segunda-feira, 21 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22304: Tabanca Grande (519): Alfredo Fernandes, ex-1º cabo aux enf, CCAV 678 (1964/66)... Natural de Valença, vive em Viana do Castelo, é enfermeiro aposentado do SNS. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 842.



Alfredo Lopes Fernandes, ontem (1963) e hoje (2021)


1. O nosso blogue continua a juntar antigos combatentes da Guiné, nossos camaradas, muitos deles perdidos pelos quatros cantos da solidão deste país... De todas as épocas, do período que vai de 1961 a 1974, e de todas as armas e especialidades.

Um deles foi o Alfredo Lopes Fernandes, natural de Valença do Minho, a residir em Viana do Castelo, enfermeiro do SNS, aposentado.  Fez a recruta em 1963, em Braga, no RI 8, passou pela Escola de Saúde em Coimbra, o RI 12, fez o Estágio no Hospital Principal em Lisboa, Cirurgia Praças, tendo terminado a sua formação em 1964 como 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem. É depois integrado na CCAV 678 (1964/66),  tendo estado na Ilha do Sal, Cabo Verde e, a maior parte do tempo, na Guiné. 

Acabou por perder o contacto dos seus camaradas da CCAV 678,  ao ser transferido para o Enxalé.  Passaria ainda pelo Xime e Ponta do Inglês... mas também pelo Cacheu e outras localidades. Não sabe dizer o número dessa companhia. Na realidade, pode ter integradio forças do BCAÇ 512 (1963/65) ou a CCAÇ 508 (1963/65). Diz que regressou a Bambadinca para embarcar com os seus camaradas da CCAV 678, de volta a casa.

Nunca mais teve contacto com estes camaradas. Era conhecido pelo Enfermeiro Valença. O seu percurso na Guiné foi quase sempre fora da Companhia. "E até que Deus me deixe,  sou conhecido como Enfermeiro Alfredo Fernandes em Viana do Castelo". (...)

Escreveu-nos a dizer: "Não fazem ideia da alegria que me proporcionaram. (...) Gostaria de aderir à Tabanca Grande." (*).

E eu respondi-lhe: "Terei todo o gosto em acolher-te na Tabanca Grande, sentando-te à sombra do nosso poilão no lugar nº 841 (o próximo, disponível). Gostava, no entanto, de ter uma foto tua do tempo da tropa e da guerra."

Já foi feita a sua apresentação no poste P22251 (*)... Mandou-nos agora, "depois de uns dias de férias", a foto da praxe que estava em falta. E vai sentar-se, tranquilamente, sob o nosso poilão, não no nº 841 (que já tem dono, o João Rodrigues Lobo), mas no seguinte, o nº 842.(**)

Pois que sejas bem vindo, meu caro Alfredo Fernandes.

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Guiné 61/74 - P22303: Notas de leitura (1362): “Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto; Rosa de Porcelana Editora, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Em 2016, aqui se fez menção ao livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem", um conjunto de mais de 50 cartas que versam a relação entre Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, um arco de missivas que vão desde a aproximação amorosa até aos preparativos da partida de Maria Helena para acompanhar o líder do PAIGC no exílio. Iva Cabral, a filha mais velha do casal, era a depositária deste valioso espólio. Agora a investigadora Aurora Almada e Santos, de colaboração com a segunda mulher de Amílcar Cabral, Ana Maria Cabral, que vive em Cabo Verde e é membro-dirigente da Fundação Amílcar Cabral, coligiu e contextualizou com rigor este acervo de bilhetes-postais que o líder revolucionário endereçou à mulher entre 1966 e 1972. Um documento indispensável para conhecer melhor o homem e a causa pela qual deu a sua vida.

Um abraço do Mário



Postais de viagens de Amílcar Cabral, cânticos de amor e saudade

Beja Santos

“Itinerários de Amílcar Cabral”, organização de Ana Maria Cabral, Filinto Elísio e Márcia Souto, Rosa de Porcelana Editora, 2018, é uma reunião de postais de Amílcar Cabral endereçados à sua segunda mulher, Ana Maria Sá Cabral e aos filhos, da Escandinávia à África Ocidental, de Marrocos ao Médio Oriente, ficou-nos o legado de bilhetes-postais vintage onde se fala da saudade, dos cuidados, dão-se informações ligeiras sobre congressos e meetings, é permanente a preocupação com o estado de saúde da mulher amada. Esta é credora de todo o seu afeto.

Logo no postal de 10 de dezembro de 1966, de Genebra: “Ana, Sem ti, as maravilhosas entrecôtes do café de Paris não valem nada”. A Suíça era uma plataforma para se alcançar outros países e Cabral mantinha contactos regulares com organizações de solidariedade no país. No ano seguinte, expede do Cairo outro postal onde se vê mar, rochas e palmeiras: “Olha bem para este postal: a ânsia de vida dos rochedos espelhada no verde das palmeiras, da esperança no isolamento do mar. Do infinito também, porque o dever fecunda a certeza – e a saudade, amor”. Cabral ia assistir à conferência da Organização de Solidariedade com os Povos Afro-asiáticos, com sede no Cairo. E escreve ao filho: “Querido Raúl, o papá tem pena de estar fora de casa no dia dos teus anos. Mas pensa muito em ti, faz votos para que cresças bem e sejas um grande militante do nosso Partido, para servires bem o nosso povo. Que a mamã não se esqueça de te fazer um bolo bonito”

Em julho do ano seguinte, escreve da Argélia: “O Osvaldo (talvez Osvaldo Vieira) trouxe-me um raio de sol: a tua carta. Acho que em vez de te resignares a viver só, deves decidir-te a acompanhar-me, que sou o teu companheiro”. Ainda em Argélia, nessa viagem, escreve à mulher: “Ana querida, Um dia será erigido um monumento ao camelo, pilar silencioso da presença do homem na aridez do mundo. Eu admiro os camelos na sua elegância própria, mas sobretudo na altivez do seu olhar”

Em outubro desse ano escreve de Dacar para a RDA, envia um postal como a imagem de uma aldeia africana: “A beleza de uma paisagem pobre está mais no sonho do seu progresso do que no equilíbrio dinâmico do seu espaço, humano ou físico. O sonho só é realizável no conhecimento: assimilar o essencial da realidade para transformá-la. Esta é a nossa luta: conhecer para transformar no sentido do progresso, a realidade física e humana da nossa terra. Nela, estou convencido dar mais do que tenho ou posso. Não, porque tu existes como minha companheira”

No ano seguinte, novamente do Cairo: “Espero que estejas já menos triste ou só com a tristeza da minha ausência. Eu estou triste porque não estás comigo, mas me alegra imenso o crer que cada dia estarás mais ao meu lado mesmo quando não estou. E eu ao teu lado também”. Recorde-se que o Cairo, tal como a Argélia, tornara-se num centro de apoio à luta contra o colonialismo. Nasser entendia que a República Árabe Unida não poderia ficar indiferente perante a persistência do colonialismo. Em 1970, de Túnis, envia um postal com a vista portentosa de Monastir: “Quando estou ao pé de ti – e estás bem-disposta, sorridente – a vida brilha como este dia de sol azul nos desertos da Tunísia. Que sejas o meu oásis – e eu o teu – nos vendavais desta luta gloriosa”

No ano seguinte, em Addis Abeba: “Ana querida, Apesar das pobrezas, das misérias e grandezas de um ‘império’, a Etiópia é rica de cores humanas e naturais. Espero que um dia, que não tarda muito, tu virás aqui para, juntos, admirarmos e aprendermos. Tenho muitas saudades tuas e penso nos dias que vais ter com o tratamento, porque os ouvidos são muito delicados”

Dias depois, ainda no decurso da sessão da Organização da Unidade Africana, envia à mulher um postal com uma jovem etíope, num quase perfil e com uma cabaça na cabeça: “Esta deve ser uma das expressões de mulher das mais belas do mundo. Mas será de certeza a segunda, porque, para mim, a primeira és tu, meu amor”

Tempos depois, em Estocolmo, a imagem do bilhete-postal é uma tulipa: “Aqui está uma tulipa: bela, altiva, rica de silêncios e de mistério. Como tu, companheira. Que tenhamos longa vida na luta difícil mas gloriosa pela libertação e progresso do nosso povo: para que à luz da tua beleza, na altivez cada dia mais construtiva dos teus gestos, transformemos os silêncios em alegria de viver e o mistério na força da nossa vida: o amor pela justiça”

Em março de 1972, envia de Trípoli um postal com a imagem do mercado de Leptis para o filho: “Raúl, Um dia, que não tarda muito, tu serás um homem, viajarás pelo mundo e conhecerás as maravilhas que o Homem criou. E saberás que a melhor maravilha que o Homem criou é o próprio homem de que as crianças como tu, são as flores.
Beijos do papá”.

Trata-se de uma edição cuidadosíssima, a contextualização histórica coube a Aurora Almada e Santos, insere textos de António Guterres, Guilherme D’Oliveira Martins, Jorge Carlos Fonseca e José Maria Neves. Márcia Souto e Filinto Elísio já nos tinham brindado com outro livro igualmente de Amílcar Cabral, “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: A Outra Face do Homem”, Rosa de Porcelana Editora, 2016, versa um conjunto de 53 cartas que o líder do PAIGC enviou à colega, namorada e primeira mulher, é um documento relevante na justa medida em que permite aquilatar a dimensão afetiva do estudante de agronomia até à partida para o exílio do líder revolucionário. 

Voltando aos itinerários de Amílcar Cabral, eles poderão ser muito importantes dado o facto de cartografar e calendarizar o percurso de um dos mais reconhecidos dirigentes da luta pela autodeterminação, são testemunhos de um desvelo amoroso, de uma presença constante a pedir ajuda para a sua causa, fala insistentemente na saudade, esteja em Moscovo, Nova Iorque ou Estocolmo, permitem conhecer o estado de espírito do lutador, ir sentindo a palpitação pela credibilidade e aceitação do líder do PAIGC na cena mundial.

António Guterres refere o livro de memórias de Gérard Chaliand, “A Ponta da Navalha”, onde o intelectual conta que quando disseram a Nelson Mandela “Tu és o maior”, este terá replicado: “Não, o maior é Cabral”.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22279: Notas de leitura (1361): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", de Adriano Miranda Lima; Março de 2020, Edição de Autor (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74- P22302: Reavivando memórias do BENG 447 (João Rodrigues Lobo, ex-cmdt do Pelotão de Transportes Especiais, Brá, 1968/71) - Parte I: sem falsa modéstia, um exemplo de empenhamento e competência

 

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 > O João Rodrigues Lobo, ao volante de uma viatura.


Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 > O João Rodrigues Lobo junto às viaturas. O PTE tinha 90 condutores. Legenda do autor: "1969. Frente à coluna experimental".



Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 >  "1970: prestes a sair com a coluna de transporte de máquinas"



Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 >  "1969: Em cima de um autotanque".


Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 > "1969: mais uma foto para a pose".



Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 >  s/d: "uma enorme coluna do PTE".... A estrada (asfaltada) não está identificada, mas podia ser a de Nhacra - Mansoa - Mansabá... Não havia muitas na altura... Vê-se ao fundo aquilo que pode um aquartelamento. Por outro lado, a vegetação é rasteira, dando indícios de capinagem relativamente recente... (LG)



Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > PTE (Pelotão de Transportes Especiais) > 1968/1971 > O novo jipe sul-africano.

Fotos (e legendas): © João Rodrigues Lobo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Joaquim Costa / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1, Mais fótos do álbum do João Rodrigues Lobo, que acaba de entrar para a nossa Tabanca Grande (*),

Recorde-se que, sendo natural de´Óbidos,  mas estando a residir em Luanda, foi fazer o 1º COM na EAMA (Escola de Aplicação Militar de Angola - Nova Lisboa), no último trimestre de 1967,  

Tirou a especialidade de Transportes Rodoviários no CICA - GAC 1, em Luanda. Quando estava colocado no Quartel General de Angola - 4ª Repartição, sendo comandante de MVL (Movimento de Viaturas Logísticas), fazendo as as colunas logísticas destinadas ao norte de Angola, é mobilizado para a Gunié, como Alferes Miliciano. 

Passa a comandar o PTE (Pelotão de Transportes Especiais) do BENG 447. Chega ao CTIG,  em rendição individual em dezembro de 1968, na véspera de Natal.

 O Pelotão de Transportes Especiais (PTE) era constituído por: (i) um alferes miliciano; (ii) dois sargentos do QP ; (iii) quatro furrieis milicianos; e (iv) cerca de noventa condutores auto (quase uma companhia...), parte deles do recrutamento local.

O PTE era responsável pelo transporte do pessoal de Engenharia, das Máquinas de Engenharia, e de todos os materiais de construção para e nas obras de estradas, aquartelamentos e reordenamentos.

O PTE também recepcionava todos os materiais militares que eram recebidos em navios fretados e carregava os materiais nas LDG e LDM da Marinha, no cais do Pijiquiti, para distribuição pelos aquartelamentos por estas servidos.

Faz questão de dizer que "o trabalho desenvolvido pelo nosso PTE foi, sem falsa modéstia, um exemplo de organização e dedicação de todos os seus elementos, que contribuiu para o meritório trabalho realizado por todos os militares, engenheiros e profissionais do BENG 447. Os condutores auto estavam sempre onde era preciso, sem eles NADA SE MOVIA !" (*)

Acabou a Comissão em Janeiro de 1971, passndo à disponibilidade em 11 de fevereiro de 1971. 

Prometeu-nos "reavivar as memórias do BENG 447, Grande Batalhão que concretamente FEZ OBRA!"
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 20 de junho de  2021 > Guiné 61/74 - P22300: Tabanca Grande (518): João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez 1967/fev1971)... Fez o 1º COM, em Angola, Nova Lisboa. Vive em Torres Vedras. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 841.

domingo, 20 de junho de 2021

Guiné 61/74 – P22301: (Ex)citações (387): "Memórias da Minha Aldeia" (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

"Memórias da Minha Aldeia" 

Camaradas,  

É no silêncio dos meus 70 anos que os neurónios com os quais a minha saudosa mãe me trouxe ao mundo, e que continuam ativos no mundo da escrita, que persisto em trazer a público uma infinidade de lembranças que, caso não houvesse alguém que ousasse enveredar por tamanha aventura, muito do passado cairia no limbo do esquecimento. Sim, na verdade prometi, um dia, elaborar um livro sobre a terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. 

Confesso que produzir uma obra onde as imensidões de memórias das gentes da minha aldeia proliferam, investigando em “oceanos” profundos não foi, de facto, tarefa fácil. Nesta panóplia de sucessivas narrativas, procurei deixar os nomes de todos os meus conterrâneos que morreram na guerra colonial, ou se quiserem na guerra do Ultramar, designadamente na Guiné.  

O texto que aqui vos deixo é o tema com que abro e fecho o meu próximo livro: “Memórias da Minha Aldeia”. 

Introdução 

Nasci em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950 e sou filho de Francisco Saúde e de Ana dos Reis Romeiro, ambos naturais da povoação.   

Oriundo de uma família humilde, gente que “comeu o pão que o diabo amassou”, mas cujo princípio familiar passou por me colocarem a estudar num ensino secundário, ensino este que ia para além da então trivial quarta classe, foi, de facto, o literal propósito dos meus pais, aliás, pessoas simples, mas que oportunamente se identificaram com uma enorme solidez humana que motivou o homem que hoje sou. 

Neste contexto, e num desafio permanente às “Memórias da Minha Aldeia”, deixo escrito, neste livro, parte das raízes da minha infância e dalguns pormenores de profissões que marcaram, inequivocamente, épicas gerações, onde os “mestres” foram personalidades que inspiraram épocas inesquecíveis, sendo que o seu labor ficará eternamente contemplado. Para além dessas inequívocas lembranças, recordo ainda alguns dos nossos conterrâneos que ficarão perpetuamente expostos numa montra de eloquentes e requintadas individualidades.   

Mas, além de tudo o que aqui vos deixo escrito, o que é sempre muito pouco, preocupei-me em falar sobre a origem da nossa Aldeia, do seu Padroeiro São Bento, da Festa das Santas Cruzes, um dos nossos ícones anuais, assim como a envolvência da Procissão, do nosso fabuloso Cante Alentejano, do simbolismo das Santas Cruzes feitas em casas de devotos, enfim, uma panóplia de narrativas avulsas indiscriminadas no tempo e que dão maior força a esta obra trabalhada com imensa ternura e paixão.   

            É, ainda, plenamente crível que articulemos histórias genuínas da nossa terra e, obviamente, dos seus antigos usos e costumes. Recupero, também, narrativas inseridas num outro livro que em tempos lancei para os escaparates, mas que julgo apresentarem-se determinantes para a composição de recordações do antigamente e que jamais o esqueceremos.  

            Reconheço, porém, que muito mais haveria para expor nesta obra. Mas, neste mundo da escrita, sempre perplexo, o autor procura, neste caso, dar uma imagem do universo aldeão, embora o faça meticulosamente, sem preconceitos e isento de presumíveis susceptibilidades.   

            A todos um bem-haja!   

                                         Quando um homem se põe a recordar…  


É inevitável mergulhar nas profundezas das límpidas águas oceânicas que se apaziguam miraculosamente na costa alentejana, ou de viajar entre as searas loiras que rodeavam a aldeia, onde o cantar dos grilos na primavera entoava uma melodia encantadora, e trazer à estampa pequenas lembranças da nossa terra que orgulhosamente definem o que foram as vivências do passado.  

Procurei, embora sinteticamente, recordar os tempos antigos, os hábitos, as imagens que entretanto se foram diluindo com o suceder das épocas, as amizades, a pureza dos nossos costumes, de pessoas que deixaram vincadas os seus saberes, ou as suas artes, as fotos que escrupulosamente recolhi, algumas delas oferecidas, mas aonde fica o meu profundo agradecimentos a todos que comigo colaboraram, fornecendo-me essas imagens que trabalhei com um amplíssimo carinho, as suas identificações, ou tirando-me pontuais dúvidas em relação ao tema tratado, ou alertando-me para pequenas hesitações que oportunamente foram dizimadas, o profícuo carácter dos homens no seu trabalho quotidiano, enfim, uma panóplia imensa de narrativas a que me predispôs executar, ficando registada uma obra que eu próprio considero sempre inacabada. Outros, com engenho e arte, que lhe dêem continuidade.  

Aqui não ficam resquícios sobre a plenitude de pequenos teores feitos com base no bem-querer que nutro pela terra que um dia me viu nascer e que um dia me irá consumir. Aqui “não há filhos nem enteados”, todos foram tratados de igual modo. Reconheço que a narrativa exposta não é completa. Sim, porque “quem conta um conto acrescenta-lhe sempre mais um ponto”. É normal e fica a minha aceitação. Perduram, porém, as muitas horas, dias e meses dedicados a uma investigação que paulatinamente foi tomando corpo e que aqui vos deixo com muito amor. 

Quando um homem se põe a recordar, é perfeitamente admissível que nem tudo de momento lhe ocorra. Todos temos histórias guardadas e cada um de nós trabalhamo-las de acordo com o nosso pensar e vivência. 

Ainda assim, e não obstante as eventuais animosidades, procurei não desertar dos propósitos a que me lancei quando me iniciei nos trabalhos das “Memórias da Minha Aldeia”. Neste contexto, deixo-vos uma foto, eu sentado na bica de água já desativada no ano de 1969, e que serviu similarmente de inspiração para a execução desta longa maratona, tendo em linha de conta que o meu pensamento, naquele instante, parecia premeditar que o mundo da escrita faria parte do meu futuro. 

Obrigado aos meus caríssimos conterrâneos, em especial a todos que comigo colaboraram, e das fotos que despretensiosamente me enviaram, permitindo-me, com a devida vénia, ter conseguido levar “a carta a Garcia”!  

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 9 DE JUNHO DE 2021 Guiné 61/74 - P22267: (Ex)citações (386): Valeu a pena andarmos todos à porrada, nós, e os ingleses, e os bóeres, e os alemães, e os cuanhamas, e os hereros, naquele Cu de Judas que era o sul de Angola e o Sudoeste Africano? (António Rosinha / Valdemar Queiroz)

Guiné 61/74 - P22300: Tabanca Grande (518): João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez 1967/fev1971)... Fez o 1º COM, em Angola, Nova Lisboa. Vive em Torres Vedras. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 841.



João Rodrigues Lobo, ontem (1968) e hoje (2021)



Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > c. janeiro de 1971 > Imposição das medalhas comemorativas das campanhas da Guiné.


Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > c. dez 1968 / fev 1971 > O alferes miliciano de transportes rodoviários, comandente do PTE (Pelotão de Transportes Especiasis=, junto do novo jipe sul-africano,


Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 >1970 > Prestes a sair com a coluna de transporte de máquinas.

Fotos (e legendas): © João Rodrigues Lobo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Joaquim Costa / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de João Rodrigues Lobo, novo membro da Tabanca Grande com o nº 841

Data - sexta, 18/06, 14:07  

Assunto - BENG 447, Guiné

Boa tarde,

Então conforme solicitaste (*). aqui vai:

(i) Duas fotos em anexo, uma de 1968 e outra actual.

(ii) Breve resumo,  se é que interessa (Talvez nem tudo tenha interesse em ser publicado)

Sou o João José Lourenço Rodrigues Lobo. 
Natural de Óbidos, atualmente residente em Torres Vedras.

Estudei no ERO (Externato Ramalho Ortigão) nas Caldas da Rainha. Vivi em Angola. Como depois chumbei no exame de admissão ao  IST (Instituto Superior Técnico),  tive como prémio a chamada para o SMO (Serviço Militar Obrigatório).

Actualmente sou aposentado, depois de 30 anos como Chefe de Repartição dos SA (Serviços de Aprovisionamento) do CHTV (Centro Hospitalar de Torres Vedras).

Fui incorporado em 9 de outubro de 1967 na EAMA (Escola de Aplicação Militar de Angola - Nova Lisboa), 1º COM (Curso de Oficiais Milicianos), em Angola. Na altura residia em Luanda.

Como Cadete jurei bandeira em 23 de dezembro de 1967. Tirei a especialidade de Transportes Rodoviários no CICA - GAC 1, em Luanda.

Como Aspirante,  fui instrutor de condução auto no CICA. de Nova Lisboa (hoje Huambo) e depois colocado no Quartel General de Angola - 4ª Repartição, sendo comandante de MVL (Movimento de Viaturas Logísticas)  ao norte de Angola.

Inesperadamente, e a pretexto de uma mobilidade entre Províncias Ultramarinas (assim chamadas á data) fui mobilizado para a Guiné. Fui colocado como Alferes Miliciano a comandar o PTE (Pelotão de Transportes  Especiais)  do BENG 447,oonde cheguei em rendição individual em Dezembro de 1968 na véspera de Natal.

O Pelotão de Transportes Especiais (PTE) era constituído por: um alferes miliciano, dois sargentos do QP,  quatro furrieis milicianos e cerca de noventa condutores auto (quase uma companhia...)

Nas fotografias que anexo, veem-se parte dos nossos militares, pois muitos, guineenses, estavam dispensados do batalhão nesse dia, As fotografias de grupo foram tiradas quando as viaturas estavam quase todas no Batalhão para se prepararem e seguirem novamente para as obras.
 
O PTE  era responsável pelo transporte do pessoal de Engenharia,  das Máquinas de Engenharia, e de todos os materiais de construção para e nas obras de estradas, aquartelamentos e reordenamentos. 

O PTE também recepcionava todos os materiais militares que eram recebidos em navios fretados e carregava os materiais nas LDG e LDM da Marinha, no cais do Pijiquiti, para distribuição pelos aquartelamentos por estas servidos. 

O trabalho desenvolvido pelo nosso PTE foi, sem falsa modéstia, um exemplo de organização e dedicação de todos os seus elementos, que contribuiu para o meritório trabalho realizado por todos os militares, engenheiros e profissionais do BENG 447. Os condutores auto estavam sempre onde era preciso, sem eles NADA SE MOVIA !

E até levámos um louvor e a medalha comemorativa das campanhas da Guiné.

Dependendo diretamente do Comando,  prestei serviço com o Tenente Coronel Pires Pombo e Major Diogo da Silva e com o Tenente Coronel Lopes da Conceição e Major Santos Maia Era Comandante Militar do CTIG o Brigadeiro António de Spinola.

Acabei a Comissão em Janeiro de 1971 e passei à disponibilidade em 11 de fevereiro de 1971.

Vou reenviar umas fotos que não foram bem digitalizadas para, se interessar, substituir as que já estão no blog.

Vou enviar mais algumas novas para recordação.

E, vamos reavivar as memórias do BENG 447, Grande Batalhão que concretamente FEZ OBRA !

João Rodrigues Lobo

2. Resposta do editor LG:

João, obrigado. Como te prometi na sexta-feira passada, aqui vai a tua apresentação, comme il faut", ou seja,  "como deve ser e tu mereces".  Mas só o faço agora, porque tive este fim de semana tive um pequeno percalço de saúde (, espero que seja apenas uma vulgar virose...).

Vejo que, além da Guiné e da vizinhança, temos a afinidade da saúde... E também Angola (!)... Fui professor da ENSP/NOVA durante quase 4 décadas. Aposentei-me aos 70, em 2017, mas continuo ligado à saúde pública, nomeadamente através da "Portuguese Journal of Public Health". Tive alunos oriundos do Centro Hospitalar do Oeste, e tu deves ter lidado com administradores hospitalares e outros profissionais de saúde que passaram pela nossa Escola e tiveram aulas comigo. O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca é Grande.

Por outro lado, somos praticamente contemporâneos no CTIG: eu cheguei em finais de maio de 1969 e regressei a casa em meados de 1971. Não sei se alguma vez estiveste em Bambadinca, mas somos contemporâneos do reordenamento de Nhabijões (um dos maiores, se não o maior, então em construção: cerca de 300 moranças).

Temos naturalmente muito carinho e apreço pelo BENG 447. Temos 9 dezenas de referências no nosso blogue à tua unidade. Mas é a primeira vez, se não erro, que nos aparece aqui um representante do PTE...Desconhecia, de resto, a sua existência como não sabia o que tu agora acabas de nos contar sobre a tua experiência angolana... Tudo somado, Angola e Guiné, o teu tempo de serviço militar obrigatório utrapassa os 40 meses... É muito tempo das nossas vidas!

Já conheces a organização e o funcionamento do nosso blogue: tens aqui as 10 regras da política editorial do blogue... Está também à vontade para falar das tuas vivências em Angola, 

Formamos também uma tertúlia, e convivemos de vez em quando. A Tabanca Grande é a mãe de muitas outras tabancas... Espero que, finda a pandemia,  nos possamos conhecer pessoalmente e partilharmos mais memórias (e afectos). Tens já o meu nº de telemóvel.

Ficas, entretanto,  "sentado" no lugar nº 841, à sombra do nosso poilão (**).Publicarei a seguir um outro poste com as fotos que me mandaste, deviamente editadas e legendadas. Vou-te mandar também os contactos da malta do BENG que está registada no nosso blogue.

Que os bons irãs te protejam, 

Um alfabravo (ABraço) do  Luis Graça, demais editores, colaboradores e restantes membros da Tabanca Grande.

PS - Se quiseres que a gente te dê os parabéns pelo teu aniversário natalício, tens que nos autorizar e indicar a data de nascimento. O nosso coeditor Carlos Vinhal tem esse pelouro.

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(**) Último poste da série >  


29 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22048: Tabanca Grande (517): Jean Soares, ex-1º cabo de radiolocalização, Batalhão de Reconhecimento de Transmissões (Trafaria, e Maquela do Zombo, 1972/75): enfermeiro psiquiátrico reformado, a viver em França, em Caen, Normandia, e que está a tentar a recuperar a nacionalidade portuguesa que perdeu... Nasceu em Pirada... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 839.

Guiné 61/74 - P22299: Blogpoesia (742): "Corre apressado o tempo..."; Curiosidade" e "A sirene", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


Corre apressado o tempo...

Corre apressado o tempo.
Seus passos são os dias e os anos.
Não vale a pena fugir ou desistir.
Umas vezes benfazejo outras mais agreste.
Há que lhe fazer frente com todas nossas forças.
Evitar os precipícios.
A doença e a melancolia espreitam a cada hora.
Festejar bem nossos sucessos estimulantes.
Um dia, sem cada um de nós ele vai continuar indiferente sua marcha.
Ninguém escapará.
Para todos, crentes ou não, virá depois a eternidade...


Berlim, 15 de Junho de 2021
16h57m
Jlmg


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Curiosidade

Curiosidade, o motor da inspiração.
Sem inspiração e as modulações das formas
Não chegamos à obra prima.
A vida é um caminhar constante para a perfeição.
Seus passos são condição sine qua non para o culminar pretendido.
Enjeitá-lo é por em causa o objectivo...


Berlim, 18 de Junho de 2021
21he 50m
Jlmg


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A sirene

Há coisas da infância que ficam gravadas para sempre na nossa memória.
Uma delas é a sirene.
Lá na vila havia o quartel dos bombeiros
Quando havia um incêndio ou um desastre, a sirene lançava um silvo lancinante a chamar cada bombeiro de suas casas.
Num instante chegavam todos.
O telefone localizava onde era o incidente.
De seguida era o silvo da ambulância rubra que apitava.
A criançada do lugar e outra vinha de longe para assistir.
Lembro o fogo que alastrou na casa de lavoira do Codeçal em Varziela.
Um criança estava dentro da casa a arder...
Foi aí que eu vi, era miúdo, o Sr. Pereira da Elisinha da Forca, pegar numa manta encharcada e avançar pelas chamas dentro.
Pouco depois, aparecia com a criança nos braços entre um mar de palmas da gente a aplaudi-lo.
Nunca mais esqueci....


Berlim, 29 de Junho de 2021
16h46m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22278: Blogpoesia (741): "As alegrias da vida"; A fantasia"; "Tradições" e "Sementeira", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22298: Parabéns a você (1972): Cherno Baldé, Engenheiro e Gestor de Projectos, Amigo Grã-Tabanqueiro da Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22289: Parabéns a você (1971): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

sábado, 19 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22297: Os nossos seres, saberes e lazeres (456): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (3): De visita obrigatória: exposição Representações do Povo, Museu do Neo-Realismo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de um acontecimento cultural relevante, um conteúdo organizado num espaço onde os núcleos dialogam ora entre si ora exprimem a diferença das épocas e o peso das respetivas mentalidades. Mas todas elas representações do mesmo povo, o que foge do invasor francês e come a sopa em Arroios, então à entrada da cidade, o estereotipado Zé Povinho, umas vezes sujeito à canga, outras vezes veemente no seu manguito para quem dele usa e abusa; e atravessamos os campos da Reforma Agrária, o mundo piscatório de Matosinhos, a dolorosa aprendizagem dos jovens vidreiros da Marinha Grande até chegarmos à mulher transmontana, de vigorosa sabedoria. A exposição intitula-se Representações do Povo, a sua coordenadora é Raquel Henriques da Silva, nome indispensável da historiografia de arte, e diretora científica do Museu do Neo-Realismo. Está patente até abril do próximo ano, é excecional, recomenda-se que não se perca estas representações do povo, numa apresentação original e credoras de um catálogo de imperdível leitura.

Abraço do
Mário


De visita obrigatória: exposição Representações do Povo, Museu do Neo-Realismo

Mário Beja Santos

É irrefutável que o povo só passa a ser uma presença obrigatória na obra de arte depois do Século das Luzes, aufere os seus galões nos movimentos revolucionários, a industrialização, os movimentos estéticos realistas e as ideias socialistas deram razão de ser às representações do povo, designadamente na pintura, na fotografia, no desenho (na literatura seguirá os seus rumos, bem distintos). A exposição Representações do Povo, coordenada por Raquel Henriques da Silva, que permanecerá no Museu do Neorrealismo até abril de 2022, é um acontecimento cultural pelas abordagens apresentadas, o desafio à resposta O que é o povo?. Escolheram-se obras concretas, algumas de extraordinário valor, mas o aliciante da organização do espaço expositivo é o diálogo entre essas mesmas representações onde cabem uma gravura de Domingos António Sequeira, A Sopa dos Pobres em Arroios, um tributo ao macerado povo alentejano, um quadro a óleo de Jorge Pinheiro que nos leva ao assassinato de dois cooperantes alentejanos no ciclo final da Reforma Agrária, intervém o génio de Rafael Bordalo Pinheiro com um ícone que jamais saiu de cena, o Zé Povinho, com o seu manguito e a sua albarda; e vamos a Matosinhos, onde Augusto Gomes nos revela os pescadores da sua terra natal na sua impressionante qualidade, tema popular que se confronta com outro, o povo dos vidreiros da Marinha Grande, da autoria de Teresa Arriaga; e assim chegamos ao último núcleo, da autoria de Graça Morais que nos apresenta as mulheres de Vieiro, aldeia transmontana onde nasceu. Como escreve Raquel Henriques da Silva na introdução do magnífico catálogo que o visitante não deve dispensar: “O nosso objetivo foi dar continuidade à linha expositiva do Museu do Neo-Realismo que valoriza os contextos sociais, políticos e culturais da produção artística. Trata-se de um repto estimulante, pouco praticado nos museus de arte que, ao longo do século XX, foram afirmando uma expografia centrada na capacidade falante do objeto artístico e da sua autonomia em relação aos contextos produtivos. Há casos em que assim é, mas há muitos outros, como acontece com os autores aqui expostos, que na totalidade das suas obras, ou em parte delas, assumem, como motivação, a narrativa da História (…) O povo destes artistas é a representação dos fundamentos de uma nação (…) O que muitos artistas têm feito, em ciclos longos e muito diversificados, é representar essa humanidade menorizada, dando-lhes uma simbólica aura, pressentindo que ela é o fundamento de uma cultura regida por ritmos antiquíssimos, talvez mais afins da biologia do que de frágeis conceitos de História”. Assim nasceu o desafio de pôr o século XIX em franco diálogo com o século XX, o povo no palco da História. E o desafio do projeto triunfou, a exposição é magnífica, vamos visitá-la.
Sugere-se ao visitante que comece por contemplar no bar os azulejos de Querubim Lapa, datam da inauguração do museu, 2007, ali estão vibrantes, geométricos e buliçosos, melhor acicate ou tónico para entrar no museu duvida-se que pudesse haver.
Para quê estar a apregoar a ousadia de linhas de Alcino Soutinho? A disposição das formas garante a leveza, luminosidade, apetece subir e descer e descobrir ângulos recônditos, há para ali uma escadaria flutuante que faz medrar ilusões óticas pelas subtis combinações matéricas, e tal leveza – deverá ter sido esse o móbil do arquiteto – põe todo este interior museológico a conversar entre paredes e estimular o visitante a subir e descer, sem pressa nenhuma, pois as obras de arte que visita estão transfiguradas pela obra de arte que as encerra. E ponto final.
Tudo aconteceu em 27 de setembro de 1979, António Maria do Pomar Casquinha, 17 anos, e João Geraldo “Caravela”, 57 anos, foram mortos pela GNR, na Herdade do Vale do Nobre, perto de Montemor-O-Novo, durante uma devolução de terras ao seu proprietário. Houve quem fotografasse na hora própria, há obras de arte alusivas, mas este impressionante quadro de Jorge Pinheiro intitulado Ao Povo Alentejano catapulta-nos para os valores simbólicos, usados com uma simplicidade que atrai quem contempla a obra de arte: as papoilas e as espigas convocam o pão; quem está morto e quase transfigurado em todo aquele planejamento que se assemelha a um sudário evoca a indignidade de quem morreu e queria ganhar a vida com o suor do seu rosto, é como se uma força revolucionária dali emanasse para abalar a consciência.
Sopa dos Pobres em Arroios (Domingos Sequeira)

Bendito aquele que na organização das exposições se lembrou de aqui trazer uma das mais impressionantes gravuras que se fizeram em Portugal, a Sopa dos Pobres em Arroios, é preciso recorrer aos estudiosos para se saber que estamos em plena Praça do Chile, lá para cima se vai pela Almirante reis até ao Areeiro e em frente está um convento, hoje um escombro que parece destinados a um futuro hotel de luxo. O espetador é atraído por essa torrente humana constituída por milhares de refugiados da Beira e da Estremadura que fogem das tropas de Napoleão, neste caso comandadas pelo marechal André Masséna, estamos em 1810. Domingos Sequeira foi sublime no esquema cenográfico, desloca para primeiro plano o drama humanitário que se desenrola na calçada, deixa os militares a meio, obriga-nos a olhar uma encruzilhada de caminhos que têm o condão de alavancar a animação de tudo quanto se representa. Escreve-se no catálogo: “Em primeiro plano, várias figuras, sobretudo mulheres cobertas com xailes e lenços, comem a sopa em pé, junto de mulas sobrecarregadas com os volumes dos haveres que os camponeses conseguiram trazer de casa. Mas o destaque vai para o numeroso grupo de jovens mulheres que dão de comer ou acompanham bebés e crianças, sorvendo alguns a sopa das málagas. A ausência masculina só reforça a ideia de um país em guerra”. Que tal darmos um elucidativo texto sobre esta topografia, e o autor alude a algo que eventualmente nos possa escapar: Sequeira terá querido veicular uma mensagem que pretendia universal. O povo que Sequeira apresenta nesta gravura não representaria somente uma comunidade nacional e numa leitura atual se pode dizer que o episódio retratado pode ser visto como um exemplo de defesa dos direitos humanos.
O mais genial artista do século XIX fez aparecer o Zé Povinho em 1875. “Veste um traje rústico e remendado, usa barba à passa-piolho e apresenta um riso alvar, ingénuo. É de salientar a escolha do seu nome, composto por dois diminutivos, a partir de José, nome próprio comum em Portugal, e de Povo, identificado com a Nação, mas reduzido ao seu estrato mais baixo e de espetro alargado. Que não sendo ninguém em particular é toda a gente”. O visitante vai encontrar no precioso catálogo ou elementos necessários para conhecer a história desta figura e como ela mantém uma popularidade que nenhuma outra iconografia de representação do povo consegue superar, nos dias de hoje.
Alguém fala das representações destes vidreiros da Marinha Grande, saídos do punho de Teresa Arriaga como sudários do vidro. Esta artista comunista foi professora na Marinha Grande, na escola industrial. Vale a pena ler o documento, conhecer o trabalho do vidro e chegarmos à compreensão e ao testemunho destes jovens vidreiros. “Os aprendizes entravam na fábrica ainda meninos. As tarefas que desempenhavam variavam consoante a tipologia de produção, abrangendo o fechamento e abertura dos moldes, o transporte das peças para as arcas de tempero, galerias normalmente contíguas aos fornos, onde arrefeciam lentamente, a limpeza do espaço de trabalho, dos moldes e dos utensílios”. Chegam a ser pungentes os depoimentos que o catálogo recolhe e este quadro que aqui vemos tem a ver com a obragem. “O trabalho decorre num estrado que organiza o espaço pictórico em diagonal, estruturando a tela de grandes dimensões e disposta ao alto. Os cinco operários movimentam-se neste corredor estreito e enegrecido, exclusivamente iluminado pelas duas bocas de forno, pelas duas peras de vidro incandescente e pela peça que o oficial tem em acabamento. É uma composição centrada na operação que se desenrola e não nas personagens. Nenhuma delas foi individualizada. Teresa não reintroduziu na tela os retratos que tão intensamente desenhara sete anos antes”. E o visitante tem à sua disposição não só esse rol de desenhos como outros retratos.
Numa entrevista a Maria Antónia Palla disse Augusto Gomes: “Muitas vezes se afirma que sou um neorrealista. Eu diria que a minha pintura é populista. Na verdade, não pretendia fazer uma arte de luta. Pintava temas populares por gosto, porque me sinto próximo dessas figuras". O artista teve a sua vida sempre ligada a Matosinhos, o Litoral está sempre permanente nas suas obras de arte, convoca o mundo da pesca, recorde-se que Matosinhos foi durante a primeira metade do século XX um dos principais portos piscatórios portugueses e mundiais. É impressionante este quadro intitulado Família de Pescadores. “É uma pintura com gente triste, mas não é exatamente uma pintura sentimental, há nela uma combinação entre desânimo e solenidade”. Podemos situar este quadro nos finais dos anos 40, foi uma encomenda da Junta de Freguesia de Matosinhos, após um acontecimento trágico, um naufrágio que ocorreu em 2 de dezembro de 1947, em que morreram 152 pescadores e 4 traineiras. Augusto Gomes dizia-se atraído pela pintura clássica e há de facto um aspeto de sagrada família neste grupo e apresentado como uma estrutura do tipo piramidal: a representação da mãe e do filho, há ali uma evocação de uma Virgem com o Menino, não se pode ignorar uma certa influência da pintura italiana do século XV. Contempla-se, e fica-se esmagado pela força da representação.
Graça Morais representa mulheres transmontanas, sabemo-las que são camponesas com variadas lides, as domésticas e as da terra, a própria artista tece comentários como estes: “Têm o poder da maternidade, um poder fortíssimo. E os homens sabem disso, sabem que as mulheres têm sempre uma grande ligação com os filhos”. O que aqui vemos é algo que se prende ao processo de envelhecimento e da acumulação de saberes, elas aparecem aqui representadas como uma força motriz ancestral que trabalha, garantindo a vitalidade da terra e do ser humano, é obrigatório ler o que se escreve sobre estas Marias transmontanas, que Graça Morais imortalizou.
Convém não sair do edifício desenhado por Alcino Soutinho sem visitar a exposição dedicada a Júlio Pomar e à sua obra gráfica. Trata-se de uma coleção privada onde ganha realce a obra em gravura do grande artista, nas décadas de 1950 e 1960, veja-se o potencial revolucionário do almoço do trolha, da fase puramente neorrealista de Pomar, mas o visitante tem outros núcleos à espera, intitulados Tigres, Índios da Amazónia, Retratos Míticos, Animália, Mitologias, Figuras do Povo, Tauromaquias, Eróticas. Uma excelente oportunidade para conhecer esta obra gráfica de um dos mais significativos artistas portugueses da segunda metade do século XX que foi pioneiro do neorrealismo pictórico.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22276: Os nossos seres, saberes e lazeres (455): Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22296: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte IV: Augusto Valdez de Passos e Sousa (Elvas, 1886 - Angola, 1915), ten inf

 

Augusto Valdez de Passos e Sousa (1886 - 1915)


Nome Augusto Valdez de Passos e Sousa

Posto Tenente de Infantaria

Naturalidad:  Elvas

Data de nascimento: 12 de Dezembro de 1886

Incorporação: 1907 na Escola do Exército (nº 181 do Corpo de Alunos)

Unidade: Regimento de Infantaria n.º 17

Condecorações

TO da morte em combate:  Angola

Data de Embarque:  10 de Dezembro de 1914 | Data da morte 1 de Setembro de 1915

Sepultura: Môngua - Angola

Circunstâncias da morte:

No dia 18 de Agosto de 1915 o destacamento de Cuanhama foi atacado por cerca de 12000 guerreiros nativos que,  apesar de repelidos com baixas voltaram,  a atacar o quadrado português (#) no dia 19 de Agosto tendo sido novamente afastados. Neste combate, integrando a força de Infantaria 17, foi gravemente ferido vindo a falecer em 1 de Setembro de 1915.



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

(#) Disposição especial das tropas de infantaria, usado pelas NT nas campanhas de África,  que consistia em se ordenarem, formando quatro frentes para resistir aos ataques da cavalaria inimiga ou de ataques em massa do "gentio". Também era uma forma de acampar. (LG)

Fonte: "quadrado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/quadrado [consultado em 19-06-2021].

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Nota do editor:

Últimos postes da série > 

8 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22264: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte I: Apresentação | Artur Homem Ribeiro, cap inf (Canas de Senhorim, 1874 - Angola, 1914

9 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22265: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte II: cap inf Sebastião Luiz de Faria Machado Pinto Roby de Miranda Pereira (Braga, 1883 - Angola, 1915)

13 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22277: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte III: alf cav Álvaro Damião Dias (Lisboa, 1887 - Angola, 1915)