domingo, 4 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22066: Manuscrito(s) (Luís Graça (202): A Páscoa: este ano resta-nos a saudade... e as fotografias e os vídeos de antanho. E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.

.Páscoa: o fascínio do fogo!

Vídeo: © Luís Graça (2009). Alojado no Blogue A Nossa Quinta de Candoz










Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2012 >"As nossas comidinhas: o anho assado com arroz de forno, o práto festivo por excelência, o prato que se serve à mesa na Páscoa... que aqui era sempre à segunda-feira por causa do compasso que tinha de dar a volta toda à freguesia, de povoamento disperso"...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Páscoa antes da era Covid-19


Dantes, na era pré-Covid-19,
não havia Páscoa sem foguetes... nem compasso.
E muito menos sem o forno aceso,
e sem o sortilégio do fogo, 
que aquecia e alumiava e assava,
enfim, sem o arroz de anho assado no forno.

Não, não havia Páscoa,
sem as cerdeiras florirem,
e sem as videiras sorrirem,
e sem os abraços efusivos.
Não, não havia Pásccoa, sem os foguetes,
nem alegria na cara e no coração das gentes 
do Minho e do Douro Litoral...

Antes da pandemia, 
antes da era Covid-19,
com a crise ou sem ela,
e até mesmo depois da proibição 
do lançamento de foguetes de cana...

Ó vai ou racha, rapazes!,
que na Quaresma engordava-se o anho
para a grande matança da Páscoa...
Tudo isto, quando o Natal tinha o seu pinhão, 
e a Páscoa o seu tição,
e a salgadeira estava cheia do porquinho 
que era o governinho da casa.

Hoje tens a triste Páscoa do "take away", e das grandes superfícies,
e a autoestrada que te leva ao Norte,  vazia e  rigorosamente vigiada.
Em 2009, cada dúzia de foguetes custava a módica quantia de 30 euros.
Mas no domingo de Páscoa,
e por ocasião da visita do compasso,
o povo perdia a cabeça e armava-se em fino e em rico
para provar à Casa do Fidalgo quem tinha cagança...

Hoje o raio da Covid não olha a senhorios e rendeiros, 
os ricos e os pobres de antigamente,
e, aliada da morte, está à espreita mas não espera.

Quando o compasso chegava a uma casa,
o fogueteiro sinalizava a sua presença...
Os vizinhos, mais à frente, preparavam-se,
com grande excitação, para a cerimónia...
Todos, mal-enjorcados nos seus fatos domingueiros, 
os camponeses do Norte,
as mãos sem jeito erguidas ao céu 
quando era  preciso rezar a um deus maior.

Já não importa se a Páscoa 
é no domingo depois da primeira Lua cheia do equinócio da primavera,
há dois anos que perdeste a conta aos dias e aos meses do calendário.
Tradição rica de significado socioantropológico,
hoje em vias de desaparecer,
a tua Páscoa nortenha que adotaste.
Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia!,
estamos vivos e bem de vida, dizia o da casa, 
abrindo as portas aos vizinhos, parentes e amigos.

Domingo da Ressureição, 
carne no prato, farinha na mão,
que na Santa Feira Santa  comia-se o sável do rio Douro.
Acabava-se o jejum e a abstinência, 
para os pobres que não tinham bula.
Eram, afinal, dias de festa, os últimos da Semana Santa,
dias  de comes e bebes e foguetório,
tudo misturado com a religiosidade pagã e cristã,
que formatou corpos e almas.
Folgai enquanto puderdes, que noutra hora chorais,
lembrava o padre Agostinho.

À noite, do terraço da varanda de Candoz,
assistia-se, de borla, na era pré-Covid,
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício,
quando o compasso recolhia, cansado, à noite,
depois de andar por montes e vales,
o homem da cruz à frente, 
e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta.

Depois da visita do compasso,
e bem arrotado o arroz de anho assado no forno,
era o espetáculo talvez mais aguardado do ano,
a disputa em fogo de foguetório 
entre cada uma das freguesias circunvizinhas
ali em frente, naquele cenário de presépio.
Olhai, Paredes de Viadores, olhai, Passos de Gaiolo!
E já os de Mesquinhata se adiantavam e agigantavam,
mais os de Santa Leocádia, Grilo e Ribadouro...

Todos, afinal,  a competir pelas luzes da ribalta do céu,
e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior.
E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade,
mostrados aos que se sentavam na plateia 
deste vale de lágrimas que sempre foi a terra.
Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi,
e os solstícios do inverno e do verão,
e os equinócios da primavera e do outono,
só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho.

Havia palpites, críticas, comentários, exclamações...
sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia.
E no final Paços de Gaiolo era o  vencedor...
Alguém tinha que ser o vencedor,
garantia o padre Agostinho, 
que no céu, meus filhos,  a seleção sempre fora, 
desde os primórdios,  muita apertada,
e nem todos poderiam ficar à direita de Deus Pai.
 
Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte, 
naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega,
que alimentaram um milhão de portugueses durante séculos
e que ajudaram a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever,
e muito menos latim.

Na era da Covid-19, 
há dois anos que não há Páscoa, nem compasso, nem fogo, nem forno.
Nem abraços nem chicorações, só quando muito abracelos...
Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos, 
cheios de mazelas os menos velhos,
cada gente das várias famílias espalhada pelas diásporas.

No passado, ao almoço,  não podia faltar o arroz de forno,
que, em cada ano que passava, 
estava sempre melhor do que o do ano anterior.
Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte a idade ia apurando.
Ou então era tudo devido simplesmente  à saudade 
destes sabores da infância e da tradição.
Agora até o raio da Covid, diziam, tirava o olfacto  e o sabor às cozinheiras...

Podia chover, que em abril águas mil,
mas a água não apagava o fogo da paixão da vida,
nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos,
o forno aceso,  
o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!,
o pão de ló dos Lenteirões, a aletria, 
os foguetes a estalar no ar, alto e longe,  
a caneca de porcelana, que luxo!, 
por onde se bebia o vinho verde tinto,
os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros,
o vinho verde novo que jorrava da pipa e  alegrava os corações,
a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...

E os cães a ladrar. 
Mas até os cães morreram.
Tal como o padre Agostinho.
E as velhas casas de granito se cobriram de musgo
e as janelas de teias de aranha.

O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te.
Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça.
A sua origem remontaria à época dos jacobinos, mata-frades,
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais,
provocando a pobreza do cura da aldeia
que, sendo filho de Deus, também tinha de comer e beber.
O compasso pascal seria a  forma expedita
de compensar a perda de rendimentos do pároco.
As esmolas que as famílias punham no saco do compasso, no final da visita,
revertiam originalmente para o pé-de-meia do padre...

Ah!, mas até os padres morriam, 
em tempo de peste e  de Covid, lia-se  na gazeta de Lisboa.
E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses,
coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva.
E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aqueloutro.

Já nada é como dantes,
desde que o mundo que tu conhecias começou a soçobrar.

A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social,
o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos,
alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados, 
e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...

Já não havia contos de réis, é verdade, 
nem lendas e narrativas de  brasileiros 
que fizeram fortuna no Novo Mundo.

Este ano da desgraça de 2021 resta-nos a saudade... 
e as fotografias e os vídeos de antanho.
E a Covid-19 que nos confina e nos espreita.
Mas também a esperança de que, no fim,
vamos triunfar sobre esta maldita pandemia, 
como trinfámos sobre a peste negra, a varíola, a cólera, a pneumónica...

Lourinhã, 4 de abril de 2021.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de março de  2021 > Guiné 61/74 - P22047: Manuscrito(s) (Luís Graça) (201): O pôr-do-sol no Atlântico, no tempo do não-tempo do confinamento (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22065: Parabéns a você (1947): Agostinho Gaspar, ex-1.º Cabo Mec Auto da 3.ª C/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22061: Parabéns a você (1946): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS/STM (Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72)

sábado, 3 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22064: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte XIV: atividade operacional, fevereiro / março de 1968, destaque para a Op Boa Bisca, em Iador, Bigene


(Cortesia de João Borges, 2005)



1. Começámos a publicar, em 17/11/2020, uma versão da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), a primeira, de origem metropolitana, a operar no CTIG. (Hão de seguir-se lhe, até 1974, mais as seguintes: 5ª, 15ª, 16ª, 26ª, 27ª, 35ª, 38ª e 4041ª CCmds.)

O documento mimeografado, de 42 pp., que nos chegou às mãos, é da autoria de João Borges, ex-fur mil comando, infelizmente já falecido (em 2005), e que vivia em Ovar. Trata-se de um exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges".

Uma cópia foi entregue pelo José Lino,  ao nosso blogue, para publicação. (*)



História da 3ª Companhia de Comandos
(1966/68)

3ª CCmds
(Guiné, 1966/68) / João Borges

Fevereiro / março de 1968

Parte XIV (pp. 33 - 35)





(Continua)


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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22063: Os nossos seres, saberes e lazeres (444): Quando vi nascer a Avenida de Roma (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
No princípio era o Verbo, o Verbo foi a chegada à Rua António Patrício, chegar, ver e vencer. Dizem que a nossa infância tem muito de aborrecido, dei pouco por isso, com uma mãe daquelas, combativa e solícita, falando sempre verdade quanto às nossas dificuldades, ensinando-me cedo as regras da autonomia, com aquele olival em frente de casa, talvez ali plantado nos tempos do Sr. Marquês de Pombal, as brincadeiras, os amigos de todas as proveniências, a escola, a Biblioteca Municipal das Galveias, com o Mosquito, o Cavaleiro Andante e o Mundo Aventuras, a geografia em plena ebulição, ver aquelas artérias rasgadas, as alterações do comércio e os primeiros vagidos da sociedade de consumo. Assim aconteceu na minha infância e adolescência, num bairro configurado em linhas morais do Estado Novo, casas grandes para famílias grandes, até chegar ao que hoje designamos por T2, e que podiam ser casais com dois filhos. Muitos funcionários, no meu prédio havia alguém ligado ao Sindicato dos Caixeiros, outro nos serviços administrativos no Hospital Júlio de Matos, uma enfermeira-parteira, um funcionário das atividades económicas, que nos alegrava os fins de tarde a dedilhar o piano com valsas nobres e sentimentais. E tudo muito próximo, um elétrico punha-nos até á entrada do Lumiar em 18 minutos, autocarros que vinham da Encarnação até ao Cais do Sodré, seguiu-se o metropolitano que ligava Entrecampos aos Restauradores, a malha alargou-se, vimos nascer a Cidade Universitária, a Biblioteca Nacional, desapareceu uma fábrica de têxteis e apareceu um quartel, hoje edifício da Lusófona. E preparem-se, serei naturalmente excessivo nos epítomes e litanias ao frondoso Campo Grande da minha meninice. E afinal tão próximo da Avenida de Roma.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (2)

Mário Beja Santos

Cheguei às quintas do Visconde de Alvalade em 8 de março de 1952, a rua de nome António Patrício, diplomata e escritor assim-assim, praticamente esquecido, coube-nos um rés-do-chão no n.º20, neste roteiro de memória fixo a imagem do n.º 12, do rés-do-chão esquerdo saía pelas 8:10, 8:15 da manhã o Luís Filipe Salgado de Matos, recentemente falecido, estávamos na mesma turma do Colégio Moderno, eu esperava-o à porta do n.º 20, lá íamos à galhofa Campo Grande fora, às vezes fazíamos paragem no regresso numa biblioteca municipal ao ar livre num espaço onde atualmente há um amplo ginásio, perto de um lago que na nossa juventude estava pejado de cisnes e belo arvoredo envolvente. Muitas vezes fui lanchar a sua casa, a mãe do Luís Filipe, de nome Maria Luísa, gostava muito de mim, eu gostava muito da companhia do Luís Filipe, inteligente e bom conversador.

A zona residencial cheirava a fresco, tinha aquele contraste um tanto grotesco de haver uma quinta com muros ainda setecentistas encostados ao alcatrão, comércio não havia, virá mais tarde com os prédios verdes, quando nascer a Avenida dos Estados Unidos da América, Avenida de Roma abaixo até à Praça Mouzinho de Albuquerque. Descia com uma lista de compras até à Rua de Entrecampos, era a via comercial por excelência do tempo, ali se ferravam equídeos, havia drogarias, a ampla mercearia de esquina com a Praça Mouzinho de Albuquerque, cabeleireiros, um talho de carne de cavalo, um sapateiro remendão, e muito mais. A miudagem entretinha-se nas suas brincadeiras quer no olival, o remanescente da quinta ao abandono, que confinava cá em baixo, já junto da esquadra com os armazéns que irão desaparecer quando o novo projeto arquitetónico ocupar a velha quinta e plantar ali a Clínica de São João de Deus. Lá para cima, é a Avenida de Roma, tem curiosamente ainda casas do bairro, já lá iremos.

O que agora se impõe referir é que eu andava frenético, viera a meio da primeira classe, supliquei à minha mãe para irmos prontamente até à Escola Primária n.º 151, que hoje dá pelo nome de Escola Básica dos Coruchéus, situada entre a Rua Mário de Sá Carneiro, Rua Fernando Pessoa e Florbela Espanca, queria a tempo e horas retomar os estudos. Caiu-me a alma aos pés, acompanhei a minha mãe, todo ufano, tinha uma sacola feita pela minha avó, livros e cadernos, uma ardósia, lápis e giz. A diretora foi categórica, só podia voltar em outubro, ainda não tinha completado os 7 anos, fiz berraria, pedi à minha mãe para voltar para Algés para acabar o ano letivo, o que é que eu ia fazer até outubro, a minha mãe sossegou-me, não era por acaso que se diplomara no Magistério Primário, pôs-me a fazer cópias e contas, trabalhava na Maternidade Dr. Alfredo da Costa, muitas vezes levava-me e deixava-me no serviço de registo dos recém-nascidos da Maternidade. Ali ficava sentado a ouvir uma senhora de nome Natércia a convocar para o registo seres humanos que vinham com ar feliz ou infeliz, comecei a ouvir falar em mães solteiras, vi pais desgostosos, parecia que aquelas crianças em vez de ser uma fonte de alegria tinham vindo ao mundo para ser um estorvo, a Natércia depois de pedir a identificação aos pais ia preenchendo a certidão, fazia a leitura em voz alta, os presentes assinavam, saíam felizes, menos felizes e até contrafeitos. E assim foi passando o tempo e no início de outubro entrei na escola, conhecia muitos dos miúdos, um grosso era totalmente desconhecido, era a malta de Telheiras, de pé descalço, roupas remendadas ou adaptadas de gente mais crescida, calções com fundilhos, adoravam a escola porque havia uma cantina que dava as refeições sociais, uma sopa bem adubada, um bom carquejo com torresmos e uma peça de fruta, ao findar a escola um lanche, um leite com cevada e pão com talisca de marmelada. Guardei a alegria destes meus companheiros que viviam na miséria, esta comida era-lhes uma bênção.
A minha professora era a D.ª Emília Santos, sempre com o ponteiro na mão, não admitia graçolas. Com os meninos de Telheiras e a malta do bairro mal sabíamos que estávamos a aculturar-nos. Como se fosse hoje, estou a ver a D.ª Emília no estrado em frente ao quadro a garatujar uma sofisticada subtração, houve um ruído insólito, um verter de águas, virou-se de chofre e apanhou o Hermenegildo em flagrante, a parede fumegava urina. “Tu és um selvagem Hermenegildo, porque é que não pediste para ir à casa de banho?”. E o Hermenegildo, com cara de caso, respondeu-lhe com toda a inocência: “Eu estava à rasca Senhora Professora, ou mijava agora ou sujava-me nas calças!”. E D.ª Emília Santos parecia apoplética: “Meu bruto, para que é que se fizeram as casas de banho?”. E o Hermenegildo replicou com a candura e a sinceridade que o timbrava: “Lá em casa não há casa de banho, Senhora Professora!”.

Esta é a minha escola, em bairro novo a crescer no meio dos descampados, confluem filhos de operários com a pequena burguesia, os meninos de Telheiras vêm de autênticas alfurjas em quintas decrépitas e das azinhagas para lá do Campo Grande.

O discurso da D.ª Emília é para ser tomado a sério, muito do que ela verberava eu já tinha ouvido à minha mãe: a escola serve para inculcar valores, roteia-nos para os princípios, aqui iremos descobrir que pertencemos a um povo com imensa História, que os Portugueses estão espalhados pelo mundo. Aqui aprende-se que a Pátria é coisa que não se discute. Primeiro vamos aprender a língua pátria, dominar as vogais e as consoantes, descobrir os sons que envolvem as sílabas, martelar, articular, abrir e fechar, dou um exemplo: “É um dia de verão. Faz muito calor. Os ceifeiros, curvados, ceifam as cearas. Com as foices cortam os caules. Os carros levam os cereais para as eiras”.
Mal acabava a escola, íamos fazer o reconhecimento das redondezas. Naqueles primeiros anos da década de 1950 este edifício filipino era um pardieiro, aqui os varredores guardavam os seus carrinhos de mão, pás e vassouras, estava tudo decrépito. Anos mais tarde esta região dos Coruchéus embelezou-se com a construção de estúdios destinados a artistas, ainda lá estão e espero que beneficiem muitos e talentosos artistas. O bairro tinha uma curiosidade que nos facilitava a exploração: caminhos alcatroados, uma verdadeira rede arterial entre todas as ruas. Aqui há uns dias atrás, subi com a minha neta a Rua Violante do Céu, junto do antigo cinema Alvalade, passámos pela Escola Primária N.º 33, onde também a minha mãe deu aulas na Campanha Nacional de Educação de Adultos, e andámos por esses caminhos, passando por ruas transversais da Avenida da Igreja, fui-lhe mostrando jardins aprimorados ou desmazelados, outros transformados em arrecadações e até reconheci um pombal, tivemos um nas enormes traseiras da Rua António Patrício, que dava para os jardins da Escola Primário N.º 151.
A minha mãe encontrou rapidamente uma solução financeira para os seus pesados encargos em função do seu magro vencimento de segunda oficial da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Aceitou em horário pós-laboral entrar na Campanha Nacional da Educação de Adultos. E a primeira ocupação que lhe saiu na rifa foi na Fábrica de Borracha Monsanto, na Rua do Centro Cultural, era a artéria do Bairro vocacionada para ter edifícios de escritórios, armazéns, fábricas e até igrejas. Subia-se a Rua Acácio Paiva, transversal da Avenida da Igreja, passava-se o Clube Atlético de Alvalade (onde hoje faço ginástica de manutenção) e do lado direito havia a fábrica, guardei o cheiro da borracha e a indizível alegria de um operário, vestido de fato-macaco, todo brunido depois do seu duche, as mãos enegrecidas e gretadas a percorrer as linhas, e num dado momento formou a palavra esperança, foi silabando e quando acabou olhou para a minha mãe como se lhe tivesse sido dada a notícia do nascimento de um filho, abria-se uma janela para a sua autonomia, para voar mais livremente. No regresso a casa, a minha mãe comentou: “Habitua-te, filho, são estes momentos da vida que nos fazem esquecer todo e qualquer sofrimento”. Muitos anos mais tarde, quando viver na Avenida do Brasil, percorrerei esta rua com duas filhas pequenas e o cão de nome Golias, vamos até à Avenida Rio de Janeiro visitar um poeta octogenário, José Gomes Ferreira, um amigo do coração.
Esta imagem é recente, dá conta como tudo mudou, entaiparam-se os velhos caminhos que permitiam circular resvés os quintais, do lado direito o muro da escola, descíamos a caminho de um espaço onde jogávamos à bola ou ao berlinde, passávamos ao lado da secção feminina, a separação de sexos era obrigatória, a convivência impossível, mesmo na partilha de jogos.
Temos aqui prédios do Bairro Social de Alvalade na Avenida de Roma. Nunca entendi a organização do Bairro, o que é hoje a Praça do Santo António estava destinado a ser um grande pavilhão polivalente, outros interesses se sobrepuseram, de modo que há um lado da Avenida da Igreja dominado ainda por construções do Bairro Social, do lado de lá, em direção à Igreja de S. João de Brito já é outro tipo de construção, mas nas ruas transversais mantém-se a lógica do Bairro Social, um pouco como se irá encontrar na Avenida Rio de Janeiro.
Sempre me acicatou a curiosidade este edifício contíguo ao último prédio do Bairro Social na Avenida de Roma, em direção à Praça do Santo António. Vi-o nascer e cedo me deixei surpreender como é que aquele caixote de cimento ganhara uma outra dimensão com a estrutura posta no 1º andar, trata-se de um detalhe, seguramente económico, que deu outro caráter à construção, ainda hoje contemplo com emoção, está perto do que foi a Pastelaria Sul América, atravessando a rua resta uma relíquia dos primeiros tempos, a Pastelaria Jacaré Paguá.
Importa explicar o porquê desta imagem, não tem nada de atrativa. Mas foi neste ponto que lá de baixo, bem pertinho da estátua dedicada aos Heróis da Guerra Peninsular, vimos os caterpílares, iam começar a escavacar o olival, terraplanou-se toda a estrada até ao Campo Grande, o resto veio por acréscimo, estas quatro belíssimas torres que enquadram o cruzamento, muito mais tarde os prédios verdes do lado direito, e a construção igualmente moderna mas com outros toques de inspiração do lado esquerdo, não se vê, encostada a uma parede ergueu-se um cinema com filmes de culto, o Quarteto, quatro salas, quatro filmes, descia-se em direção ao Bairro de S. Miguel ou subia-se em direção à Avenida de Roma.
Por último, uma referência a quem, construída a Avenida dos Estados Unidos da América, veio habitar por estas paragens. Eram declaradamente quadros, gente de posição, paravam o carro e saía o general Arnaldo Schulz, parava outro carro e saía o maestro Frederico de Freitas, também nos prédios verdes vivia José Estevão Sasportes, mais tarde ministro, mas que era um estudioso da dança, frequentador das tertúlias do Vá Vá, onde se encontravam gente ligada à Poesia 61, ali pontificavam Eduardo Prado Coelho e Laura António. Vamos voltar à Rua António Patrício e passar à Avenida de Roma, vê-la nascer e crescer.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22043: Os nossos seres, saberes e lazeres (443): Quando vi nascer a Avenida de Roma (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22062: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (84): Pedido de colaboração aos nossos leitores para resposta a algumas questões sobre o Movimento Nacional Feminino ( Sílvia Espírito-Santo, doutoranda pela Universidade do Minho, biógrafa de Cecília Supico Pinto)


Capa do livro de Sílvia Espírito-Santo, “Cecília Supico Pinto: o rosto do movimento nacional feminino”. Lisboa: A Esfera do Livro, 2008, 222 pp.


1. Mensagem de Sílvia Espírito-Santo, investigadora:


Date: quinta, 1/04/2021 à(s) 16:43
Subject:  Informações sobre o MNF - Movimento Nacional Feminino
 

Caro Luís Graça,

Agradeço-lhe a rápida resposta ao meu pedido e o envio dos links que têm óptima informação.

Fico-lhe muito grata pela disponibilidade em publicar o meu pedido de colaboração aos ex-combatentes que seguem o seu blogue.

No âmbito do trabalho académico que estou a desenvolver sobre o Movimento Nacional Feminino (MNF), venho solicitar o favor da colaboração através de uma revisitação de memórias.

Para facilitar o encadeamento de ideias segue um conjunto de questões (a título meramente indicativo), oara ser rspondido poe email:

  • anos em que o militar fez a comissão de serviço, teatro de operações e local(ais) por onde andou;
  • idade e zona de origem do militar;
  • se teve algun contacto directo com o MNF, quer com as "senhoras" do Movimento, quer com a presidente da Organização, Cecília Supico Pinto, e em que consistiu;
  • se durante a comissão,  a unidade ou subunidade  a que pertencia, foi visitada por alguma pessoa da Organização;
  • se sim, como encarou  essas visitas e qual o seu efeito no seu ânimo e no ânimos dos seus camaradas:
  • o que sabia na época,  do Movimento e das frentes em que este actuava nas colónias e na metrópole;
  • alguma vez  se dirigiu directamente ao MNF para pedir alguma coisa e qual a resposta;
  • o que pensava  nessa altura sobre o Movimento  e a sua líder.

Texto a enviar para:

Sílvia Espírito-Santo >  smves@hotmail.com

Cordialmente
Sílvia Espírito-Santo

P.S. - Luís Graça, será que era possível saber a data e o jornal em que foi publicado o anúncio dos aerogramas que vem num dos links que me enviou?


2. Sobre a investigadora, a doutoranda Sílvia Espírito-Santo:

(i) Doutoranda em História Contemporânea na Universidade do Minho, mestre em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta, licenciada em História na Faculdade de Letras -Universidade de Coimbra;

(ii) Investigadora integrada do Lab2PT (Laboratório de Paisagens, Património e Território) na Universidade do Minho e membro do projecto WOMASS – Women and Associativism in Portugal, 1914-1974, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, financiado pela FCT no âmbito do projeto PTDC/HAR-HIS/29376/2017;

(iii) Publicou os livros:

Cecília Supico Pinto – O rosto do Movimento Nacional Feminino (Biografia), Esfera dos Livros, Lisboa, Fev.2008;

Adeus até ao teu Regresso, O Movimento Nacional Feminino na Guerra Colonial, 1961-1974, Livros Horizonte, Lisboa, 2003.

(iv) Publicou ainda capítulos de livros e artigos em revistas e participou em Conferências nacionais e internacionais.


 3. Resposta do editor LG:
 
Sílvia, obrigado pelo seu contacto. Temos no nosso blogue umas dezenas de referências quer ao Movimento Nacional Feminino (45) quer à sua fundadora, mentora e líder, a Cecília Supico Pinto (37)... 

Num blogue aberto e plural como o nosso,  há diferentes atitudes e opiniões sobre o papel que desempenho na época esta organização. Mas, de um modo geral, uam boa parte dos militares tinham apreço e até carinho pela Cecília, mesmo quando discordavam politica e ideologicamente dela e do MNF... 

Posso enviar-lhe depois uma lista completa de todos os nossos postes (de um total de mais de 22 mil) que publicámos com estes  dois descritores acima referidos... E vou tentar responder à questão que põe no "post scriptum".
 
Como combinado,  publicamos hoje sua mensagem, com indicação do  endereço de email para os membros da nossa Tabanca Grande (tertúlia)  poderem responder às suas questões e contactá-la para uma eventual entrevista... 

Haverá por certo camaradas nossos mais próximos do MNF, até por razões familiares ou porque estavam em aquartelamentso que foram vitados pela Cecília Supico Pinto. Creio que ela foi à Guiné, quatro  vezes, durante a guerra, 

Espero que a leitura dos postes (e dos comentários) também lhe dê informações preciosas, fotos, contactos, etc. E faço votos para que os nossos leitores mostrem o seu interesse e disponibilidade em responder-lhe. Todos ganhamos com o aumento e o aprofundamento do conhecimento sobre esse período da nossa História, que foi a guerra colonial / guerra do ultramar.

 Saudações / Mantenhas (em crioulo). Boa saúde, bom trabalho. Luís Graça

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Nota do editor:
 

Guiné 61/74 - P22061: Parabéns a você (1946): Álvaro Vasconcelos, ex-1.º Cabo TRMS/STM (Aldeia Formosa e Bissau, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Março de 2021 > Guiné 61/74 - P22050: Parabéns a você (1945): António Graça de Abreu, ex-Alf Mil Inf do CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74); Rosa Serra, ex-Alferes Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1969) e Valdemar Queiroz, ex-Fur Mil Art da CART 2479/CART 11 (Contuboel, Nova Lamego e Paúnca, 1969/71)

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22060: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (46): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Findas as férias da Páscoa, Annette volta ao trabalho em Bruxelas e arredores, Paulo Guilherme enfronha-se nas suas atividades e volta à escrita noturna, manda os seus apontamentos, fotografias e correspondência que ao longo dos anos foi recuperando para a sua fiel cronista, mas Annette tem o seu próprio sentido de exigência, vai fazendo perguntas, quer perceber aquele sentimento de luto de Paulo Guilherme, está prestes a abandonar o Cuor, e ele explica-lhe a natureza da relação que se selou com toda a população, com os pelotões de milícias, mesmo com os soldados que vão acompanhar em Bambadinca e que estão convencidos que vão ter muito menos canseira comparativamente à vida que levaram no Cuor, basta pensar naqueles sempre inquietantes patrulhamentos diários a Mato de Cão. Como se verá adiante, estavam profundamente enganados, o desgaste vai continuar. Nota-se na correspondência entre Annette e Paulo que os corações estão mais serenos, pertencem mais um ao outro, está atenuada a amargura daquela distância física que ninguém ilude, ambos pensam na forma de viverem juntos sem cortar radicalmente nos rendimentos, ambos têm que ajudar filhos que vivem com dificuldades ou no trabalho precário.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (46): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette mon adorée, peço-te muita desculpa por só hoje te escrever, tivemos férias inesquecíveis, tu recordarás que passei um dia reunido com outros diretores da minha associação, vive-se presentemente nela uma situação difícil na opção estratégica de se manter um quadro de atuação no seguimento das atividades que levamos há décadas ou darmos um salto em função dos novos desafios da globalização, da digitalização e da sustentabilidade. Há associações que receiam o salto em frente, alegam que nos distinguimos dos ambientalistas, enfim, há trabalhos que se podem fazer em comum, mas somos distintos, na Direção contrapomos que esta parceria se tem que estreitar sob pena de ficarmos confinados a uma proteção do consumidor onde deixará de pesar o sentido da cidadania. Será esta a grande discussão nos próximos meses.

Recebi novos primores do teu carinho e do teu desvelo com a história da comissão da Guiné, a matriz do romance que em boa hora aceitaste colaborar no processo ficcional. Recapitulando os dados que me pedes, creio que ficou claro o que andei a fazer por Bissau naqueles dias em que tratei dos olhos e um carniceiro me arrancou um siso e tratou de má vontade de duas cáries, deve estar habituado a arrancar tudo, dei-lhe trabalho desusado, fiz amizade com o oftalmologista, imagina tu que passados todos estes anos sempre que visito os Açores o encontro é obrigatório, a minha gratidão não tem preço pelo alívio que me trouxe saber que os olhos não foram afetados por toda aquela explosão da mina anticarro. Visitei aquele meu furriel que teve um colapso nervoso, segundo o psiquiatra será um processo longo de recuperação. Antes de regressar ao Cuor comprei uma braçada de livros, jantei com o meu antigo furriel Saiegh, prometi que o iria visitar a Fá Mandinga, onde ele vai ser integrado numa companhia de comandos. Mal sabia eu que era a última vez que o via, soube mais tarde que foi fuzilado em finais de 1977, inventou-se que os antigos comandos que combatiam do lado português estavam mancomunados para um golpe de Estado, nunca se apresentaram provas, terá sido um pretexto para inventar um inimigo numa época em que já grassava muito descontentamento pelas políticas de Luís Cabral.

A próxima questão que me pões, sobre o sentimento da partida do Cuor, obriga-me a ir buscar memórias dolorosas, felizmente que as estou a partilhar com a minha adorável companheira. Lembra-te como cheguei ao Cuor, sentia-me um menino de coro, procurar penetrar e decifrar aquele ambiente cultural totalmente estranho; a querer reagir naquela atmosfera de destacamento mal amanhado, não havia sanitários, o balneário era uma espelunca como espelunca era o espaço onde comíamos, pomposamente designado por messe; o arame farpado caído, os abrigos em derrocada, tinha havido uma grande flagelação em 1966, perdeu-se muito equipamento e infraestruturas que não foram depois recuperadas; dei conhecimento da situação a quem comandava em Bambadinca, deram-me uns escassos sacos de cimento, fui pedindo mais e mais, apareceu sanitário, apareceu balneário, apareceu arame farpado, houve motivação para melhorar o espaço coletivo onde comíamos e conversávamos; na visita do comandante-chefe e do chefe do agrupamento de Bafatá fui asperamente criticado pelo estado de degradação, responsabilizado por ter o quartel misturado com as habitações da população civil, como se fosse possível, a ir praticamente todos os dias patrulhar até Mato de Cão, ter disponibilidade, saber e meios para recriar todo o espaço habitacional de Missirá; e gradualmente foi-se estabelecendo uma grande confiança com os meus soldados e com os civis, arranjou-se professor para as crianças e para os soldados, fizeram-se regularmente colunas até Bambadinca para levar doentes ao médico ou para tratamentos de enfermagem; as cercas de arame farpado foram consolidadas, não faltou abastecimento de arroz, os nossos dois cozinheiros foram estagiar na cozinha da messe de oficiais, o nosso rancho, a despeito das grandes carências, passou a ser mais apaladado; aprendi a contabilidade, encontrei no Sousa Pires um colaborador impecável para termos o expediente em dia; enfim, houve fusão de afetos e aquela maravilhosa Festa de Natal marcou decididamente o nosso relacionamento; a minha amizade pelos Soncó e pelos Mané é enorme.

Annette, às vezes dou comigo, graças à memória fotográfica, a conversar com o meu cozinheiro Quebá Sissé, com a lavadeira Binta, mulher de Sila Sabali, um soldado que fora ferido com gravidade na sua mão direita, a operação cirúrgica permitiu-lhe total mobilidade, a despeito de a mão ter os dedos estranhamente posicionados, muito gentil era o Sila, lembro o José Jamanca, que depois da guerra foi tirar um curso de eletricista a Leningrado e vive em Lisboa, e que me procura muitas vezes no emprego, não escondo o calor do encontro, a alegria de nos revermos. Tudo conjugado, meu adorado amor, eu sabia que quando saísse do Cuor todo aquele tempo passaria a ser passado, por isso andava com o coração contrito e não tinha ilusões que a intervenção em Bambadinca seria tanto ou mais espinhosa que a vida no Cuor.

Perguntas-me como foi a vida no último mês. Deixei-te aí a relação de três pequenas flagelações, tenho muita gente doente, é o final da época das chuvas, no próprio dia 14 de novembro, em que partiu o pelotão de caçadores 52 e chegou o Alves Correia à frente do pelotão de caçadores 54 houve flagelação. Fiquei três dias em Missirá a fazer a entrega e a levar comigo a documentação comprovante do que ali deixara, queria prevenir futuras dores de cabeça. Entreguei louvores dos meus militares, senti muito orgulho por todas as minhas propostas terem sido consideradas. Ainda hoje recordo, imagina tu, a minúcia com que fizemos autos de abate, se redigiram as existências de lençóis e fronhas, a comida que ficava, os dados sobre o combustível.

E chegou o momento do memorável adeus a Missirá. Dias antes da transferência, guardei nos meus apontamentos que esse almoço teve lugar no dia 10 de novembro, convidei o régulo, os chefes de tabanca, vários homens grandes do Cuor, os comandantes dos dois pelotões de milícias para uma bacalhauzada. Houve discursos, exprimi a minha gratidão, o meu amor pelo Cuor, no final o régulo Malã Soncó anunciou que passava a pertencer à família, os meus deveres e obrigações com os Soncó iriam continuar, e saltaram-me as lágrimas quando ele tirou do dedo um anel de prata dizendo-me que tinha pertencido a Infali Soncó, agora era meu.

Minha adorada Annette, estou perdido de sono, preciso de te contar ao pormenor a minha última viagem a Mato de Cão e a partida para Bambadinca. Só voltarei a Missirá a caminho da Operação Tigre Vadio, a mais sangrenta de todas as minhas operações, em 1970.

(continua)
Bissau Velho, um pormenor
Capela de Bambadinca
Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. Fotografia do início de março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois aquele balneário era indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Tenho muitas saudades do meu querido cozinheiro, um bonzão com as crianças a quem cedia as nossas sobras.
A imponência da árvore secular (ou quase) cravada num palmeiral
Missirá, 1966, a morança do alferes que me precedeu
Morança, entre agosto de 1968 e março de 1969
A minha morança, ardida na flagelação de 19 de março de 1969
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Nota o editor

Último poste da série de 26 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22039: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (45): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22059: (In)citações (183): A propósito da(s) jangada(s) do Cheche... e lembrando aqui mais mártires do Boé: o major Pedras, da Chefia do Serviço de Material, QG/CTIG, e o fur mil Jorge, do BENG 447 (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM; CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > Partida de mais um coluna logística com destina ap Cheche, Beli e Madina do Boé. Era sempre uma operação de grande envergadura, envolvendo muitas viaturas e pessoal.  Normalmente iam elementos da CCAÇ  5 (Canjadude) à frente, a picar a estrada. A companhia de intervenção de Nova Lamego, naquela época (set 1967/ abr 1968)  era a CART 1742, do Abel Santos. "Sentia estas deslocações como algo de grande perigo, dadas as minas, os mortos e feridos que  caíram por aquela estrada, e com este sentimento, resolvo um dia acordar mais cedo e fazer as fotos, que para mim, são uma ‘nostalgia’ incrível, que nunca esqueço". (*)

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário,   ao poste P22053 (**),  de Virgílio Teixeira [, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem 161 referências no nosso blogue]:

O DESASTRE DO CHECHE

Alguns contributos para a tentativa de esclarecer aquele terrível acidente, que por muito tempo que ainda andemos por cá, nunca será esclarecido, é um daqueles mistérios que ninguém quer ver revelados, é a minha opinião, sem qualquer intenção de julgar, até porque nada sei mais do que os outros.

O Abel que não tenho o prazer de conhecer, esteve em Nova Lamego e Buruntuma. É mais antigo que eu, perguntava-lhe se esteve lá no mesmo período que eu; 21-09-67 até 26-02-68. 

A CART 1742 fazia parte de um grupo de 17 Unidades que estiveram naquele período sob o comando do BCAÇ 1933. Eu não conhecia bem as instalações da chamada Companhia de baixo, a CART 1742, ao contrário, em São Domingos, com a CART 1744, que conhecia e bem e confraternizávamos, pois, aquilo era mais pequeno, e que penso que a 1744 ser do mesmo Batalhão.

Estive a ler,  na História da Unidade, todos os acontecimentos no período de Nova Lamego, e não encontro referência a muita coisa, não sei qual o critério que seguia a história.

Contudo vejo que a CART 1742 estava sediada em Nova Lamego, apenas o 3º pelotão estava em Camajabá. O Abel não sei de que pelotão era.

Ele diz que a foto nº 1 é de Janeiro de 1968, estava eu lá, em Nova Lamego, e notava-se sempre grande burburinho com as famosas colunas para Madina e Béli, tudo se agitava à volta deste tipo de acontecimentos, eu tenho reportagens feitas de madrugada a quando da saída das colunas.

Na história da Unidade – HU – não consta por exemplo a emboscada que provocou a morte do Alferes Gamboa e outros, perto de Piche,  da CCAV 1662, foi no 4º trimestre de 67.

Como também não refere aqui um caso que muito chocou a malta em Nova Lamego: a emboscada de uma coluna vinda de Nova Lamego, após rebentamento de minas perto do Cheche, e na sequência da qual foi morto com uma bazuca o Major Pedras, entre outros. 

Este acontecimento causou grande consternação, em especial à mulher e família que estavam em Bissau. Os pormenores foram-me contados por um dos meus amigos, um soldado condutor, que estava lá presente, e que eu encontro com frequência em Vila do Conde, é um empresário da Têxtil em Guimarães, que me tem muito em consideração, e que eu retribuo.

Este oficial que eu conheci na messe, pertencia ao Batalhão de Engenharia [BENG 447], e vinha com frequência a Nova Lamego, pois era o responsável pela operacionalidade da Jangada da morte.

Nunca me ocorreu, mas agora pergunto: essa foto nº 1, seria já uma nova jangada com as 3 pirogas mandada construir pelo Major Ruas? Não sei mais nada.

No dia 17 de Janeiro de 1968, dá-se a operação Lince, nome dado à operação de retirada da CCaç1589 de Madina do Boé, substituída pela CCAÇ 1790 do meu Batalhão e do Capitão Aparício. 

Esta operação de 5 dias mobilizou enormes meios humanos e materiais, e lembro-me de ter assistido à chegada dos homens daquela companhia a Nova Lamego completamente pirados, com o devido respeito, tinham passado um ano naquela fogueira, isolados do mundo.

O Abel, caso tenha participado nesta operação, deve saber muito mais, e pelo menos sabe mais do que eu, mesmo que não tivesse estado nessa operação.

Fica aqui o meu pequeno contributo, para a história deste caso, 

PS - O incidente no Cheche, atrás referido, teve como protagonistas o Major Pedras   bem como o Furriel Jorge, ambos foram atingidos, um morreu no local - o furriel Jorge - o Major foi evacuado para o HM 241 em Bissau, onde veio a falecer pouco depois. A esposam após ver a sua morte, deu-lhe um ataque,  insultando todos de «assassinos».

Aquela jangada da foto nº 1 não é a do acidente [, em 6 de fevereiro de 1969], esta é uma pequena jangada só para pessoas, a jangada do acidente era enorme, para levar GMC e militares, não podia ser esta.

Foi-me contado por um soldado condutor que esteve no local várias vezes e assistiu a tudo, inclusive na ajuda a carregar o Major para o Heli, ele era um homem forte com peso, um farto bigode. Eram ambos do Batalhão de Engenharia de Bra, e responsáveis pela manutenção da estrutura de travessia do Rio Corubal, no Cheche. (***)

2. Comentário do editor LG:

Virgílio, é a primeira vez, se bem recordo, que aqui se fala dessa emboscada, durante uma  coluna logística no Boé,  que vitimou um oficial superior, o major Pedras, além do furriel mil Jorge, que dizes terem pertencido, ambos,  ao BENG 447.

Na Liga dos Combatentes > Mortes do Ultramar vem a seguinte nota de óbito;

Nome: Luís Vasco da Veiga Ferreira Pedras
Posto: Major;
Ramo: Exército;
Teatro de operações: Guiné;
Data: 15/01/1968;
Motivo: Combate
 
A única referência que temos, no nosso blogue, a este oficial superior (, que não era do BENG 447 vem no poste P1370 (****):

(...) Chefia do Serviço de Material / QG-CTIG

Luís Vasco da Veiga Ferreira Pedras, Major do Serviço de Material, natural de São João das Caldas / Guimarães, inumado no cemitério do Alto de S. João em Lisboa, foi vítima , em 13Jan68, de ferimentos recebidos em combate junto a Fariná, durante uma coluna no itinerário Canjadude ao Che-che, vindo a falecer no Hospital Militar 241 em 15 de Janeiro de 1968.

O fur mil Abílio Duarte Jorge, que morreu logo no local, em 13 de janeiro de 1968, esse é que era do BENG 447. Era natural de Montelavar, Sintra.

O martirológio do Boé é impressionante, foi há aqui feito há 15 anos atrás pelo nosso dedicado camarada e amigo, José Marcelino Martins, ex-fur mil, da CCAÇ 5, "Gatos Pretos" (Canjadude, 1968/70). (****)
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(****)  Vd. poste de 15 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

Vd. também postes de:


21 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22058: O nosso blogue em números (71): Nos primeiros três meses de 2021, tivemos 232 mil visualizações de página (média diária: 2580); publicámos 330 postes; foram feitos 1550 comentários; entraram mais 12 novos membros para a Tabanca Grande... E no dia 23 de abril de 2021 comemoramos 17 anos de existência, esperando que os nossos leitores se associem à nossa festa!


Fonte: Blogger, 1 de abril de 2021

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


1. São números que podem ter algum interesse para os nossos editores, colaboradores permanentes, autores, comentadires, leitores e público em geral:

De a de janeiro a 31 de março de 2021 (90 dias):

(i) o nº de viualizações de páginas do nosso blogue (grosso modo, "visitas") chegou às 232 mil visualizações (média diária: 2580); (e, na próxima semana,  atingirenos o toatk de 12,6 milhões de visualizações);

(ii) publicámos 330 postes (3,66 por dia);

(iii) foram feitos cerca de 1550 comentários (17 por dia);

(iv) ingressaram na Tabanca Grande mais 12 novos membros (dos nõs 828 a 839) (4 em média por mês), algnns a título póstumo.

Temos além disso, 775 seguidores.

Sobre a origem dos nossos visitantes, nestes últimos 3 meses de confinamento, temos algumas supresas:

(v) vem em primeiro lugar Portugal (25%), seguido da Suécia (12,6%), dos EUA (12%) e, surpreendentemente, e pela primeira vez, a Guiné-Bissau (com 0,9%), à frente da Alemanha (0,8%)...



... E dia 23 de abril de 2021 fazemos anos!... 17 (dezassete)... 

Alguns "cartanitos de parabéns" sob a a forma de contribuições singelas mas originais dos nossos leitores, serão bem vindos... mesmo sabendo que estamos todos ouase todos cansados da guerra, talvez até da vida...  e sobretudo da crise e do confinamento, resultantes da pandemia de Covid-19. (LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21754: O nosso blogue em números (70): em 2019 e 2020, entraram 40 novos membros para a Tabanca Grande: somos agora um total de 824 (dos quais 10% já faleceram)

Guiné 61/74 - P22056: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (36): Um levantamento de rancho servido com uma bofetada


1. Em mensagem de hoje, 1 de Abril de 2021, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), envia-nos um recorte de uma carta enviada à então sua madrinha de guerra, hoje esposa, onde relata um acontecimento raro na tropa, um levantamento de rancho, assegurando que não é uma "peta" do 1.º de Abril.


Um levantamento de rancho servido com uma bofetada

Amigos,

Todos nós, uns mais que outros, que tivemos a responsabilidade de conduzir homens, fomos confrontados com situações que bem preferíamos não tivessem acontecido. Foi o que me aconteceu no dia 31 de Março, no AGRBIS, em Brá, Guiné. Nesse quartel estava sediada a minha companhia e outras forças militares de Serviços e Comando.

Naquele dia, a pedido do comandante da minha companhia, Sr. Cap. Rogério Rebocho Alves, estive de Sargento de Dia. Isso obrigou-me a 72 horas de serviço seguido, nada a que os militares da nossa companhia não estivessem habituados, excepto para os três furriéis que desempenhavam as suas funções de Sargento da Guarda no Palácio do Governador que, devido às suas funções, tinham descanso entre serviços. Eu era um desses felizardos.

Naquele dia 31 de Março, quando entrei no refeitório apercebi-me que iria haver borrasca, um levantamento de rancho. Para além de um distraído da minha companhia, que ao aperceber-se do seu erro tentou disfarçar, ninguém tocara no que estava sobre as mesas. O Sr. Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, de quem esqueci o nome, também se apercebeu de que o militar da minha companhia havia tocado no prato, melhor, sujado o prato, e perguntou-lhe porque não comia. Não ouvi a resposta daquele militar, um 1.° Cabo (sinto não ser necessário a publicação do seu nome para esta história) mas o Sr. Oficial de Dia virou o prato e de imediato esbofeteou aquele militar. O silêncio que se fazia sentir tornou-se sepulcral.

Sem outra alternativa os soldados começaram a comer e não houve mais incidentes. Ao fim da refeição, quando me preparava para sair, o Sr. Oficial de Dia chamou-me e ordenou-me que participasse de todos os militares da companhia presentes na refeição. Confesso que fiquei estarrecido e perguntei-lhe o motivo. Insubordinação foi a resposta dele. Na verdade, um preço muito alto a pagar pela bofetada que ele dera num militar da nossa companhia e foi isso mesmo que lhe disse.

Foram 27 participações que tive que escrever e que coloquei sobre a secretária do comandante da minha companhia. Ainda estou a ouvir o Sr. Capitão Alves, um homem de inefáveis qualidades humanas, com ele seu típico, “mas que chatice!”. Havia que haver uma saída para aquela situação, uma saída que de alguma forma se enquadrasse no Regulamento de Disciplina Militar. E assim foi. Naquela altura já se sabia que a companhia iria sair de Bissau. O Capitão reconhecia que eu tinha entregue as participações e ele tinha 30 dias para actuar sobre elas. No mato, num acampamento, quem se iria lembrar das referidas participações?

O Sr. Oficial de Dia esteve muito mal na sua actuação, mas sempre me perguntei porquê? Ele, julgo que em fim de comissão, certamente iria sofrer algumas consequências se o levantamento de rancho tivesse ido por diante. Para além disso, ele não fora o vagomestre e muito menos o cozinheiro. A sua responsabilidade, que era muita, esteve em não ter actuado sobre a qualidade da refeição. Não sei até que ponto ele o poderia ter feito num quartel que tinha como comandante o Cor. Santos Costa, na altura conhecido como o “Onze”.

As participações, passados os trinta dias, passaram ao álbum da neblina das minhas memórias.

Sobre esse assunto, no dia 1 de Abril de 1971, o último dia que estive de Sargento de Guarda ao Palácio, escrevi uma carta há minha madrinha de guerra, da qual publico o que importa para esta pequena história.

Um abraço amigo e a certeza que estou com todos vós e vossos familiares nesta hora difícil que o mundo atravessa.

José Câmara


Extracto da carta que escrevi à minha madrinha de guerra no dia 1 de Abril, a última que escrevi no Palácio do Governador
Foto tirada nos jardins do Palácio do Governador, em Bissau
Um dos meus passeios preferidos no AGRBIS ao longo da plantação de papaeiras
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20488: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (35): Canção de Natal

Guiné 61/74 - P22055: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (23): Estorninhos e pardais, todos somos iguais

1. O Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", mandou-nos,  em 24 de fevereiro passado, mais uns pequenos textos para "reviver as nossas vivências na Guiné". com a seguinte nota de apreço  e amizade, que agradecemos  e retribuímos:  "Boa tarde, amigo. Um abraço grande de amizade do Barros. E parabéns pelo teu trabalho no seio do blogue".
A sinfonia dos estorninhos…

por Carlos Barros


Após um “lauto” jantar, na caserna do 3º grupo de combate, eu, o furriel Barros, estava a conversar com o soldado condutor Fernando de Almeida, natural de Oliveira de Azeméis, sobre as suas madrinhas de guerra que eram de Ovar, por sinal, irmãs…Falávamos dos amores e traições sofridas.

A Guiné dispunha de uma fauna apreciável e relativamente importante, com destaque especial para as aves: pelicano, gaivina, íbis, garça e flamingo, na costa marítima.

No mangal, zonas de água doce e húmidas, o corvo marinho, mergulhão-serpente, egreta –grande, pássaro-martelo, cegonha, singanga, maçarico, serpentário, águi , picanço-bárbaro, pica-peixe, jabiru, patos, gansos, pavão, grou, tarambola, pardal, poupa, andorinha, rola, gavião, águia, cuco, pavão, noitibó, mocho, calão-grande, abelharuco, papagaio, periquito, picanço pomba-verde, palrador, melros , estorninhos…

Era já noitinha, e deliciava-me a ouvir os cânticos dos melros, pousados nos ramos das palmeiras, bem lá no alto e dizia eu para o Almeida:

− Há dias matei um destes estorninhos, precisamente naquela palmeira e estou muito arrependido porque perdi o seu canto, que seria belo no seio daquele “bando coral”, lembrando-me do grupo do Canto Coral do meu tempo de estudo, primeiramente na Escola Primária, com a Professora D. Isolina como maestrina e, mais tarde, no Externato Colégio Infante Sagres, de Esposende , cujo maestro era o Padre Avelino…

Foram longos minutos a ouvir “obras musicais canoras” daquela “melrada” afinadinha, uma delícia para o meu ouvido, já destreinado da sua sensibilidade inicial, porque os estrondos das bombas dos bombardeamentos, dos RPG 2 e 7, e o matraquear das “costureirinhas e das Kalashese tinham-me ferido os tímpanos daí, minha actual perda parcial de audição, num dos meus ouvidos.

Esta sessão foi bruscamente interrompida porque fomos flagelados, mais uma vez, pelos canhões e morteiros dos guerrilheiros do PAIGC e, como defesa, encentámos uma fuga rápida para os nossos abrigos, valas e espaldões de morteiros para responder ao inimigo.

Foram momentos de angústia e de tremenda pressão porque a morte estava sempre a pairar no ar…

Os estorninhos, esses, antes das granadas explodirem e com o seu barulho ensurdecedor, partiram a grande velocidade para destinos incertos!

Ainda hoje, no quintal de Vila Cova, adoro ouvir os melros cantarem e até, como agradecimento, coloquei uma pia para eles beberem e refrescarem-se, com algum alimento-produto  a acompanhar!

São os remorsos da guerra,  contudo, as Associações Protectoras de Animais, e até o PAN - Partido das Pessoas, Animais e Natureza,  perdoar-me-ão estes atos e isso aconteceu porque estava eu “apanhado da guerra” e os nossos sentimentos e personalidade encontravam-se transtornados daí, a condescendência para estes comportamentos, nem sempre compreensíveis para os humanos que nunca viveram a guerra com quem convivemos, no meu caso e de outros camaradas   durante 25 meses e 18 dias no inferno da da Guiné (1972/74).

− Estou crente que os familiares do estorninho  falecido me perdoarão por ter abatido um deles! − pensei cá para comigo. − E, parafraseando o provérbio popular da nossa terra, também  eles concordarão comigo; "Estorninhos e pardais, todos somos iguais!"...

Um dos momentos mais felizes da minha vida foi o meu regresso à Metrópole, a Lisboa, deixando a guerra para trás, na altura um jovem, que era um homem de paz com profundo défcie de liberdade que o 25 de Abril me deu como prenda saborosa…

Usufruindo dessa liberdade, arduamente conquistada, quero deixar aqui um agradecimento especial ao nosso amigo editor, o professor Luís Graça  que,  com o seu / nosso Blog Tabanca Grande,  dá voz àqueles que nunca tiveram voz antes do dia 25 de Abril 1974.

Estamos,  com as nossas estórias reais, vividas na Guiné, a construir a História da Guerra Colonial, que nem sempre, é compreendida ou por ignorância, ou por má fé…

Dessa aterradora realidade da guerra apenas me restou a amizade entre os militares e, não é por acaso, que nos reunimos anualmente, há 45 anos consecutivos em convívios e essa “palavra aurífera”, em teoria e em atos, a amizade, continua reluzente, fresquinha,  ativa…

Carlos Manuel de Lima Barros

(Ex-furriel Miliciano,
Bissau, Bolama, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74)

Esposende 14 de fevereiro de 2021
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21991: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (22): minas, terríveis minas...