbrio da escala, sente-se que tudo resultou bem, nas dimensões, na entrada de luz, no contraste entre alvenaria e a pedra trabalhada.


Houve hesitação: passear à volta do Aqueduto de Pegões ou mostrar ao leitor um outro local de mística, a igreja onde os cavaleiros templários iam rezar antes de partir para Jerusalém. Optou-se pela igreja, aqui o número oito é uma constante: o oito como sinónimo do infinito com oito degraus, oito colunas, sempre o número oito para decifrar. Temos aqui um túmulo riquíssimo, o surpreendente é que é do bispo do Funchal, mas que nunca chegou a essa diocese.


Eis Nossa Senhora do Leite, no altar-mor, deram-lhe o lugar preponderante. Faltou ao fotógrafo mestria para evidenciar que o Menino amarinha o peito da mãe, à cata do seio. Tenho pena de não estar sensível a todos estes sinais religiosos que emanam desta igreja dos templários. Atenho-me a certos pormenores, que me enchem de contentamento, uns como preservação de memória e outros como sinais da antiguidade de Tomar. Ora vejam.




Alinho aqui três imagens: sinal de que temos túmulo em pleno interior da igreja, entre os bancos onde se celebra o culto; uma capela lateral deparou-se uma imagem um pouco exótica, a santa com dois meninos, aqui precisávamos de um intérprete, um dos meninos tem a cabeça coroada; e a cor desta abside é esplendorosa, é do melhor tardo-gótico que conheço.


Sai-se da igreja e temos esta torre, parece mesmo uma torre de atalaia, domina tudo à volta, ou muito me engano ou temos aqui uma porta visigótica, quando os templários chegaram a Tomar já havia bastante história. A meu lado, alguém questionou: não será mesmo árabe? As dúvidas pairavam no ar, um dia destes vou estudar a preceito o que houve antes daqui chegar o cristianismo da Ordem do Templo.


Ficamos hoje por aqui. Fascinou-me esta nesga de céu com nuvens em movimento, o castelo ao fundo, a mata à esquerda e no primeiro plano os vestígios da vida urbana que se adensam centenas de metros à frente. Tenho muita satisfação em mostrar mais coisas ao leitor, outras dimensões da arte, registos dentro do casco histórico, e por aí adiante. Até breve. E não se esqueçam de abrir este link e mergulhar no passado, presente e futuro do Convento de Cristo: http://z3950.crb.ucp.pt/Biblioteca/mathesis/Mat18/Mathesis18_177.pdf
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14669: Os nossos seres, saberes e lazeres (96): Tomar à la minuta (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14693: Fotos à procura de... uma legenda (53): Ou le(ge)ndas e narrativas.. à procura de fotos (Luís Graça)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3



Foto nº 4



Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8



Foto nº 9



Foto nº 10

Lisboa, 2015... Um fotógrafo à procura de fotos para as le(ge)ndas e narrativas de guerra... Talvez o leitor o possa ajudar, ao pobre do editor de serviço... Em boa verdade,  é um lugar solitário, este, como o do sentinela na sua guarita.... Que importa que o blogue tenha tido ontem quase 8 mil visualizações de página, se nem bom dia, boa tarde ou boa noite os apressados visitantes dizem ao camarada que está de serviço no seu posto solitário, à espera das lendas e narrativas dos bravos do pelotão ?...


Fotos: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


 Legendas... à procura das suas fotos

Às veses o pobre do editor 
olha para o ecrã vazio do computador,
vasculha a caixa de correio, 
mexe e remexe no lixo do SPAM 
que lhe chegue todos os dias,
e desespera de esperar por novas da guerra
que já devia ter acabado há manga de luas,
no século passado,
no minúsculo território da Guiné,
que ia do Cacheu a Cacine...

Pode ter acontecido
que a batalha tenha demorado 
mais do que o planeado pelo major de operações,
e que alguém se tenha aleijado,
na ida ou no regresso pela picada do inferno,
e venha agora,
numa improvisada maca feita de ramos de arbusto e de lianas,
aos ombros dos exaustos, famintos e desidratados 
bravos do pelotão.

Pode ser que tenha sido decretada uma pausa na guerra 
para lamber as feridas dos combatentes
ou simplesmente para comer a maldita ração de combate.
Pode ser que o capitão
já tenha pacificado a terra e as suas gentes.
Pode ser que os negociadores da paz
tenham chegado a um acordo de cavalheiros.
Pode ser, quem sabe ?!
Ou pode ser, 
e até ordem em contrário,
que a guerra continue dentro de  momentos.

Dizem, os mais cínicos, 
que a guerra nunca acaba
para os que a fizeram, ganharam e perderam.
Mas dizem também as amantes,
as noivas,
as viúvas,
as bajudas que ficaram por casar,
as madrinhas de guerra
que soldado tem saudade,
saudade mórbida,
como diz a letra do fado,
e que seria  capaz de voltar ao local
onde penou, amou, sofreu, morreu, matou, 

viu e venceu, ou não.
Mas ele nunca fala dessa ideia obsessiva
que o atormenta,
tanto na alcova
como nos convívios das tabancas, 

pequenas e grandes, 
espalhadas por esse mundo fora,
que esse mundo é pequeno
e a sua tabanca deveria ser grande,
mas não o é,

suficientemente grande
para nela poder caber tudo o que haveria para dizer
e nunca se diz,
não tanto por pudor,
mas sobretudo pelo nó na garganta,
que se segue ao dedo emperrado no gatilho.


Nas noites de insónia e de febres palúdicas,
nas emboscadas do medo,
nas corridas loucas de bagabaga em bagabaga,
ao som da costureirinha, da kalash e do RPG,
era a pura adrenalina da coragem animal
que te levava a enfrentar a cabra da morte,
olhos nos olhos,
cornos nos cornos,
mas isso nunca ficou escrito,
muito menos gravado e fotografado
para a posteridade,
os sobrevientes,
os descendentes, 
os vindouros,
os coveiros,
os padres que absolviam os pecados e davam a extrema unção,
os historiadores, ao serviço dos vencedores,
enfim, os burocratas dos contabilistas 
do deve e do haver das guerras perdidas e achadas...

Mas não sabes, palavra de honra,
o que é que esta merda de escrita
tem a ver com as fotos à procura das tuas lendas e narrativas ?!
Sempre ouviste dizer
que uma imagem valia mais do que mil palavras.
Mas hoje estás a atravessar uma crise de fé,
o mesmo é dizer de palavra...
E o que vale um homem sem fé ?
O que vale um homem,
para mais editor,
quando lhe falta(m) a(s) palavra(s) 
e lhe sobejam as fotos ?

Só lhe resta ir dormir,
que amanhã é outro dia...

LG - 2jun2015,  23h59...

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