Caro Luís Graça,
Notei no Post P17250 de 17 de Abril de Mário Beja Santos referente ao livro do Embaixador António Pinto da França, Em Tempos de Inocência (Prefácio, 2006) (*), alguns parágrafos que atraíram a minha particular atenção. Beja Santos escreve que o autor “está atento e regista um conflito racial que muitos pretendem iludir”, e transcreve as suas palavras:
“Muitos guineenses olham os cabo-verdianos como uma classe colonizadora que os despreza e explora e não querem nem ouvir falar em tal união, achando que já lhes basta a predominância de cabo-verdianos nascidos aqui, instalados no Governo e em todos os postos de comando. Eles foram no tempo da colónia a classe intermédia, como na Indonésia os chineses e, politicamente mais preparados, puseram de pé o PAIGC, herdando assim o poder dos portugueses”.
A terminar a sua referência ao livro de António Pinto da França, Beja Santos faz nova transcrição das palavras do autor:
"Por vezes tive a sensação de assistir a um parto dramático… Vai comigo uma suave recordação do povo guineense, da sua nobreza, da sua afabilidade, da sua hospitalidade, da sua resignação ou sofrimento. Ensinaram-me algumas coisas importantes. Passados estes anos de iniciação, na euforia da independência, tempos duros e difíceis se desenham no horizonte, toldando as esperanças dos guineenses”.
Estas palavras fazem-me pensar na sucessão de acontecimentos que têm moldado a vida da Guiné-Bissau desde a independência até aos dias de hoje, e ainda em situações e acontecimentos que tiveram lugar na Guiné muito antes da luta do PAIGC contra os portugueses, e sobre as quais se manifestaram várias autoridades com responsabilidade na administração do território.
Por exemplo, vejamos o que diz Manuel Maria Coelho (um dos revolucionários do 31 de Janeiro, governador de Angola no início da República, e que veio ainda a chefiar o governo a seguir aos acontecimentos de 19 de Outubro de 1921), que no início de 1917 fora enviado para a Guiné, por António José de Almeida (na altura presidente do ministério e ministro das colónias), como sindicante na sequência de alegadas irregularidades que haviam rodeado a campanha de Teixeira Pinto na ilha de Bissau em 1915, e ainda para esclarecimento das muitas e variadas queixas que chegavam ao ministério sobre a vida pública da colónia.
Na ausência do governador Andrade Sequeira, Manuel Maria Coelho assumiria interinamente o governo da província afastando o secretário-geral Sebastião José Barbosa, e ao fazer a análise das acusações que eram feitas a Teixeira Pinto por Andrade Sequeira, e referindo-se ao facto de Sebastião Barbosa considerar desnecessária a guerra, considera não haver nisto surpresa e que tudo era fácil de explicar. Escreve:
“Sebastião Barbosa é de Cabo Verde, ilha do Fogo, e é sobrinho, ou coisa parecida, de um célebre Caetano José Nosoliny, que foi o encarregado de ir a Lisboa pela Liga Guineense, pedir ao governo para que não fizesse a guerra aos papeis! Este Nosoliny tem sangue estrangeiro e, como quase todos os cabo-verdianos, do Fogo principalmente, não têm o menor amor a Portugal, procurando todos os que pela Guiné se encontram, com raras excepções, tomar conta desta província, de cuja administração se apoderaram e que querem conservar em seu poder como colónia de Cabo Verde, porque a não consideram colónia portuguesa”.
Vejamos ainda o que mais tarde escreve Vellez Caroço, que governou a Guiné por dois períodos consecutivos, de 1921 a 1923, e de 1924 a 1926, no seu relatório referente ao primeiro ano da sua governação, referindo-se à qualidade do funcionalismo e da organização da secretaria do governo. Depois de notar que a província se encontrava “enxameada” de empregados recrutados em Cabo Verde, acrescenta:
“Hoje é já vulgar ouvir na Guiné, entre o elemento cabo-verdiano, que nós somos estrangeiros”. E Vellez Caroço pergunta, talvez premonitoriamente: o que seria se “por qualquer motivo esta colónia amanhã deixasse de estar debaixo do domínio português?”.
Por considerar que a obra de desnacionalização da Guiné era lenta, mas era contínua e persistente, tornava-se necessário actuar para que não se não continuasse a dizer que a Guiné portuguesa era uma colónia de Cabo Verde. E, a propósito, nota que “o nativo de da Guiné tem tantos direitos como o natural de Cabo Verde, e na sua colónia até tem mais. Auxiliemo-los, pois, nesta simpática empresa. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres”.
A influência cabo-verdiana na vida pública da província pode ser notada ainda em anos muito anteriores e mesmo como factor importante ou mesmo determinante no desencadear de alguns conflitos e operações militares, nomeadamente na ilha de Bissau nos anos 1890.
Notemos, a terminar esta pequena nota, que no grupo de fundadores do PAIGC estavam dois cabo-verdianos: Pedro Pires, também natural da ilha do Fogo, e Amílcar Cabral (nascido em Bafatá, segundo consta). E que o “conflito racial” acima referido continua presente num clima de “desconfiança e intriga” que – como recentemente me tenho apercebido – se sente na Guiné-Bissau.
2. Nota do editor:
Meu caro Armando, queria dizer "Aristides Pereira" e não "Pedro Pires", como cofundador do PAIGC, em 1956 (na altura ainda só PAI - Partido Avricano para a Indepedência, só em 1960 é que passa a designar-se PAIGC). (**)
Dos seis fundadores do PAI, só há três cabo-verdianos de nascimento: Júlio Almeida e Fernando Fortes, ambos naturais da ilha de São Vicente, e Aristides Pereira, natural da Boavista. Os restantes nasceram na Guiné: Amílcar Cabral, em Bafatá, o seu meio irmão Luís Cabral, nascido em Bissau, e Elysée Turpin, também nascido em Bissau, em 1930. Luís Cabral é o mais novo dos seis (,é de 1931), seguido de Elysée Turoin (que nasceu em 1930); todos os outros são da década de 1920: Aristides Pereira, o mais velho, nascido em 1923, seguido do Amílcar, que é de 1924, Júlio Almeida (1926) e Fernando Fortes (1929).
Amílcar e Luís são filhos do mesmo pai, cabo-verdiano, professor primário. A mãe de Amílcar era cabo-verdiana, nascida na ilha de Santiago, a mãe de Luís teve uma vivência cabo-verdiana, mas nasceu em Portugal. Ambos os irmãos têm uma dupla vivência, cabo-verdiana e guineense.
Pedro Pires é de facto da ilha do Fogo, mas dez anos mais novo do que Amílcar Cabral. Desertou da Força Aérea Portuguesa, tendo ingressado depois nas fileiras do PAIGc.
Sobre esta questão, ler a comunicação "As Trajectórias dos Fundadores do PAIGC (1923 – 1960", de Ângela Sofia Benoliel Coutinho (CESNOVA – IPRI/ UNL) in: Atas do Colóquio Internacional Cabo Verde e Guiné-Bissau: percursos do saber e da ciência, Lisboa, 21-23 de junho de 2012. [Consult 23/4/1017]. Disponível em https://coloquiocvgb.files.wordpress.com/2013/06/p03c02-angela-coutinho.pdf
3. Comentário, posterior, do Armando Tavares da Silva:
Obrigado Luís Graça pelas achegas sobre a fundação do PAIGC. Eu não investiguei a fundação deste partido, mas lembro-me de ter lido – já não sei onde – que Pedro Pires estava incluído num grupo de três pessoas que o teriam fundado. Notemos contudo que a sua biografia em http://www.barrosbrito.com/5498.html nos diz que em 1961 abandonou clandestinamente Portugal para se juntar ao PAIGC.
Possivelmente haverá mais do que uma versão sobre os acontecimentos da altura, e António Duarte Silva, no seu trabalho que se pode ler em https://cea.revues.org/1236#tocto1n5, nos parágrafo 32 e 33 deste documento escreve:
“Segundo a versão consolidada, a 19 de Setembro de 1956, domingo à tarde, intervindo num círculo de amigos convidados para o efeito, Amílcar Cabral propôs a constituição de um partido político para alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde e defender a união entre os povos guineense e cabo-verdiano, numa perspectiva geral de unidade africana. Seria o Partido Africano da Independência (PAI)”. E a seguir: “A reunião durou cerca de uma hora, foram poucos os presentes (a maioria de origem cabo-verdiana) e não há qualquer documento comprovativo”. E acrescenta: “Elisée Turpin afirma que teriam sido «aprovados os Estatutos do PAI, elaborados por Amílcar», mas o testemunho de Turpin, habitualmente indicado como um dos seis fundadores, está posto em causa”.
Penso que podemos concluir que cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) foram determinantes na criação do movimento de oposição à presença portuguesa, e que o que se terá passado na altura não constitui hoje uma certeza.
Armando Tavares da Silva
24.Abril.2017
Penso que podemos concluir que cabo-verdianos (ou de origem cabo-verdiana) foram determinantes na criação do movimento de oposição à presença portuguesa, e que o que se terá passado na altura não constitui hoje uma certeza.
Armando Tavares da Silva
24.Abril.2017
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Notas do editor;
(*) Vd poste de 17 de abril de 2017 >Guiné 61/74 - P17250: Notas de leitura (947): "Em Tempos de Inocência", por António Pinto da França, Prefácio, 2006 (Mário Beja Santos)
(**) Último poste da série > 4 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17104: (Ex)citações (323): Buruntuma, que foi grande na guerra e na paz... Uma pequena homenagem aos bravos que souberam fazer a guerra e a paz, do Jorge Ferreira (1961) ao José Valente (1974)
(*) Vd poste de 17 de abril de 2017 >Guiné 61/74 - P17250: Notas de leitura (947): "Em Tempos de Inocência", por António Pinto da França, Prefácio, 2006 (Mário Beja Santos)
(**) Último poste da série > 4 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17104: (Ex)citações (323): Buruntuma, que foi grande na guerra e na paz... Uma pequena homenagem aos bravos que souberam fazer a guerra e a paz, do Jorge Ferreira (1961) ao José Valente (1974)