quarta-feira, 20 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)



Foto 1: Pirada, Maio de 1945. Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.

Citação: (s.d.), "Visita oficial do Governador Sarmento Rodrigues à Guiné - inauguração de um monumento a [Manuel Maria] Sarmento Rodrigues [1899-1979], Pirada. Maio de 1945.", Fundação Mário Soares / INEP-CEGP-MGP, 
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_10635 (Autor desconhecido), com a devida vénia.


Foto 2: Vista aérea de Pirada em Agosto de 1972. Foto de António Martins de Matos – P20867, com a devida vénia.


Mapa da Zona Leste, com a indicação de algumas localidades onde estavam estacionadas as unidades de quadrícula atribuídas ao Comando do BCAÇ 238 (1961/63).




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873
 (Xime e Mansambo, 1972/1974); professor de eduxção física, 
docente do ensino superiro; nosso coeditor, autor da série "(D)o outro kado do combate"; régulo da Tabanca dos Emiratos,



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE:
O ATAQUE A PIRADA EM 15 DE JULHO DE 1963:   
 EM BUSCA DAS "PEÇAS" DO PUZZLE 

1.   - INTRODUÇÃO

A publicação das últimas narrativas relacionadas com o comerciante Mário Soares, de Pirada, suscitaram-me um particular interesse, neste tempo de confinamento prolongado, devido à pandemia de COVID-19.. Encontrei em todas elas "assunto", mais do que suficiente, para aprofundar todas as dúvidas e interrogações emergentes em cada uma delas, particularmente a partir das "pontas" ou dos "pontos" que o camarada Luís Graça deixou em aberto.

Desde logo o P20927 abriu o caminho sobre o caso do "ataque a Pirada em 28/5/1965". No P20867, síntese do P4879: «Gavetas da Memória», série de episódios da autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66, a questão principal era: "Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie de praceta, com um pequenino monumento [?] e tudo". 

Que monumento seria esse? Pois é o que se indica na foto 1, inaugurado em Maio de 1945. Finalmente, o P20927, o último desta série até á data, coloca-nos em frente de uma nova "picada", agora em direcção ao "ataque a Pirada em 15 de Julho de 1963" de que resultou (está escrito) a morte de 1 soldado europeu" (?).

É sobre esta "peça" da história que trata este fragmento.  

2.   - SUBSÍDIO HISTÓRICO MILITAR DA ZONA LESTE, COM DESTAQUE PARA PIRADA

Ao Batalhão de Caçadores 238 [BCAÇ 238], mobilizado pelo BC 8, de Elvas, foi-lhe atribuída a responsabilidade da Zona Leste, com fronteira com o Senegal e a Guiné-Conacri, e para oriente da linha Cambajú-Xime-Rio Corubal, após a sua chegada a Bissau, em 06 de Julho de 1961, 5.ª feira, sob o Comando reduzido do Major Inf José Augusto de Sá Cardoso.

Em 19Jul61, esta Unidade assumiu a responsabilidade da referida zona de acção, com sede em Bafatá, comandando e coordenando a actividade das companhias estacionadas em Nova Lamego (CCAÇ 90) e Bafatá (CCAÇ 84) e pelotões de reforço, cujos efectivos se encontravam disseminados por Contuboel, Piche e sucessivamente, a partir de 16Ago61, por Pirada [3.ª CCaç (RL) e 1 Sec/CCAÇ 84], Buruntuma [2 Sec/CCAÇ 84], Canhamina, Sare Bacar, Paunca, Bajocunda, Canquelifá, Enxalé, Bambadinca e Saltinho.

2.1   - INÍCIO DAS ACTIVIDADES SUBVERSIVAS NA REGIÃO DE PIRADA

Segundo a literatura Oficial, em particular o livro do Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974); Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; "as actividades subversivas, atribuídas ao PAIGC, tiveram início no final de Junho com diversas sabotagens na região de Pirada-Sonaco".

3.   - O ATAQUE A PIRADA EM 15 DE JULHO DE 1963 - DOCUMENTOS ANALISADOS

Ainda que não tenha obtido registos de prova, quanto ao modo como decorreu o ataque a Pirada e suas consequências, mesmo que ele tenha sido executado, é possível garantir que não produziu quaisquer baixas nas NT, quer sejam de origem africana ou europeia.
Para melhor análise e interpretação do seu valor factual, damos conta abaixo, por ordem cronológica, dos diferentes conteúdos reportados à correspondência trocada entre remetentes e destinatários, conforme se indica no quadro.



3.1   - PIRADA, 09 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NOME DE GUERRA DE NORBERTO ALVES]

Pirada, 9 de Julho de 1963 (3.ª feira) – (tradução do francês)
Caro camarada Yaya Koté.

Gostava que esta carta chegue pelo menos a tempo, encontrando-o com saúde, assim como os outros camaradas. O objectivo da carta é informar que dois dos nossos guerrilheiros abandonaram a luta por falta de resistência necessária aos desempenhos físicos e morais da luta, de acordo com os seus próprios testemunhos. Eles vão-lhe contar tudo minuciosamente. Por outro lado, fizemos uma boa viagem e começámos hoje os actos de sabotagem, para depois iniciarmos a luta armada. Esta será em breve!

Com os meus melhores cumprimentos, termino com muita amizade por ti. Saúde. Kanfrandi Ká - Norberto Alves.



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36861

3.2   - PIRADA, 10 DE JULHO DE 1963; ASSINAM: AREOLINO CRUZ E KANFRANDI KÁ

Pirada, 10 / Julho de 1963 (4.ª feira)

Caro [Pedro] Pires.

Saúde em primeiro lugar e acima de tudo. Nós vamos indo bem graças a Deus. O portador desta carta é um camarada que se encontra doente talvez por causa da frieza. Ele costuma ter dores na região lombar (?). É preciso tratá-lo bem para que ele possa voltar depressa porque é um elemento precioso para a nossa zona e é adjunto do nosso responsável. Ontem quando voltámos da sabotagem que fomos fazer em Pirada ele foi atacado fortemente por tal doença que só muito dificilmente pôde marchar em braços. Fomos obrigados a sair do mato essa noite e entregá-lo numa tabanca vizinha pois que chovia torrencialmente e ele não podia de modo nenhum estar exposto à intempérie.

Tentámos fazer explodir a ponte do rio Bidigor, entre Pirada e Bafatá, metemos na acção 700 g de plástico mas da explosão só resultou um buraco na dita ponte. É uma ponte bastante resistente. Cortámos os fios telefónicos numa distância de quase 300 metros. Na região de Pirada é difícil de trabalhar, pois que não foi mobilizada; nela só há um responsável (?) mas ele tem medo de contactar connosco e até de nos alimentar. Passamos dias seguidos sem comer e por isso dois fulas que vieram connosco recusaram a continuar. Precisamos de dinheiro para a alimentação, precisamos de explosivos TNT e balas de calibre 7,75.

Após a sabotagem os fulas da região [3.ª CCAÇ] mobilizaram-se e entraram para o mato à nossa procura. O Borges pode melhor contar-te a situação. Diz ao senhor Bebiano que o Kouko já chegou e foi cá recebido com grande entusiasmo. A escassez de explosivos deixa-nos uma falta terrível.

P.S. - Espero que não te esqueças de me enviar as botas de lona e as calças americanas. O responsável quer também 1 par de calças. Para mim manda-me o cobertor do Caetano que ele não vem agora.

Sempre esperando, Areolino Cruz e Kanfrandi Ká (Norberto Alves)  



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36865.

3.3   - PIRADA (?), 14 DE JULHO DE 1963; ASSINA: CHICO TÉ [NOME DE GUERRA DE FRANCISCO MENDES]

Pirada (?) 14 / 7 / 63 (Domingo) – (tradução do francês)

Caro irmão e companheiro de luta Yaya Koté.

Neste momento decisivo da história de nosso povo, onde surgem dificuldades de todos os lados, a acção de cada um de nós é essencial para o triunfo, pois os nossos companheiros já derramaram o seu sangue.

Na última carta que lhe enviei, destaquei as dificuldades que nos cercam, mas até agora não nos conseguimos livrar delas ou, pelo contrário, estão aumentando dia-a-dia. Para isso, é necessário partir sem demora para Dakar para entrar em contacto com a Direcção, expondo concretamente a nossa situação a fim de estudarmos juntos e decidirmos como nos livrar desse impasse. Irmão deve deixar tudo para cumprir esta missão, que é tão importante, caso contrário tudo estará condenado ao fracasso.

Em anexo está uma carta em português para ser entregue à Direcção. Ela transmite tudo o que precisamos aqui e ainda a nossa situação concreta.

Devemos adverti-los de que, para atender às necessidades urgentes no campo de equipamentos, já enviei 40 jovens a Koundara para receber os equipamentos para a região. O seu irmão para sempre - Chico Té [Francisco Mendes]



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36869.

3.4   - PIRADA (?), 14 DE JULHO DE 1963; ASSINA: CHICO TÉ [NOME DE GUERRA DE FRANCISCO MENDES]

Pirada (?) 14 / 7 / 63 (Domingo)

Ao Secretariado-geral – Bureau de Dakar

Boa saúde. Nós por cá estamos todos bons apesar de estarmos rodeados de dificuldades que tentamos transpor para o triunfo urgente da nossa causa.

Essas dificuldades são as seguintes: devido à grande pressão em que se encontra o povo desta região, a fome coloca-se em primeiro lugar, porque sem alimentação um combatente não pode pegar em armas para fazer combate. Encontramos nesta situação desastrosa. Desde que entrámos no país sentimos falta de alimentação o que obrigou à deserção de vários camaradas fulas. A fome é tão maior que não podemos fazer nenhum combate e resolvemos unicamente defender a nossa pessoa contra os ataques dos colonialistas e dos régulos fulas. Na fronteira a cotização rareia devido à situação económica dos militantes.

A outra dificuldade é a falta de munições que no princípio não era suficiente porque para cada metra só havia munições para os carregadores.

Os medicamentos que alistei na presença do camarada Bebiano e que ele prometeu que desde que chegasse a Dakar faria todo o possível para que cheguem às nossas mãos, tal não aconteceu. A decisão dele era simplesmente para se desembaraçar de nós. Há camaradas que saiem por falta de comprimidos para febre ou outra crise parecida.

O Yaya Koté exporá tudo quanto nos é preciso aqui pois a fome não me deixa prolongar a carta. Até breve. Chico Té.

Para responder às necessidades da luta já enviei 40 jovens para Koundara com o fim de receber material para a Região porque estamos num momento difícil para nós. O camarada Koté explicará tudo. Chico Té. 



  
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36873.

3.5   - PIRADA, 15 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NORBERTO ALVES]

Comunicado

Na madrugada do dia 15 de Julho de 1963, 2.ª feira, um grupo de guerrilheiros do nosso Partido, comandados pelo camarada Kanfrandi Ká, atacou por força o quartel de Pirada. Do ataque resultou da parte inimiga um morto. Não puderam os guerrilheiros apoderar-se da arma do inimigo morto por aquele se encontrar nas traseiras do quartel que é rodeado de arame farpado. Kanfrandi Ká (Norberto Alves)



Citação: (1963), "Comunicado [Região 4]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40527.

3.6   - PIRADA, 17 DE JULHO DE 1963; ASSINA: AREOLINDO CRUZ

Pirada, 17 / 7 / 63 (4.ª feira)
Caro [Pedro] Pires~

Saúde é o que te desejo. Nós vamos indo menos mal. Há dias escrevi-te uma carta tendo por portador um camarada doente, o Borges.

Já não vale a pena enviares as minhas correspondências pois que elas podem extraviar-se. Terei alguma carta do Fernando? Não estará ele já em África?

Na madrugada de 15 deste mês [Julho], 2.ª feira, fizemos um ataque ao quartel de Pirada e incendiamos a casa de um tipo da Pide. Morreu 1 soldado europeu. Os soldados têm agora medo de sair à noite e mesmo depois das 6 da tarde. Formaremos de agora em diante um só grupo comandado pelo Chico Té [Francisco Mendes] com aproximadamente 22 homens. Com saudações imensas, Areolind
o Cruz-

Cumprimentos ao Paulo, Caetano, José Araújo, e Bebiano. Quando o Borges tiver de voltar, dá-lhe o que tiveres para mim. Obrigado.



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881.

3.7   - PAUNCA, 20 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NORBERTO ALVES]

Paunca, 20 / 7 / 63 (sábado)

Camarada Yaya Koté

Desejo-te saúde e felicidades em companhia de todos.

Comunico-te que o Chico Té [Francisco Mendes] está mal, 10 dias sem comer e não sabemos o paradeiro dele, chegou cá o Umaro, onde ele informou o estado dele. Ele teve que vir à frente, porque ele confessou que não podia resistir, e alguns dos camaradas fugiram. Comunico-te que dos meus camaradas alguns desistiram e alguns doentes.

Tive que vir colaborar com o Domingos, que é para trabalhar melhor, é único plano.
Comunico-vos que de facto o camarada Pulo desistiu da luta, onde que ele disse que não podia aguentar a maçada do mato, fui informado mesmo pelos militantes do Domingos e alguns responsáveis. Dos meus camaradas são 3 doentes e dois que desistiram. Vocês que arranjem dinheiro para nós de alimentação e para mandar ao Chico Té e mandar uma pessoa à sua procura.

Manda dinheiro urgente, estamos mal, não temos apoio do povo principalmente em Pirada, passamos 5 dias sem comer.

Tive que procurar o camarada Domingos, o Demba [será o criado do Mário Soares, P20904?) e o Cruz, foram para Açadung (?) porque eles estão doentes.

Comunico-te que o camarada Umaro chegou fraco. Veja se arranja um montiador [caçador] que conheça bem o mato para ir à procura do Chico Té, porque ele não pode ficar a padecer dentro do mato.

Diga ao Bebiano que nós aqui estamos no meio de dois inimigos: Colonialistas e fulas. Estamos com faltas de munições e da alimentação. À noite quando fizemos emboscada para Colonialistas, de dia os fulas também fizeram as suas emboscadas contra nós. Manda procurar o Chico no mato na área de Contuboel na Tabanca Sama.

Sou, Canfrandim Cá.




Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36885, co m a devida vénia.

► Em resumo:

1.    Em função da análise documental, não é possível confirmar a execução do ataque ao quartel de Pirada, no dia 15 de Julho de 1963 [informação de Kanfrandi Ká (Norberto Alves), simultaneamente autor do comunicado e comandante do ataque].

2.    Quanto ao incêndio provocado na casa de um elemento da PIDE, em Pirada, na sequência do ataque indicado no ponto anterior, e referido por Areolindo Cruz na carta enviada a Pedro Pires dois dias depois, também não foi possível confirmar. Não se entende, porém, como é que o comandante da missão se tenha "esquecido" de o mencionar no seu comunicado.

3.    Há "peças" que não encaixam neste "puzzle".

► Fontes consultadas:

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
04MAI2020
___________

Guiné 61/74 - P20993: Historiografia da presença portuguesa em África (210): Boletim do Arquivo Histórico Colonial - Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Tudo começou numa pesquisa na Biblioteca Nacional. Encontra-se num documento universitário referência a uma publicação totalmente desconhecida, a revista do Arquivo Histórico Colonial, de que jamais se ouvira falar. Salvo indicação em contrário, e depois de se bater a várias portas, constata-se que não passou do número 1, publicado em 1950. Talvez com a mudança política, em 1951 as colónias transformaram-se em províncias ultramarinas e o Arquivo Histórico Colonial passou à designação de Arquivo Histórico Ultramarino, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
O diretor da revista, Alberto Iria, escreve um interessante artigo acerca das vicissitudes que acompanharam a criação do Arquivo Histórico Colonial, a última edificação ainda está de pé, no cimo do Jardim Botânico Tropical, aqui funcionou até há poucos anos o reputado Instituto de Investigação Científica Tropical. E vem a primeira parte de um artigo sobre a "Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné". Do que se encontrou, aqui se faz um resumo, diga-se em abono da verdade que o autor trabalhou afincadamente e não merecia ficar com o artigo amputado.

Um abraço do
Mário


Vista da Praça de Cacheu, Guiné. À direita, a fortificação portuguesa.
Gravura, J. C. Silva, s.d, (séc. XIX). 
Acervo: Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.


Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné

Beja Santos

Tudo começou numa pesquisa nos descritores da Biblioteca Nacional, apareceu uma tese intitulada “Do Rio Senegal à Serra Leoa (1580-1656), Espaço e estratégia, poder e discurso”, Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1997, tendo como autor Orlando Miguel Pina Gonçalves Martins da Gama. Suscitou a curiosidade e por ela se passearam os olhos, entre as notas guardou-se a referência de que o autor fizera a transcrição paleográfica da obra do jesuíta Manuel Alves “Etiópia Menor e descrição geográfica da província da Serra Leoa”, bem se procurou, nada se encontrou. E numa referência bibliográfica aludia-se a um trabalho efetuado por um funcionário do Arquivo Histórico Colonial, Cândido da Silva Teixeira, com o título “A Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné”, publicada no Boletim do Arquivo Histórico Colonial, volume I, 1950.

Acontece que, salvo indicação em contrário, este boletim apareceu e não mais se publicou. É bem provável com as mudanças de 1951, em que as colónias passaram a ser denominadas províncias ultramarinas que a passagem do Arquivo Histórico Colonial para Arquivo Histórico Ultramarino, bem à portuguesa tudo se terá feito para apagar o nome e os conteúdos, e no caso em apreço do trabalho de Cândido da Silva Teixeira, só se publicou uma parte. Aqui segue o resumo.

O autor fala da fundação da Companhia em 1589, período que estende até 1671. A povoação de Cacheu foi fundada na margem esquerda do rio com o mesmo nome pelo cabo-verdiano Manuel Lopes Cardoso, obteve licença do rei dos Brames ou Papéis. Em 1594, a povoação tinha mais de 800 habitantes, a avaliar pelo número de pessoas que se confessavam na Quaresma.

Os portugueses que então viviam no Cacheu percorriam com lanchas e outras embarcações os diferentes rios e uma parte da costa da Guiné, onde também traficavam com os ingleses e franceses, permutavam-se couros, cera e marfim. Aos Jalofos, que habitavam a margem esquerda do rio Senegal, vinham escravos em troca de ferro. Note-se que Cacheu não foi a primeira povoação fundada pelos portugueses na região de Farim. O Sargento-Mor da Ilha de Santiago, Francisco de Andrade, combinou com Masatamba, rei do Casamansa, levar os portugueses para um porto do seu reino, chamado Sarar, situado a montante do rio de Farim, feitoria que teve de ser abandonada pela insalubridade e a permanente hostilidade dos naturais. Presume-se que a primeira povoação portuguesa da Guiné tenha sido a do Porto da Cruz, em Guinala, que foi abandonada a seguir à Restauração de 1640. Observa o autor que no rio de S. Domingos havia mais escravos do que em todos os outros rios da Guiné.

Todo o comércio da Guiné se fazia então por intermédio da Praça de Cacheu, e Cabo Verde deve o seu primitivo desenvolvimento agrícola aos escravos em troca de mercadorias provenientes daquelas ilhas e do Reino. Além de mão-de-obra para as suas culturas, os moradores da ilha de Cabo Verde traziam da Guiné marfim, cera, arroz e milho. A partir de 1513, a navegação entre Cabo Verde e Guiné intensificou-se.

O autor é minucioso nas referências às obras, sempre urgentes, na fortificação de Cacheu. D. João IV ordenou essas obras em 1644, socorreu-se de um malabarismo tributário. Todo o seu reinado foi de penúria financeira com os pesados encargos da guerra da Restauração, que incluiu a remoção dos holandeses de pontos vitais como Angola e o Brasil. Assim se pode compreender que na consulta de 19 de outubro de 1652, respeitante ao comércio efetuado pelas nações do Norte da Europa na costa e portos da Guiné, o Conselho Ultramarino tenha sugerido a criação de uma companhia de particulares. A ideia não teve seguimento e o estado de decadência da praça de Cacheu era cada vez mais lastimável. A nossa soberania naquela “conquista” (termo usado na época para falar na nossa presença no que mais tarde será uma colónia) era tão precária que o Conselho Ultramarino em 26 de setembro de 1670 punha assim à consideração do Príncipe Regente (o futuro D. Pedro II) o estado deprimente da praça:
“E ultimamente Vossa Alteza se intitula Senhor da Guiné não tendo em toda aquela costa mais que uma pequena parte de terra e o pior é que a conserva Vossa Alteza à custa da sua reputação, vendo-se içadas as bandeiras de Vossa Alteza porque paga um tributo ou feudo ao rei negro, por mão do Capitão de Cacheu.”

Apesar das providências propostas pelo Conselho Ultramarino, aprovadas pelo Príncipe Regente e mandadas executar, o comércio de Cacheu e rios da Guiné parecia enfraquecer inexoravelmente. A praça persistia desmantelada, com falta de munições, pólvora e infantes.

Segue-se um período de tentativas de criação para a Companhia do Cacheu, diligências que abarcam o período entre 1671 e 1676. Em 1671, um ex-governador de Cabo Verde propôs a organização à sua custa e de outras pessoas uma companhia que metesse em Cacheu todas as fazendas imprescindíveis para o resgate de escravos, de modo a impedir-se o comércio que os estrangeiros faziam naquela praça. Cacheu era cobiçada por todas as nações do Norte da Europa por ser um porto de escala obrigatória para o resgate de escravos na costa da Guiné. Em 1673, a fortaleza da Mina encontrava-se ocupada pelos holandeses, de onde auferiam milhões no comércio do ouro, marfim, âmbar e cera, que exportavam para os seus países. Por toda aquela dilatada costa, Portugal apenas possuía a Praça do Cacheu, mal fortificada e mal provida. A questão da Companhia e dos seus proventos e tributos mexia com muitíssimos interesses. Moradores e oficiais da Câmara da ilha de Santiago protestaram contra a criação da Companhia de Cacheu, sentiam que a possibilidade de transporte direto dos negros para outras paragens, sem passar pelo arquipélago, se saldaria num desastre económico e financeiro para o arquipélago. Seja como for, a Companhia foi criada por alvará de 19 de maio de 1676. Aqui acaba a parte do artigo que teria continuidade no número 2 da revista.

Na ausência do texto deste autor, lembramos aos interessados o que se pode encontrar em qualquer motor de busca. Primeiro, a Companhia sucedeu à Companhia da Costa da Guiné, era de constituição monopolista e acabou por ser a fonte principal do comércio de Cabo Verde, ao contrário do que pensavam os céticos e reticentes, foi através desta companhia monopolista que os navios portugueses vinham obter os escravos. Como havia ameaça dos franceses no Senegal, fundou-se uma capitania em Bissau. Quinze anos depois da sua fundação a Companhia do Cacheu foi refundada com a designação de Companhia de Cacheu e Cabo Verde, o seu negócio principal era a escravatura. O forte construído em Bissau foi arrasado depois do abandono desta praça em 1707, mais tarde D. João V ordenará a construção da fortaleza de São José de Bissau.

Planta da Praça de São José de Bissau, 1778, Arquivo Histórico Ultramarino.

Vista de Amura, Guiné-Bissau. 
Gravura in: VALDEZ, Francisco Travassos. "África Ocidental : notícias e considerações : dedicadas a Sua Magestade Fidelíssima El-Rei O Senhor Dom Luiz I". Lisboa : Imprensa Nacional, 1864. 406 p., gravuras.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20969: Historiografia da presença portuguesa em África (209): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20992: Ser solidário (231): Eustáquio, corta a mesada ao Alaka, porque ele (e os pais) não se esforça o suficiente para entrar na Escola Portuguesa em Timor Leste... Eu gosto de ajudar, mas também gosto de recordar o provérbio popular: "Deus manda ser bom, não manda ser parvo!"... (João Crisóstomo, Nova Iorque)

1. Mensagem do João Crisóstomo,  para um contacto em Timor,  com conhecimento à Tabanca Grande:

[À direita, foto do João Crisóstomo, em Porti das Barcas, Lourinhã, em 2017; luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado, em segundas núdes, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun]

Date: terça, 19/05/2020 à(s) 10:46

Subject: Alaka

Alô. Eustáquio,

Encontrei o teu contacto  no meu telefone… Espero que recebas…

Estive agora a falar com o Rui [Chamusco]. Sei que ele já te falou deste assunto: Como sabes  há dois anos quando estive aí,  fui falar com o Dr. Acácio  (da escola portuguesa) e  pedi-lhe para ele aceitar o Alaka na escola. [O Alaka deve estar hoje com 8 anos,]

Respondeu-me que o admitiria logo que ele falasse português suficiente.  E comecei a ajudar para que ele, com o auxílio dos pais, aprendesse depressa a língua portuguesa. Para uma criança devia ser muito fácil, especialmente com a ajuda dos pais [, que falam português e são professores].

Eu fui para Londres,  já tinha 24 anos. Comecei a estudar ( lavando pratos num restaurante durante o dia para pagar a escola). Trabalhava de dia; às 4.00 da tarde ia para a escola ; depois ia a pé para casa para não ter de pagar o autocarro que o dinheiro era pouco... Chegava a casa por volta das 11.00 da noite, Estudava e dormia e às 09.00 da manhã,  voltava a pé para o restaurante para trabalhar, lavando pratos…

E ao fim de 14 meses eu tinha aprendido Inglês…  com exames feitos na Universidade de Cambridge… Não só falava bem  como podia lecionar como professor de Inglês.

Depois fui para a França e fiz o mesmo; e depois fui para a Alemanha aprender alemão. Sem a ajuda de ninguém eu aprendi; quando se é criança é muito mais fácil aprender. Se o Alaka ainda não fala fluentemente o português, é porque ele e os pais não se interessaram como devia ser.

Já perdi a esperança de o pôr na escola portuguesa; é uma pena pois ele podia vir a ter uma vida brilhante  pois eu ia-o ajudar sempre até ele conseguisse o curso que quisesse. Mas vejo que perdi o meu tempo.

Como o Rui já te disse, daqui por diante dás apenas 25 dólares  ao Alaka e o resto -75 dollars- são para a escola SFA em Manati-Boenau onde há tantas crianças que precisam de ajuda.   Continuas a dar os 25 dólares  ao Alaka se ele precisar;  se os pais dele não precisarem dessa ajuda, tanto melhor: nesse caso vai tudo para a escola.

Eu gosto de ajudar mas tenho de ver que vale a pena o meu esforço; e o Alaka e os pais não fizeram o esforço que eu esperava. Para ele não pensar que não o quero ajudar, continuas a dar os 25, mas só. Se um dia eu voltar a Timor (do que duvido muito) e eu vir esforços, trabalho e boa vontade...,  depois se verá.

Sr  hoje tenho casa e uma vida decente,  foi porque trabalhei no duro; sem trabalho e esforço não vamos a parte nenhuma. E não se deve esperar que outros façam o esforço por nós. Lembrando um provérbio da minha terra, "Deus manda ser bom, não manda ser parvo!"...

Um grande abraço para ti e tantos amigos timorenses que recordo com saudade…

João (e Vilma)   

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 3 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20804: Ser solidário (230): Viva a Escola São Francisco de Assis "Paz e Bem", em Boibau, Manati, Liquiçá, Timor Leste (Rui Chamusco)

terça-feira, 19 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20991: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (7): Composição da CCAÇ 2368/BCAÇ 2845

 


1. Finalização da publicação da composição do Batalhão de Caçadores 2845, enviada ao Blogue pelo nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) em mensagem de 6 de Maio de 2020:





____________

Nota do editor

Postes anteriores de:

28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20915: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (4): Composição da CCS/BCAÇ 2845 e vídeo do Convívo de 2011 dos Vampiros

5 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20945: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (5): Composição da CCAÇ 2366/BCAÇ 2845
e
12 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20966: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (6): Composição da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845

Guiné 61/74 - P20990: Manuscrito(s) (Luís Graça) (182): (Des)confinamento: poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas, em tempos de COVID-19


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 10 de maio de 2020


Lourinhã > Praia de Paimogo >  16 de maio de 2020 > Ilha das Berlengas e Farilhões, ao fundo


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 17 de maio de 2020 > Patrulha da GNR a cavalo


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 17 de maio de 2020

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Teme a  peste, porque ela nunca vem só

Quem vê caras, p’ra mais agora mascaradas,
Não vê corações, sangrando ou não,
Porque esta peste é a solidão,
Que escorre, líquida, das paredes caiadas.

Face à peste, “peius”, a doença pior,
Calam-se os santos, Deus e até o Diabo,
Nada adianta, ao fim e ao cabo,
Clamar, na terra, “Do Mal Livrai-nos, Senhor!”.

Fechados estão os templos, os recintos sagrados,
Nem vozes de burro chegam aos céus,
Não há juízes, muito menos réus,
Há apenas bichos e  homens confinados.

É um imenso zoo humano a terra,
Tristes, os leões perderam a juba,
E  só a morte toca a sua tuba,
Em tempo de peste, de fome e de guerra.

Receia, pois, a peste, que nunca vem sozinha,
No xeque-mate à humanidade,
E guarda a lição de humildade:
Frágil é a ciência, a tua rainha.

Regresso agora à praia da minha esperança,
Olho a falésia, fóssil, a pique,
Temendo o inferno, à beira de um clique...
Mas só o mar, luso e eterno, me descansa!

Luís Graça


Guiné 61/74 - P20989: Parabéns a você (1805): Joaquim Martins, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4142 (Guiné, 1972/74) e Xico Allén, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1972/74)


____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20985: Parabéns a você (1804): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Guiné, 1967/69)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a segunda e última parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte II

Gen Carlos Azeredo
No Porto, o Tenente-Coronel Carlos Azeredo e a sua malta do MFA gastaram apenas 8 minutos a consumar o êxito do 25 de Abril em todo o Entre Minho e Douro - até o Covid-19 acha que o Norte é uma nação -, fizeram apenas duas prisões, o 2.º Comandante e o Comandante da Região Militar, e por menos de 24 horas, e decidiram não prender o seu General Comandante, sem dúvida pessoa importante, considerando que aquele Quartel General era a sua residência familiar, a sua filha estar de casamento marcado para o dia 27 e serviço da boda contratado para ser servido seu Salão Nobre.

Em Lisboa, o 25 de Abril foi feito à grande e à escala de Clausewitz; no Porto foi feito à “Português Suave” e à moda de D. Afonso Henriques, em Guimarães!

O “vírus” do MFA surgiu na Guiné, em 1972, o General Spínola o seu profeta e os capitães “seus rapazes” da Spinolândia os seus apóstolos, no contexto da sua ambição de substituir o Almirante Américo Tomás no cargo de Presidente da República, para o que contava com a cumplicidade de Marcello Caetano; tendo-lhe este roído a corda, ao saber que diligenciava apoios políticos de Sá Carneiro, de Pinto Balsemão e da Ala Liberal e de Mário Soares, Salgado Zenha, da Acção Socialista Portuguesa, mantendo a cumplicidade com os seus capitães, como “barriga de aluguer” para a mudança. A influência do feitiço da Guiné e da dinâmica do pensamento e acção de Amílcar Cabral a contaminar militares e políticos portugueses, e, plausivelmente, a grande oportunidade perdida de dar um fim decente e justo às guerras ultramarinas.

Em 1972, o PAIGC estava na mó de baixo e o seu “balneário” de guineenses e cabo-verdianos era um saco de gatos. Foi quando Amílcar Cabral foi à Rússia implorar armamento da última geração. Ouvi Nino Vieira dizer na RTP que ele agitava o catálogo do míssil Strela enquanto implorava aos seus interlocutores: - A nossa luta está a morrer de sede; a União Soviética tem nesta arma a nossa salvação. Não nos deixem morrer de sede.

A União Soviética não se fez rogada e veio em seu socorro, redimensionou o armamento do PAIGC e, em Março de 1973, o seu semi-secreto míssil Strela chegava à Guiné e os seus operadores prontos para retirar a supremacia do seu céu aos pássaros metálicos de Base Aérea n.º 12, em Bissalanca.

Sendo a espinha dorsal do Exército, a classe dos Capitães é tradicionalmente refilona, qual espinha na garganta das hierarquias. No meu tempo já reclamavam contra as “violências do Ministério do Exército”. A revolta antecedente, o 28 de Maio de 1926, havia sido detonada por capitães (mas com hierarquia, o General Gomes da Costa o seu chefe) e foi a guerra do Ultramar que fez esgotar o prazo de validade dos quase 50 anos de centuriões e de convívio da classe com o regime do Estado Novo.

O 25 de Abril de 1974 foi detonado pela mesma classe dos Capitães, “rapazes da Guiné” na sua maioria, improvável, por ser um colectivo, e horizontal, sem chefe nem hierarquias. Uma revolta acéfala, quase perfeita, mas com consequências.

 Junta de Salvação Nacional

A operação “Viragem Histórica” não deixou cair o poder na rua, o MFA não quis o poder formal e personificou-o de imediato nos seus “padrinhos” Generais António de Spínola, Costa Gomes e na Junta de Salvação Nacional. Os seus actores regressaram aos seus quartéis, o Major Otelo, seu comandante operacional em Lisboa, voltou a instrutor na Academia Militar, o Tenente-Coronel Azeredo, seu comandante operacional no Porto, manteve-se sem comando nem comandados, a aguardar a Junta Médica do Hospital Militar, para o passar à reserva como “deficiente mental” e o Capitão Vasco Lourenço, o seu enfant terrible e locomotiva da revolta, protagonizou-o no seu desterro nos Açores.

A par da vitória do movimento em todo o universo português, da efectivação em Lisboa do poder político e da cadeia de comando militar, do Minho a Timor, na manhã do dia 26, o MFA de Bissau detonou a sua própria revolta, desnatou o Comando Militar na Guiné da sua cúpula, alardeando que o PAIGC e a Guiné eram a mesma coisa, os seus factores não eram arbitrários e começou a fazer o seu caminho, mais para se libertar e libertar Portugal da Guiné que libertar do seu povo. Com tão insano proceder num estado de guerra, o MFA da Guiné tornou-se em potencial vitorioso do PAIGC, e, sem ter legitimidade, subtraiu a Portugal o seu peso negocial.

Acontecera a primeira deriva do MFA. Não é preciso galões para saber que a melhor negociação é sempre conseguida a partir de posição de força e não com piedosas declarações de intenção da capitulação.

O MFA abriu avenidas a movimentos de opinião, legalizou 13 partidos políticos, 10 revolucionários de esquerda, apenas 3 moderados, decretou a proscrição dos movimentos da Direita e ele mesmo se dividiu em duas 2 facções político-militares: os spinolistas, representando cerca de 20%, tendenciais a um certo cesarismo, personificado pelo General Spínola e os “puros”, representando 80%., mais ou menos afectos à personalidade do General Costa Gomes.

Com o PREC (Processo Revolucionário em Curso), o MFA “empalmou” os spinolistas, passou a dividir o poder com a rua e a sua massa dos “puros” dividir-se-á em 3 facções: os moderados, da democracia por eleições justas e livres, respaldados no General Costa Gomes; os gonçalvistas, filo-comunistas ou engrenados nas suas estruturas partidárias, afectos ao General Vasco Gonçalves; e copconistas, os esquerdistas contestatários da democracia formal e os revolucionários da democracia directa, que converteram e alçaram a seu profeta Otelo Saraiva de Carvalho, ora graduado em Oficial-General.

As consequências da acefalia hierárquica do MFA começavam a vir ao de cima: o divisionismo resultou no PREC, no abandalhamento dos quartéis, que espantou o mundo e tanto maculou a honra castrense das FA Portuguesas, a tragédia da descolonização do Ultramar e a acelerada instalação do caos na organização económica da Sociedade portuguesa. O MFA que se portara à altura de todas as solicitações militares, parecia desconhecedor do seu próprio povo e da sua história.

Cap Salgueiro Maia
Os efeitos da sua acefalia e do seu colectivismo tiveram a sua evidência logo no seu primeiro momento vitorioso: aceitaram que Marcello Caetano, já rendido ao MFA e prisioneiro do Capitão Salgueiro Maia, lhes escolhesse o General Spínola para Presidente da Junta de Salvação Nacional/ Presidente da República de Portugal e, por inerência, Supremo Comandante das Forças Armadas!...

O MFA começou o seu desvario menos de 2 meses após o sucesso da sua revolta, ao tirar o tapete ao Prof. Palma Carlos e ao seu Governo, na sua falta de análise da discrepância da lógica civilista e de “estado de direito” do Governo com a lógica militar e voluntarista do seu Programa, e, enquanto noviços da democracia, sobrepuseram-se a democratas militantes, ajuizaram o valor da sua proposta ao Conselho de Estado, órgão composto por 12 militares e 7 civis, com poderes constituintes, escolhidos pelo MFA, como golpe conspirativo. Em última análise, propunha-se a busca de um “quadro jurídico”, pela troca da prioridade de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, pela de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, com começo na rápida eleição do Presidente da República e por um governo legítimo, empossado por ele.

Republicano e civilista, para o I Governo Provisório só o Povo legitimava o poder, uma cabeça um voto era urgente, um direito inalienável, daí a prioridade atribuída à democratização; para os “Capitães de Abril”, o poder residia no Programa do MFA, a sua legitimação residia no seu colectivo e no poder das suas armas, o controle político do Governo era uma prerrogativa revolucionária da Comissão Coordenadora, a descolonização tinha prioridade sobre a democracia formal.

E, enquanto considerou que, com a transferência da ditadura portuguesa para a ditadura dos seus partidos únicos e armados, sem permissão de outros partidos políticos nem quaisquer eleições, os povos do Ultramar ficariam automaticamente “livres”, o MFA procrastinou durante mais de 2 anos a democracia a Portugal, impôs-nos eleições constituintes, legislativas e presidenciais, e, após a instituição da nossa democracia pluralista, ainda a tutelou durante 7 anos com um Conselho da Revolução.

Gen Vasco Gonçalves
O MFA dos Capitães abrira-se às hierarquias, a Comissão Coordenadora alçou o seu presidente, Coronel Vasco Gonçalves à chefia do II Governo Provisório e começou a fazer o seu caminho para retirar o General Spínola de inquilino do Palácio de Belém, tecendo uma “teoria da conspiração”, ao embargar a manifestação em seu apoio, a ”Maioria Silenciosa”, segundo os seus promotores, coordenada pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, que havia comandado a “Operação Tridente” e derrotado o PAIGC nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, ou a conspiração do “28 de Setembro”, segundo o MFA e políticos apoiantes, que o COPCON desmantelou, a prender organizadores e manifestantes, a dinamizar cortes das estradas, barricadas e a permitir que milícias populares molestassem e prendessem pessoas a eito, por impulsão do fogoso Capitão Vasco Lourenço, o que o popularizará como o Capitão “Melena e Pá”. Vasco Lourenço aqueceu o forno e Otelo Saraiva de Carvalho coseu o pão. Como esse poder na rua foi concessão do COPCON, o evento serviu para germinar a facção político-militar copconista ou revolucionária, a que ele dará o seu patrocínio.

O Primeiro-ministro Vasco Gonçalves ascendeu ao generalato, formou e chefiou mais 3 governos provisórios mas populistas, o germe da facção político-militar gonçalvista, e, sem mandato do povo e na ausência de qualquer quadro político democrático, mudou profunda, embora provisoriamente, a nossa organização económica, com não raros atropelos à nossa realidade de 3.º país mais antigo do mundo, o respeito merecido pelos 900 anos de independência, de instituições governamentais e de história e, no referido à descolonização, os deveres e responsabilidades contraídos por Portugal para com os seus povos, ao longo de 500 anos da sua soberania ultramarina.

Em 11 de Março de 1975, eclodiu em Lisboa uma esquisita tentativa de golpe de Estado, anti-MFA, por terra e pelo ar, com o pretexto de prevenir o massacre de largas dezenas de militares e civis sob o nome código de “Matança da Páscoa”, a perpetrar por revolucionários naturais e internacionais (até constava haver tupamaros aboletados no Ralis!…), segundo informações do governo franquista de Madrid. O MFA superou-o e aproveitou para retirou a facção spinolista da circulação, catrafilando-a e a muitos civis na cadeia; os escapados à captura foram conspirar para a Espanha, organizaram-se no MDLP, e, por ironia do destino, constituirão o potencial estratégico dos moderados do 25 de Novembro, que meter na cadeia os gonçalvistas e os copconistas

11 de Março de 1975

Senti revolta, quando proeminentes Capitães de Abril não tiveram pejo em ir a Cuba pavonear-se de revolucionários e reverenciar Fidel Castro, apenas um ano era passado sobre a crise dos 3 G´s, planeada e comandada por oficiais do exército regular cubano, destacados para o PAIGC, que ajudaram a matar 63 e a ferir gravemente em combate 269 seus e nossos camaradas de armas, o preço do nosso sangue desses eventos bélicos; e o MFA não teve pejo em disponibilizar o aeroporto da ilha de Santa Maria, Açores, a Cuba, para escala técnica do trânsito do exército cubano, a substituir-se a Portugal em Angola, a ajudar o MPLA a espoliar os bens e na expulsão de centenas de milhares de portugueses, muitos com apenas a roupa do corpo (os Retornados).

É a memória que faz a História e não o contrário. Um facto não comentado e quase desconhecido: em 1973, a agenda de Marcello Caetano passara a inscrever a autodeterminação do Ultramar africano. Os Estados Unidos e a União Soviética “estiveram” na operação “viragem Histórica”?

Em 25 de Abril de 1974, a esquadra da NATO da operação “Daw Patrol” estava fundeada no Tejo e o MFA sabia - o então Comandante Rosa Coutinho estava de serviço ao “quarto da noite” no Comiberlant, em Oeiras, - que não dispararia sobre os revoltosos, não obstante a fragata canadiana Huran apontar os seus canhões ao Terreiro do Paço. Quando do 11 de Março de 1975, a informação da “Matança da Páscoa” teve origem em Moscovo e o evento coincidiu com a operação “Intex 75” da NATO, com passagem por Lisboa.

A prioridade civilista “democratização” não vingou sobre a prioridade militar “descolonização”. Na afirmativa, será plausível os contactos preliminares bilaterais terem passado a negociações sérias, prevenidos o êxodo ou o milhão de retornados do Ultramar, os mais de dois milhões de mortos das guerras civis subsequentes e o empobrecimento de colonizador e de colonizados e até os legítimos interesses dos 500 anos de soberania portuguesa salvaguardados.

A FNLA e o MPLA tinham perdido a guerra de Angola por falta de comparência, as negociações da sua autodeterminação estavam praticamente concluídas com Jonas Savimbi e a UNITA, a conceder em 1975, trabalho começado pelos Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e levado a bom porto pelo Eng.º Santos e Castro e os Generais Soares Carneiro e Passos Ramos (irmão do major homónimo assassinado no Pelundo-Guiné). No respeitante a Moçambique, havia negociações conduzidas pelo Eng.º Jorge Jardim. A Guiné era o nosso calcanhar de Aquiles, mas havia contactos com o PAIGC, do Comandante Alpoim Calvão e Luís Cabral.

Começar a descolonização pela Guiné e não por Angola terá sido o maior erro estratégico do MFA ou da descolonização portuguesa. O Programa do MFA inscrevia-a, mas nem a discutira nem a planeara, houve navegação à bolina, não se olhou para as origens das ondas e foi liquidada com a acelerada retracção militar, sem equidade, pelo abandono, para espanto do mundo - e Portugal ficará sob o protectorado do FMI, Fundo Monetário Internacional.

Portugal foi a única potência que fez a descolonização, a empobrecer colonizador e descolonizados.

Eleições Legislativas de 1975

Na sua curta era, o MFA garantiu-nos as eleições constituintes e legislativas e fez outras coisas notáveis, como o Recenseamento Eleitoral, a organização do regresso de centena de milhares de refugiados e a instituição do IARN, que realizou a sua integração plena.

A coragem e a generosidade são fontes do erro e foram apanágio dos “Capitães de Abril”. Mas o seu maior legado é a nossa Democracia.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Dada a extensão e a importância que se confere a este livro, justamente premiado com o Prémio Fundação Gulbenkian História Moderna e Contemporânea de Portugal, aborda-se neste texto a passagem de Cabral para a clandestinidade, a sua ligação íntima ao movimento anticolonial português, a sua instalação em Conacri, a tentativa de conversações com Lisboa, a procura de apoios, os preparativos militares, a organização ideológica do líder fundador e a sua visão de unidade Guiné Cabo Verde e o advento da luta armada.
Se o segundo semestre de 1962 foi fundamentalmente ditado por atos de sabotagem que gradualmente desarticularam o Sul da província, 1963 assume-se como o tempo da instalação de duas frentes, a Sul e a Norte e a tentativa falhada na revisão do território, os excessos rápidos foram tais que Cabral chegou a acreditar que a vitória estava próxima. Mas a reação de Lisboa foi enorme, o dispositivo militar crescerá exponencialmente. Como veremos com o desenvolvimento da luta armada.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Amílcar Cabral abandona discretamente Lisboa e em 1960 vamos encontrá-lo no Norte de África em reuniões relacionadas com as lutas anticoloniais da chamada África portuguesa. Segue depois para Conacri, cabe-lhe montar a organização do PAIGC, esboçar uma ofensiva diplomática que permita formação de guerrilha para muitos jovens, acesso a armamento, apoio financeiro, e muito mais. Julião Soares Sousa descreve detalhadamente os combates espinhosos travados com organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde em Conacri e em Dakar. Rafael Barbosa é o mobilizador dentro da Guiné Portuguesa. Em Dakar e Conacri o PAIGC goza de enorme hostilidade e vai vencê-la. No plano diplomático, e a nível do MAC (Movimento Anticolonialista), Cabral vai capitanear informações sobre o colonialismo português, terá a maior importância a sua viagem a Londres, trabalha ativamente na frente internacionalista, em grande unidade com figuras como Mário de Andrade e Viriato da Cruz, políticos de proa do MPLA.

O autor consagra ampla reflexão à problemática da unidade africana e à unidade Guiné e Cabo Verde, estuda-as num certo paralelismo, encontra pontos de simbiose. Os sonhos de unidade africana cairão praticamente todos na água. Cabral concebe um projeto de união sub-regional, alegando que guineenses e cabo-verdianos partilhavam uma origem ancestral comum, referia-se à circunstância dos escravos transportados para as ilhas terem sido exclusivamente originários da Guiné, que havia identidade administrativa desde o século XVI e até 1879 entre as duas colónias. Toda a documentação que irá elaborar na viragem da década de 1960 insiste nesta identidade de interesses, vai encontrar enorme oposição. Por exemplo o cabo-verdiano Leitão da Graça defendia que não havia ligações históricas entre aquelas duas colónias, dizendo mesmo: “Na época colonial, a Guiné e Cabo Verde estiveram ligados organicamente mas para o interesse do colonialismo”. Cabral procura replicar dizendo que os cabo-verdianos jamais poderiam comandar os destinos da Guiné, seriam os guineenses a decidir depois da independência quem iria dirigir o país. Estava lançada uma semente de surdo descontentamento, passava a ser tabu mencionar-se as relações rancorosas entre guineenses e cabo-verdianos, estes eram os mandantes do poder colonial, chefiavam a administração, possuíam negócios, eram inequivocamente racistas. O descontentamento ficará adormecido até aos acontecimentos brutais de 20 de Janeiro de 1973, em Conacri.

Conquistada a liderança do movimento de libertação da Guiné e Cabo Verde, apoiado por Sékou Touré, Cabral escreve a Salazar propondo conversações para a independência das colónias, nunca obterá resposta. Em Dakar, o PAIGC não tem uma vida fácil, Leopoldo Senghor apoia a FLING e o MLG, estes dois partidos irão fundir-se mais tarde. De 1961 para 1962, a repressão sobre os militantes do PAIGC na Guiné enche as cadeias, é impressionante a vaga de prisões, em Março de 1962 Rafael Barbosa será preso, mas a subversão não para, a partir do segundo semestre de 1962 todo o Sul da Guiné entra em tumulto. Usando a expressão do autor, Cabral e o PAIGC entraram na fase do “Estado em construção”. Aqui Soares Sousa detém-se longamente sobre o pensamento ideológico de Cabral em matérias como o imperialismo, o neocolonialismo, a cultura e libertação nacional e como esta já estava a gerar cultura e identidade específicas.

Escreve ao autor que até Janeiro de 1963 a estratégia de Cabral amparava-se na ideia do restabelecimento da legalidade internacional, do direito dos povos á autodeterminação e à independência. Mas foi incitando uma atmosfera de subversão, tinha poucas ilusões de que Salazar aceitasse os ventos da história, a onda da descolonização. A violência e a luta armada foram-se gradualmente substituindo aos métodos pacíficos, começaram os preparativos para o início da guerra. Cabral era simultaneamente um marxista típico e atípico, aceitava a parte funcional da ditadura do proletariado mas tinha uma visão própria do proletariado, da vanguarda pequeno-burguesa mas dizia sem ambiguidade que “por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto”. Cabral estudava e mandava estudar a estrutura social guineense, as sociedades horizontais e as verticais, as razões que levavam Fulas e Mandingas a apoiar os portugueses, a posição ambivalente dos comerciantes e dos camponeses, o seu apreço pelo campesinato Balanta. Entendia que a política de mobilização na Guiné não podia incidir sob os mesmos princípios dogmáticos adotados na Argélia ou na China. Muito menos podia ser justificada a luta de libertação com base em conceitos sobre o colonialismo ou o imperialismo. Na Guiné, o problema da alienação de terras nunca se colocou. “Para que a mobilização produzisse os resultados desejados devia incidir sobre aspetos da realidade que fossem inteligíveis para as massas. A atenção devia estar virada para os seguintes problemas: o baixo preço dos produtos agrícolas, a obrigatoriedade de pagamento de impostos, os abusos perpetrados pelos funcionários administrativos. Não foi por acaso que a subversão eclodiu justamente em zonas controladas por companhias monopolistas e em terras predominantemente habitadas por Balantas”.

Logo em 1961, quando o MLG atacou em Julho S. Domingos, Cabral se apercebeu que era indispensável acelerar o processo preparatório militar. Nesse ano os primeiros quadros partiram para a China. Marrocos e o Gana dotaram o PAI/PAIGC com as primeiras armas e munições. Depois da China, Moscovo tornar-se-á no principal aliado e fornecedor militar. Em Agosto de 1962 as sabotagens ganharam expressão no Sul, foram o antecedente próximo da luta armada. Esta inicia-se formalmente em Janeiro de 1963, eivada de dificuldades, ainda pouca preparação militar, armamento muito deficiente, processos intimidatórios que Cabral irá punir no ano seguinte, no congresso de Cassacá. A surpresa da estratégia utilizada foi muito grande, o dispositivo militar português instalara-se a contar com refregas nas fronteiras. E a seguir ao caos instalado na zona Sul que levou o Brigadeiro Louro de Sousa a escrever para Lisboa que o controlo era praticamente total por parte do PAIGC com exceção das povoações junto aos rios, a escalada ofensiva estendeu-se para a chamada Frente Norte, Cabral contava que a aceleração das sabotagens desarticulasse por completo a economia colonial, designadamente a monocultura do amendoim. Osvaldo Vieira e Francisco Mendes vão para a zona do Morés e são bem-sucedidos. A Frente Leste abrirá mais tarde, mas os relatório militares portugueses dão conta de situações muitíssimos graves, caso do Corubal que deixou praticamente de ser navegável. A luta armada estava de pedra e cal. Lisboa é forçada a mobilizar cada vez mais batalhões para a Guiné. No interior, PAIGC e as populações aliadas dos portugueses disputam-se encarniçadamente.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20986: Efemérides (326): Foi há 48 anos: fui gravemente ferido no decurso da Op Dargor, evacuado para o HM 241, em Bissau, e depois para Lisboa, o HMP (José Maria Pinela, ex-1º cabo trms, CCS/BCAV 3846, Ingoré, 1971/73), hoje DFA


Guiné > Bissau > HM 241 > c. maio/ junho de 1972 > Gravemente ferido em combate, em 14/5/1972, o José Maria Pinela esteve aqui internado dois meses, sendo sendo evacuado para o HMP, em Lisboa donde teve alva em 6/4/1973. É hoje DFA (Deficiente das Forças Armadas).

Fotos (e legenda): © José Maria Pinela (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. José Maria Pinela (DFA), ex-1.º cabo trms, CCS/BCAV 3846 (Ingoré, 1971/73), membro nº 685 da Tabanca Grande (desde 4 de maio de 2015) (*)

(i) assentou praça em Elvas,  BC 8, na 3.ª Companhia de Instrução do 3.º Turno de 1970, onde fez a recruta;

(ii) em Lisboa, no BC 5, fez a especialidade de Transmissões de Infantaria:

(iii) seguiu para Portalegre, BC 1, onde permaneceu até à mobilização  ("por sinal no dia dos meus 22 anos, 16 de Fevereiro");

(iv) daqui partiu para Estremoz, BC 3, a fim de formar Batalhão;

(v) foi colocado na  CCS / BCAV 3846, como 1.º  cabo trms;

(vi) a madrugada do dia 3 de Abril de 1971, o batalhão seguiu para  a Lisboa,  embarcando no T/T  Angra do Heroísmo, com destino à Guiné:

(vii) chegada a Bissau no dia 9 de abril de 1971;

(viii) depois de um mês no Cumeré, para a IAO, partiram  para a nossa zona operacional, duas companhias para o Ingoré, incluindo a CCS, outra para São Domingos e outra para Susana-Varela;

"Decorreu o resto do ano de 1971 conforme se pôde, até que entrou o ano de 1972 que começou mal como o ano anterior. A 14 de maio caímos numa emboscada, onde fui ferido e evacuado de helicóptero para o HM 241, em Bissau, onde permaneci durante cerca de dois meses, e de onde acabei por ser evacuado por via aérea para o Hospital Militar, Anexo em Campolide, de onde saí como DFA, no dia 6 de Abril de 1973, dado como incapaz para todo o serviço militar e apto parcialmente para o trabalho".

O BCAV 3846 regressou à metrópole a 13 de março de 1973. O pessoal tem vindo a realizar o seu convívio anual.


Guiné > Região de Cacheu > Carta de Sedengal > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Sedengal, Ingoré e mata de Canchungo, junto à fronteira do Senegal, entre os marcos 143 w 139.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


2. Para relembra esta fatídica efeméride, o 14 de maio de 1972, o camarada Pinela publicou, na página do Facebook da Tabanca Grande Luís Graça as quatro fotos acima reproduzidas,  mais a seguinte mensagem:

Olá,  camaradas de armas, ex-combatentes da Guiné! Bom dia a todos.

Faz hoje precisamente 48 anos, 14 de maio de 1972, começo do dia às 3 horas da manhã em Ingoré, operação Dargor, destino mata do Canchungo entre os marcos de fronteira norte 139-143, cerca das 8 da manhã primeira emboscada, onde eu fui atingido de imediato, era um alvo a abater logo de início, posto rádio Racal às costas, AVP 1 ao pescoço e todo o material que nos equipava. 

Aí começa toda a odisseia até à chegada dos Fiat G-91, do heli canhão e do heli de evacuação que me levou até HM241, em Bissau.

Aí chegado, fui recebido por uma equipa extraordinária que me salvou a vida, e não só, também alguns membros!

Sobrevivi até hoje felizmente, já outros não tiveram a mesma sorte e por lá perderam a vida ou partes do corpo! Para nada!!!

Aqui ficam algumas fotos desse domingo, 14-05-1972.(**)
_____________


Guiné 61/74 - P20985: Parabéns a você (1804): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Guiné, 1967/69)

____________

Nota do editor:

Último poste da série >  17 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20981: Parabéns a você (1803): António Pinto, ex-Alf Mil Inf do BCAÇ 506 (Guiné, 1963/65)