segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22740: Notas de leitura (1394): "Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes; Edições Desassossego, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,

É uma terna surpresa, esta investigação de Marta Martins da Silva, uma viagem circundante pelas guerras do Império, as madrinhas de guerra vinham procurar aplacar a solidão daqueles jovens que procuravam amarras na comunicação com o mundo de onde provinham, alguém fora dos contatos estabelecidos pelos vínculos familiares ou um quadro afetivo de onde se sabia de antemão que vinham abraços de coragem, família e amigos situavam uma atmosfera de identidade, as madrinhas de guerra era outra coisa, propiciavam oportunidade de abrir portas a um mundo desconhecido, quem escrevia ignorava a vida do outro e numa espiral podia crescer a intimidade, a madrinha enviava dados da sua vida e prometia companhia a quem combatia lá longe. 

Marta Martins da Silva vai ao passado da I Guerra Mundial, exatamente como faz agora com livro recém-publicado e intitulado Cartas de Amor e de Dor, recordações íntimas e poderosas do Ultramar, Edições Saída de Emergência, 2021, de que mais tarde falaremos. Posso estar equivocado, mas não há relato tão belo sobre o desempenho destas mulheres anónimas como este livro que se revela um verdadeiro prodígio de História Oral.

Um abraço do
Mário



A madrinha de guerra sabe que é importante distrair o seu afilhado

Mário Beja Santos

"Madrinhas de guerra, A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar", de Marta Martins Silva, prefácio de Carlos de Matos Gomes, Edições Desassossego, 2020, é um livro surpreendente, pela inovação da pesquisa, pela abrangência do tratamento da temática, pelas questões sociológicas que ousa levantar. E Carlos de Matos Gomes abre as hostilidades com um magnífico prefácio:

“É uma obra sobre as estratégias pessoais dos jovens portugueses feitos soldados para preservarem a corrente que os liga à origem, para resistirem às várias mortes, a física e a emocional. As madrinhas de guerra constituíram uma das amarras que permitiram ao mobilizado continuar a fazer parte da sua comunidade, enquanto ser social (…)

A correspondência trocada entre os militares portugueses e as suas madrinhas de guerra revela que aquela não era uma guerra que pudesse ser ganha por aqueles soldados. As primeiras cartas falam do cumprimento de um dever, de um tributo a pagar, mas, logo de seguida, do regresso, do vazio da missão que cumprem. Não se vislumbra nenhum sentimento de orgulho por estarem os militares mobilizados a contribuir para uma vitória ou para uma grande causa. As cartas manifestam, isso sim, preocupações com a sobrevivência, com o desejo que o tempo passe sem deixar grandes marcas (…) 

Da leitura das cartas subentendemos que a guerra também foi o pretexto para procurar uma companhia, um destino, um futuro. Umas vezes o resultado foi feliz, noutras nem tanto. Em muitos casos, os correspondentes e as madrinhas perderam o rasto um dos outros. Quando as promessas trocadas nos aerogramas não se concretizavam na chegada dos militares à metrópole, muitas madrinhas e muitos dos mobilizados acabaram por queimá-los e a outras recordações da guerra, como um adeus ao passado. Marta Martins Silva reconstrói com emoção parte dele”.

A primeira surpresa que a autora nos proporciona é falar-nos de um livro de um pioneiro da arqueologia, Coronel Afonso do Paço que escreveu o livro "Cartas às madrinhas de guerra", com data de 1929, e nos fala da guerra das trincheiras. E temos a história de um grupo de mulheres que incentivou esta forma de comunicação, os extratos que a autora nos oferece dão conta da evolução do estado de espírito do combatente Afonso do Paço, basta o extrato de uma carta de fevereiro de 1918:

“Se a madrinha soubesse o quanto nós sofremos nesta vida de trincheira!? Se pudesse imaginá-lo!? Diria que era uma vida inteira votada à dor e ao sofrimento, porque só de dor e sofrimento é feita a nossa vida na trincheira. Sofre-se de metralha que nos corta as carnes em paroxismo de dor. Sofre-se de gases que nos queimam o corpo, que secam as goelas, fazem espirrar como cabritos ou chorar como Madalenas. Sofre-se de frio, os pés na lama, a roupa pegada ao corpo, as articulações emperradas de reumatismo. Sofre-se de piolhos que nos roem a pele. Sofre-se na terra de ninguém rastejando sobre a lama ou cadáveres em putrefação”.

E daqui partimos para os aerogramas, em Jumbembém Manuel de Sousa vai contando o seu fadário, e vem logo a propósito conhecer a popularidade do chamado bate-estradas, grátis para um militar, a preço insignificante para as famílias, envolveu o Movimento Nacional Feminino (MNF), o Serviço Postal Militar, a TAP, os transportes marítimos. 

A dirigente do MNF, Cecília Supico Pinto, define a competência da madrinha: escreve ao afilhado pelo menos todas as semanas, procura ser sempre agradável, versando os assuntos que mais possam interessá-lo, escreve para o distrair. Porque, como nos recordou Carlos Matos Gomes, quem partiu para aqueles teatros de guerra a tudo quer resistir quando sentiu que quebrava uma ligação ao que lhe era matricial à sua terra, à sua família, à sua comunidade, aos seus projetos de vida. E a autora desenvolve habilmente a origem e o sucesso deste meio de comunicação, dá-nos o essencial do que foi o papel do MNF, como se chegava à madrinha de guerra, muitas vezes era graças às revistas mais populares da época, caso da Crónica Feminina, talvez o maior sucesso de todos os tempos em Portugal de uma revista de entretenimento. Um meio que permitiu enredos, aproximações que levaram à descoberta do amor ou que respeitaram à mera formalidade da ajuda que era pedida para distrair um militar.

E temos uma correspondência que permite conhecer o perfil de quem escreve, como vive, do que gosta, como ocupa o tempo, como trabalha. O militar responde, começa então respeitoso e vai-se desprendendo, pergunta se há namorado na costa, pede fotografia, umas vezes é comedido a descrever os horrores da guerra, outras vezes não tanto, trabalha na padaria, na manutenção de viaturas ou na secretaria, e não quer dar parte de fraco. 

Essa riqueza epistolar é-nos dada pela autora através de uma transcrição muito bem escolhida que intitula “Amor em tempo de guerra”, no fundo o triunfo dos aerogramas, tudo vai acabar bem, no altar ou na conservatória, com o copo-de-água possível. O primeiro contacto é sempre tocante, caso de Mário Silva para a menina Rosa Maria:

“Menina, você dizia-me que gostava de saber de onde eu era, pois eu sou de aí de perto, tão perto que pertenço à mesma freguesia. Sou natural de Vilarinho, mas já vivo fora da terra natal há 10 anos, estando os últimos anos como padeiro em Lisboa. Menina, quando me escrever, não se importava de me mandar dizer se é natural de Cacia e ao mesmo tempo agradecia que me trates por tu. Se por acaso a menina não se importasse podíamos escrever como madrinha e afilhado? Agradeço uma vez mais a atenção dispensada".

Nem todos os casamentos irão ocorrer pouco depois da chegada do jovem, a autora deixa-nos para o fim um amor de longa espera entre Maria do Céu Cadima e Fernando Paredes. A Maria do Céu nunca deu ao Fernando qualquer sinal de que queria ser mais do que a sua madrinha de guerra, nunca se ultrapassava a linha da amizade, o Fernando queria mais. A vida trocou-lhes as voltas, Fernando casou com Maria Olinda, sem nunca deixar de pensar na sua Céu. A mulher de Fernando adoeceu e morrer em 2010, pouco depois Fernando também adoeceu com linfoma nos ossos, chegou a ir viver para um lar, onde contava a sua antiga história de amor, os moradores, comovidos, encorajaram-no a encontrar-se com a amada. E como no romance de Gabriel García Márquez, "O Amor nos Tempos de Cólera", cinquenta anos depois, Fernando plantou-se à porta da Céu, ela disse que não mas aceitou reatar a amizade. O resto merece ser transcrito:

“Casaram a 13 de maio de 2015 pelo civil e a 1 de agosto passaram a morar os dois em Alfarelos, a terra do noivo. O casamento pela igreja fez-se a 7 de novembro, na Igreja de S. Martinho, em Montemor-O-Velho, a terra da noiva. A cerimónia teve guarda de honra dos Bombeiros Voluntários. Mas a felicidade que tardou a chegar para o casal não ficou durante muito tempo e por isso Céu não pôde ajudar Fernando a contar esta história, a história de um amor que venceu passado 50 anos com uma guerra pelo meio e muitas adversidades. ‘Só estivemos juntos um ano e meio, a Céu teve uma pneumonia e como tinha as defesas em baixo não resistiu a uma bactéria hospitalar. Foi um golpe duro depois de tanto lutarmos por este amor’, conta Fernando comovido. Céu, a fininha de voz doce que lhe disse naquele primeiro baile que não sabia dançar, morreu no dia 8 de janeiro de 2016. ‘Céu, eu nunca te vou esquecer’."

E com este ponto culminante finda um itinerário que é mar ignoto para as novas gerações, tudo parece inacreditável ter havido mulheres que escreviam a um desconhecido, por sugestão do Movimento Nacional Feminino, dando alento e por vezes lugar a declarações apaixonadas, algumas que chegaram ao altar.

É uma dádiva maravilhosa, a de Marta Martins Silva, pôr estas mulheres esquecidas em cena pela voz das próprias, acabaram por ser protagonistas de uma guerra que seguramente nada lhes dizia, cumpriram o seu dever e até por vezes encontraram amor para toda a vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22721: Notas de leitura (1393): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22739: Os nossos seres, saberes e lazeres (478): Guerra e Desporto, um artigo de Alexandre Silveira publicado no Jornal Fayal Spor Club, enviado a partir da Mata dos Madeiros (José Câmara, ex-Fur Mil Inf)

1. Em mensagem de 19 de Novembro de 2021, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos um recorte de imprensa através do qual nos desvenda mais uma das suas facetas, a de colaborador do Jornal Fayal Sport Club, a partir da Mata dos Madeiros, Guiné.

Mano Carlos,
Amigo meu está a publicar cópias dos jornais do Fayal Sport Club dos anos 60 e 70. Nesse clube, apesar de jovem, desenvolvi várias actividades deportivas e outras tais como festas de angariações de fundos monetários, na feitura do jornal e, como não podia deixar de ser, lá ia publicando alguns artigos, pobres na escrita, mas que me dava prazer.
Aqui vai um artigo que escrevi na Mata dos Madeiros, sem a possibilidade de revisão adequada. Depois de leres, diz-me se isso tem algum interesse para o blogue.
Aquele Alexandre Silveira sou eu (José Alexandre da Silveira Câmara). Eu tenho mais alguns escritos na Guiné.

Abraço fratero do mano José


Recorte do Jornal Fayal Sport Club, com artigo publicado em 1971 pelo nosso camarada José Alexandre da Silveira Câmara, hoje radicado nos EUA.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22734: Os nossos seres, saberes e lazeres (477): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (18) (Mário Beja Santos)

domingo, 21 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22738: Memória dos lugares (430): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte I

 

Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bafatá (1955 ) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bafatá e de Tabatô que fica a cerca de 10 km, a nordeste, do lado direito da estrada que vai para Contuboel.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


1. Heureca!...  A fim destes anos todos (!), descobri finalmemte a localização precisa da famosa tabanca de Tabatô. E mais: vi escrito o topónimo na carta de Bafatá... 

Nunca lá fui no tempo em que estive em Contuboel (de 2 de junho a 18 de julho de 1969), embora devesse ter andado por lá perto, uma vez que a CCAÇ 2590 (, futura CCAÇ 12) fez a IAO num raio de 15 km à volta de Contuboel, em farda nº 3 (as praças do recrutamento local), e com espingardas G3 apenas com cartuchos de salva... Só os graduados tinham nos bolsos uma dúzia de balas reais, não fosse o diabo tecê-las... 

Mas na altura o subsetor de Contuboel era um verdadeiro "oásis de paz", com as mais belas tabancas da Guiné,que nunca mais voltei a ver ... (*) Na realidade, nunca devo lá ter ido, a Tabatô, se não, lembrar-me-ia do seu nome... Afinal, os exercícios finais da instrução de especialidade da CCAÇ 2590 decorreram entre 6 e 12 de Julho de 1969, a 10 km a norte de Contuboel, e não a sul (*).

De facto, nem sequer o nome me ficou no ouvido. A primeira vez que ouvi falar em Tabatô foi através do João Graça que lá passou uma noite, memorável, de 15 para 16 de dezembro de 2009 (**).

Já aqui escrevi, há mais de 10 anos atrás: 

"Devo dizer, com toda a sinceridade, que nunca ouvi falar da Tabatô, durante a guerra colonial. (...) Foi o meu filho que me contou a sua experiência ímpar. Passou lá uma noite a curtir a música afro-mandinga e a tocar também 'world music' para os seus novos amigos...

"Tabatô, a aldeia de Kimi Djabaté, é agora a tabanca mais famosa da Guiné-Bissau. É já um lugar mítico, nomeadamente para a malta nova, que não vai em 'turismo de saudade', à procura de lugares e restos do passado, vai à descoberta do futuro, desse continente do futuro, que é a África... E quer ajudar a construir também esse futuro... Nem sei se Tabatô existia no tempo da guerra colonial... Já pedi ao meu amigo Pepito para saber da história da aldeia" (***).


O saudoso Pepito, que tinha uma forte ligação ao subsetor de Cntuboel, onde trabalhou como engenheiro agrónomo, e que representou como deputado na Assembleia Nacional do seu país, deu-me as primeiras coordenadas do lugar (****):

(...) " Luís, Tabató é uma tabanca muito antiga e sempre foi conhecida por ser uma povoação de djidius, isto é cantores, mas cantores que andam de tabanca em tabanca contando a história passada, os feitos individuais e colectivos marcantes e, desta forma, asseguram às novas gerações o conhecimento do passado.

Não me recordo o nome deles na Europa, mas andará à volta de jograis ou trovadores.
[Griots, em inglês e em fancês (LG)]

Alguns são contratados para enaltecerem as qualidades reais ou fictícias de certas pessoas.

É natural que não conheças esta tabanca, uma vez que se situa depois do cruzamento para Contuboel (de quem sai de Bafatá para Gabú), e a cerca de 5 Km da tabanca principal.

É uma tabanca de Djacancas, etnia aparentada aos Mandingas. Abraço, Pepito" (...).

2. Pergunto-me o que será a tabanca hoje ? (*****) E como é que lá se
 chega?  

Tabatô  tem beneficiado de bastante "mediatização" nos últimos anos (nomeadamente com o filme "A batalha de Tabatô", do realizador português João Viana)  e tem já alguns filhos ilustres, nomeadamente músicos. 

Descobri, entretanto, que qualquer um de nós pode lá passar uns dias úteis e agradáveis, para não  dizer umas "férias únicas", como "workawayer", hóspede que paga em trabalho (5 horas por dia / 5 dias por semana) a hospedagem, traduzida em "cama, mesa  & roupa lavada"... Ou eja, Tabatô está no roteiro mundial do turismo alternativo...

Também fiquei a saber que a tabanca de Tabatô não é apenas célebre pela sua escola de música, e por ser um grande viveiro da música, dos músicos e dos instrumentos musicais da tradição afro-mandinga. É também uma comunidade viva e aberta, tendencialmente igualitária, e que se tem empennhado na luta por causas nobres e avançadas como os direitos humanos, o desenvolvimento autossustentado,  a igualdade de gênero,  a mutilação genital feminina, a saúde pública, as alterações climáticas, etc.

Só é pena que as viagens para Bissau ainda sejam caras... E, convenhamos, ainda temos o problema da pandemia de Covid-19 por resolver... Mas pode ser um belo projeto para o futuro... Confesso que ainda lá gostava de ir, mesmo não sendo músico... (LG)

(Continua)


Guiné-Bissau > Bissau > Dezembro de 2009 > No conhecido e conceituado Hotel Spa Coimbra, sito na Av Amílcar Cabral, em pleno centro: da esquerda para a direita, o João Graça, o Mamadu Baio (músico da tabanca mandinga de Tabatô de onde é natural o Kimi Djabaté), o Vitor (cooperante espanhol), a Catarina Meireles (médica, portuguesa, minha antiga aluna na Escola Nacional de Saúde Pública)... Os restantes cinco elementos não sei, de momento, identificá-los. 

O João Graça, músico e médico, na altura interno de psiquiatria, esteve na Guiné duas semanas, em Dezembro de 2009, tendo estado mais tempo em Iemberém (onde prestou cuidados de saúde à população local, durante cinco dias), além de Bissau, e visitado ainda a zona leste (Bafatá, Tabatô, Gabu, Contuboel...) e a região do Cacheu (S. Domingos). Em Bissau conheceu a colega Catarina Meireles. É membro da nossa Tabaa Grande tal como o Mamadu Baio e o Kimi Djabaté.

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 12 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6720: Álbum fotográfico de João Graça (4): Uma noite memorável na terra de Kimi Djabaté, a tabanca jacanca de Tabatô

(***) Vd. poste de 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (82): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009:Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

(****) Vd. poste de 11 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6713: Memória dos lugares (91): Tabatô, tabanca antiga de Djacancas, berço de didjius, terra de Kimi Djabaté (Pepito)

(****) Último poste da série > 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22709: Memória dos lugares (429): Formosa és tu, Cacela... (Poema e fotos do Eduardo Estrela, ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

Guiné 61/74 - P22737: Em busca de... (315): Furriel Silva que em 1973 deu escolinha aos meninos de Chugué. Procura-o o cidadão guinnense, radicado em Itália, Vasco Na Nena que lhe quer prestar o seu reconhecimento (Carlos Silva, Cor Tir na Reforma)

1. Mensagem de Carlos E. M. C. da Silva, Coronel Tirocinado na Reforma, com data de 17 de Novembro, dirigida ao nosso editor Luís Graça:

Camarada Combatente na Guiné Prof Luís Graça,

Sou Cor.Tir. na Reforma e estive também na Guiné de Out1970 e Ago1973. As funções desempenhadas no Comando Chefe permitiram-me conhecer todo o TO pois, para além de participar na elaboração dos Programas Anuais de Desenvolvimento Sócio-Económico das Populações, fazia contactos frequentes com os Comandos de Batalhão e suas Sub-Unidades para, “in loco”, acompanhar a evolução dos trabalhos de construção das Escolas, Postos de Socorros, Apoio à produção nas bolanhas com novas e melhores sementes do arroz, Captações de água, etc. Tudo isto em passo acelerado dado os ventos de mais intensa tempestade que se já vislumbravam no horizonte...

Estou agora a tentar dar resposta a um pedido que me foi apresentado por um Cidadão da Guiné, Vasco Na Nena, e que ouso levar ao seu conhecimento:

1. É natural de Tchugué, na margem direita do rio Cumbijã e situada a montante de Cufar e consegue lembrar-se que a unidade de Catió era o BCaç 4510.

2. Em 1973, ainda miúdo analfabeto, frequentou a Escolinha construída e gerida pelas NT, tal como era política seguida pelo Programa acima referido, mencionando como seu professor o Furriel Silva.

3. Aquando da retirada das NF após o 25Abr74, o miúdo a quem, entretanto, tinha morrido o pai, foi apoiado por um Padre italiano de uma Missão Católica da área, onde continuou a estudar.

4. No regresso daquele Padre a Itália, este levou-o consigo e ali continuou a estudar conseguindo boas qualificações e estabelecendo a sua vida em Veneza, após ter ido à Guiné em busca duma menina de que se lembrava dos seus tempos de miúdo com a qual casou e levou para Itália onde agora vivem. Mantêm ligações com a sua família alargada na Guiné a quem vai ajudando na sua sobrevivência.

5. Este miúdo de então, agora Vasco Na Nena, fez um pedido para que fosse possível encontrar-se com o primeiro professor Furriel Silva para lhe manifestar a sua gratidão pois a ele deve a base educativa que o levou a chegar à situação de vida que hoje tem, vencendo as agruras da guerra e os escolhos do caminho europeu.

- O Chugé que fica na zona de Fanhe, Fatim e Dugal é outra povoação com o mesmo nome mas fica no centro da Guiné, a cerca de 250 Km do Chugué e de Cobumba, estas sim aldeias juntas e no sul (rio Cumbidjã). Esta povoação terá sido fundada por pessoas vindas do Chugué do centro do país já referido, que se situa junto ao Rio Zeba, era uma família que fazia a ligação com as autoridades portuguesas e era conhecida por NANDINGNA. Os contactos eram feitos com eles que, por sua vez, falavam o criolo com a restante população.

- Neste Chungué (Tchuguê ou Xoquê na versão balanta) terá havido tropa portuguesa nos anos sessenta (anterior ao Vasco) mas que se ausentou até à instalação da Companhia que reocupou a povoação, tudo indica que em 1973. O dispositivo português tinha-se retraído, concentrando em Bedanda, Cafur e Catió, tendo voltado a haver guarnição em 1973. A povoação ficava no meio e em redor ficavam as instalações militares, tudo indica que em separado(por pelotões?), fazendo o quadrado em volta da povoação. Foram os militares portuguesas que construíram a escola, que ficaria perto do campo de futebol, perto da floresta onde estavam também os Fuzileiros. Muita gente frequentou a escola, aparentemente de várias idades, em principio correspondentes à 1.ª e 2.ª classes. Pela ideia do Vasco a escola funcionava a seguir à apanha do arroz, pelo que situa entre dezembro e março, logo final de 1973 e primeira parte do ano de 1974 (parece ser a data mais lógica após situarmos no tempo vários acontecimentos, nomeadamente a proximidade com o 25 de abril).

- Para além do formador Furriel Silva, ele lembra-se de um outro elemento, presumo que soldado, de nome Martins, que estava na instalação que dava acesso ao porto, cerca de 100 metros mais abaixo da família Nandingna. Este Martins era alto e tinha cabelo castanho claro. Eram ainda muito conhecidos da sua relação com a população, um outro a quem chamavam "Coimbra" e o conhecido por "Montanha", que dava ginástica aos mais pequenos.

Portanto e sem certezas absolutas relativamente à relação dos factos com o tempo, tudo indica que a sessão escolar ocorreu entre dezembro de 1973 e março de 1974, pelo menos para as referências do Vasco Na Nema.

- A referência ao Batalhão 4510 é da minha iniciativa e não do conhecimento do Vasco, na sequência da procura de qual a unidade militar na zona no período de tempo considerado, pelo que, parecendo ser verdadeira, nasceu especulativamente pois o seu blogue não é acessível e não há informação suficiente sobre a localização das suas Companhias.

Caro Camarada Prof Luís Graça! Esta é a questão que me foi posta e na qual estou a empenhar-me para conseguir o objectivo: Identificar e localizar o Fur Silva que deu aulas na Escolinha de Tchugué em 1973.

E atrevi-me a incomodá-lo com este caso pois, alguns Camaradas que conhecem o vosso Blog, e do qual tecem os maiores elogios, me sugeriram contactá-lo nesse sentido, pois tem vindo a difundir de forma bem apelativa e atraente a vossa experiência vivida e os conhecimentos adquiridos no TO da Guiné pelos vossos Blogers, assim mantendo vivos os momentos, uns bons e outros dramáticos, que lá vivenciaram. Poderá dar-se o caso de algum eco poder vir a surgir desse universo de combatentes na Guiné-Bissau que dá vida ao vosso Blog.

Porque é raro ouvir a voz de cidadãos dos PALOP a manifestarem a sua gratidão às coisas boas que receberam do “colonizador”, creio que este caso não pode ser ignorado. Daí solicitar a sua possível ajuda.

Grato pela atenção dispensada, aceite os meus cordiais cumprimentos,
Carlos Eduardo Mendes Cação da Silva


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2. Em 18 de Novembro foi enviada esta resposta ao Senhor Coronel Carlos Silva:

Senhor Coronel Cação da Silva
Pede-me o editor, Prof Luís Graça que dê resposta ao senhor Coronel.

Consultados os livros da CECA, consegui estes elementos:
(...)
A CCAÇ 4143/72 assumiu a responsabilidade do subsector do Chugué, então criado, em 07Abr73, ficando integrada no dispositivo e manobra do COP 4 e depois do BCAÇ 4510/72. Foi rendida em 07Mar74 pela CCAÇ 4747/73, também integrada no dispositivo e manobra do BCAÇ 4510/72, e mais tarde do BCAÇ 4510/73.

Com respeito ao Batalhão 4510 referido pelo amigo Vasco Na Nena, julgo ser o BCAÇ 4510/72 (Guiné, 20Jun72/15Jul74), que assumiu a responsabilidade do sector S3 em 21Ago72, com sede em Catió mas que só em 01Fev74 viu a sua zona de acção alargada aos subsectores de Chugué e Cobumba, então retirados ao S4.

Este Batalhão foi substituído no mesmo S3 pelo BCAÇ 4510/73 (Guiné, 01Jul74/14Out74) em 10Jul74.

Ambos os Batalhões foram para a Guiné compostos só por Comando e CCS.

Inclino-me para a hipótese de o Furriel Silva ter pertencido à CCAÇ 4143/72 que foi a unidade que esteve em Chugué entre 1973 e 1974.

Não temos nenhum registo no nosso Blogue da CCAÇ 4143/72. 
Vou publicar a mensagem do senhor Coronel assim como esta minha resposta. Pode ser que alguém tenha conhecido o tal Furriel Silva no Chugué e nos contacte.
Em anexo a Ficha da CCAÇ 4143/72

Ao dispor
Carlos Vinhal
Coeditor

Localização de Chugué. Infogravura da Carta de Bedanda 1:50.000. © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Reprodução, com a devida vénia, da pág 414 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) - Publicação do Estado-Maior do Exército.

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3. Hoje mesmo recebemos esta mensagem do Coronel Tir Carlos Silva...:

Senhor Carlos Esteves Vinhal,
Foi com agradável surpresa que recebi, de forma tão rápida e esclarecedora, os elementos sobre o dispositivo das NT na zona de Catió em 1973 e 1974. É com apreço que manifesto, desde já, os meus agradecimentos pelo empenho dispensado na obtenção de elementos bem necessários para a possível identificação e localização do Fur Silva da escola do Chugué, em 1973. As iniciativas que refere levar a cabo no vosso Blogue poderão trazer ainda novos dados que permitam desfiar a meada e atingir o objectivo proposto.
Esse apreço e agradecimentos são extensivos ao Sr. Prof Luis Graça que tão rapidamente encaminhou o meu pedido para a pessoa certa e empenhada.
Concordo também que a CCAÇ 4143/72 deverá ser o foco para prosseguir o esforço de pesquisa e seria extraordinário que aparecesse alguém do vosso grupo da Tertúlia que se lembre do Fur. Silva.
Estou a contactar o Arquivo Histórico Militar e o Arquivo Geral do Exército para colaborarem nesta pesquisa. Sei que nessa época de 1973 era obrigatório todas as Unidades e Sub-Unidades mobilizadas entregarem no final da comissão a História da Unidade. Se estas duas Companhias o fizeram talvês a sua História se encontre no Arquivo Geral do Exército e nela constem os daos que procuramos.

Meu Caro Camarada e Combatente no TO da Guiné-Bissau, Carlos Vidal
Iremos certamente manter o contacto até ao final do “combate” que esperamos seja de sucesso.
Aceite mais uma vez os agradecimento pelo vosso extraordinário trabalho e os meus cordiais cumprimentos,
Carlos Eduardo Mendes Cação da Silva


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4. ...Que mereceu esta nossa resposta:

Senhor Coronel Carlos Silva
Muito obrigado pelos seus comentários que nos insentivam a continuar a nossa tarefa de manter o Blogue LG&CG activo.
Se fosse possível ao senhor Coronel entrar em contacto com o nosso jovem Vasco Na Nena, perguntava-lhe em que parte do ano de 1973 ele frequentou as aulas, se tem ideia da fisionomia do Fur Silva. Ele refere o BCAÇ 4510/72, tudo levando a crer que o dito Fur Silva poderá ter pertencido à 4143/72, adstrito a este batalhão.
Isto tudo são conjecturas até encontramos alguém que nos desfaça estas dúvidas.

Continuamos ao dispor do senhor Coronel e receptivos a qualquer novidade que obtenha.
Os nossos melhores cumprimentos e votos de excelente saúde
Carlos Vinhal


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5. Comentário do editor CV:

É difícil porque na tertúlia não temos camaradas da CCAÇ 4143/72, mas poderá algum dos nossos leitores ter conhecimento com antigos Combatentes desta Companhia para se poder confirmar se havia algum Furriel Silva que desse aulas no Chugué.
Abradecemos toda a ajuda possível.

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Notas do editor

Este poste foi reformulado pelo editor em 24 de Novembro face a novos elementos colhidos, tais como haver duas Tabancas com o nome de Chugué, uma pertencente à zona de Tite e outra à zona de Bedanda.

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22285: Em busca de... (314): Camaradas da minha CCAÇ 4544/73 (Cafal, 1973/74), o Coelho (de Alcobaça), o Rosete (de Cantanhede), o alf mil Quintela (de Torres Vedras) (Eugénio Ferreira, ex-1º cabo, 2º pelotão)

Guiné 61/74 - P22736: Blogpoesia (761): "Não deixes arrefecer"; "Semeio palavras"; "Ramagens de letras" e "Nem só massa com feijão", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):

Não deixes arrefecer

Depois do frio, acaba por vir a morte,
Se não alimentares a tua chama.
Só no calor a vida medra.
Sem ele o mundo seria um polo norte.
Sem desvios a terra gira ronda, apesar da inclinação do eixo.
O equilíbrio só vem com esforço de cada momento.
Ele só vinga com boas acções.
Quem quiser ser grande, tem de despir seu corpo da vaidade inútil...


Berlim, 13 de Novembro de 2021
11h20m
Jlmg


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Semeio palavras

Semeio palavras. Sementes da alma.
As mando aos ares.
Caiam como chuva e germinem.
Abro comportas. Que reguem os campos lavrados.
Cresçam e aloirem. Farinha de pão.
Alimento do corpo e sobretudo da alma.
Espero que gostem.
Me brotam em fogo.
Suave milagre à vista dos olhos.
Um privilégio gratuito caído dos céus...


Berlim, 13 de Novembro de 2021
1425m
Jlmg


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Ramagens de letras

Bordo ramagens de letras pintadas nas árvores.
Os ramos dançantes sacodem o pó seco ao sol.
Ufanas, as árvores sorriem cantando ao silvo do vento.
Se abrigam os pássaros tecendo seus ninhos.
Alegres os pais trazem bicadas que poisam nos bicos.
Contentes ficam cantando as famílias dos filhos.
É a primavera que vem no comboio do tempo.
Assim passa depressa demais avida tão breve.


Berlim, 17 de Novembro de 2021
18h5m
Jlmg


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Nem só massa com feijão

Para ser feliz não chega só massa com feijão.
É preciso variar à mesa.
Puxar pela imaginação e buscar ementas e vestir o corpo com roupas novas.
Andar na moda para não ficar para trás.
Os olhos são insaciáveis.
Procuram beleza e não se cansam.
Quem quiser viver feliz tem de suar e fazer por isso.
Não basta só massa com feijão.
Muito menos a pão e água.
É preciso ir à adega por um bom vinho.


Berlim, 18 de Novembro de 2021
10h21m
Jlmg

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Notas do editor

Último poste de J.L. Mnendes Gomes de 14 de Novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22718: Blogpoesia (759): "Ilusão da eternidade"; "Ideias embrulhadas"; "Insolência" e "Nem só as vacas mugem", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Último poste da série de 14 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22719: Blogpoesia (760): Operações e Missões, e dos nomes que lhes davam (7) (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845)

Guiné 61/74 - P22735: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XX: Grécia, Ilha de Rodes, 2010








Grécia > Ilha de Rodes  e cidade de Rodes > 2010


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. 

Texto e fotos recebidos em 27 de  setembro último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.


 Ilha de Rodes, Grécia, 2010

A velha cidade imponente e trabalhada, olhando-se ao espelho nas águas azuis do mar Egeu.

Procuro a estátua do Colosso de Rodes, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Há muitos séculos que, da gigantesca figura, não existe uma pedra, um grama de bronze. Tudo devorado por dois milénios de penumbra. No porto, soletra-se apenas o clamor distante da memória.

Em Rodes, a semideusa filha de Poseidon, recatada e formosa, subiu das águas, envolveu-se em todos os perfumes, saudou os homens. Eros e poesia são palavras gregas.

A imponência do burgo medieval, muralhas, bastiões, torres, portas fortificadas, tanta luta, tantas batalhas, tanto sangue e desespero. Cristãos, otomanos, a guerra, as espadas de fogo dilacerando o bater dos corações.

Os templários, os cavaleiros de Rodes, os cruzados, homens do passado, daqui partiam no século XII no combate aos infiéis, para a reconquista da Terra Santa, a libertação de Jerusalém. Hoje, ouve-se ainda o dobrar dos sinos.

Na ilha há um vale de Borboletas que não visitei. É tudo tão bonito que desta vez o tempo não chega, guardo as borboletas para a estadia numa próxima reencarnação. O poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694), num dos seus haikus, bem avisa que, até em Rodes, necessitamos de tempo para “questionar o borboletear das borboletas.”

Caminho então para a praia de Agathi. O meu corpo nu passeia-se no ondular verde do mar. Humedeço a alma.

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Nota do editor:

sábado, 20 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22734: Os nossos seres, saberes e lazeres (477): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (25): Museu Nacional do Traje: uma viagem do estilo Império aos nossos dias, com leques e cartolas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Neste museu podemos circular pelos sistemas da moda ao longo de mais de dois séculos, há a impressionante riqueza do património alusivo ao estilo Império mas as indumentárias do estilo romântico até praticamente aos nossos dias estão bem expostas e num cuidado enquadramento com adereços e atavios que até despertam apetite para ir ver uma exposição singela, profundamente didática quanto ao uso que as diferentes classes sociais exibem no que põem na cabeça e de como se abanam. Se já fomos ao Palácio do Monteiro-mor com os seus belos jardins, se já percorremos o Museu Nacional do Traje e o Museu Nacional do Teatro, vamos agora dar um salto até ao concelho de Oeiras e falar de poesia, logo dos poetas que falam português e que têm outras nacionalidades.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (25):
Museu Nacional do Traje: uma viagem do estilo Império aos nossos dias, com leques e cartolas


Mário Beja Santos

No catálogo de uma prestigiada exposição que ocorreu em 1992 no Museu Nacional do Traje e intitulada O Traje Império (1792-1826) e a sua época, a diretora do museu, Madalena Braz Teixeira, justifica na apresentação o porquê da valiosa coleção de traje Império, são em parte peças provenientes da Casa Real, transferidas após a queda da monarquia para o Museu Nacional de Arte Antiga, então designado como Museu de Belas-Artes. E observa igualmente as razões do acervo:
A permanência desta indumentária em território nacional está ligada a duas travessias do Atlântico: a primeira, motivada pela partida da família real para o Brasil, em 1807, deixando parte do seu guarda-roupa nos palácios reais e a segunda, devida ao apreçado regresso de D. João VI a Portugal. As vestes reais trazidas nas bagagens do rei, foram de imediato guardadas pois se encontravam irremediavelmente fora de moda. Reunidas ou não pelo grande amador das artes e antiguidades que foi D. Fernando II, o certo é que a coleção da Casa Real se encontrava em 1910 no Palácio das Necessidades. Este traje de corte ganhou o favor de objeto museológico, foi depois transferido para o Museu dos Coches onde se encontravam librés e trajes de cocheiros e sotas.

Deste traje Império já aqui se fez referência, marca uma rotura substancial com as indumentárias até então proeminentes, aboliu-se a cabeleira postiça, a profusão dos atavios e o uso de calções, no masculino apareceram as calças compridas e desapareceram as rendas dos punhos, o vestido rompeu com as formas rococó, passou a ser vincadamente neoclássico, recriou a moda grega e romana, tendo optado pela silhueta evocadora das vestais: linhas direitas, cintura alta, tecidos transparentes. A indumentária masculina virilizou-se, a feminina assume os novos tempos com grande liberdade, não há nem barbas de baleia nem anquinhas. Em Portugal tudo isto foi um processo marcado pela lentidão, D. Carlota Joaquina ainda sonhava com o passado, apresentava-se em público com tecidos indianos, o que já não acontecia nem em França nem em Inglaterra.

Como docente que fui em matérias de consumo, era obrigatório, sobretudo com o advento da industrialização, ir observando as modificações do gosto e os imperativos da moda em função quer das alterações sociais e dos respetivos estatutos, dá-se inclusivamente mudanças significativas no romantismo que envolvem a casaca, o calção, o colete, os lenços, a camisa de peitilho, o desaparecimento do bicórnio, depois do estilo Império o colete de abas e casaca modificam-se, o próprio calçado se adapta à calça longa e os símbolos inerentes às bolsas de senhora, luvas e leques, mesmo os xailes e a própria ourivesaria, registam novos códigos, dir-se-á que do romantismo se avançará para uma simplificação da indumentária que mudará completamente de look e natureza logo no fim da I Guerra Mundial. É esse o prazer que sinto com este percurso museológico e museográfico tão bem adaptado à compreensão de como evoluímos no gosto de vestir e cuidar da aparência nos últimos dois séculos
.


Importa não esquecer que estamos no Palácio Angeja-Palmela, não visitaremos nem cozinhas nem quartos mas podemos contemplar a capela e ali ao pé uma bela vitrina de objetos religiosos, obviamente que interessa dar atenção ao vestuário das imagens, elas também mudam e sofrem as vicissitudes do gosto.
Irrecusável não fotografar este atavio feminino, marca de distinção, é publicidade da Casa Mimoso, reporta-se ao inverno de 1908-09, as plumas marcam sensação, veja-se a figura central, o manifesto cuidado em mostrar o colo de graça e ombros enchumaçados.
Muito provavelmente vestia-se assim ao tempo de António Feliciano de Castilho, Júlio Dinis ou Camilo Castelo Branco, os tecidos podem ser ricos, há as reminiscências do estilo Império, encontraram-se formas de introduzir elementos na sobriedade, no homem a calça e a casaca chegarão ao século XX, com adaptações, é traje para qualquer cerimónia, a aristocracia e a burguesia rica vestem assim inclusivamente à mesa.
É para isto que serve a pedagogia da exposição, ao fundo um quadro de Veloso Salgado anuncia três gerações e complementarmente vamos vendo a evolução da moda, dos sapatos, dos chapéus, dos atavios. A saia vai subir, vão desaparecer os corpetes.
Chegamos aos Anos 20, vestidos para dançar o Charleston, todo este vestuário começa a ganhar multifuncionalidade, já não estamos nos tempos da rainha D. Amélia que era obrigada a mudar várias vezes a roupa por dia, de acordo com as obrigações. E décadas depois, a Coco Chanel imporá uma linha revolucionária, o tailleur, o saia e casaco, morreu a obrigação da mulher sair do trabalho e ter que ir a casa pôr outro vestuário para ir ao jantar mundano ou ao teatro.
Não é por acaso que se mostram aqui os chapéus, dentro em breve iremos a uma exposição de leques e chapéus, desapareceu a cabeleira farfalhuda, é um corte simples que permite um chapéu quase touca, marca um fenómeno de graciosidade, vai ser assim até aos anos 30 e mesmo 40, é um atavio que rapidamente marca o código social. No fundo, já estamos no século da mulher, são penteados e chapéus que anunciam uma visão da liberdade.
Um belo mostruário das mudanças operadas pouco mais de um século
Estamos agora na exposição, patente num anexo do Palácio Angeja-Palmela, com imensa simplicidade e buscando uma apreensão clara entre o que se veste, o que se põe na cabeça e o adorno que será sempre cúmplice das diferentes camadas burguesas – o leque, iremos percorrer os grupos populares do continente e ilhas, a importância do chapéu e do leque ao longo de décadas, e quais os seus códigos de representação, até chegarmos a uma vitrina com um mostruário multicultural, a eloquência das imagens e o elucidativo dos objetos permitem ver esta exposição e captar a simplificação do nosso tempo, a despeito de que a moda não morreu e está sempre a dar nas suas contorções as mais vibrantes provas de vida.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22715: Os nossos seres, saberes e lazeres (476): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (17) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22733: Agenda cultural (789): Música afro-mandinga, com Mamadu Baio (voz e guitarra acústica) e João Graça (violino): hoje, das 20h30 às 22h30, no Com Calma - Espaço Cultural, Benfica, Lisboa




1. Hoje, sábado, dia 20 de novembro,  das 20h30 às 22h30, haverá nova sessão de música afro-mandinga  (*). Com o Mamadu Baio (guitarra acústica e voz) e e João Graça (violino) (**).

Local: @ Com Calma - Espaço Cultural, em Benfica (Lisboa). 

O Com Calma é um espaço associativo e cultural localizado em Benfica. Desde 2015 que é um local de promoção cultural, aberto ao debate e à partilha de conhecimento. Aqui podes Estar, Debater, Conviver, Ler, Petiscar, Aprender, Ouvir, Beber e Dançar... 

Com Calma - Horário: Quintas, sextas, sábados e domingos das 16h às 23h30

Com Calma - Espaço Cultural: Rua República da Bolívia nº5C 1500-543 Lisboa

O João Graça (médico e músico, ex-Melech Mechaya) tem 125 referência no blogue, e o Mamadu Baio 17. Ambos são membros da nossa Tabanca Grande. Conheceram-se em meados de dezembro de 2009, quando  o João foi à Guiné-Bissau e esteve na mítica tabanca de Tabatô, berço de grandes músicos, como o Mamadu Baio, que na Guiné-Bissau era então o líder do grupo Super Camarimba.

Ouvir aqui um "cheirinho" dos Super Camarimba, no vídeo (11' 03'') alojado em You Tube >  Jorge Ferreira (Cortesia do autor, membro da Tabanca Grande) (***). Mamadu Baio, com a colaboração de João Graça e outros músicos, está a gravar um segundo CD.


Guiné-Bissau > Bissau > 17 de dezembro de 2009 > Mamadu Baio, líder dos Super Camarimba, "experimentando" o violino do João Graça , instrumento que ele muito provavelmente nunca tinha pegado antes...

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

(***) Vd. poste de 5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19071: Vídeos de guerra (17): "Buruntuma, algum dia serás grande", de Jorge Ferreira, no You Tube, com música de Mamadu Baio

Guiné 61/74 - P22732: (Ex)citações (396): A maldição da canoa papel está ainda na cabeça daqueles guineenses, etnocêntricos e xenófobos, que continuam a ter muita dificuldade em aceitar a unidade na diversidade (Cherno Baldé, Bissau)



Guiné > Bissau > s/d [. c 1960/70] > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe).... Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

A Praça, com o nome do "colonialista" e "esclavagista" Honório Barreto (1813-1859) (um guineense, de mãe guineense e pai cabo-verdiano, que foi governador do território, ou nelhor, capitão-mor do Cacheu, e também de Bissau,  por diversas vezes, e que como tal defendeu a integralidade da terra que é hoje a Guiné-Bissau, o que não impediu de, um século depois depois, ter sido diabolizado pelo PAIGC), seria rebatizada, em 1975, como Praça Che Guevara, um "internacionalista revolucionário", de origem argentina, e herói da revolução cubana,  que nunca pôs os pés na Guiné... 

E era aqui, neste sítio da  Bissauvelha,  onde, dizia a lenda, estaria enterrada a canoa papel...  Recorde-se a maldição lançada pelos balobeiros papéis: "Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia!" (*)
.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A propósito de "a lenda da canoa papel", aqui (re)contada, no  Poste P22726 (*), comentou o Cherno Baldé:


 [ Cherno Baldé: nosso colaborador permanente, e nosso especialista em questões etno-linguísticas, nasceu no chão fula, e é muçulmano; tem formação universitária tirada na antiga União Soviética e em Portugal; é e um acérrimo crítico dos "demónios étnicos" que estão longe de ter sido esconjurados e expulsos do seu país;  além disso, é  membro da nossa Tabanca Grande desde 16/8/2009; com mais de 235  referências no nosso blogue, é autor da notável série "Memórias do Chico, menino e moço"]

Pudera que fosse só uma lenda como todas as lendas do mundo, mas na realidade trata-se de uma maldição com contornos reais na vida politica e social do nosso país e que impregnou fortemente o núcleo da ideologia e dos dirigentes do Paigc que dirigiram o país com mão de ferro. 

Inclusive a própria constituição está contaminada com os resquícios desta xenofobia anti-alienígena que pode constituir um forte obstáculo a construção dos fundamentos da unidade nacional. O ambiente politico e social na Guiné-Bissau ainda respira este sentimento que está associado as origens e a manutenção da lenda da canoa papel.

A lenda dá enfâse ao nome de N'tsinha Té, ou Intchinate,  que conseguiu vencer os rivais e ocupar o lugar do conhecido rei Papel, Bacampoló Có, quem, na realidade, teria concedido o terreno para instalação dos portugueses. Todavia o N'tsinha Té ter-se-ia notabilizado devido ao seu temperamento belicoso que criou sérios problemas na construção do forte, arrastando-se ao longo do tempo desde o séc. XVII.

Também é preciso dizer que, entre os "indígenas" da Guiné não existiam os conceitos de compra e venda quando se tratava da terra, pois que. não sendo seus reais detentores, de forma alguma podiam alienar um bem colectivo (comunitário) à guarda dos espíritos (Irãs). Esta incompreensão criou mal-entendidos e gerou muitos conflitos, mormente na Guiné, dita portuguesa.

Se há uma característa que particulariza os povos do litoral (ditos animistas) em relação  aos do interior (muçulmanos) é o forte espírito de ligação ao seu Chão (o solo) e o sentido patrimonialista que os leva, não raras vezes, a ostracizar os seus próprios compatriotas oriundos de outros Chãos do mesmo país. E isto reflecte-se imenso nas disputas políticas, eleitorais o que, muitas vezes, empresta o modo étnico-tribal como as diferentes comunidades e grupos sociais se posicionam no terreno político-partidário. 

O Paigc, designadamente, apesar do discurso aparentemente apaziguador e unitário nunca foi seguido de uma prática de justiça e de governação unificadoras, dai o desnorte e cacofonias actuais.

No âmbito da politica de reconstrução pós-independência empreendida pelo partido único, fui professor voluntário, na regiāo de Biombo, de 1981/85, e só muito tardiamente constatei que era visto e tratado como um estrangeiro e, sempre que prestava um serviço ou fazia um favor a alguém, no fundo, era percebido como uma obrigação, o pagamento do direito que me concediam pelo direito de viver no seu Chão, igual ao 'Dacha" que exigiam aos portugueses que viviam nas suas terras. 

Esse é o espírito patrimonialista típico do guineense e que, porventura, pode ser muito mais acentuado nos grupos do litoral, designadamente entre os Papéis de Bissau, e quiçá da região de Biombo.

Para terminar, quero confirmar que, efectivamente foram feitas escavações na rotunda Che-Guevara (antiga praça Honório Barreto),  após o golpe de 14 de Novembro de 1980 e foi um desperdício de tempo e dinheiro. A canoa que buscavam no interior da terra, na realidade, estava na cabeça das pessoas que têm dificuldades enormes em aceitar a unidade na diversidade que é a maior riqueza da Guiné-Bissau e a única via para a construção de uma nação forte e unida.(**)

Com um abraço amigo, Cherno Baldé (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste da série > 18 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)

(**) Vd. também postes de :


sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22731: O cruzeiro das nossas vidas (31): a minha viagem (pacífica) no N/M Ambrizete, de 3 a 9 de novembro de 1970, com partida (atribulada) oito dias depois do programado (Hélder Sousa, ex-fur mil trms, TSF, Piche e Bissau, 1970/72)


N/M Ambrizete, navio misto, da SG, Grupo CUF

Fonte: Álbum dos Navios da Marinha Mercante Portuguesa (Publicado pela Junta Nacional da Marinha Mercante em Junho de 1958). Reproduzido aqui com a devida vénia...

Construído em 1948 na Inglaterra, tinha cerca de 138 metros de comprimento e 5500 toneladas de arqueação bruta. Deslocava-se a uma velocidade de 13 nós (1 nó = 1 milha náutica/hora = 1,852 quilómetros/hora), tinha 37 tripulantes e pertencia à SG, a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, com sede em Lisboa (Grupo CUF). 

Recorde-se que a CUF - Companhia União Fabril estava representado na Guiné pela Casa Gouveia, adquirida na década de 1920 (1)... Eram cargueiros da SG como o Ambrizete que traziam para a Metrópole a mancarra com que a CUF fazia o seu famoso Óleo Fula (em 1929 conseguiu a autorização para produzir óleo alimentar, em regime de monopólio, e em clara concorrência, desleal, com os produtores de azeite) (*)

1. Texto enviado hoje pelo Helder Sousa (ex-fur mil trms,  TSF, Piche e Bissau, 1970/72):


A minha viagem para a Guiné no N/M “Ambrizete”



por Hélder Sousa


O nosso Amigo e Editor da “Karas”, da Tabanca do Centro, Miguel Pessoa, pediu-me colaboração com um texto para publicação. Entretanto, na procura de inspiração e de recordações, apareceu e li no Blogue “Luís Graça & Camaradas da Guiné” um conjunto de artigos e comentários sobre os navios que foram utilizados no transporte de tropas e de material e das memórias que isso concitavam (**).  A acrescentar, também o Amigo e Editor da Tabanca Grande, Luís Graça, me desafiou a relembrar a minha viagem com as suas particularidades.
Vinheta de propaganda da ARA,
referente à sabotagem do navio
de mercadorias Cunene, Lisboa,
em 26 de outubro de 1970.

Deste modo, juntando “as pontas” e as vontades, aqui me prontifico a fazer isso, tanto mais que as datas relacionadas não andam longe. Também devo referir que alguns aspetos da viagem, principalmente das circunstâncias anteriores à mesma, já foram referidos num dos primeiros artigos que escrevi para o Blogue e a que dei o título de “O último adeus”.

Começando pelo princípio devo dizer que a minha viagem, em rendição individual, estava marcada para
 a manhã do dia 26 de Outubro de 1970 (e ainda é a que figura na caderneta militar). Ora bem, como se podem lembrar, nessa madrugada ocorreu o chamado atentado ao N/M Cunene (**) e, nessa referida manhã, no Cais da Rocha, as dificuldades para os passageiros que deveriam tomar o transporte atribuído eram muitas. Não sei se por causa disso, não me recordo se foi ou não mencionado, a verdade é que o referido transporte, o N/M Ambrizete  estava ancorado no meio do Tejo e para lá chegar isso fazia-se nas lanchas da Sociedade Geral que serviam de comunicação.

O “Ambrizete” era um cargueiro que dispunha de 6 cabinas duplas, 
pelo que levava 12 passageiros, sendo 6 militares das Transmissões (3 Furriéis TSF e 3 TPF), ocupando no conjunto 3 cabinas; uma mãe, que a memória me sussurra ser cabo-verdiana, com 3 filhos,  ocupando 2 cabinas; e a restante era ocupada por dois civis, um homem já maduro que ia de contrato para ir trabalhar para a Tecnil e um outro, mecânico de automóveis, que não sei como, mas arranjou maneira de ir para a Guiné para fugir à perseguição que a sua mulher e o padeiro lá da terra lhe moviam a contas de uma alegada infidelidade conjugal entre ele e a mulher do tal padeiro, tendo a bordo
 apenas a roupa que tinha vestida, pois parece que não teve tempo para mais.

Na hora da despedida no Cais, o pessoal da lancha comentou baixinho para nós militares, que “não era preciso tanta despedida pois não íamos partir hoje”.

Ao chegar ao barco fomos convidados a escolher as cabinas e fomos informados que, devido a vários problemas, como por exemplo uma má distribuição da carga que fazia o barco adornar (inclinar) cerca de 13 graus a bombordo (à esquerda, tomando como referência a proa do navio) e também com uma avaria num dos frigoríficos. Não sei a que se devia a “má distribuição da carga”, se por o barco ter eventualmente largado o cais à pressa, devido à tal ação de sabotagem, para se colocar no meio do rio, ou por terem realmente depositado no porão vários materiais não tendo em conta os seus diferentes pesos, sendo que a carga era de natureza diversa, desde géneros alimentares (alguns chegaram lá à Guiné já em menores condições por não se ter conseguido colocar o frigorífico em boas condições), até bombas para avião, segundo disseram.

Pouco tempo decorrido da chegada a bordo, o cargueiro apontou à foz do Tejo, fazendo crer a quem estava no Cais que era a partida, mas na realidade o que se fez foi andar o resto da manhã e boa parte da tarde a “fazer agulhas” ao largo da baía de Cascais, com vista a tentar melhorar a distribuição da carga. Ao fim da tarde regressou-se ao ponto de partida e, como era 6ª feira, o Comandante do navio disse que quem quisesse podia ficar a bordo mas quem quisesse sair e passar o fim-de-semana em casa o podia fazer, pois durante o sábado e domingo não ia haver saída, mas com a condição de se voltar na 2ª da manhã.

Aqui voltou a haver aspetos que normalmente não aconteceram com a maioria dos que embarcaram nos diversos navios e que foi, por exemplo, o transporte gratuito entre as margens do Tejo nas lanchas que levavam pessoal para Cacilhas e ligavam a Lisboa, facilidades que utilizei.

Os meus outros dois camaradas TSF foram a Setúbal, a casa do Nelson Batalha, pois por coincidência nesse fim de semana o F.C.Porto, clube da simpatia do Manuel Martinho, jogava lá com o Vitória local. Voltaram na 2ª feira, conforme aprazado e já não saíram, a não ser umas escapadas rápidas a Cacilhas nas tais lanchas. 

Eu aproveitei para ir a Vila Franca surpreender e assustar a minha mãe e quando na 2ª feira, 29, voltei, disseram-me nos escritórios da SG que “podia voltar para casa, pois os trabalhos estavam demorados e o melhor era ir telefonando para saber quando seria”, coisa que fiz então diariamente até ao dia 3 de Novembro de 1970, quando recebi a indicação de que “era hoje à noite, e tinha que apanhar, o mais tardar, a lancha das 22:00”.

Durante esses dias do intervalo de tempo fiz várias coisas, sendo que no tal dia 3 de Novembro fui ver um filme no “Tivoli”, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, com o título original em italiano “I girasoli” mas que foi intitulado em Portugal de “O Último Adeus”  e que tratava da busca de uma jovem italiana pelo seu marido dado como desaparecido, quando integrado num batalhão italiano que participava na invasão da Rússia pelas tropas alemãs na 2ª Grande Guerra Mundial. 

Em dada altura do filme vê-se o protagonista, o Marcello Mastroianni, caminhando num campo gelado e encontra alguns corpos congelados de camaradas seus e, quando tenta pegar num deles por um braço,  o mesmo parte-se como um pedaço de gelo. Nesta altura o filme interrompe-se para o intervalo e como já eram cerca das 17:00 horas, hora mais ou menos combinada com os escritórios da SG para o contacto diário da tarde, precipitei-me para o telefone do “foyer” e lá fiz a chamada, referindo com as cautelas necessárias para diminuir a identificação, mas sendo claro que se tratava “do militar que queria saber se a partida para a Guiné estava ou não prevista para hoje”. De lá disseram que sim, com referi no final do parágrafo anterior. 

Não me apercebi que se tinha formado uma fila de pessoas que também queriam telefonar e quando me voltei deparei com vários olhares de comiseração e de quem estava a “olhar para um morto”, pois por esses tempos a palavra “Guiné” era sinónimo de complicações….

Acabado o cinema,  fui jantar com a então minha namorada, num pequeno restaurante próximo de Santa Apolónia, que ainda lá está e que tenho ideia de se chamar “O Farol”, a seguir ela foi apanhar o comboio e eu o transporte para o Cais, onde a lancha me levou ao “Ambrizete”, houve mudança de turno e lá seguiu rumo à Guiné, agora com “apenas” 7 graus de inclinação.

Os meus companheiros de viagem já estavam ambientados, já estavam no barco há muito tempo, mas eu tinha acabado de chegar, vinha de uma despedida, vinha de um filme dramático e não estava com muita disponibilidade para grandes brincadeiras, grandes alegrias e por isso isolei-me, encostado à amurada, a olhar de modo a absorver tudo o que via para poder depois fechar os olhos e rever, e pensar no que o “destino” me poderia reservar.

Nisto, sou surpreendido pela presença do tal homem da Tecnil que me vem pedir para fazer “uma oração de despedida e de pedido de bom acompanhamento para a viagem”, pois os “sacaninhas” dos meus camaradas TSF, que se encontravam no deck superior a gozar a cena,  lhe tinham dito que eu era muito religioso e até tinha estado num Seminário…

Como me apercebi da tramoia,  não quis desiludir, nem tratar mal, o personagem, e lá o deixei contente e satisfeito, com a minha homilia, apesar de por esses tempos me encontrar militantemente afastado da Igreja.

Durante a viagem as refeições normais (geralmente muito boas) mereciam a companhia do Sr. Comandante do navio mas dada a falta de higiene do tal mecânico, que não tinha roupa para mudas, ele comentou haver um cheiro desagradável, o que fez com que se tivesse que “tomar medidas” e explorando a natural curiosidade do “nosso mecânico”,  houve quem o levasse a ver o “veio da hélice”, havendo então elementos da tripulação que aproveitaram para lhe proporcionar um banho de agulheta e depois, enquanto a roupa era lavada e posta a secar, houve que lhe emprestar alguma roupa interior, embora isso o obrigasse a ter as refeições no camarote.

A viagem em si mesma, ressalvando a tal inclinação a que nos habituámos depressa, correu bem. Tenho ideia que se navegou a 13 nós (não sei confirmar), que passámos por entre dois grupos das Ilhas Canárias, que aconteceu por várias vezes sermos presenteados com a companhia exibicionista de peixes-voadores e que durante a noite de 8 para 9 de Novembro ultrapassámos o “Carvalho Araújo” que seguia pachorrento com a sua “carga humana”, sendo que por isso chegámos a Bissau na manhã cedo do dia 9.

Ainda durante a viagem, por força do bom relacionamento e interação que se foi fazendo com a tripulação, numa das primeiras manhãs, aquando do que seria o pequeno almoço, perguntaram se não queríamos um “mata-bicho”. Pensando que se trataria de aguardente ou coisa assim, recusámos, mas lá nos explicaram que era uma refeição mais forte para o pessoal que saía de turno e que à hora do almoço estaria a descansar. Então venha de lá esse “mata-bicho”! Bem… recordo que o primeiro deles foi um “arroz à valenciana” bastante bom, o qual antecedeu então o café e o pão com manteiga habituais.

Pois, sei que nesses aspetos fui bastante beneficiado e protegido pelos “deuses”, com uma viagem quase particular, com uma cabina sem luxos mas funcional e apenas para duas pessoas, com refeições condignas, com a amável companhia do Comandante e suas palavras de conforto, nada comparado com os relatos das miseráveis condições em que viajaram inúmeros militares, principalmente os que tiveram a desdita de ocupar os porões “adaptados” dos navios, mas tendo sido essa a minha realidade, é essa que relato.

A aproximação à Guiné, na penumbra da pré-alvorada, com a visão da vegetação mal definida, o bafo quente que de lá vinha, os sons abafados que, entretanto, também chegavam, ajudavam a criar uma aura de mistério e de apreensão. Depois o barco ficou ancorado ao largo (mais uma vez),  deixando vago o cais acostável para o “Carvalho Araújo”, sendo que a passagem para terra se fez por meio daquelas espécies de pirogas, não sem que o Sr. Comandante se despedisse de todos e de cada um com simpatia e de modo a que o “Ambrizete” ficasse para sempre na memória.

Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF


2. Informação complementar do editor:

Reproduz-se aqui, com a devida vénia, a sinopse do filme, acima referido, com a devida vénia ao CineCartaz do jornal Público:

O Último Adeus

Título original:I Girasoli

Género: Drama
Classificação:M/12
Outros dados: ITA/URSS, 1970, Cores, 96 min.

Foi com este I Girasoli que Vittorio De Sica realizou o primeiro filme ocidental rodado na URSS, uma história de amor entre as personagens de Marcello Mastroianni e Sophia Loren. Ela é uma mulher italiana que procura o marido dado como perdido em acção durante a II Guerra. A travessia faz-se por paisagens urbanas e campos de girassóis. Foi o filme mais famoso da dupla de actores. Texto: Cinemateca Portuguesa

Vd. aqui o trailer do filme I Girasoli (1970).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

Vd. também poste de 14 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2438: História de vida (9): O Último Adeus ou as peripécias da minha partida no N/M Ambrizete (Helder Sousa)

(***) Vd. 16 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22722: A nossa guerra em números (5): o Vera Cruz, o Niassa e o Uíge foram, de um frota de 15 navios, requisitados à marinha mercante, os que asseguraram o transporte de 3/4, da tropa mobilizada para o Ultramar