quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Vale a pena insistir quanto às razões por que se é minucioso (senão mesmo excessivo) no tratamento das questões do Casamansa e de Bolama. Foi Senna Barcelos o primeiro investigador a pôr por ordem toda a documentação que jazia nos arquivos referente às mesmas. Relevam, por muita documentação trocada, a manha de argumentos dos franceses e a pura hipocrisia britânica que pretextava que a ocupação de Bolama era para impedir ou punir o tráfico negreiro. É surpreendente a qualidade da epistolografia portuguesa, aqueles simples governadores de praças não dobram a servir e tratam o boi pelos nomes. Vai agora entrar em cena Honório Pereira Barreto que não esconderá a sua amargura, em Lisboa o que se passava na Senegâmbia Portuguesa era assunto mais do que subalterno, o país está entregue a uma luta política partidária desenfreada, Fontes Pereira de Melo ainda não está à frente da Regeneração. E não deixa de provocar pasmos como aqueles comandantes longe de tudo e sem poder algum ripostavam contra atos de pura pirataria.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (9)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

A saga de Ziguinchor é neste período do fim da década de 1850 a questão política crucial. Antes, porém, importa pôr em cima da mesa alguma informação dada por Senna Barcelos. Em maio de 1849, o Governador de Cacheu, José Xavier Crato de seu nome, descrevia assim o miserável estado da Praça: “Era defendida por uma estacada e quatro arruinadíssimos redutos; o quartel militar e arrecadações estavam cobertos com palha; a artilharia, de bronze, constava de duas peças de calibre 1 e duas peças de calibre 3 e não havia pólvora”. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram também defendidos por uma estacada e por baterias de barro que se cobriam de palha, no tempo das chuvas, para não se desmoronarem. A igreja ou capela de Cacheu, construída de pedra e cal, estava coberta de palha. E mais um dado curioso que envolve Honório Pereira Barreto. Também em maio de 1849 ele insistia com o ministro da Marinha sobre a educação de rapazes em escolas de aprendizagem ou de ofícios, pedindo-lhe que fosse autorizado mandá-los para Lisboa, e naquela data enviou nove pretos para os ofícios de alfaiate, funileiro, carpinteiro, serralheiro, torneiro e sapateiro; solicitou para que essa instrução fosse mais cuidadosa nos ofícios do que na leitura, para não acontecer o mesmo que em 1826 ou 1827 com rapazes mandados de Bissau que sabendo só ler não se dedicaram a nenhum ofício.

Honório Barreto alerta sem parar as autoridades para a questão do Casamansa, deplora numa carta a autorização dada por Lisboa para a navegação do rio, Ziguinchor ficou isolada, sobrevivendo graças ao comércio do sal, autorizou-se os franceses a fundarem Selho, propõe medidas concretas: “Julgo que para salvarmos os nossos direitos é suficiente que o governo-geral da província comunique aos de Gâmbia e Senegal quais são os pontos neste distrito, havidos por tratados feitos com os gentios, onde só podem vir exclusivamente os portugueses. A demora que houve nesta participação talvez cause hoje alguma dúvida não em Jagubel e Assinhame, mas em outros pontos do Casamansa, onde me consta que estrangeiros têm ido, apesar dos tratados que fiz em 1841. Não são necessários destacamentos em tais pontos que só servem para aumentar a despesa e relaxar a disciplina; o que nada pode impedir, antes pode embaraçar. Em Bolor, onde há um destacamento, nada se há impedido; o destacamento de Matta não sei para que serve”.

Tudo vai de mal a pior no rio Casamansa, os franceses já querem cobrar impostos aos portugueses. Chega ao porto de Ziguinchor uma embarcação com o comandante de Selho que vem pedir explicações porque fora mandado retirar uma chalupa francesa que tinha ido a Jagubel comprar sal. O comandante de Ziguinchor respondeu que recebera ordens do governador de Cacheu, havia um tratado celebrado em 1844 por Honório Pereira Barreto. O francês não aceitou a explicação, os portugueses não tinham exclusividade do comércio, e que se a situação se voltasse a repetir viria a Ziguinchor com um navio de guerra e tomaria o presídio. O comandante de Ziguinchor protestou para o governador de Cacheu e este protestou contra tais ameaças para o governador do Senegal e comandante do Goré. A pressão francesa aumenta. O comandante de Selho, em nome do governador do Senegal e dependências, preveniu o comandante de Ziguinchor que ele seria forçado a retirar a bandeira e soldados do rio de Jagubel se impedisse o comércio de sal aos franceses. Seguiu-se outro ultimato: ia ser lançado um tributo em Selho às embarcações portuguesas que ali iam comerciar e ficava proibido negociar com as francesas em Jagubel. Os protestos da autoridade portuguesa prosseguem, os franceses fazem vista grossa dos tratados feitos pelos portugueses.

As acusações sobem de tom. O governador José Xavier Crato oficiou ao governador do Senegal nos seguintes termos:
“Pondo de parte tudo quanto V. Ex.ª se abaixou a dizer contra mim e contra o comandante de Ziguinchor, tratarei só de responder ao que diz respeito ao serviço, deixando a V. Ex.ª a glória de me ter insultado gratuitamente em correspondência oficial. Logo que recebi este ofício de V. Ex.ª, enviei um expresso ao comandante de Ziguinchor para me informar sobre a acusação grave que V. Ex.ª, fundado nas informações que lhe deu o capitão do navio Casamansa do mesmo comandante de Ziguinchor. Julgo que V. Ex.ª não duvidará da honra e lealdade daquele comandante, pois é bem conhecido pelos diferentes comerciantes franceses que habitam Goré e Senegal, e então conhecerá que o capitão do Casamansa faltou à verdade nas declarações que fez ao governo (…) O comandante de Ziguinchor é um homem sisudo, prudente e honrado, e jamais seria capaz de negar o que tivesse dito ou obrado; nem eu negaria dar uma satisfação se o facto fosse verdade. Rogo a V. Ex.ª que livre de toda a prevenção e sangue-frio e me ajude a conhecer a verdade. Permita-me V. Ex.ª que note uma contradição entre seus dois ofícios. No ofício de 20 de setembro diz V. Ex.ª que vai submeter ao chefe do seu governo este negócio; em seu ofício de 28 de setembro diz que o seu governo tem mais a fazer do que pensar nos fortins de Selho, Ziguinchor e Cacheu; e outro tanto não direi eu do meu governo que se presta de boa vontade, movido só por justiça, a dar uma satisfação ainda mesmo nos objetos mais insignificantes. Apesar do que V. Ex.ª diz, estou certo de que o governo francês, visto a sua lealdade e cavalheirismo, não se negará a dar aquela satisfação que a justiça exigir”.

E voltamos ao tormento da questão de Bolama. Em 8 de dezembro de 1850, fundeou no porto de Bissau o brigue de guerra inglês Ranger, sob o comando do Tenente Thomas Miller; este oficiou ao Governador da Praça, declarando ter instruções do governador da Serra Leoa para ir à ilha de Bolama fazer arrear a bandeira portuguesa e aprisionar o destacamento que ali se achava. Pela recusa do governador, declarou Miller que seria obrigado a hostilizar a praça, e que começaria por incendiar a povoação. O Ministro da Marinha reclamou do Ministro dos Negócios Estrangeiros as devidas previdências. E o comandante de Bissau escreve ao comandante Miller: “Vós podeis, Sr. Comandante, aprisionar os três soldados que estão em Bolama, porque eu não os retiro, e eles não têm forças para se defenderem; porém, quando os soldados portugueses forem feitos prisioneiros por um navio de guerra inglês, teremos os preliminares da guerra. Portanto Sua Ex.ª o Governador de Serra Leoa, que vou deu estas ordens, e vós, Sr. Comandante, executando-as, serão os responsáveis de tudo o que puder sobrevir pelas consequências”.

Segue-se nova troca de correspondência, mas o ato de pirataria foi consumado. Na troca de correspondência com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, a hipocrisia britânica veio à tona, acusava-se a família de Caetano José Nozolini de maus-tratos dados a vários escravos em Bissau, o governo de Sua Majestade iria prosseguir em prol da emancipação de todos os escravos nos domínios da Coroa Portuguesa.

Vai iniciar-se um novo período de atividade de Honório Pereira Barreto, o Casamansa e Bolama continuarão a fervilhar na agenda política.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23002: Historiografia da presença portuguesa em África (304): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23019: Parabéns a você (2038): José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Especiais da CART 1689/BART 1913 (Fá, Catió, Cabedú, Gandembel e Canquelifá, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23004: Parabéns a você (2037): António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) e Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo e Cantacunda, 1965/67)

Guiné 61/74 - P23018: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte II: Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...Tubab é uma senhora e senhora não é mulher



URSS > Moldávia > Kichinev > Dezembro de 1985 > O Cherno Balde (à esquerda) e um outro estudante bolseiro. peruano, de nome Aníbal... Em segundo plano, uma mulher local.

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
 (Cherno Baldé)  - Parte II:   Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...Tubab é uma senhora e senhora não é mulher  

por Cherno Baldé (*)



Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


(vi) Moscovo, escala de boa esperança

Em 1985, debaixo de uma chuva torrencial do mês de Agosto, [o Chiquinho e outros bolseiros] saíram finalmente para o Aeroporto Osvaldo Silva, em Bisslanca, a fim de apanhar o avião da Aeroflot.

Na despedida a Irmã Beatriz, brasileira,  ofereceu-lhe uma pequena bíblia de cor azul para lembrança da sua amizade e disse-lhe que, dentro em breve, iria ter a oportunidade de conhecer um pais do primeiro mundo.

Chegaram a Moscovo no dia seguinte, com escalas em Nouakchot (Mauritânia), Casablanca (Marrocos) e Budapeste (Hungria). Do Aeroporto levaram-nos para uma residência de estudantes onde já se encontravam centenas de outros bolseiros, vindos dos quatro cantos do mundo.

Havia mais de 24 horas que não dormia, mas mesmo assim não conseguia pregar olho. A alegria e a curiosidade da descoberta de um novo mundo constituíam um lenitivo que suplantava tudo o resto. Sob o efeito contagiante da alegria, tinha saído para o corredor, passado ao jardim, depois à rua. Queria contemplar, queria absorver tudo, queria abraçar Moscovo e seus habitantes metidos nos seus trajes sombrios num dia enublado com brisa suave de fim de verão.

Foi assim que ele se deixou levar num passeio pela cidade, indo de autocarro até uma estação do Metro de Moscovo donde penetraram por meio de escadas rolantes compridas descendo, descendo, para dentro das entranhas da terra, gritando uns aos outros, sob o olhar atónito de alguns utentes que se içavam para cima no sentido inverso.

Não foi difícil perceber que os silenciosos moscovitas faziam o possível para evitar o contacto com o grupo dos jovens africanos, inebriados com a sua bem expressiva e barulhenta maneira de falar, gesticulando ora à direita ora à esquerda. E, provavelmente, teriam um cheiro diferente, peculiar, no meio dos brancos em seu habitat natural.

Eram recordações antigas que afluíam à mente misturando-se na indiferente algazarra a entrada e a saída do Metro que, de resto, era de fácil orientação, pois circulava em forma de anel à volta do centro da cidade e depois se expandia como uma teia de aranha cobrindo as diferentes zonas da grande megalópole: Paveletskaya, Aktyabrskaya, Krasnapresyenskaya, Kamsamolskaya... O Metro de Moscovo não tinha limites de espaço nem de tempo. Acabámos por voltar a nossa residência, já era noite.


(vii) Sílvia, a boliviana, uma paixão fulgurante... por um dia!

O grupo do Chiquinho ficou dois dias em Moscovo, o tempo suficiente para preparar a sua afetação. O único acontecimento relevante nesses dias da sua primeira passagem por Moscovo foi uma breve aproximação com uma boliviana, de nome Sílvia. Bastaram alguns segundos para tocar o seu coração. Baixinha, cabeleira farta e reluzente, sorriso aberto, parecia uma rapariga lusa da geração mais antiga, daquela que não escondia a cor dos seus cabelos de origem árabe.

Apaixonou-se pelos seus olhos grandemente abertos debaixo de umas sobrancelhas pretas a condizer. No seu rosto largo vislumbravam-se feições mestiças, amazónicas. Aproximou-se dela, falou em português, ela sorria, mas parecia não perceber. Não sabia nada da Guiné-Bissau, e provavelmente, não sabia mesmo nada de África. Alguém a chamou, ela foi e não voltou. O voo de um pirilampo na escuridão da noite. Nunca mais voltaria a encontrá-la. Sílvia...

Apaixonar-se por imagens fugidias, amores impossíveis, era um defeito natural que o Chiquinho trazia da sua infância e adolescência, feitas de miséria e de mil privações. Introvertido e tímido, nunca tivera muito sucesso com as meninas, limitando-se a consumir com frugalidade o que via ou ouvia dos colegas.

A brusca ausência da Sílvia fez reavivar os velhos fantasmas do antigamente que, como um balde de água fria, fizeram descer a pressão interna que embriagava os seus sentidos, fazendo sentir o cansaço e fome.

Mais tarde saberia que a bonita Sílvia assim como a maioria daquela geração de estudantes latino-americana, amiga da farra e da boa comida, detestava, no entanto, o ofício de cozinhar. Nessa altura agradeceria a Deus e à sua estrela de sorte, pois era de admitir a possibilidade de ser cozinheiro por um dia sim, mas toda a vida, não.


(viii) Fugindo à intolerância racial das repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso

Do seu grupo de mais de quarenta jovens, Moscovo só aceitou receber dois, os restantes foram repartidos por diferentes cidades da imensa URSS. Pelas informações dos antigos estudantes, sabiam que as Repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso eram de evitar a todo o custo, devido à intolerância racial para com os pretos, numa região fortemente influenciada pela civilização Árabe e Turco-Otomana.

Ao Chiquinho, calhou a cidade de Kichinev, capital da Moldávia, uma pequena porção de terra situada entre a Ucrânia e a Roménia, integrando um grupo de mais de cinquenta jovens de diferentes origens, para a frequência da fase preparatória.

Mais uma vez, o Chiquinho estava com a sua estrela de sorte, pois não iria viver no meio dos bárbaros do Cáucaso nem ficaria na Universidade Patrice Lumumba onde a maioria dos estudantes era africana. Nem que fosse por algum tempo, ele queria ficar longe de África e dos africanos.



Retrato da avó materna, Mariana Baldé, 
Fajonquito, Sancorlã, 1900-1993 


(ix) Uma velha fantasia: namorar uma europeia, uma "tubab" 

Na verdade, o Chiquinho alimentava um sonho secreto e antigo, nascido não sabia donde, de namorar uma europeia. Sim, só namorar. A sua imaginação, sendo muito ousada a este respeito não se atrevia, todavia, a pensar no casamento. “Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...” Era o eco da voz discordante da sua avó que lhe perseguia.[ Avó materna, Mariana Baldé, Fajonquito, Sancorlã, 1900-1993; foto à esquerda].

Ela conseguia adivinhar todas as suas intenções e, armada de verdades e razões ocultas da velha sabedoria fula e africana, denunciava os aspectos mais desviantes da sua educação infecta. “A mulher tubab é uma senhora e uma senhora não é uma mulher”, dizia ela. O Chiquinho não comprendia esta relação ilógica do tipo: α=β, β≠α. Talvez não casasse.

Na verdade, também não conhecia nenhum antecedente de um fim feliz nas relações preto/branco e vice-versa. As histórias eram muitas e antigas num caminho ainda estreito, semeado de armadilhas reais ou imaginárias.

Ainda assim, ele queria uma europeia. A vida não é um cenário de jogo onde se ganha e se perde!?... Pensava, teimosamente.

(Continua)

Fotos (e texto): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

[Fixação / revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG]

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior da série > 22de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23016: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte I: De Bissau a Kiev, como estudante bolseiro ou o poder da "sétima sorte": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23017: In Memoriam (428): Carlos Alberto Oliveira Santos, ex-Fur Mil da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72) que faleceu em Coimbra no passado dia 19 de Fevereiro de 2022 (Mário Migueis da Silva)

IN MEMORIAM

Carlos Alberto Oliveira Santos
Ex-Fur Mil da CCAÇ 2701 (Saltinho, 1970/72)


1. Mensagem de Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 21 de Fevereiro de 2022, com a notícia do falecimento do nosso camarada Carlos Santos, ex-Fur Mil da CCAÇ 2701, ocorrido no passado dia 19, em Coimbra:

Caro Carlos Vinhal
Assim, um pouquinho a correr, venho juntar fotografia e legenda alargada do Carlos Santos, camarada da CCAÇ 2701, falecido no passado dia 19, em Coimbra.

Era figura muito querida de toda a malta, nomeadamente do nosso amigo Paulo Santiago.

Se não vires qualquer inconveniente, agradecia a publicação respetiva.

Um grande abraço,
Mário Migueis


Distribuindo sorrisos, palavras amigas, abraços calorosos...

Distribuindo sorrisos, palavras amigas, abraços calorosos, na Guiné, como por cá, eis o retrato fiel do Carlos Santos, homem-grande de coração enorme, que, no passado dia 19, para grande mágoa nossa, nos deixou para sempre.

Residente em Coimbra, mas natural do concelho de Cantanhede, foi furriel miliciano da CCAÇ 2701, tendo cumprido, nos três primeiros anos da década de 70, a sua comissão de serviço na Guiné, onde, um dia, o fui encontrar.

Foi um privilégio tê-lo como amigo, merecendo-me, desde sempre, a maior consideração e estima, ou não tivesse sido ele o primeiro camarada a dar-me as boas-vindas à minha chegada ao Saltinho.


Entre as inúmeras histórias, com o seu quê de anedótico, que ele gostava de recordar, à gargalhada, durante os nossos convívios do pós-guerra, sempre figurava a que se segue:
Perante a iminência de um ataque com artilharia ao Saltinho, pedimos uma batida da zona de tiro provável a Aldeia Formosa. Já as granadas de obus sibilavam sobre as nossas cabeças, foi-me o Carlos Santos encontrar, a mim, homem das informações, bloco e lápis na mão, sentado, sem qualquer resguardo, num dos degraus de acesso à messe:

– Que é que estás a fazer aqui, Migueis?!... – o Santos, preocupado.

– Não me distraias, bolas!... Não vês que estou a tomar nota do número de obuses e da hora exata a que cada um nos passa por cima?...

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Comentário do editor:

O nosso camarada Carlos Santos foi, praticamente, desde a primeira hora um seguidor do nosso Blogue, tendo participado no emblemático I Encontro da Tertúlia na Ameira, no já longínquo ano de 2006. Esteve ainda presente nos II; III e V Encontros.
Esta foto é referente ao III Encontro de 17 de Maio de 2008, na Quinta do Paúl, Ortigosa, Leiria. O Carlos Santos entre o seu amigo Julião (Martins Julião, Alf Mil da CCAÇ 2701?) e o David Guimarães.

À família do nosso malogrado amigo e camarada Carlos Santos, apresentamos as nossas mais sentidas condolências.

Mais um Combatente que foi reforçar o contigente celestial, onde, mais tarde ou mais cedo, nos vamos alistar todos.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23010: In Memoriam (427): Notícia do falecimento do nosso camarada Alberto Roxo Cruz, PilAv da BA 12 (Bissalanca, 1968/70 e 1972/74)

Guiné 61/74 - P23016: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte I: De Bissau a Kiev, como estudante bolseiro ou o poder da "sétima sorte": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...


1. Alguns dos nossos leitores mais recentes, que não acompanharam, na altura, a série "Memórias do Chico, menino e moço" (de que se publicaram, a partir de 2011,  mais de meia centena de postes), terão por certo curiosidade em saber algo mais sobre o percurso escolar e profissional do seu autor, o Cherno Baldé, no contexto do pós-independência da Guiné-Bissau..
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Já sabemos que, em 1975, ele deixou Fajonquito (onde viveu, com os pais... e com a tropa,  desde 1968 até depois da independência), rumando a seguir, já em 1975, para Bafatá onde prosseguiu os seus estudos: ciclo preparatório e o início do ensino secundário. 

 Não temos muita informação sobre os anos de Bafatá, era ele já adolescente e e depois jovem (dos 15/16 aos 19/20 anos). Mas sabemos que não foram tempos felizes. 

Em 1979, irá para Bissau, para frequentar o liceu ex-Honório Barreto (rebaptizado, tal como quase tudo, a começar pela toponímia, com o nome de um dos fundadores do panafricanismo, Kwame N’krumah, 1909-1972).

No ano letivo de 1982/83 é colocado em Quinhamel como "professor voluntário" do ensino primário e, entretanto, habilita-se a um a bolsa de estudo para poder frequentar uma universidade estrangeira. Calha-lhe na rifa uma das repúblicas da então URSS, a Ucrânia. Será na universidade de Kiev que irá tirar o seu curso 
de Planificação e Gestão Económica, depois de ter feito um curso intensivo de língua russsa na Moldávia.

Voltará ao seu país, em 1990, já depois da queda do muro de Berlim e do fim do "império dos sovietes", e a independência da Ucrânia...Mikhail Gorbatchov era então o Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, o 7º (de 1985 a 1991) e depois o Presidente da União Soviética (o 9º) (de 1988 a 1991)... (Curiosamente, flho de pai russo e de mãe ucraniana.)

Recorde-se que a ex-União Soviética (tal como  outros países da Europa de Leste, do então bloco soviético, mas também a China e Cuba) não se limitou a fornecer armas e munições ao PAIGC, durante a guerra colonial, ajudou a formar grande parte dos seus quadros e dirigentes políticos e militares e, depois da independência, concedeu bolsas de estudo (não podemos quantificar) aos jovens guineenses para acederem ao ensino superior.

Fomos justamente "repescar" alguns dos postes do Chemo Baldé com memórias desse tempo (1985-1990) (*)... Com a devida vénia ao seu autor, e nosso colaborador permanente para as questões etno-linguísticas, o Cherno Baldé, hoje quadro superior numa orgnização internacional a operar em Bissau: mais exatamente é gestor de projetos  na empresa MF CAON FED, Guiné-Bissau. (Vd. aqui a sua página do Facebook).


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990 (Cherno Baldé)  - Parte I:   De Bissau a Kiev, ou o poder da "sétima sorte": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...


Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


por Cherno Baldé


(i) Bafatá a cidade de todos os sofrimentos (1975-1979)

Após cinco longos anos passados na cidade de Bafatá, em Setembro de 1979, o Chiquinho rumou para Bissau onde devia continuar os estudos. Do grupo de mais de cinquenta estudantes que, com ele, tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco.

A viagem de Bafatá a Bissau já não se fazia de barco, como antigamente, mas por via terrestre, em autocarros de uma empresa pública (Silo Diata) que seguiam por uma estrada tortuosa penetrando o Óio pelas localidades de Banjara e passando depois por Mansabá e Mansoa, com as suas vendedeiras de sandes a enxamear a estrada de saída para Bissau. Nesta época de magras receitas, são muitas as famílias que vivem do labor fortuito destas incansáveis Bideiras de rua.

Mesmo se a euforia dos primeiros anos da independência ainda continuava a alimentar as nossas jovens esperanças, entretanto, muita coisa tinha mudado, pode-se dizer mesmo que, passados os primeiros cinco anos de independência, a auréola do partido libertador estava muito ofuscada. 

Tinham conseguido, em pouco espaço de tempo, relativo sucesso na industrialização do país, com fábricas e importantes investimentos em projetos agrícolas para experimentação e vulgarização de técnicas e variedades de arroz (DEPA), mas ao mesmo tempo, a fome que grassava nas cidades, apelidada por fome de Luís Cabral, ameaçava criar fissuras no novo e frágil edifício da construção da unidade nacional.

O governo, recusando-se a importar alimentos, apostava na capacidade da produção interna numa economia pequena, fraca e extrovertida caraterizada por uma baixa produtividade e com nível elevado de pobreza. Nessas condições, tratava-se de uma decisão politicamente bem justificada, mas economicamente mal aplicada cujas consequências imediatas serviriam de pretexto para o golpe militar de 1980 que tinha posto fim ao primeiro governo saído da independência.


(ii) Rato de biblioteca em Bissau, especializado em biografias  

Em Bissau o Chiquinho encontrou o que não havia em Bafatá, sítios ideais para fugir da realidade e esconder-se da fome, chamavam-se bibliotecas. Foi nessa altura que ele deixou de ser o estudante aplicado, de caderno na mão, que sempre fora e passar a ser um rato de biblioteca, donde só saía para ir às aulas.

Adquiriu uma predileção especial na leitura de biografias de destacadas personalidades do mundo político, desde figuras sublimes e pacifistas onde pontilhavam o Mahatma Ghandi e Martin L. King, a algumas sulfurosas e místicas como Adolf Hitler ou do tipo subversivo e oportunista como Joseph Goebbels e Vladimir I. Lenine que, no fundo eram tão infelizes e solitários como ele próprio.

Quando terminava esta série, passava para os romances de Jorge Amado, vivendo os destinos trágicos dos seus personagens sui generis, tirados das favelas e praias de pescadores do nordeste brasileiro.

Dessas leituras deve ter cultivado, o Chiquinho, certa irreverência, sentido crítico e o pessimismo que ainda o caracterizam, assim como certa tendência para a evasão. Ele vivia no Bairro de Cupelum de Baixo em casa de um familiar, ex-combatente, e o sítio mais próximo era a embaixada da Líbia, na rua Pansau Na Isna, que liga o QG ao Hospital Simão Mendes, e onde metade do espólio era constituído por livros de Muahamar Kadhafi, de conteúdo intragável mesmo para um aprendiz de revolução, ainda verde.

Em Junho de 1982, com o término do ensino secundário no liceu Kwame N’krumah (antigo Honório Barreto) de Bissau, tinha-se cumprido, finalmente, uma meta importante na sua vida que, alguns anos antes, não passava de um sonho longínquo. Tinha sido necessário percorrer um caminho bastante atribulado e consentir um enorme sacrifício pessoal. Fazer o 7° ano dos Liceus ou finalizar, como se dizia na altura, era um objetivo a que muito poucos jovens da sua geração e condição social podiam almejar.

(iii) Visita à família em Fajonquito, aproveitando as férias grandes (agosto-setembro de 1982)

Pensando agora no futuro, ele tinha feito um pedido no Ministério da Educação solicitando um lugar para lecionar como voluntário, condição que, em princípio todos deveriam preencher antes de pretender candidatar-se a bolsa de estudos para o exterior, mas a que, na verdade, alguns conseguiam esquivar-se, acedendo diretamente às bolsas para países da sua escolha. Eram todos iguais, mas uns eram mais iguais que outros. Mais que poder continuar os estudos, a sua maior expetativa residia, de facto, na possibilidade de poder voar para longe, conhecer outros países, outras gentes, outras bibliotecas.

A seguir, ele aproveitou para visitar a família durante as férias grandes (de Agosto a Setembro de 1982) em Fajonquito. Na verdade tratava-se de uma visita de regozijo pessoal para acenar aos colegas o seu estatuto de finalista. Durante muitos anos tinha sonhado com este dia, imaginando os mais diversos cenários, como se o mundo fosse mudar com este trivial acontecimento. No fim, não só não aconteceu nada de especial, mas ainda teve que ouvir e engolir alguns ditos maldosos de colegas e de pais invejosos que diziam na sua cara preferir a sétima sorte em lugar do sétimo ano.

A sétima sorte, onde estava ela!?... O Chiquinho não sabia que o trabalho e o esforço pessoal pudessem dar a tal sétima sorte. Tratava-se de palavras ocas, carregadas de inveja e de mesquinhez de gente que era incapaz de fazer melhor. O seu pai, esse, estava feliz, imaginando poder contar em breve com a sua contribuição no sustento da numerosa família.


(iv) Colocado em Quinhamel como "professor voluntário": É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo...

Quando voltou à capital já tinham feito a colocação sem contar com ele. Por preencher restavam somente alguns postos de escolas situadas em localidades pouco atrativas. Assim, ele teve que escolher entre uma escola de Susana e outra de Quinhamel. 

Sendo originário do leste, era a primeira vez que ouvia falar dessas duas localidades, pelo que se deixou guiar pela intuição e pela música da intonação. Escolheu Susana, bonito nome, e parecia-lhe estar a ver a aparência das meninas locais, susanamente lindas. Devia voltar no dia seguinte para as formalidades.

“Deus ki ta bana baka ki katen rabu” (É Deus quem afasta as moscas da vaca sem rabo), diz um provérbio guineense e foi o que aconteceu com ele. No dia seguinte já só restava uma única possibilidade, a de Quinhamel, alguém tinha ocupado o posto de Susana. Ainda bem. Só muito mais tarde saberia da sorte que acabava de ter. 

Nesse mesmo dia pegou na guia de marcha sem perder mais tempo e foi descobrir, não muito longe de Bissau, uma pequena vila adormecida à volta de palmeirais e cajueiros e pendurada nos dois lados da estrada entre Bissau e Pikin, nas margens do oceano atlântico.

No fundo, o local de afetação era-lhe indiferente desde que não se chamasse Bafatá, a cidade de todos os sofrimentos. Assim, Quinhamel ultrapassaria todas as suas expetativas. Tinha uma escola nova, construída e equipada pela cooperação sueca, um excelente ambiente de vida e camaradagem entre os educadores pouco educados que eles eram, longe dos rigores religiosos do chão fula e muçulmano onde o gesto mais banal era um sacrilégio, onde jovens ainda na flor da idade tinham que encher os ouvidos com sermões obscuros em que o último dos profetas distribuía lugares no cruzamento entre o fogo do inferno e a frescura da glória.

Em Quinhamel residiam meninas simpáticas vindas das localidades circunvizinhas. Os costumes locais, superficialmente tocados por uma igreja católica que o advento da independência colocara fora de jogo, eram muito brandos, o que favorecia um convívio mais livre e saudável entre os jovens. Nos fins de semana ele voltava a Bissau para informar-se das notícias da família.

Aqui, de forma inesperada, ele começou a frequentar a missão católica local onde fez amizade com uma diocesana brasileira (Irma Beatriz) que lhe ensinava a arte de tocar violão com a Bíblia por baixo e, também, começou a colaborar nas atividades da Juventude do Partido (JAAC) através de colegas que faziam parte da sua direção regional e, por esta via, circulava muito entre as aldeias da zona, integrando, por vezes, as comissões de redação no decorrer das conferências do Partido que se organizavam todos os anos.

Se bem que colaborasse com a Juventude [do PAIGC], no seu forro íntimo, detestava o Partido pelos crimes cometidos na sua terra natal e tinha guardada dentro de si a promessa de nunca integrar as suas fileiras. 

Estes encontros, já sem qualquer interesse político, eram momentos de verdadeiras orgias festivas onde as bebedeiras eram uma constante. Não era raro acontecer em plena reunião que grande parte dos distintos camaradas delegados estivesse a dormir numa boa, embalados pela monotonia dos discursos e pelo vinho de caju, abundante na região. Sem o saber, esta sua aparente adesão viria a ser importante para a obtenção da bolsa de estudos.


(v) Pedida de bolsa para estudar no estrangeiro atendido em 1985: a "sétima sorte" contempla-o com Kiev, na Ucrània, URSS

Dois anos mais tarde, o Chiquinho fez o pedido da bolsa para o estrangeiro, com boas referências da comissão regional da Juventude de que fazia parte, ainda assim, só viria a ser atendido em 1985. Neste ano, ele fez parte do grupo de estudantes contemplados com bolsa de estudos para a URSS.

Depois de ter encabeçado durante muitos anos a sua lista de preferências, curiosamente, [a URSS] já não era o país que mais desejava, mas seria uma grande sorte se conseguisse partir. Durante alguns meses reinou a dúvida e a incerteza quanto à viagem, devido a informações contraditórias e às mudanças de última hora nas listas de bolseiros. Ele acreditava tratar-se da tal “sétima sorte” de que tanto ouvira falar na sua aldeia, durante as férias.

Pensando bem, havia muito tempo que convivia com ela, a sétima sorte, desde os dias em que ainda criança, armado com um simples bastão, seguia atrás de manadas de gado bovino em louca correria, fugindo das rajadas de vento carregadas de chuva, pelas bolanhas de Berecolon, zonas deixadas há muito para a gente do mato ou quando se pendurava escondido, nas traseiras de um velho Unimog que ia buscar água para a tropa em Contuboel, no rio Geba, a uma distância de 30 km, colocando o seu amigo Dias perante o facto consumado.

(Continua)

Fotos (e texto): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

[Fixação / revisão de texto / negritos / título e 
subtítulos: LG]
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Nota do editor;

Guiné 61/74 - P23015: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXII: Luis Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro, cap inf (Viana do Castelo, 1885 - França, CEP, 1918)


Luis Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro (1885 -1918)

Nome: Luiz Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro

Posto: Capitão de Infantaria

Naturalidade: Viana do Castelo

Data de nascimento: 21 de Junho de 1885

Incorporação: 1906 na Escola do Exército (nº 88 do Corpo de Alunos)

Unidade: 4ª Brigada de Infantaria, Regimento de Infantaria n.º 3

Condecorações

TO da morte em combate: França (CEP)

Data de Embarque: 15 de Abril de 1917

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura: França, Cemitério de Richebourg l`Avoué

Circunstâncias da morte: Na batalha de 9 de Abril foi inicialmente dado como desaparecido. O seu corpo foi posteriormente encontrado em Laventie e confirmado que a sua morte fora causada por ferimentos graves sofridos durante o combate.



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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Nota do editor:

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23014: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVIII: Chile, Valparaiso, fevereiro de 2020






Chile, Valparaíso, Fevereiro de 2020 > A primeira foto é da Casa Museu de Pablo Neruda, "La Sebastiana"... Texto e fotos recebidos em 8/2/2022. A última, o autor junto a uma estátua dedicada a  Cristóvão Colombo.

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2022) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Valparaíso, Chile, Fevereiro 2020

por António Graça de Abreu

[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de  três centenas de referências no blogue. ]


Levantar cedo, partir na impossível-possível descoberta de Valparaíso, terceira maior cidade do Chile, 300 mil habitantes, vidas duras e difíceis. Avisos para ter muito cuidado com as carteiras, as bolsas, os telemóveis, as máquinas fotográficas, para não utilizarmos os transportes públicos e evitar certas zonas urbanas. Enfim, conselhos para sobrevivermos incólumes diante dos amigos do alheio, na aventura de nos lançarmos sozinhos por dentro dos grandes burgos da América Latina.

Subo para um velhíssimo minibus, pago cerca de 50 cêntimos de euro pelo bilhete por um percurso de dois quilómetros. Saio na Plaza Sotomayor, que será o centro histórico de Valparaíso enquadrado por um bonito edifício azul, datado de finais do século XIX onde funciona a Comandancia da Armada. 

Na Plaza, destaque para o monumento e mausoléu aos Heróis de Iquique, uma batalha travada na chamada Guerra do Pacífico, em 1880, entre o Chile e a Bolívia/Peru, vencida pelos marinheiros e soldados chilenos em Iquique, na altura território boliviano e hoje terra do Chile.

A cidade foi fundada em 1536 pelo espanhol Juan de Saavedra que lhe chamou Valparaíso em honra da sua aldeia natal de nome Valparaíso de Arriba, na província castelhana de Cuenca. Desempenhou um importante papel na história do Chile, sobretudo antes da abertura do canal do Panamá, assumindo-se como porto de mar fundamental no comércio do Pacífico e na ligação com Santiago do Chile. 

Fizeram-se e desfizeram-se fortunas nesta terra, construíram-se grandes mansões, igrejas e os mais variados edifícios públicos, alguns deles não resistiram à passagem dos anos, outros mantiveram-se gloriosamente de pé, mau grado os abalos dos terramotos frequentes na região.

Valparaíso, encostada à serrania, alargou-se subindo em escadinha por 45 cerros, tem dezasseis funiculares. Logo a seguir ao porto impera uma confusão de ruas, travessas e vielas que trepam pelos montes. Por isso, se diz que as pernas das mulheres de Valparaíso são as mais bonitas do Chile, esculpidas, alindadas, trabalhadas nestas subidas e descidas pelas trezentas ou quatrocentas escadarias da cidade.

Vou ao encontro da casa que pertenceu a Pablo Neruda (1904-1973). O poeta chileno, Prémio Nobel da Literatura, deu-lhe o nome de Sebastiana, homenageando o seu construtor que a desenhou de raiz, o espanhol Sebastian Collado. 

Era o lugar secreto -- mas conhecido por toda a gente --, onde o poeta se encontrava com as suas amantes e onde acabou por falecer, logo após o 11 de Setembro de 1973. Foi vandalizado depois da sua morte, mas está hoje restaurado como museu. 

Neruda explica como e porquê desejou esta casa: “Siento el cansancio de Santiago. Quiero hallar en Valparaíso una casita para vivir y escribir tranquilo. Tiene que poseer algunas condiciones. No puede estar ni muy arriba ni muy abajo. Debe ser solitaria, pero no en exceso. Vecinos, ojala invisibles. No deben verse ni escucharse. Original, pero no incómoda. Muy alada, pero firme. Ni muy grande ni muy chica. Lejos de todo pero cerca de la movilización. Independiente, pero con comercio cerca. Además tiene que ser muy barata ¿Crees que podré encontrar una casa así en Valparaíso?”

Pablo Neruda encontrou mesmo. E aqui, depois de lapidar mais sortilégios envoltos nas mil magias do fluir da vida, exaurindo, por bem, tanto mundo, o poeta desceu à terra, descansou numa nuvem e mergulhou no mar.

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22986: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVII: Castro Laboreiro, Parque Nacional da Peneda-Gerês

Guiné 61/74 - P23013: Notas de leitura (1422): “Descolonizações, Reler Amílcar Cabral, Césaire e Du Bois no séc. XXI”, é coordenadora Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2019 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
A promessa desta professora universitária, Manuela Ribeiro Sanches, que tem currículo em estudos do Império Português, era a de questionar o legado europeu numa altura em que o continente conhece novas divisões e racismos, em que a crise financeira e económica global, as pressões migratórias, introduziram confrontos e posições defensivas, em perfeito contraponto com uma tradição de abertura e ocupação ou presença noutros territórios, para comerciar e fazer vanglória deste modo de viver em democracia liberal, nos tempos atuais. Escolheu bem os pensadores que criticaram o processo colonizador europeu, muitas décadas atrás. Esperava-se que esta forma de visita trouxesse clarificações. O que aconteceu é que se juntaram à molhada intervenções por vezes muito dissonantes, falta-lhes qualquer forma de conexão. Isto a despeito de haver alguns textos de gritante qualidade. Uma ocasião perdida para retomar a análise das descolonizações, as de ontem e as de hoje.

Um abraço do
Mário



Questionar o legado europeu muito depois das descolonizações

Beja Santos

A obra intitula-se “Descolonizações, Reler Amílcar Cabral, Césaire e Du Bois no séc. XXI”, é coordenadora Manuela Ribeiro Sanches, Edições 70, 2019. O livro pode ser considerado como a conclusão de um projeto que envolveu esta investigadora e outros, iniciado há 14 anos. Começa por questionar a oportunidade de avaliar o legado europeu no momento em que a Europa conhece novas divisões e racismos, clivagens ideológicas nos quatro pontos cardeais. O projeto reflete sobre a deslocalização da Europa, deslocar até aos lugares em que produzimos saber, ocupámos em diferentes continentes, ouvir de novo três influentes pensadores do antigo colonialismo, que deram suma importância, pela crítica veemente ao colonialismo europeu e às desigualdades a nível mundial. São contributos vários, há entre eles dissonâncias, diria mesmo que há reflexões um tanto descabidas para o objetivo primordial do projeto. Alguém pergunta, no início: “Na nossa era, caraterizada pela ocupação de territórios, pela destruição do meio ambiente, por uma nova política de espoliação, por novas formas de escravidão, novas formas de colonização, que podemos aprender com a geração dos anticolonialistas? Que dizem eles que possam ainda ecoar em nós e nos ajude a imaginar novas formas de emancipação?”.

E clarifica mais adiante: “Cabral, Césaire e Du Bois participaram nos movimentos dos povos não-brancos do século XX que estabeleceram ligações transfronteiriças entre línguas, culturas e identidades nacionais/coloniais. Fizeram parte do longo século XX, da história das lutas em todo o mundo, ligando a negritude, os movimentos anticoloniais e feministas, os movimentos políticos e culturais pan-africano e pan-asiático, os movimentos de independência na Ásia e em África, a Conferência de Bandung de 1955, o Movimento dos Não-Alinhados, o Movimento dos Direitos Cívicos, o Black Panther Party, a luta palestina”.

A Europa delineada pelo Tratado de Utreque, de 1713, idealizava uma paz perpétua para toda a cristandade, um equilíbrio entre potências rivais, o comércio livre e os teóricos vaticinaram que esta comunidade se ligaria pela lei, pela moral e até pela colonização. Era um sonho eurocêntrico que, como bem sabemos, acabou em graves disputas na ocupação dos territórios, graças à avidez de matérias-primas. Césaire, em 1956, censurava o espírito que estava enraizado na Europa, da extrema-direita à extrema-esquerda de dispor e pensar pelos colonizados, exigia-se uma verdadeira revolução coperniciana, cortar com esse pensamento do dominador sobre o dominado.

A Guerra Fria, o confronto direto entre as duas superpotências, assumiu matizes específicos, ambas queriam influenciar os novos Estados independentes e os ainda colonizados, o pregão comum era o desenvolvimento, explorar todos os recursos. Ambas as superpotências apregoavam representar uma civilização superior. Assim se plantou o novo equívoco, o conceito de um desenvolvimento universal, as necessidades fundamentais, materiais e espirituais definidas como o comum a qualquer povo. Daí a resposta dos pensadores do anticolonialismo, exigindo uma nova atitude cultural dos povos libertados. Um estudioso angolano de Amílcar Cabral, António Tomás, reflete sobre o conceito de cultura do pai fundador da Guiné-Bissau. Para o estudioso, fica demonstrado que Cabral tinha um entendimento da cultura que chocava com a realidade da Guiné no tempo da guerra revolucionária. Cabral foi voluntarista, agia como que cabo-verdianos e guineenses se encontrassem em situações idênticas, a unidade era assumida como um dogma. “Cabral contava com os cabo-verdianos para fornecer os quadros para os escalões mais elevados do partido. Contudo, durante a guerra, só cerca de uma centena de cabo-verdianos trabalhava para o PAIGC. Só aos poucos eram atribuídas funções relevantes dentro do partido, além de tarefas burocráticas básicas. A maior parte vivia no quartel-general do partido em Conacri, trabalhando em escolas, hospitais, escrevendo panfletos e guiões radiofónicos, mas raramente se aventurando a ir para a luta no mato”.

No tempo da luta armada já era evidente que os grupos sociais apresentavam caraterísticas culturais manifestamente distintas. Cabral forjou a «cultura nacional», conceito englobante que abarcaria todas as diferenças e contradições das culturas particulares. Tomás observa um grupo étnico balanta, a sua coesão e ambições. E recorda que a política de Spínola assentava numa representação étnica onde os cabo-verdianos tinham um papel dominador, a Guiné Melhor refutaria tal privilégio, a Guiné era dos guinéus, com os antecedentes históricos existentes e com o exacerbamento destes novos quadros cabo-verdianos, a separação radical foi uma questão de tempo. Tomás conclui que a teoria de Cabral se baseava em explicações de fenómenos sociais que não davam conta do contexto real em que se encontrava.

Noutras intervenções deste trabalho é analisado o conceito de povo, ideologia e ciência em Amílcar Cabral, o pensamento de Du Bois e de Frantz Fanon, que estabeleceram um diálogo à distância. Inusitadamente, aparece um texto completamente fora do baralho intitulado “A política da tradução de conceitos deslocados”, bem curioso mas que no contexto só serve para encher papel, não liga com o antes nem o depois. Fica-se com a sensação que houve uma ideia arrojada, de voltar a pôr na linha da frente três figuras de proa da luta anticolonial mas o projeto entrou em desnorte ou por falta de colaborações apropriadas ou por se considerar que tudo ao molhe e fé em Deus, uma sala de conversa cacofónica era uma boa maneira de repensar a Europa, o Ocidente quando se reclamam novas formas de descolonização. Ideia arrojada para arranque de projeto, uma deceção nos resultados.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23007: Notas de leitura (1421): “Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado; Guerra e Paz Editores, 2019 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23012: O segredo de... (37): Demburri Seidi: demorou mais de dois anos para sair da sua boca o testemunho sobre os trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976, devido em parte ao medo que sentia e a manifesta dificuldade em falar sobre a "justiça revolucionária" praticada pelos vencedores contra os vencidos (Cherno Baldé)



O Comandante das FARP Quemo Mané (Canjabel, região de Quínara, c. 1932 - Moscovo, 1985). Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta 05248.000.024Reproduzido com a devida vénia...

Citação:
(1966-1973), "Quemo Mané", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43764 (2022-2-19)



Título de viagem (servindo de passaporte),  emitido pelo Ministério da Defesa e da Segurança Nacional,  da República da Guiné. Data: Conacri, 17 de junho de 1968. Titular: Quemo Mané, de nacionalidade guineense, nascido por volta de 1932, em Canjabel, caçador de profissão (sic), residente em Conacri,  B, 1º 298. Motivo da viagem: tratamento médico na URSS. Validade: um ano.

Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta   07200.172.017. Reproduzido  com a devida vénia...

Citação:
(1968), "Título de viagem", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41544 (2022-2-19)


1. Em 2013,  quando publicámos o relato de Cherno Baldé sobre os acontecimentos em Cuntima, no norte da Guiné-Bissau (*), estávamos perante  a revelação de um duplo segredo:  (i) o de Demburri Seidi (nome fictício, por razões de segurança) de quem foi obrigado a assistir às execuções públicas, da inteira e única responsabilidade do comandante das FARP Quemo Mané (c.1932-1985); (ii) mas também do Cherno Baldé, que levou o seu tempo (dois anos) a recolher e a traduzir esse depoimento... e mais uns tantos até decidir publicá-lo no nosso blogue...

Daí fazer todo o sentido publicar um comentário do Cherno Baldé ao poste P11762 (*), transformando-o em poste desta série "O segredo de...".  Passados mais de 8 anos não temos conhecimento de mais nenhuma outra versão sobre estes acontecimentos que, de resto, são do domínio público na Guiné-Bissau, mas que o tempo já fez esquecer. Infelizmente Cuntima não foi exceção, nos primeiros anos que se seguiram à independência.

Em 23 de junho de 2013 escrevemos (*):

(...) Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum). 

 Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976. (...)

Mais recentemente, republicamos em parte este poste (**).  


2. Aqui vai então o comentário do Cherno Baldé (***)

"Pode ser até que se trate de uma etapa obrigatória da evolução de todos os povos... É só analisar a História dos povos velhos do mundo e tirarmos as conclusões objectivas." (A.P. Costa)

"Sejamos pragmáticos com a História, o país Guiné-Bissau nasceu assim. Houve vencedores e vencidos e as represálias dos vencedores sobre os vencidos pressentiam-se na sua 'cartilha' comportamental, no uso, pelo PAIGC, da violência interna para dirimir conflitos». M. Joaquim.

"...Para tudo há explicações, mas para isto não há justificação". (L. Graca).


Caros amigos, ex-combatentes,

Muito obrigado pelo feedback ao pequeno texto que se foi relativamente facil de traduzir e trabalhar, demorou mais de dois anos para sair da boca do Demburri Seidi que testemunhou estes acontecimentos em 1976, em parte pelo medo que ainda o habita e, também, por manifesta dificuldade de falar sobre esta justiça revolucionária praticada contra os "fracos".

Para quem não sabe, eu venho de longe e, como tal, durante muitos anos, acreditava no que o Manuel Joaquim, na esteira do A. P. Costa, chama de "conclusão objectiva" (ver citação acima).

Inclusive acreditava piamente que as vítimas do comunismo da era estalinista se justificavam plenamente em nome da necessidade suprema do progresso dos povos. Hoje sei, felizmente, que estava redondamente enganado.

Eu, pessoalmente, estou tanto revoltado contra a prática criminosa do PAIGC como a prática, não menos criminosa e insensata, das chefias do MFA que, aparentemente, não só não tinham o controlo da situação, mas também não quiseram ter em conta a posicão da JSN - Junta de Salvação Nacional, no processo da descolonização. 

Se calhar já era tarde demais, não sei, mas se a solução era política e não militar, como se dizia, não se compreende que sejam os militares a ditar as linhas basilares da orientação estratégica a seguir num momento e sobre assuntos cruciais da história de Portugal e das suas extensões territoriais em África.

De qualquer modo e para não me alongar muito, vou ao encontro do Luís Graça para dizer que, de facto, para tudo pode haver explicacões... mas não há justificação para o que aconteceu na Guiné no pós-independência.

Não consigo esquecer uma frase que o Marcelino da Mata proferiu numa das suas raras interevenções públicas, mais ou menos nestes termos: "Nós éramos muitos, provavelmente muito mais numerosos que as FARP, e, se nos permitissem, podíamos impor uma solução negociada que conduzisse a um referendum nacional sobre o território"-

Se havia o perigo do deflagrar de uma nova guerra, de qualquer modo, no fim haveria, presumo, maior respeito e contenção entre os adversários e não a humilhação que foi a sina de todos quantos estavam do lado Português. Revejam as palavras de Abbaro Candé que preferia a morte à humilhação a que estavam sujeitos, todos os dias.

Espero não ter posto mais lenha no fogo. Mantenhas.

Um abraço amigo a todos,
Cherno Balde
26 de junho de 2013 às 11:46 


3. Informação de hoje, em que o Cherno Baldé dá mais detalhes sobre o testemunho de Demburri Seidi:


O Demburri Seidi (nome fictício) é Oinca (da região do Oio, sector de Cuntima) que viveu alguns anos refugiado no Senegal (Casamansa) durante a guerra colonial. 

Fula de origem, mas mandinga de educação e cultura, um pouco como todos os fulas do Norte, pela longa convivência num meio de maioria mandinga, nesta região em concreto. Ele domina ambas as línguas desses grupos. 

A tradução foi de fula para o portugués, mas o mais difícil, primeiro, foi convencé-lo a depor e depois, foi preciso esperar que ele pudesse se recompor e ultrapassar a evidente dificuldade de falar sobre um acontecimento que o tinha profundamente traumatizado, pelo que, algumas vezes, tivemos que interromper por vários dias/semanas/meses, porque de cada vez que revia aquelas cenas macabras consumia-se num choro convulsivo e não conseguia continuar a narrativa porque ainda se ressentia do efeito, passados que eram mais de 35 anos sobre os acontecimentos. 

Foi preciso muita paciência e alguma insistência da minha parte, pois como dizem na Guiné "Quem teve a amarga experiência com um Cankuran, tem medo do Baga-Baga", porque ambos sao da mesma cor de terra vermelha.

A localidade de Candjabel ou Gan-Djabelia (em Biafada) que consta no documento sobre Quemo Mané, está situada no troço que liga Fulacunda a Nova Sintra, onde foi sepultudo, mesmo à beira da estrada do lado direito, no sentido Fulacunda/Nova Sintra.

Abraços,

Cherno Baldé

21 de fevereiro de 2022 às 14:39



Guiné > Região de Quínara > Carta de São João (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canjabel, a nordeste de Nova Sintra.

Imfografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(**) 18 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané

(***) Último poste da série > 11 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22988: O segredo de... (36): Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74): louvado pelo comando do BART 3873, por, no decorrer da Acção Guarida 18, em 3/2/1973, em Ponta Varela, "ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro"

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23011: Fotos à procura de... uma legenda (160): Transportes públicos de Bissau: ABP, que sigla seria esta ?






Guiné > Bissau > s/d [1971/73 ] > Um autocarro dos transportes colectivos de Bissau, carreira Bissau/Bissalanca!... Uma verdadeira peça de museu... Parece ser um autocarro com desenho dos anos 30, a avaliar pela carroçaria, uma estrutura em madeira chapeada (?!)... Tinha tejadilho,  onde se levava a "bagagem" dos passageiros, desde cabras a  produtos agrícolas... As portas e as janelas parecem "abertas"... Matrícula G-620... Empresa: ABP (?)... Foto do nosso saudoso Victor Barata (1951-2021), o "Vitinho".

Foto (e legenda): © Victor Barata (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Carlos Pinheiro (ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), a quem pedimos ajuda para identificar a empresa que operava os transportes publicos de Bissau no início dos anos 70.

Data - 19/02/2022, 19:19 
Assunto - Transportes públicos de Bissau: ABP, que sigla seria esta ?

Boa tarde, Luís

De facto não me lembro desta empresa, mas lembro-me bem de outra, a do Costa, que também tinha alguns autocarros(?) que a malta até dizia :  "Camionetas do Costa 'suma' a cachorro de rabo de lado"...

Um abraço, Luis, CP.

2. Comentários ao poste P23005 (*)

António J. Pereira da Costa:

A foto do autocarro é importantíssima, pois prova aquilo que muitas vezes se diz, um tanto jocosamente, que naquele autocarro até as cabras eram transportadas.

Havia um outro percurso (Bissau - Biombo) onde a viatura, talvez um pouco mais moderna do que esta, andava um pouco de lado, por ter uma mola dianteira partida.

O "serviço de peças"(?) das mais conhecidas marcas era mais do que incipiente e as "firmas importadoras" (Gouveia e similares) não se dedicavam a fazer importações tão complicadas. E oficinas para a manutenção do autocarro?

Enfim coisas boas de antanho...

Virgílio Teixeira:

No meu tempo (1967/69) nunca andei nem vi qualquer transporte público, mas eu não precisava, tinha as minhas motorizadas, e por outro lado havia o transporte militar de Santa Luzia - Bissau e Bra - Bissau. É possivel que houvesse táxis!

Quando lá estive em 1984 e 1985, havia um deficit de transportes públicos modernos. Pois o que existiam eram as carrinhas Toyota de caixa aberta, onde cabia de tudo, pessoas, gado, mercadorias de tudo. E muitos acidentes pois eles andavam a grande velocidade e com o pessoal sentado nos taipais, era uma desgraça.

Conheci e colaborei num projecto , uma empresa portuguesa, que colocou 3 autocarros Volvo, do mais moderno, onde cabia também tudo. Passado um ano, acabou por fechar, por falta de peças, oficinas etc. Ainda viajei de Bissau até Nova Lamego e regresso, num desses percursos, ocorreu um óbito de um homem local, mesmo ao meu lado.

Por isso ABP não me diz nada.

António J. Pereira da Costa:

Tenho notícias muito vagas e remontando a 1975 de que a União Soviética teria fornecido à Guiné viaturas de transporte de pessoal do exército. Eram viaturas mais do que obsoletas, de grandes dimensões, pesadíssimas, com uma invulgar largura de eixo, o que as tornava proibitivas na Guiné por não se puderem cruzar numa estrada. Tinham um consumo astronómico e tentaram constituir com elas uma empresa de transportes sob orientação de um português, ex-empresário na Guiné,  de nome Vilela. Falhou em poucos meses...

Mas não tenho confirmação.

João Rodrigues Lobo:

Quando estive em Brá, nos anos completos de 1969 e 1970 praticamente todos os dias fazia várias vezes o trajecto Brá / Bissau, conduzindo o meu jeep, para acompanhar as cargas e descargas nos portos, principal e Pijiquiti, e não me recordo destes autocarros. Presumo que, se me tivesse cruzado com eles, me lembraria. Mas a memória por vezes pode atraiçoar embora julgue que só teriam surgido depois de 1970.

3. Comentário do editor LG:

Perguntei ao Carlos PInheiro (com conhecimento a outros camaradas que conheceram Bissau nessa época):

Carlos, tu que és de longe o nosso melhor cicerone de Bissau do nosso tempo, vê lá se reconheces o patusco autocarro de que aqui se publica uma foto, com uma sigla ABP, na parte de trás, que nos parece ser a da empresa proprietária... Fazia o percurso Bissau - Bissalanca no princípio dos anos 70... Chegaste a andar de transportes públicos no teu tempo ? Lembras-te do nome da empresa ? E será que se manteve depois da independência ? Pode ter acontecido, se bem que improvável... E já agora havia no teu tempo autocarros mais modernos... e confortáveis ?

Dou conhecimento a alguns dos nossos grã-tabanqueiros que também conheceram Bissau como tu, e nomeadamente alguns camaradas da FAP, incluindo os que voltaram a Bissau depois da independência.


Mais comentários dos nossos leitores serão bem vindos (**).