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domingo, 23 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11749: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (10): "O Nosso Dicionário"

1. Mensagem do António J. Pereira da Costa cor art ref, ex-alf art CART 1692/BART 1914, (Cacine, 1968/69); e ex-cap art e cmdt, CART 3494/BART 3873 (Xime e Mansambo) e CART 3567 (Mansabá)  (1972/74):

Data: 19 de Junho de 2013 às 22:19

Assunto: "O Nosso Dicionário"

Olá,  Camarada

Aqui vão 4 páginas de um dicionário de termos militares relativos à Guiné. Foram os de que me lembrei. Se houver mais,  é só acrescentar. Um Ab.

2. A Minha Guerra a Patróleo (10) > 
O Nosso Dicionário Militar

Nota Prévia: Na elaboração deste pequeno dicionário:

(i)  não foram considerados acrónimos e abreviaturas regulamentares incluídas na linguagem militar do tempo;

(ii) Também não se consideraram designações regulamentares de certos materiais, ainda que tenham provindo de alcunhas ex. "jipe", (inicialmente "GP" ou "Jeep"); ex. matador (viatura militar de fabrico britânico da AEC), etc.;

(iii) Não se consideraram expressões de crioulo, pois essa é a língua usada pelos povos da Guiné para comunicarem entre si não constituindo, por isso, linguagem militar;

(iv)  As expressões da gíria militar "oriundas" de outros TO também não foram aceites, bem como as expressões vindas da I Guerra Mundial ou de outras, ex. ameixa de Elvas, (inicialmente pelouro e depois sinónimo de granada) e que ficaram na gíria militar, por que não foram "adoptadas" durante a Guerra Colonial.

Este critério reduziu muito o número de palavras ou expressões características da Guerra da Guiné.


APANHADO (do clima) – Situação do foro psicológico que poderemos comparar a certas situações de stress laboral e que se manifestava por comportamentos absurdos ou inconvenientes. O termo era, muitas vezes usado como chacota, para designar os militares com atitudes hilariantes e bem-dispostas, mas, noutros casos, era indício de um cansaço psicológico que não deixava de se fazer sentir em consequência da permanência na "Província".

ATACADORES DE PARAQUEDISTA (Ou de PM)
– Esparguete. Este tipo de massa era, talvez pela sua melhor capacidade para se conservar e baixo preço, muito frequente na alimentação das unidades militares. Acompanhava carnes, era incluído em sopas, mas há notícias de ter sido consumido de outros modos nomeadamente acompanhado de marmelada.

BANANA
– Rádio portátil de curto alcance normalmente usado para ligação entre grupos de combate e com uma forma bastante sugestiva. Permitia a ligação com a Força Aérea em duas frequências (uma de contacto inicial e outra para utilização subsequente). Inicialmente de origem francesa – o THC 736 de maiores dimensões foi substituído pelo AVP – 1, mais portátil e, sensivelmente, com o mesmo alcance.

BARCOS DE BRAÇO-DADO – Conjunto de duas embarcações que navegavam muitas vezes sem escolta e incluindo uma pequena força de fuzileiros pelos rios da Guiné. O aspecto exterior de ambas era idêntico. Porém, só uma tinha motor. Assim, navegavam solidamente ligadas pelas amuradas. Eram semelhantes a batelões com uma capacidade de carga, a granel, muito considerável. Frequentemente transportavam pessoas em condições bastante incómodas, sobre a carga e com reduzida protecção contra as intempéries.

BATE-ESTRADAS – Aerograma. A fim de simplificar o manuseamento da correspondência para o Ultramar foi criado este tipo de correspondência que já existia noutros países. Este tipo de "envelopes" abertos e consultáveis facilitava a possível acção da censura de guerra. O Movimento Nacional Feminino fazia a distribuição de aerogramas que também podiam ser obtidos noutras fontes, como as juntas de freguesia.

BAZOOKA – Cerveja de 0,6 dl. Exclusivamente para o Ultramar as cervejeiras (Sagres, Nocal, Cuca, etc.) apresentavam a cerveja em garrafas de 0,6 dl às quais foi dado aquele nome por oposição às normalmente comercializadas com 0,33 dl de capacidade e por consequência com maior poder "explosivo" como sucedia com as bazookas, armas anti-carro de calibre 6 cm ou, mais frequentemente, 8,9 cm de fabrico americano.

BIANDA – Comida em geral. Do crioulo arroz, base da alimentação da população.

BICHA DE PIRILAU – Designação comum a todos os TO. Progressão, em coluna por um, mantendo cada homem uma distância regulamentar, adequada à situação táctica, em relação ao que se lhe seguia.

CACO (Baldé) – Alcunha do brigadeiro e, depois, general António de Spínola, aludindo ao monóculo que usava. Diz-se que a lente não tinha graduação e que se destinava a compor a sua figura. Ao cert, sabe-se que o general usava óculos, sempre que precisava de ler. A designação baldé vem da protecção dada às populações e ao esforço que promoveu para a sua captação para o apoio às tropas e à política do governo.

CANHOTA – Espingarda. Inicialmente a espingarda Mauser, de calibre 7,9 mm, cujo desempenho insuficiente obrigou à aquisição de uma espingarda automática – a G – 3 (também de fabrico alemão) – de calibre 7,62 mm.

CAPITÃO-PROVETA – Nos últimos anos de guerra, devido a dificuldades de recrutamento, foram graduados no posto de capitão, oficiais, normalmente licenciados, que, após o curso de oficiais milicianos (COM), embarcavam com o posto de alferes miliciano para um estágio de quatro meses numa unidade operacional e num dos três TO para que pudessem familiarizar-se com o ambiente que iriam encontrar. Ao regressar eram graduados em tenentes, preparavam uma subunidade e voltavam a embarcar, agora como comandantes de companhia. Esta forma de recrutamento de comandantes de companhia entra em vigor quando se esgotou a possibilidade de chamar às fileiras os oficiais milicianos que não tinham sido mobilizados, ou porque a guerra ainda não se iniciara, à data da sua passagem à disponibilidade ou porque, durante o seu serviço militar, não tinham sido mobilizados como subalternos.

CICLISTAS – Feijões-frade. Esta designação estava divulgada na Metrópole e no Ultramar. Resulta da semelhança entre um pelotão de ciclistas a passar pelos espectadores. (todos iguais e movendo-se rapidamente). Julga-se que se deveria ao facto de este tipo de feijões (muito utilizado como acompanhamento de diversos pratos de peixe e conservas) ser cozido e depois a água da cozedura ser escorrida. Sendo todos iguais e movimentando-se depressa nessa altura temos que considerar que a "semelhança" era evidente.

CIFRA – Operador cripto. Até ao nível companhia existiam normalmente dois cabos operadores-cripto que cifravam e decifravam as mensagens, expedidas e recebidas. A alcunha vem claramente da sua actividade.

COSTUREIRINHA – Pistola-metralhadora PPSH de fabrico soviético de calibre 9 mm que equipou os exércitos da URSS e do Pacto de Varsóvia, respectivamente, durante a II Guerra Mundial e durante grande parte da Guerra Fria. Tinha um carregador circular de cerca de 60 munições e distinguia-se pelo som do seu funcionamento que lembrava uma máquina de costura.

EMBRULHAR
– Ser atacado pelo IN.

ENXOTA-PINTOS – Também chamado burro-do-mato ou simplesmente burrinho. Viatura de fabrico alemão Mercedes Unimog 411. Inicialmente era uma viatura agrícola destinada a serviços em pequenas explorações. Trabalhava a gasóleo e tinha um ruído de motor agudo e muito característico. Era uma viatura muito utilizada pela sua potência e manobrabilidade. Transportava habitualmente uma equipa de atiradores.

ESCRIBA – Primeiro-cabo escriturário que trabalhava, normalmente, na secretaria com o primeiro-sargento que "respondia [1]" pela companhia.

ESTILHAÇOS – Carne de frango, normalmente em pequena quantidade e, por isso, muito dividida em pequenos bocados, habitualmente comida misturada com massa ou com arroz.

FERRUGENTO – Qualquer elemento da "ferrugem", secção de manutenção auto, e não só, de uma subunidade.

KIKO, QUICO ou TAPA-CHAMAS – Barrete do uniforme n.º 3 ou do camuflado. Totalmente confeccionado em pano com uma pequena pala, em redondo, para diante, e outra, para trás, que se abria em duas partes, de forma a adaptar-se à nuca. Muitas vezes, para se não perder nos movimentos de progressão no mato, era atado por uma das pontas a uma platina do camuflado. Esta designação generalizou-se e era usada em todos os TO e na Metrópole.

KALACHE – Espingarda automática de fabrico soviético, utilizando o calibre 7,62 (curto) denominada Kalashnikov, nome do seu inventor Mikhail Kalashnikov. No exército de origem é designada por AK – 47 (Avtomat Kalashnikova odraztzia 1947 goda).

LERPAR – Por analogia com o jogo de cartas, significava morrer. Podia também ser usado em relação a qualquer outra coisa que falhasse ou não se concretizasse. (viagem, dinheiro a receber, etc.)

MANGA DE CAPOTE
– Tipo de massa alimentícia que também era assim designada pela própria Manutenção Militar e que aumentava substancialmente de volume, depois de confeccionada.

MÉZINHO ou PASTILHAS – Adoptando uma expressão do crioulo, era a designação dada a qualquer elemento da equipa sanitária da subunidade, normalmente o furriel.

NHARRO – Expressão de significado depreciativo que designava o preto (normalmente interessado em tirar partido da acção da tropa) ou o branco residente e exercendo comércio numa povoação do interior à maneira dos "lançados" no Brasil antigo.

PAGA-DEZ – Grande lagarto de cores vivas, mas inofensivo que se movimenta por pequenos e rápidos lanços. Ao parar subitamente, fazia um movimento com as patas dianteiras semelhante ao das flexões de braços em apoio no solo. "Pagar dez" (flexões de braços) era a punição mais comum durante o treino físico, praxe militar ou em consequência de um qualquer procedimento tido como não regulamentar.

PBX – Designação atribuída a um qualquer elemento da secção de transmissões da subunidade. Corruptela da expressão em inglês Private Branch Exchange (mudança de ramais privados) e que designava, naquele tempo, um centro de distribuição telefónica pertencente a uma entidade que geria, no seu interior, os seus próprios serviços telefónicos.

PERIQUITO ou PIRA – Novato. Todo aquele que tinha acabado de chegar à Guiné para continuação do serviço militar. Esta designação era utilizada noutros sectores da vida e da acção nas unidades ou fora delas.

PICAR (a estrada) – Operação de grande perigo que consistia em progredir por itinerário ou trilho procurando detectar minas (normalmente) ou armadilhas. Uma vez que a quase totalidade das minas usadas pelo inimigo eram de plástico ou de madeira não era possível utilizar o detector de minas. Por isso este trabalho era realizado com recurso a uma vara de verguinha afiada – a pica – que se espetava no solo e pelo som ou pela diferença de textura do terreno encontrada permitia a detecção do engenho.

REBENTA-MINAS – Designação, comum a todos os TO, para a primeira viatura de uma coluna auto, geralmente mais pesada, de cabine recuada e com diversos sacos de areia, visando aumentar-lhe o peso e proteger o pessoal da cabine, no caso de ser accionada uma mina anti-carro.

SALGADEIRA ou SOBRETUDO DE MADEIRA
- Caixão.

SUPOSITÓRIO – Granada de artilharia. Aludindo à forma aerodinâmica deste tipo de munições.

TROPA-MACACA – Unidades do Exército, de quadrícula ou intervenção, formadas na Metrópole ou do recrutamento local, não incluídas na designação de tropa especial (comandos, pára-quedistas ou fuzileiros especiais).

TUGA – Designação pejorativa dada pelo PAIGC aos militares portugueses.

TURRA – Designação pejorativa dada aos combatentes do PAIGC. Abreviatura de terrorista.

VAGUEMONSTRO – Furriel vagomestre da companhia.

VÉLHICE – Expressão designava uma unidade ou grupo de unidades que já tinha terminado a sua comissão ou estava à espera que tal sucedesse, a curto prazo.

VÉLHINHO. – Militar de uma unidade da velhice.

VIÚVA NEGRA
– Mina anti-pessoal PMN de fabrico soviético. De plástico negro e formato circular, apresentava duas tampas que lhe conferiam um aspecto de pequena panela e continha uma quantidade relativamente pequena de explosivos. Era adequada a ser manuseada por guerrilheiros pouco evoluídos como sapadores, já que tinha a particularidade de, uma vez implantada, só ficar activa após algum tempo destinado a cortar com um arame semelhante a uma corda de guitarra uma cavilha de chumbo.
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[1] Esta expressão designava as funções gerais administrativas e logísticas do primeiro-sargento de qualquer subunidade. Actualmente estas funções são desempenhadas por um sargento-ajudante.

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11172: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (9): A praxe da Ivone

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11172: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (9): A praxe da Ivone

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 20 de Fevereiro de 2013:

Olá Camaradas
Aqui envio uma cena de praxe de que fui vitima e aceitei bem.
As coisas, como tudo na vida, têm de ser feitas com humor, gosto e classe. De outro modo, não valem a pena...

Um Ab.
Pereira da Costa


A Minha Guerra a Petróleo - 9

A Praxe da Ivone

A Ten. Enf. Pára Ivone Reis era uma militar circunspecta e que levava muito a sério os procedimentos ditados pelas ordens e regulamentos. Era simpática e acessível, mas para ela conhaque era conhaque e serviço era serviço. Mas posso testemunhar que também lhe resvalou o pé para a praxe. Como vão ver a vítima fui eu.

Em 12 Dezembro de 1968 a CArt 1692 estava a terminar o seu tempo em Cacine. A sobreposição com a CCaç 2445 – uma unidade de açorianos – estava a chegar ao fim. Foi montada uma operação lá para os lados de Cacoca levada a cabo pelos “periquitos”, na máxima força e apoiados por heli-canhão, enfermeira-paraquedista e com o controlo aéreo a cargo do meu capitão. O grupo de combate “da velhice” (o do João Almeida, “O Alce”) marchava à retaguarda e constituía a força de reserva, para qualquer situação mais delicada que pudesse surgir. Os “piras” já não eram muito piras pois já tinham tido o baptismo numa acção no Quitafine, mas a área de Sangonhá e Cacoca que havia sido repartida entre as companhias de Cacine e Gadamael não era agora muito conhecida. Fora abandonada havia cerca de seis meses e o inimigo parecia não se interessar muito por ela, limitando-se a intensificar a guerra de minas. Foram accionadas três e levantadas cerca de cem, todas anti-pessoal PMD-6. Era o tempo em que Gandembel estava ao rubro e o In não tinha possibilidade de actuar em força nos dois quartéis mais a Sul.

Os meios aéreos ficaram na pista e nós ficámos aguardando. As coisas estavam muito calmas e a dada altura o Cap. Veiga da Fonseca (“O Foca”) decidiu ir ver como estavam as coisas no terreno e eu tomei lugar na traseira da “avionette” (avião DO-27 para os pilotos). Foi a única vez que vi a “guerra” de cima.

Descolámos e, minutos depois, estávamos às voltas na área onde dois bi-grupos de “piras” progrediam e começámos a procurar o nosso grupo. Respondia às chamadas pela rádio, mas não se deixava ver. Estava bem dissimulado e de súbito…

Quem seriam aqueles gajos? Aquilo era um grupo de turras! Kum karakas! Era preciso avisar os nossos e atacá-los. O avião meteu uma asa em baixo e deu umas duas voltas bem apertadas a tentar ver o que seria “aquilo”. O “Cap.” fez-me sinal com as mãos para que eu visse cerca de 20 “turras” que progrediam lentamente e com muito cuidado. Chamou pela rádio a pedir a entrada do héli-canhão. Porém, Cacine não estava à escuta e, a toda a velocidade, voltámos a Cacine tentando chamar a atenção com sucessivos passes a baixa altitude.

Lá vimos o jeep que se dirigia para a pista com o piloto e o apontador, a grande velocidade, e regressámos ao local da refrega. Mais umas voltas e apareceu o héli que voava bastante baixo e em círculos de canhão apontado ao grupo In. De súbito, uma surpresa. Os inimigos tiravam os quicos e cada um, à sua maneira, saudava o helicóptero.

É entontecedor o movimento do rotor dum héli aos círculos e nós próprios a voar por cima, rodando. Por mim, comecei logo a ficar “almareado”, mas procurei fixar um ponto no infinito para ver se me aguentava.

Regressámos a Cacine satisfeitos por tudo ter acabado bem. Mas para mim o pior estava para vir. A cabeça andava-me à roda e eu ansiava que aquilo acabasse. O avião tocou na pista e eu só tive tempo de abrir aquela janelinha de correr que existia na fuselagem e “deitar a carga ao chão”. Chegámos a Cacine e eu deveria vir com um aspecto deplorável. A Ivone Reis (“A Gazela”) quis saber o que se passava comigo – não fosse enfermeira – e eu contei, na minha boa-fé. Quando esperava solidariedade ela puxou dos galões e deu-me uma ordem seca:
– Patinho, isso foi grave! Vá lavar o avião já e bem. Não vamos voltar assim à base.

Debalde procurei descrever em pormenor o que sucedera e apresentar as minhas razões, mas a Ivone não se comoveu (regulamento é regulamento) e eu de balde e escova, coitado de mim, lá fui lavar o vomitado que pingava da fuselagem. O Cap. (ou “Quepezinho”) que conhecia bem a Ivone de Angola ajudou à festa e só já em Bissau, alguns dias depois num jantar no “Solar do 10”, a minha falta foi relevada, creio que à custa de uma lanterna de Dão Tinto para iluminar a mesa onde se sentavam o Cap, a Ivone, o Comandante da LDG que nos trouxera para Bissau e eu.

Como se vê, pelo menos daquela vez, a Ten Enf. Pára Ivone Reis também praxou, o que não será muito regulamentar. Segue junta a prova do sucedido à qual a Ivone chamou “O Pato e a Estátua” (foto tirada junto ao monumento evocativo da passagem da CArt 1692.

Mem-Martins
18FEV13

Cacine, 12 de Dezembro de 1968 > Ivone Reis e Pereira da Costa
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 25 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10721: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (8): Você agrediu-me?

domingo, 25 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10721: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (8): Você agrediu-me?

1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 23 de Novembro de 2012:



Olá Camaradas

Aqui vai a minha colaboração para o blog, no âmbito da série "A Minha Guerra a Petróleo".

O texto já foi submetido a exame prévio pelo Orlando Pauleta e vem na sequência do texto "Ai que Me Dói Tanto!" (*)

Creio que a leitura deste primeiro, facilita a compreensão do que enviei primeiro.

António José Pereira da Costa

A Minha Guerra a Petróleo (8)

Você agrediu-me?

A minha aventura com as minas não terminou com o ferimento do Paiva. Antes pelo contrário, ainda havia muito terreno a palmilhar. Agora, éramos apenas dois – o Ramos e eu – a conhecer o campo. Na única decisão lúcida possível, por determinação do Batalhão, tínhamos começado a levantá-lo e, até o CAOP “descobrir” o que se passava, tínhamos aberto uma brecha, com início no buraco do par de minas que vitimara o Paiva. Uma brecha não sinalizada é uma situação muito perigosa, em qualquer campo de minas e muito mais num implantado em terreno onde a natureza muda constantemente e com grande rapidez.

As referências, todas naturais, poderiam perder-se facilmente, com as consequências que se imaginam. Se o processo de revisão ou de levantamento não se apressasse, corríamos o risco de não conseguir identificar o local onde a “segunda secção” do campo tinha início. Preocupava-me o que pudesse acontecer ao Ramos. Embora um acidente fosse sempre uma hipótese a considerar, nunca me tinha passado pela cabeça que um, nos moldes do que vitimara o Paiva, pudesse acontecer. Admitia mais a possibilidade de um erro de manipulação, uma explosão no momento da colocação da cavilha, ou até a possibilidade de o IN mudar a posição de uma mina que tivesse detectado. Mas aquela, não… Como já disse, o Ramos era casado, vivendo na tabanca com a mulher e o filho de tenra idade e eu começava agora a imaginar a cena que teria lugar se ele viesse a ficar igualmente ferido.

Hoje, à distância no tempo, estou em crer que ninguém, nos comandos superiores, sabia, com clareza, o que fazer perante a situação que se gerara. As minas eram uma coisa “chata”, que existia e com que era necessário contar, mas não era uma coisa intensamente estudada e aplicada com rigor e atenção. Eu estava em final de comissão e, por muito que retardassem a minha partida, não havia a menor garantia de que a situação se resolveria. O Batalhão, mais lucidamente ou procurando alijar a sua parte da responsabilidade, procurara resolver o problema. Mas o CAOP 2 não estava pelos ajustes, talvez por não querer que as suas decisões fossem postas em causa.

Por isso, depois de ter simulado não “ver” o que se passava, deu ordem ao Batalhão para parar com o levantamento das minas. Foi finalmente tido em conta que o número de especialistas era insuficiente para a tarefa a desempenhar. Daí, que eu tenha sido informado de que a verificação do campo ia continuar com o apoio de dois especialistas – um cabo, Fernando Oliveira Neves, “o Oliveira”, e o furriel Orlando Pauleta – do Pel Sapadores do Batalhão. Quase em simultâneo, recebi notícia de que o meu substituto estava para chegar.

O encontro com o meu substituto foi verdadeiramente surrealista. Veio na “coluna grande” – a coluna Bissau-Farim – e eu procurei-o com a ansiedade de quem está farto e não sabe quando se verá livre daquela situação, que se aproximava do absurdo, tanto num nível a que podemos chamar local, como, muito provavelmente, a nível mais geral. Tinha os 24 meses completos e, embora o oficial de operações do Batalhão me tivesse informado que o meu substituto não seria capitão, não estranhei a situação.

Já há algum tempo que era minha convicção de que o potencial humano, pelo menos no que aos quadros dizia respeito, começava a ser insuficiente para as necessidades da “Guerra”, tanto em quantidade como na preparação ministrada ou recebida. Não o encontrei e a coluna acabou por partir em direcção ao Norte. Pensei: “Ainda não foi desta”. Só então vi, a meio da “avenida central” de Mansabá, um militar de camuflado, amparado a uma G3 e com duas malas ao lado. Estava longe, por isso mandei uma viatura buscá-lo. Recebi-o com o calor possível e, depois de instalado, fomos almoçar. Apresentei-o aos graduados da companhia e notei o seu ar não distante, mas fechado. Pouco conversador, talvez por estar desmoralizado, parecia remoer uma certa dose de revolta. No fundo acontecia a todos os que chegavam, pensei. O contacto com a terra era desmoralizante (“Afinal a Guiné é isto? É por isto que me venho arriscar?”) e o não conhecer a “Guerra” e ouvir falar dela, com certa “fluência”, por quem já lá estava, era traumatizante. Pensei que tudo iria passar e que, em breve, estaria adaptado.

 Avenida principal de Mansabá

Foto do Alf Mil Alfredo Montezuma do BCAÇ 2885

Tinha que lhe passar todas as minhas funções e, sabendo que era miliciano, achei que a parte administrativa seria determinante. O primeiro-sargento Canelas e a sua equipa de “administrativos” dariam boa conta do recado. Pensei, por isso, que por aí não surgiriam problemas, mesmo que tenente Tenreiro não fosse muito conhecedor das coisas da “guerra a petróleo”. O mesmo sucederia com a parte operacional, onde os quadros da CAr. mostravam já uma experiência considerável e um bom conhecimento das particularidades da zona de acção.

Neste âmbito, o problema mais importante era o campo de minas. O Tenreiro não sabia uma letra do assunto, o que complicava a tarefa. Contudo, entendi que, como comandante da companhia, deveria saber, ao menos, onde é que elas estavam, com alguma precisão. Como já disse, na parte administrativa da companhia, o Canelas acabou por vir, delicadamente como era seu timbre, informar-me de que ele não entendia as explicações que lhe eram dadas. Ficava apático, não fazia perguntas, nem sequer das que confirmassem a sua ignorância na matéria, mas o pior era que não parecia ter entendido nada dos ensinamentos que lhe eram dados.

Por outro lado, dos oito quartos-duplos de que o alojamento para oficiais dispunha, ele escolhera ficar no quarto com o alferes Antunes, talvez por ambos terem passado por Coimbra: o Antunes em matemática e ele em geografia, com o curso concluído, suponho eu. Ao fim de poucos dias, o Antunes revelou-me que começava a sentir-se pouco tranquilo e até intimidado com a presença do novo habitante do quarto. Não o tomei a sério, mas quando ele mostrou a cama onde o tenente dormia fiquei estupefacto. Os lençóis, enrolados em trouxa, amontoavam-se sobre o colchão e o travesseiro estava apoiado à cabeceira na “posição de tiro anti-aéreo”. Quanto à roupa pessoal, estava arrumada com certa, digamos… displicência.

Além disso, relatou-me um episódio que me preocupou e que não consegui explicar. O Tenreiro tinha-lhe mostrado os pés com umas pequenas feridas que lhe disse serem causadas pela falta de “umas anfetaminas” que tomava “lá na Metrópole”, mas que agora tinha deixado de tomar. Pensei que, com jeito, poderíamos convencê-lo a mudar de quarto, onde pudesse instalar-se mais à sua vontade, mas, por mais voltas que desse, eu não conseguia determinar a origem das tais feridinhas.

Uma manhã, ao pequeno-almoço, contou-me que tinha tido uma noite de insónias e de muita sede, mas que tinha resolvido este último problema “na mercearia”, onde conseguira obter água. Admiti que tivesse ido ao bar, à sala de praças ou, pior do que isso, que tivesse saído do quartel e ido ao restaurante do senhor Zé e da D. Olinda, cuja sorte comecei a lamentar por terem sido acordados de madrugada para a prática da virtude bíblica de “dar de beber a quem tem sede”. Perguntei-lhe onde tinha ido exactamente e apontou-me para o depósito de géneros da companhia. Do mal, o menos… já que os fiéis do depósito dormiam dentro dele.

Este pequeno detalhe fez-me crer que o meu substituto estava bastante desenraizado. De outra vez, o Serras – outro alferes – contou-me que o tinha encontrado, olhando muito fixamente para uma das janelas da messe. Ao ser surpreendido, virou-se para ele com um ar sério e disse-lhe:
 – Jesus não está aqui!

Como é do conhecimento geral, não estava, de facto. Ou estaria? É uma coisa que nunca saberemos, ao certo. Por mim, creio que, tendo tanto sítio para estar, às vezes até passava por ali, mas em permanências curtas… O Serras é que não achou graça e revelou-me as suas apreensões quanto ao grau de sanidade psíquica do Tenreiro. Por mim, comecei a concluir que algo de grave se passava. Admiti que simulasse ter vindo “já apanhado de casa” ou, pior, que fosse mesmo um doente que o recrutamento se recusara a filtrar. Esta última hipótese preocupava-me seriamente por poder contender com a minha rendição, mas era, cada vez mais, notório que era necessário fazer algo.

Aproveitei uma ida a Mansoa para pôr o comando ao corrente da situação, embora eu não soubesse bem identificar que contornos ela tinha. Foi então que fiquei a saber que estagiara, como alferes, em Angola e que não tinha sido promovido a capitão, à data de reembarque, como era de lei, por falta de condições estatutárias. Quais seriam, não me explicaram. Exclui os motivos políticos, pois não me pareceu que fizessem o seu estilo, e pensei que a situação tivesse a ver com uma certa falta de robustez física. O Tenreiro não era propriamente um atleta, mas nunca supus que a parte psíquica tivesse tanta preponderância na situação que se criara.

Tendo recebido ordem para continuar a verificação do campo de minas, resolvi aproveitar para lho ir “passando”. Éramos, agora, quatro a operar aquela máquina de morte e o meu substituto ficaria com uma ideia da localização. Poderia ser importante durante a realização de um patrulhamento, onde o Ramos, por acaso, não fosse, uma vez que os dois sapadores do Batalhão não estavam, em permanência, em Mansabá.

No dia 9 de Julho de 1973, lá fomos até Mamboncó. Descemos ao local do campo e começámos a pesquisar a partir da primeira mina existente, em direcção a Sul. O Tenreiro, com o mapa nas mãos, ia ficando “familiarizado” com a localização das minas. Segundo as indicações que nos ia dando, nós, os quatro, íamo-las destapando, verificando o estado de conservação e voltávamos a tapá-las. Admitíamos a possibilidade de ter de substituir uma ou outra que nos levantasse suspeitas de mau funcionamento e, por isso, tínhamos levado dois canudos com minas. As minas M-35 eram fornecidas em tubos de cartão que continham umas cinco ou seis, cada um. A certa altura veio a frase que nos fez gelar:
 – Em que mina é que estamos agora?

Tinha-se perdido. E nós a jardinar no meio daquele “lago de nenúfares”. Orientámos cuidadosamente o croqui e, pelos azimutes e medidas para as referências, localizámos a mina a partir da qual iríamos continuar. A partir daí, o cabo “Oliveira” passou a ser o portador do croqui e o Tenreiro apenas espectador hipoteticamente interessado. E fomos progredindo até que resolvi dar os trabalhos como terminados. Por experiência, tinha concluído que o cansaço – acrescido, naquelas condições de trabalho – era inimigo da concenttação e a distracção é algo que, quem trabalha com minas, deve evitar, a qualquer preço. Sei hoje que a perda constante de água e sal criava condições para que o nosso nível de concentração diminuísse.

O Ramos e eu saímos do campo e começámos a equiparmo-nos. Os dois sapadores do Batalhão estavam a verificar a “última” mina daquele dia. De repente, uma explosão. Olhei para o sítio onde ambos estavam. O Pauleta de pé, mas dobrado para frente e com as mãos abertas para trás, ao lado do corpo não se mexia. Mas o cabo caíra no chão e contorcia-se num esgar de dor, gritando:
– Eu nunca mais vejo o Sol!

Foi o que, na altura, me mereceu mais atenção, mas, de acordo com as informações de que disponho, sei que, felizmente, não ficou com a vista afectada. Uma lesão num dos ouvidos determinou a sua baixa ao HMP, no dia seguinte, para ser assistido no serviço de otorrinolaringologia, com posterior regresso à Guiné, logo que foi considerado como “curado”. O ferimento mais sério tinha-o o Pauleta que perdeu um dos olhos.

Num primeiro relance pareceu-me ver um cabo eléctrico, semi-enrolado, no chão. Deu-me até a ideia de que estava um bocado descamisado, como dizem os electricistas. Por momentos ocorreu-me a ideia de uma armadilha do IN ou de uma explosão electricamente comandada. O PAIGC não tinha este hábito, mas, sendo apoiado por estrangeiros, poderia ter sido aplicada esta técnica, que começava a surgir em diversos TO mundiais.

Aproximei-me e vi a “pica”, de verguinha de ferro, que se encaracolara com a potência da explosão. O punho, feito de num emaranhado de adesivo encarniçado, foi o que me tinha sugerido o cabo eléctrico que, afinal, não existia. Há horas de azar e aquela fora uma delas. A ponta da “pica” acertara, em cheio no perno da espoleta de uma das minas do par ali enterrado. Da explosão de ambas resultara a invulgar deformação da “pica”. O Ramos e eu ajudámos os dois feridos a sair da área perigosa e eu pedi ao tenente Tenreiro que recolhesse as armas, os equipamentos que lhes pertenciam e os “canudos” das minas não utilizadas. Ficou parado. Estático, mesmo. Gritei-lhe e ele balbuciou:
–  E as minas?

Larguei o Pauleta. Fui-me a ele, estiquei-lhe os braços e pus-lhe os materiais ao colo. Depois, enfiei-lhe um pontapé no sítio onde as costas mudam de nome para o pôr a andar para as camionetas que estavam na estrada. Só então começou a reagir e, voltando-se para mim, perguntou:
– Você agrediu-me?”
– Agredi, sim! Vá pôr isso às viaturas e depressa.

Ele foi e não voltou. Depois, foi a corrida para Mansoa, à velocidade que a estrada permitia. À chegada, o oficial de operações perguntou-me o que sucedera.
– Toma lá mais dois para a corda do sino. – foi tudo o que me ocorreu responder.

Depois contei o sucedido e queixei-me da inacção do meu putativo substituto. Desta vez não houve comentários desajustados do meu superior hierárquico (que nem se aproximou de nós) e não me lembro de ter visto ninguém do CAOP a perguntar o que quer que fosse. A partir daqui era o Batalhão quem tratava dos feridos. O Tenreiro, perturbadíssimo, ficou em Mansoa, quando regressámos a Mansabá. Eu nem sabia o que pensar da situação que se criara. O campo acabara de fazer mais duas vítimas, nas nossas tropas, e eu não sabia o que fazer. Tinha a sensação de que tudo voltara à estaca zero, mas o que mais me danava era eu ter sido contrário àquela manobra, que se estava a revelar completamente contraproducente, e alguém ter insistido para que eu prosseguisse com ela. O que fazer?

Como já disse noutro local, o Ramos e eu, devidamente autorizados – assinale-se – desmontámos aquela inutilidade, sem mais percalços. Deus (às vezes) estava ali, afinal.

Contaram-me que o tenente Tenreiro, depois de eu ter saído de Mansoa, foi ao médico do Batalhão. Este era um minhoto bonacheirão e gordo que suava desalmada e permanentemente. Quando lhe perguntou de que se queixava, o Tenreiro disse que suava muito e que não se dava bem com o clima. Aí foi interrompido pelo médico que lhe mostrou a camisa encharcada e disse:
– E eu ? Você acha que eu me dou bem com o clima?
– Ora tenha calma e verá que se habitua!

O Tenreiro não se deu por vencido e pediu para ser evacuado. O médico, perante este pedido absurdo, explicou-lhe que, se quisesse, poderia ir a Bissau e, nas urgências do hospital, atirava-se para o chão, gritava que estava doente e podia ser que fosse evacuado.

O doente mudou de maleita e pediu uma consulta de ginecologia. O médico, ainda com alguma paciência, procurou confirmar o nome da consulta. Perante a exacta confirmação, relembrou-lhe que estavam numa consulta médica, que estava a trabalhar e terminou dizendo-lhe:
– Eu até admito que goze comigo, mas com os dois pés, é que não!

O médico era realmente uma pessoa bem-humorada, que fazia bom ambiente e de quem toda a gente era amiga. Vendo que o doente apontava para os “genitais”, mandou-o baixar as calças e verificou que, efectivamente, fora operado naquela área, mas um varicócelo, cuja cicatriz não tinha qualquer indício de poder dar queixas. O doente não conseguiu explicar as razões do seu mal, que justificassem a frequência de consultas daquela especialidade que, naquele tempo, era impossível serem frequentadas por quem nascera homem. Por isso, o médico entendeu despedi-lo. Já à saída, o tenente voltou atrás e, debruçando-se sobre a mesa do médico, exclamou:
– Ah! E também não vejo bem da vista!

Não teve tempo de prosseguir. O médico saiu de trás da secretária e, aos gritos, expulsou-o do gabinete. Não sei exactamente porquê. Talvez a oftalmologia não fosse a sua especialidade…

Uns dias depois, fui chamado ao Batalhão, onde me foi entregue uma nota, em envelope fechado, para levar, em mão, ao QG. Nunca li a nota e o oficial que me atendeu, reconhecendo-me e, conhecendo a minha história, ironizou:
– Olá ilustre guinéu!
– Só se for por naturalização  –respondi.

Olhando para o envelope, entendeu melhor levar-me ao chefe da repartição. Este devia ser alérgico ao mato e seus derivados. Ao ver um capitão de camuflado e com um envelope na mão, nem sequer me cumprimentou. Eu bem tentei, mas não consegui. Creio que o “bacalhau”, já nessa altura, não era barato, mas também admito que terá tido receio de sujar as mãos. Consultou o envelope, onde rezava CEM/QG/1ª REP, e palpitou-lhe que o assunto era complicado. Por isso, optou por me levar ao gabinete do tenente-coronel Salazar Braga, que era o CEM do Quartel-general. O envelope foi finalmente aberto e, no seu estilo frontal, perguntou-me:
– O que é vocês – tu e o teu Comandante de Batalhão – querem?
– Precisava que fosse nomeado outro substituto para mim. Este não serve. – Tentei esclarecer.
– Não serve? Não serve, pune-se! De que é que estás à espera para lhe dares uma porrada? O tipo está a fazer-se de maluco, não há que ver.

Argumentei que, por acaso, ele era mais moderno e menos graduado que eu. E se não fosse assim? Seria a primeira vez que um substituído punia o substituto. Trocámos mais alguns pontos de vista e ele acabou por convocar o Chefe do Serviço de Justiça, o tenente-coronel Lobão da Cruz que, ao que se dizia, era, no Exército, mais antigo que o próprio general Spínola. Era um homem conhecedor em matéria de justiça e disciplina, mas confessou, de imediato, a impossibilidade de resolver o problema na sua área e alegou:
– Não há nada a fazer. Eles agora põem a boina com as fitas para frente e dizem que estão malucos. Os médicos não sabem o que fazer e dão cobertura. Que é que se há-se fazer?

Ainda contei algumas aventuras do meu substituto, insistindo na sua inabilidade para compreender a administração e a logística da companhia e o seu comportamento em mais um acidente no campo de minas, mas ficámos por ali. Saí desmoralizado de uma reunião tão inconclusiva. O problema da minha rendição adensava-se, mas, para além disso, eu não via como seria resolvido o problema do comando da CArt n.º 3567 que, certamente, não merecia ser assumido por um homem cuja sanidade mental tinha de ser seriamente posta em causa.

Sei que não fui efectivamente substituído por ele. Julgo que voltou a Mansabá e aí manteve os seus comportamentos insólitos até que lhe terão dado a comissão por terminada. O alferes Serras ficou a comandar a CArt  até à chegada de um capitão miliciano que a conduziu até ao regresso, já depois do 25 de Abril.

Eu embarquei para Lisboa, a 4 de Agosto, com 26 meses concluídos, depois de ter elaborado uma declaração sobre o estado dos campos de minas e engenhos explosivos implantados no meu sector. O processo da minha substituição por um homem que a estrutura se recusara a tratar como legalmente era devido, por razões que não conheço mas suspeito, levou-me a concluir que o potencial humano da “Metrópole” estava esgotado, indício técnico de algo estava a correr mal, numa área que até aí se tinha como inesgotável. Hoje penso que, se houve tarefa inútil que cumpri na “Guerra”, uma delas foi o lançamento daquele campo de minas.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte
e
5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho

domingo, 29 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho



1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2012, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Reformado, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviou-nos esta história, no mínimo hilariante, para a sua série "A Minha Guerra a Petróleo":




A Minha Guerra a Petróleo (7)

Um Casal Estranho

Naquele tempo, mesmo no pior dos “buracos” surgiam sempre motivos para rir. É sempre assim. Nas situações mais difíceis, basta estarem dois homens juntos a tentar atingir um mesmo fim, para que as situações de humor surjam, ainda que por momentos fugazes. E ainda mais se os homens forem jovens. A história que vou contar é insólita, pode parecer fantasia, mas é verdadeira e só falharei num ou noutro pormenor de que já não me recordo.

Entrada do Quartel do Xime.
A devida vénia a CART 3494 & Camaradas da Guiné

O Xime era um quartel com fracas instalações que tinha, “acoplada” a nascente, uma pequena tabanca muito pobre, onde a população vivia nem eu sei bem de quê. Para lá dos espaldões dos três obuses 10,5 cm, dispostos em linha e apontados a Sul, e do último abrigo, surgia a terra-de-ninguém, atravessada longitudinalmente pelo que restava da estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês.

Uma manhã, o furriel P., comandante de uma das secções de artilharia, procurou-me com ar muito grave, dizendo que “peguecisava falague-me”. Era um rapazito do Porto, educado, provavelmente de boas famílias e que falava acentuando os “egues”. Quando lhe perguntei ao que vinha respondeu-me que pretendia “mandague vigue a minha esposa”. Perguntei-lhe para onde é que quereria trazê-la e, como me respondesse que era para o próprio Xime, fiquei sem ar. Tentei recordar-lhe que ali não tínhamos qualquer espécie de comodidade para lhe proporcionar. Não podendo habitar no aquartelamento, até por falta de espaço e de todas as outras comodidades mínimas, só restava a tabanca. Aí, não sei como seria. Não havendo casas ou partes de casa para alugar, só lhe restava construir uma morança igual às que já existiam, mas não creio que esta fosse uma saída possível.

O rapaz estava mesmo numa situação difícil com a “esposa a fazegue peguessão pâga vigue” e sem ter local para a instalar. Não se vislumbrava uma solução. Poderia vir e ficar em Bafatá e aí eu não tinha nada contra, considerando que na cidade havia três pensões, com a qualidade mínima para a receber. Porém, a distância entre o Xime e Bafatá atingia as dezenas de quilómetros, o que o impossibilitava de manter um contacto frequente com a “esposa”. Expliquei-lhe também que, em caso de ataque ou flagelação do IN, ambos ficariam em sobressalto até cada um confirmar que o outro estava bem.

Fiz-lhe um apelo à condição masculina para que lhe explicasse que as senhoras não podem “fazegue peguessão pâga” e nós cedermos, tanto mais que não se tratava de satisfazer um capricho, mas de uma situação concrecta que poderia tornar-se muito delicada. Terminámos a conversa, ficando o furriel P. de resolver a situação através de uma carta explicativa.

Eu suspeitava de que o furriel tinha feito como um outro camarada meu fizera, em 1968. Embora estivéssemos no último quartel do Sul da Guiné, o João descrevia à sua Cármen tudo como se nada tivéssemos para fazer. Além disso, o local era agradável – e era-o, de facto – e a unidade de milícia “é que desempenhava toda a actividade operacional” sob controlo do João. Este era o único ponto verdadeiro da descrição. Enfim, vivíamos no melhor dos mundos, comíamos ostras (muitas e boas), bebíamos sumo de laranja natural, os mangos e cajus eram de excelente qualidade e, às vezes, tínhamos boas refeições caça. Também conseguíamos peixe, através do pescador senegalês – o Turé, que falava francês e até comia pelicano assado – que abastecia Cacine, a meias com um português. O peixe podia ser “poisson de segunda”, se fosse tainha, ou “poisson de primeira”, se fosse qualquer outro peixe. Tudo isto era verdade, mas não era suficiente para que o quadro fosse bucólico e de tranquilo tinha pouco. E a Cármen acreditou, como eu vi, alguns anos depois, quando o João ma apresentou.

Agora não era assim e, uns dias mais tarde, o Furriel P. procurou-me para me dizer que a sua esposa continuava a pressioná-lo para que a deixasse vir para a Guiné. Que sim, que já lhe escrevera a tal carta, mas ela até ameaçava que um dia aparecia-lhe no quartel, sem avisar. Esforcei-me por dissuadi-lo de colaborar em semelhante loucura, mas não contei com uma intervenção do Alferes Gomes, meu ex-colega de liceu, embora mais novo, e agora sempre decido a resolver tudo bem e depressa. Tendo presenciado a nossa conversa, gritou-lhe:
- Olha, pá! Se ela aqui aparecer, sem avisar, tu enfias-lhe um murro na tromba que ela fica enterrada no tarrafo até aos ovários. E agora, vai lá escrever a carta e conta-lhe a verdade, para ela ficar a saber porque é que não pode vir para aqui.

A resposta do furriel foi espantosamente inverosímil:
- Só se o meu “alfegues esqueguevegue”

Achei que a conversa estava a passar das marcas e despedi o furriel. Afinal, estávamos na hora de almoço e as batatas cozidas que acompanhavam o atum de lata estavam a esfriar.

Alguns dias depois fui, mais uma vez, contactado pelo furriel P.. A “esposa” estava para chegar e ele pretendia trazê-la para uma das pensões de Bafatá. Combinei com o comandante do pelotão de Artilharia uma ida a Bissau “para tratar de assuntos do pelotão” e ele seguiu, com a indicação de que, na segunda-feira seguinte, deveria estar no Xime. Ia haver mais um passeio à Ponta Varela e imediações e eu queria ter a artilharia bem guarnecida e pronta para colaborar nas festividades, se necessário. Porém, no domingo, o furriel P. não apareceu. Lá fomos ao passeio e, dessa vez, as festividades ficaram-se por mais uma estafa, algumas horas de sede e muito tempo de atenção difusa.

À chegada, o furriel esperava-me com uma carta do capitão comandante do E.Rec de Bafatá em que este assumia a responsabilidade da falta, por o ter aconselhado a ficar mais um dia e assim poder aproveitar um reconhecimento que o esquadrão ia fazer para os meus lados para se apresentar. Portanto, desculpei e tudo ficou bem por ter acabado bem.

A partir daqui, tudo se passou num galope de acontecimentos. Dois dias depois conheci a esposa do furriel. Foi transportada ao Xime por um comerciante e madeireiro, estabelecido em Bafatá, que vinha ao cais despachar algumas toneladas de madeira, conduzindo o seu Mini 1275 GT. Além dela, trazia mais duas senhoras mais velhas: a sua própria esposa e uma amiga desta.

 Xime > Messe de Oficiais

Recebi-os naquilo a que se tinha convencionado chamar Messe de Oficiais, conversámos um pouco e eu admirei-me da coragem da jovem Celeste, que atravessava o quartel com uma mini-saia bastante diminuta. Feito o embarque, o “bólide” regressou, velocíssimo, a Bafatá com os seus ocupantes. E chegámos ao domingo decisivo. Nos dois domingos anteriores eu tinha sido acordado por helicópteros que demandavam o Xime. No primeiro, os fuzileiros tinham desencadeado uma acção na Ponta Varela, sem colaboração das forças terrestres e queriam apoio de héli, negligenciando o de artilharia. No segundo domingo – o imediatamente anterior – o brigadeiro adjunto-operacional tinha vindo entregar-me um alferes que me faltava no efectivo da companhia. O helicóptero não solicitado ou previsto era habitualmente uma visita do General, com a correspondente inspecção e perguntas “de algibeira”. Eu tinha, portanto, sofrido dois falsos alarmes. Por isso, naquele domingo, revoltei-me e resolvi dar-me uma meia-manhã de descanso. Subitamente, batem-me à janela da rulote. Era o Dias do bar desorientadíssimo a gritar:
- Meu capitão! O gajo deu um tiro! O gajo deu um tiro!

Xime > Messe de Oficiais > Em primeiro plano o Cap Art.ª Pereira da Costa. À sua direita o Alf  Mil Pereira 

Imaginei o pior. Um suicídio, um acidente de tiro ou um ataque de loucura. Pensei que iria encontrar alguém gravemente ferido, agonizante, talvez morto. Visualizei, em poucos minutos, algumas situações aflitivas, mas, ao sair da “messe”, dei de caras com a “esposa” e, um pouco mais à frente, duas Chaimites estacionadas com as tripulações, descansando calmamente à sombra dos mangueiros. Tudo tinha sucedido no abrigo da artilharia. Ao entrar, vi o furriel P. de pé, arfando, mas não parecia ferido. O Mendes Pinto – furriel mecânico – sentado numa mala procurava acalmar o “artilheiro”. Quando procurei saber o que sucedera este respondeu:
- Capitão fui cobáguede!

Vi então o que sucedera. Com uma G3, tinha procurado dar um tiro em si próprio, mas, por falta de jeito ou de convicção, acabara dando um tiro para o ar. Nessa altura, uma voz feminina atrás de mim indagou:
- Morreu?

Era demais. Saí, dirigi-me ao alferes que comandava a coluna do E.Rec e disse-lhe secamente, mas em voz baixa:
- Desaparece e leva isto daqui para fora!

Isto, como se calcula, era a inquiridora acerca do estado de morte do furriel P.. Enquanto as Chaimites arrancavam, regressei à messe. Aquilo, de comédia tinha pouco, mas poderia ter resultado numa tragédia e, se assim tivesse sido, nada haveria que a revertesse. Alguém, que não tinha que fazer, vinha perturbar o meu pouco sossego conseguido a custo, depois de ter sido aconselhada a deixar-se ficar na “Ímbiqueta” quieta e calada, fazendo a vida que mais lhe aprouvesse. Graças a Deus, o promitente suicida tivera falta de coragem. Senão…

Que fazer agora? Tínhamos marcado para esse dia uma “Ranchada”, em Bafatá e eu resolvi que não seria este incidente que nos iria tirar a possibilidade de melhorar a nossa alimentação. Creio que o restaurante era a “A Transmontana” e, pela sua situação privilegiada, podíamos deixar as armas em cima das viaturas, enquanto comíamos. Organizei um patrulhamento auto, e seguimos até Bafatá. Quando íamos a sair, o furriel P. quis falar comigo. “Queguia igue também a Bafatá pâga tegatágue da sua vida”.

A contragosto deixei-o ir. À chegada, separou-se de nós e só mais tarde eu soube para onde foi. Almoçámos com calma, tomámos o digestivo, descansámos e, na hora de regressar, comecei a constituir a coluna. Nessa altura, o P. surgiu e disse, mais uma vez, que “peguecisava falague-me”. Como é de calcular, eu não estava com disposição para grandes conversas com ele e respondi:
- O que é que foi agora?
- Tenho pegublema. A minha esposa não tem onde duguemigue.

Não entendi logo o que se passava. Lembrei-lhe o que tínhamos combinado e que ele seguia connosco e ela ficaria na pensão onde estava hospedada.
- O pegublema é que a minha esposa teve um fegaquesa!

Imaginei um problema súbito de saúde. Uma quebra de tensão ou algo similar e indiquei-lhe o caminho para o comando do batalhão onde, provavelmente, o médico poderia ver o que passava. Mas não fora nada disso. Tinha tido uma fraqueza, sim, mas com um alferes da Cavalaria. Ao saber da desgraça, o marido manifestou a sua ira. Tinham discutido e ele até lhe tinha dado “dois tabefes”. Claro que, em face deste panorama de traição e violência doméstica, o dono da pensão tinha entendido que o melhor era pagarem a conta e, por consequência…

Lembrei-me, então, do dono do 1275 GT que também tinha uma pensão e a uma escola de condução, onde a malta da companhia obtinha as suas cartas com alguma facilidade, e fui-lhe pedir que recebesse a “jovem saneada”, ao menos por alguns dias. Parecia-me que a situação estava insustentável e que a retirada para a Metrópole era dado adquirido. A resposta foi esclarecedora:
- Depois duma “barraca" destas, se eu fizesse isso, a “Patroa” matava-me…

O tempo impunha que regressássemos ao Xime e não valeria a pena consultar a terceira pensão, considerando as proporções do escândalo. Como dizia o meu professor de História da AM “o que preciso é dar um tiro para qualquer lado, só assim teremos algo para corrigir”. Resolvi “dar o tiro” e sentei a senhora no lugar do chefe de viatura dum Unimog 404. Rumámos ao Xime, sem passarmos por Bambadinca, não fosse o comandante do batalhão ser “informado” de que algo de estranho se passava…

No Xime havia festa. Tinha nascido a filhota de um dos furriéis e estava a organizar-se a correspondente refeição oferecida pelo feliz progenitor, seguida de fados e outras cantorias que a inspiração ditasse. A minha dúvida era agora saber onde o jovem casal desavindo iria pernoitar. Por prudência, resolvi afastá-lo da celebração que se desenhava. Não podia correr o risco de que algum conviva mais animado tecesse algum comentário despropositado ou criasse qualquer outra situação desagradável. Por isso cedi-lhes o terreiro central da nossa messe. Era uma área rectangular, cimentada, em cujos cantos haviam sido colocadas quatro rulotes, os nossos quartos. No centro, um alto tronco de palmeira cravado a pino, suportava o telhado de capim. Entre duas rulotes “funcionava” um bar. No open-space (como hoje diríamos) assim constituído, tínhamos o nosso living-room e a área de refeição. No living, umas cadeiras de palha e uma baixa mesa de madeira. Uma outra mesa, cujo tampo nunca vi, pois tinha uma grande toalha de plástico permanentemente colocada, e umas cadeiras era onde tomávamos as nossas refeições. Do tecto pendia um candelabro, suspenso por uma corrente de ferro, com três garrafas de brandy, sem fundo, disfarçadas de abat-jours. Além disso tínhamos um tabuleiro de xadrez/damas apoiado em quatro pés, a utilizar nas correspondentes práticas desportivas. Foi justamente sobre esta infraestrutura desportiva que mandei pôr a mesa onde o casal iria jantar em tête-à-tête. Mas o pior seria arranjar um sítio onde pudessem dormir. Estava, obviamente, fora de questão que ficassem no abrigo da artilharia, onde o furriel dormia. O Mendes Pinto poderia ser a solução. Tive de usar toda a minha habilidade para o convencer a ceder o seu pequeno quarto no meio dos bidons, restos de viaturas e produtos indênticos. Era exíguo, mas garantia uma certa privacidade.

E foi assim que o casal teve um jantar a dois e uma noite de descanso. Julgo eu…

No dia seguinte, havia mais um passeio à Ponta Varela, o que invalidava a possibilidade de se fazer outra coluna a Bafatá para colocar a Celeste num avião a caminho de Bissau. No regresso do passeio eu tinha a solução. Era necessário tirar a jovem do Xime. A sua presença poderia dar aso a comentários, piropos ou algo pior do que isso tudo. Por isso, chamei o P. e intimei-o a tirá-la dali. Para tal, iria de novo a Bissau, agora por sua conta e risco, fazendo a viagem de avião, a expensas suas e devidamente acompanhado. Depois, a jovem seguiria para Lisboa, nem que fosse a nado, e ele regressaria às suas funções habituais. Tudo teria de ser resolvido num curtíssimo intervalo de tempo. Essa era a minha imposição.

Em dois dias o casal partiu para Bissau e eu fiquei com o coração nas mãos acerca do que o furriel faria em Bissau, numa situação de total ilegalidade. Os dois ficaríamos mal se se descobrisse que andava por ali um jovem casal, cujo marido deveria estar no interior a cumprir as suas tarefas operacionais.

Enfim, ao fim de uma semana, tive o grato prazer de ter o efectivo da artilharia completo. Procurei esquecer o sucedido e rezei para que o assunto não fosse muito divulgado.

Alguns dias depois, fui abordado pelo alferes Viegas da artilharia, queixando-se de que o P. não queria lavar o obus. Quando me preparava para o mandar dar uma volta ao pelotão, em bicicleta, surge o cabo enfermeiro a gritar:
- O gajo matou-se! O gajo matou-se!

Não vi logo quem era o gajo, mas a pior das hipóteses confirmou-se. O furriel P. apanhara um frasco de Valium 10, embalagem hospitalar, e tomara “n” comprimidos. O cabo enfermeiro esclareceu-me de que o frasco tinha cem comprimidos, dos quais ele já tinha dispensado talvez uns vinte. No fundo do frasco rolavam pouco mais de vinte comprimidos. Conclusão: cerca de sessenta comprimidos iam começar a circular no sistema nervoso do furriel.

Colocámo-lo numa maca e num Unimog que eu próprio conduzi, levei-o a Bambadinca. Dois maqueiros amparavam a maca e eu dei a velocidade de que o carro era capaz. Em Bambadinca, o médico, já avisado da nossa chegada perguntou qual era o problema. Quando lhe descrevi a situação, ele colocou o sinistrado numa posição cientificamente adequada e, metendo-lhe dois dedos na boca, provocou o vómito. Um jackpot de líquido e comprimidos azulados saiu a rolar da boca.

O médico ficou fiel depositário do sinistrado e eu regressei ao Xime. Tive informação de que dormiu praticamente durante três dias. Depois, entrou num período de recuperação e acabou por regressar à sua secção de 10,5 cm.

Entretanto, fui chamado ao meu comandante de batalhão que queria saber o que se passara. Contei muito resumidamente e confirmei que a Sr.ª D. Celeste P. já estava fora do “TO daquela PU”. Tranquilizado o meu superior hierárquico, tudo poderia ter voltado à normalidade se a respectiva esposa não se tivesse lembrado de intervir no desenrolar da acção. Era uma senhora muito participativa, que assumia o seu papel de “comandanta”, procurando influenciar os acontecimentos, exibindo, de quando em vez, os resultados positivos da comissão que ambos tinham feito em Angola. Não me lembro de ter existido um batalhão comandado “a duo” pelo comandante e esposa, mas eu também nunca estive em Angola… Alguns dias depois, encontrando em Bambadinca dois alferes do E.Rec., a boa senhora resolveu fazer uso de toda a sua persuasão, perguntando-lhes frontalmente qual dos dois dormira com a “mulher do furriel”. Colheu como resposta uma boa dose de silêncio e um sorriso amarelo.

O meu alferes Correia, que viera no mesmo helicóptero que brigadeiro adjunto-operacional, era ex-aluno do Colégio Militar, tal como um dos alferes do E.Rec.. Ao abrigo de uma camaradagem colegial e de um código de deontológico que não conheço, resolveu ir “pregar uma rabecada” no atrevido que dera uma tão larga colaboração para a “fraqueza” que vitimara a Celeste. A resposta foi desconcertante. Tudo tinha começado logo após a partida do furriel P. para o Xime. Ao jantar, na pensão, os dois alferes da cavalaria estavam presentes por terem também um quarto alugado. Era realmente uma situação insólita, mas tinha explicação. Ao que parece, a messe do esquadrão era pequena e o capitão estava também empenhado em tarefas bélico-sexuais. Para ter uma certa liberdade de acção “convidara” os dois alferes a passar um fim-de-semana fora.

Ao vê-los, a Celeste deu-se à conversa e, em breve, um bom contacto estava estabelecido. A conversa progrediu, aumentando de interesse por ter resvalado para terrenos movediços. A disponibilidade da jovem atingiu níveis inauditos, quando informou que estava grávida e, por isso “não haveria problema”. O Correia ia-se inteirando dos pormenores, mas apesar de tudo, continuou a censurar os alferes por se terem aproveitado da mulher de um camarada que estava longe e, mais ainda, num ambiente tão restrito e onde se incluíam tantos militares.

Mas, o pior (ou o melhor) estava para vir, quando a Celeste optou ou correspondeu ao assédio de apenas um dos alferes. Nessa conformidade, o outro teve de ir ver Bafatá by night, enquanto o casal que acabava de se constituir “se recolhia”. Cerca da meia-noite e cansado do intenso movimento da Night de Bafatá, dirigiu-se ao quarto que também era seu, já que o alugara a meias com beneficiado. Bateu à porta e foi recebido por este que o mandou entrar. De fonte segura, sabe-se que o quarto tinha duas camas. Só as paredes terão presenciado e poderiam descrever o que sucedeu, mas as paredes não falam. Por consequência, mais do que isso, o Correia não soube. Verdadeiramente abismado com estas revelações, não se sentiu à vontade para continuar a censurar os “prevaricadores”. No fundo, tudo se tinha passado como a natureza manda e o calor local propicia.

Imediatamente após aquela noite, foi organizada a coluna ao Xime que permitiu que o P. ouvisse a confissão terrível, que deu lugar ao tiro para o ar e ao susto que eu apanhei.

A cena do Valium 10 não teve, a curto prazo, mais consequências para além de uma certa letargia que determinou o comportamento do furriel P. durante uns dias. Julgo que se ofereceu para um Pel. Art. que iria para o Cantanhez, cuja ofensiva estava a decorrer, mas segundo me disseram, o oferecimento não foi aceite.

Nunca mais tive notícias do casal desavindo, devido à acção da Natureza e à “força do calor”. O alferes Correia saiu, pouco tempo depois, para uma Africana (companhia de caçadores africanos), como se dizia então, e eu perdi-lhe o rasto. O E.Rec. nunca mais patrulhou o itinerário até ao Xime, talvez porque o In tivesse deixado de andar por ali…

Esta foi uma aventura que, por variadas causas, poderia ter terminado muito mal. Como assim não foi, alimentou as nossas conversas durante algum tempo, entre censuras à Sr.ª D. Celeste P. e a hilaridade inerente à revisão da sequência de todas aquelas situações dignas de uma ópera-bufa.
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Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

terça-feira, 5 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

 

1. Conclusão do quinto episódio da série "A Minha Guerra a Petróleo" de António José Pereira da Costa* (Coronel de Art.ª na reserva, na efectividade de serviço, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviado em mensagem do dia 2 de Julho de 2011.



A Minha Guerra a Petróleo (6)

Ai que me dói tanto!...
(Parte II)

Entretanto, o Coronel Durão “descobriu” as nossas mulheres e, tendo falhado a proposta de que Mansabá passasse a ser considerada suficientemente segura para poder ser habitada por mulheres brancas, a Isabel regressou a Lisboa. Estávamos em meados de Março e eu terminaria a comissão em princípios de Junho.

Julgava eu…

 Uma coluna auto de saída à Porta D´Armas do Quartel de Mansabá

Num dia que não fixei, voltámos às minas. Começámos na primeira e fomos sucessivamente apanhando todas. Recolocámos algumas que os macacos-cães tinham desenterrado, na sua ânsia de procura de coisas que tivessem sido dos homens que tinham vivido em Mamboncó. Por isso lhe chamávamos a Aldeia dos Macacos. Quando chegámos e as vi desenterradas, pensei que a afinal o In passava ali e mudara – talvez à pressa – a posição de algumas minas o que nos poderia baralhar as contas. Contudo, verificámos que os macacos tinham desenterrado algumas, divertiram-se com elas e abandonaram-nas. Curiosamente, faltariam umas duas ou três, mas não encontrámos sinais de que tivessem feito explodir alguma. Nunca entendi por que “sexto sentido” tinham abandonado um objecto tão atraente e que tanto cheiraria a humano. Provavelmente, concluíram de imediato que não serviriam para comer e abandonaram-nas.

Enfim, começámos a nossa tarefa. Fomos detectando cada mina, que voltávamos a enterrar. O croqui que eu fizera funcionou e as distâncias e ângulos estavam bem marcados. E chegámos à mina (ou par) n.º 101…

Os três de pé junto de cada vértice de um triângulo explosivo. O Paiva pede que paremos para ir beber água. Já fazia calor, embora estivéssemos num sítio onde havia altos mangueiros, outrora dispersos entre as moranças da tabanca. Fiquei parado e vi um soldado da CArt – um bazookeiro – que estava instalado atrás de uma dobra de terreno, a cerca de dois metros. De súbito, um estrondo. No meu espírito foi uma confusão. Primeiro esperei pelos tiros de arma ligeira que se seguiriam, se fosse uma emboscada. Não vieram. Depois pensei: “Distraiu-se e apertou o gatilho. Aquele gajo é cá uma “Amélia”…

Com os olhos fechados ainda conclui que fora uma mina. Mas qual? Abri os olhos. Tive a sensação de que os abri lentamente, mas não foi assim, decerto. De cima, caíam folhas secas e poeira. Depois…

Zona e tabanca de Mamboncó, felizmente de novo repovoada. É perfeitamente visível, à esquerda da estrada Mansoa / Mansabá, o célebre carreiro do Morés.
Imagem Google, legenda de CV

Depois foi o pior. O Paiva sentado no chão apoiando as mãos atrás das costas, uma das pernas inteira, mas a outra… apoiada pela tíbia meia-cortada e a pingar um fio de sangue. Ao lado a bota de cabedal com o pé dentro e a frase:

- Ai que me dói tanto!

Uma frase dita a meia voz. Nada de gritos. Nada de revolta. Seria espanto?

O Ramos perguntou, como quem chora:

- Oh Paiva para que foste beber água?

A partir daqui não tenho pormenores. Perdi-os. Lembro-me que pedi a vinda das viaturas. O Ramos e eu armámo-nos e equipámo-nos e depois recordo-me de ter substituído o condutor da primeira viatura. Foi uma corrida com o pessoal ferozmente agarrado à viatura, até Mansoa. A Berliet respondeu bem e chegámos sem novidades. Não me recordo onde deixámos o Paiva. Só me lembro de ter sido interpelado pelo Comandante do Batalhão que perguntou o que sucedera. Contei rapidamente e o seu comentário: “O gajo é burro!” fez-me desvairar. Entre outras coisas perguntei-lhe se ele sabia o que era uma mina e se já tinha visto explodir alguma. Nunca mais lhe perdoei e quando o voltei a encontrar depois da guerra, no Quartel-General em Coimbra, não lhe falei nem mesmo naquilo a que o regulamento me obrigava.

Sei hoje que a sua atitude era filha do “não saber”. Uma vez, fez uma coluna com o pessoal de Cutia até Mansabá armado de caçadeira que disparava alegremente contra tudo o que mexia. A seu lado, no Jeep, a inefável Maria do Socorro – a Mary Help – para quem a conhecia bem.

Coitada, também teve um fim trágico, mas isso são contas de outro rosário.

De outra vez, chegou ao local onde a “coluna das quartas-feiras” fora emboscada, tinha eu acabado de desmontar uma granada RG – 42 e pedi-lhe que estivesse quieto, pois as valetas podiam estar armadilhadas e ele respondeu-me que não havia problemas, porque as detectava olhando.

O Coronel Durão aproximou-se e perguntou-me o que tinha eu na cara. Nem me apercebi de que era terra projectada pela explosão. Contei-lhe a história. Disse-me que ignorasse o comentário do Comandante. Fiquei por ali…

Regressámos a Mansabá. Não sabia o que fazer. Resolvi pôr o assunto por escrito, embora não soubesse quais as consequências. A minha comissão estava a chegar ao fim e o número de especialistas que conheciam o campo era, agora, mínimo e poderia vir a ser apenas um, com a minha saída. Recebi ordem do Batalhão (BCaç 4612) para parar com a verificação do campo e começar a levantar as minas a partir da que explodira. E assim começámos, até que o CAOP 2 “descobriu”. Efectivamente, eu lançara no SITREP os sucessivos lançamentos de minas e agora lançava as remoções que íamos fazendo. É interpretando este desacerto que hoje me surge a ideia de que algo estava a correr descoordenadamente. Imaginemos que eu não sabia de minas e armadilhas. O campo estaria entregue a dois furriéis e agora apenas a um. Era claro que o número de especialistas era insuficiente para a tarefa. Além disso uma entidade mandou lançar e a outra de grau inferior, em face dos baixos resultados, mandou começar a recolher as minas. Esta era a solução correcta, a menos que…

E foi o que sucedeu. Um dia mandaram-me um substituto. Um tenente miliciano – Tenreiro de seu apelido – que não tinha condições (estatutárias, suponho) para a promoção ao posto imediato. Pouco tempo depois recebo ordem “a seco e sem possibilidade de contestação” para continuar a verificação do campo. Tínhamos agora uma situação insolitamente perigosa: uma brecha mal sinalizada entre a mina que ferira o Paiva e a última que tínhamos levantado. Qual seria a situação que o CAOP pretendia criar? Até hoje não sei e, quando após o 25 de Abril, encontrei o Coronel Durão como Comandante da Região Militar do Centro, também não lho perguntei.

Preferi afastar-me discretamente dele. Era um homem valente, mas eu tenho para mim que “disparava às cegas, para onde estava virado” e não me pareceu que fosse dado a observar as situações com calma e profundidade. Estava, ele próprio a terminar a sua comissão e, por isso demasiado cansado e saturado daquilo tudo.

Estava escrito que aquele campo ainda faria mais vítimas. Recebi dois sapadores – um cabo, cujo nome não fixei, e o furriel Pauleta – do Pel Rec do Batalhão que deveriam passar a trabalhar no campo de minas. Com a chegada do Tenreiro comecei a passar-lhe o comando e a parte administrativa da Companhia. Porém, com resultados desanimadores. O primeiro-sargento Canelas, meu amigo e conhecido do Regimento de Queluz, queixava-se de que ele não entendia as explicações que lhe eram dadas. Tudo terminou com um conjunto de cenas caricatas a mais grave das quais teve lugar no campo de minas, no dia em que o furriel Pauleta ficou cego do olho esquerdo.

Mas isso será motivo para outra história.

Nunca me esquecerei das duas pernas do Antero Paiva, a saírem dos calções e depois do modo e do momento como uma delas ficou reduzida, a metade “por lesões que mostravam terem sido produzidas por um objecto contundente ou actuando como tal” como se escrevia no relatório dos exames directos.

Encontrei-o há pouco tempo. Ficámos a olhar-nos. Depois foi o abraço e a falta de saber o que dizer. Passados 39 anos só nos olhámos bem fundo, com as mãos nos ombros um do outro.

Pedi-lhe autorização para escrever este texto e ele deu-ma. Fiz o melhor que sei, mas, esteticamente, tenho a certeza que será o pior que escrevi. À medida que ia escrevendo iam-me surgindo assuntos laterais, que não pude explorar por se espraiarem por outras áreas e factos. Não serve, por isso, de homenagem e ele merece-a.

Não me esqueço do seu primeiro desabafo e do lamento do Ramos. Sem ser os que passaram por momentos idênticos ninguém poderá compreender o que sentimos. É lugar-comum dizer-se que a guerra é um absurdo e o mais frequente é que quem assim fala nunca tenha assistido a uma. Às vezes estudou uma ou até várias e baseia-se nas melhores intenções para que a “paz reine entre os povos”. Mas esta guerra será sempre, porventura, o maior absurdo político e social em que o meu país se envolveu nos últimos cem anos, qualquer que seja a perspectiva donde seja observada.

O campo de minas de Mamboncó terminou de forma inglória. Depois do ferimento do Pauleta, recebi ordem para o levantar. Não me recordo de qual a entidade que a deu, mas cumpri-a com alívio. Paralelamente sucediam-se as cenas caricatas com o meu substituto e na impossibilidade de receber mais especialistas na matéria, era a decisão que se impunha. Assim, eu e o Ramos começámos pelo buraco da mina que vitimara o Pauleta e numa manhã fomos até ao fim do campo. Dois ou três dias depois, voltámos e começamos a partir da mina número um. Nesse dia, o Ramos, quando nos dirigíamos para o campo, confidenciou-me que previa que ia apanhar “cá uma bêbeda”. Compreendi, mas não aconselhei. De qualquer modo não havia muitas outras formas de celebrar um feliz evento.

Começámos a levantar as minas a partir da n.º 1 e fomos andando. Foi breve o trabalho, naquele dia. Quando removemos a mina n.º 100, cumprimentámo-nos e, silenciosamente, colocámos os equipamentos, transportámos as embalagens de minas para as viaturas e regressámos a Mansabá. O Ramos não apanhou “bêbeda” nenhuma e estou certo que dormiu descansadamente, toda a noite, coisa que já não sucedia há algum tempo, pois, segundo já me tinha dito, após o sucedido ao Paiva, sempre que eu lhe dizia que tínhamos de ir ao “campo” ele passava a noite em claro. Ainda lhe propus não o avisar de véspera, mas ele preferiu saber antecipadamente.

Assim terminou, sem honra nem glória, “uma acção ofensiva” sobre um inimigo que não existia, provocando duas baixas absolutamente escusadas entre o nosso pessoal.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8505: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (5): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - I Parte

 

1. Mais um episódio, trágico, de António José Pereira da Costa* (Coronel de Art.ª na reserva, na efectividade de serviço, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviado em mensagem do dia 2 de Julho de 2011.




A Minha Guerra a Petróleo (5)

Ai que me dói tanto!...
(Parte I)

O Paiva usava uns calções que lhe amarinhavam pelas pernas acima. Ou seriam as pernas que eram demasiado compridas para os calções que lhe haviam sido distribuídos? Não sei. Poderá ser que tudo se devesse a um excesso de zelo da costureira do Casão, daquelas que trabalhavam em casa e, periodicamente, ali levantavam os tecidos já cortados para os devolverem, alguns dias depois, sob a forma de peças de “fardamento pronto-a-vestir”. Tratar-se-ia, talvez, de alguém que entendeu que era necessário poupar no tecido dos calções que os “rapazes” usavam. Ou os calções seriam curtos porque a bajuda da tabanca resolvera cortar, bem fundo, o “carção di nosso furiel”, no momento em que foi chamada a ajustá-los, de acordo com as indicações do utente? Enfim, naquele tempo, o nosso fardamento era como os mercados são hoje, estava sujeito a flutuações. Às vezes demasiado curto, sobrando homem, no final do fardamento. Outras sobrava fardamento já o homem tinha acabado e assim parecia que o combatente estava mais envolto na farda do que vestido com ela. Artesanatos…

Esta história começa, quando o Coronel Rafael Durão me apanhou, vindo de Bissau, para me censurar a minha falta de jeito para a “psico”. Para ser franco, nunca detectei que a acção psicológica que fazíamos tivesse resultados muito palpáveis. Ou as “popes” (como, às vezes, se chamava à população, na nossa gíria), não acreditavam nela ou não era convincente, ou ainda, o que era pior, não havia mais população a conquistar. Claro que eu sabia que era necessário manter a população na nossa esfera de influência e que tal seria impossível se não se lhe melhorassem as suas condições de vida, mas aquela psico “barata” a que, às vezes, chamávamos a “vesícula”, essa não era uma prioridade, para mim. Creio mesmo e já o disse noutros lugares, que a população da Guiné já tinha feito as suas opções e que aceitava a guerra como uma fatalidade que não podia alterar.

Claro que o Coronel condescendia, em parte, e considerava válido o resto do meu trabalho, mas faltava qualquer coisa. Ouvi a reprimenda, conhecendo-lhe a maneira de ser. Não adiantava contrariá-lo, especialmente quando começava a dar sinais de nervosismo, tremendo uma das pernas. Depois de me dar “uma para desanimar e outra para animar” deu-me ordem expressa para montar um campo de minas em Mamboncó. Tudo porque o ComChefe não tinha dúvidas: o In infiltrava-se por ali, passando do Morés para o Sara e vice-versa. Não serviu de nada lembrar-lhe que periodicamente patrulhávamos aquele local a pé, e que as colunas auto passavam por aquela localidade abandonada, quase desde o início da guerra, duas a três vezes por semana. Quando o informei de que tinha, em arrecadação, na Companhia, talvez umas 40 minas anti-pessoal, ordenou-me que requisitasse mil. Achei um exagero e disse-lho, mas ele manteve a ordem e eu requisitei mil minas “AUPS ou similar”.

Zona e tabanca de Mamboncó, felizmente de novo repovoada. É perfeitamente visível, à esquerda da estrada Mansoa / Mansabá, o célebre carreiro do Morés.
Imagem Google, legenda de CV

O Serviço de Material, em Bissau, mostrou-se surpreendido e eu, por mensagem, expliquei que a justificação para a requisição só poderia ser obtida junto do CAOP 2. Tempos depois, recebi mil minas M-35, de menores dimensões e, portanto, menos potentes e mais dificilmente detectáveis. A mina AUPS, de fabrico italiano, tinha a forma de prato, com o disparador no fundo. Podia ser-lhe aposta uma “carapaça” de ferro seccionado, para criar estilhaços, no momento da explosão. A M-35, de plástico verde-claro e de fabrico belga, era pouco maior do que um queijo fresco e tinha o disparador montado na parte superior. Este, com a forma de um peão, era um objecto perigosamente engraçado. Por isso, um dos soldados da Bateria Anti-aérea já tinha ficado sem uma falange, ao pretender, com uma navalha, afiar o bico do pião, precisamente o detonador e, ainda na Academia Militar, um camarada meu tinha tido sorte igual ao manipular uma mina numa aula de explosivos.

A área a cobrir com o campo de minas era grande e não sei se barraria completamente a máxima largura da antiga aldeia. Se lançássemos uma simples linha de minas, poderíamos constituir um obstáculo com um quilómetro, (se a distância entre minas fosse de um metro). Porém, um campo de minas necessita de profundidade e densidade, o que obrigaria a colocar uma segunda, ou mesmo um terceira fiada de minas. Além disso, para que o inimigo não determinasse a lei a que o campo obedecia era necessário criar uma certa irregularidade na colocação das minas. Optei por criar uma linha de triângulos equiláteros, no vértice dos quais ficariam as minas implantadas. Os triângulos teriam orientações diferentes e a ligação entre cada um e o seguinte seria feita também segundo direcções variáveis. Sabendo que a Natureza se altera quase de um dia para o outro, seria difícil encontrar referências permanentes que nos permitissem, mais tarde, localizar as minas, quando quiséssemos verificar o campo ou passá-lo à Unidade seguinte. Por isso, optei por adoptar sempre as mesmas medidas para os lados dos triângulos – dois metros – e para as “ligações”, seis metros. Usávamos uma fita métrica para medir as distâncias e uma bússola para definirmos as orientações de cada troço recto que fosse definido. Estimo que, deste modo, teria ficado negada ao inimigo a possibilidade de se mover numa frente de pouco mais de quinhentos metros.

As minas M-35 são inferiores às AUPS e, por isso, quando se me acabaram estas, resolvi aplicar aos pares as mil que recebera do Serviço de Material, mas por sugestão do Paiva, prescindi das “carapaças” metálicas que potenciavam o efeito das AUPS.

Qual seria a utilidade daquela medida ofensiva, se o inimigo não passava ali e se nós patrulhávamos o local com certa regularidade? Não creio que quem mandou colocar as minas – o ComChefe ou o CAOP – tivesse uma ideia precisa do que seria um campo de minas e, muito mais num terreno como aquele. Ao longo dos anos pensei várias neste assunto e acabei por concluir que tudo se deveu a uma necessidade de tomar uma medida qualquer que revelasse qualquer actividade que se pudesse reportar para o escalão superior, não tanto para apresentar serviço, mas antes porque era necessário “passar à ofensiva”. No fundo, a decisão ter-se-á ficado a dever a um certo desnorte que imperava entre os condutores da Guerra, na impossibilidade de inverter o curso dos acontecimentos. Partiu-se de uma avaliação incorrecta da situação, utilizou-se um meio perigoso e, como já se sabia, pouco eficaz para actuar sobre o inimigo e depois… depois foi o pior.

Sabendo como era perigoso o uso de minas naquele ambiente, resolvi fazer uma “batota” que me permitisse, pelo menos em caso de verificação, localizar rapidamente cada “cacho” de minas: liguei, com arame de tropeçar enterrado, os vértices explosivos. Assim, localizada uma mina (ou par) localizava as outras três com toda a facilidade. O In não conhecia este procedimento e, se detectasse ou accionasse uma mina até poderia levantar mais duas, mas como não conhecia a distância das seguintes e a respectiva orientação, teria de se ficar por ali.

Semanalmente saíamos o Ramos (o Furriel Amarelinho) já então casado e vivendo na tabanca com a mulher e o filho, o Paiva e eu (que vivia no quartel com a minha mulher) para, a pouco e pouco, irmos lançando o campo. Viviam em Mansabá, por sua conta e risco, três mulheres brancas, pois a estas duas teremos que juntar a do Costa – também furriel – que vivia na tabanca. Havia condições de espaço e habitabilidade no quartel e tabanca, mas era proibida a presença de famílias de militares metropolitanos em Mansabá. É curioso como esta proibição extensiva a tantas localidades, nunca foi considerada indício de que algo estava mal e que, ou a terra era inóspita ou o inimigo nos impunha a sua vontade… No fundo, não nos esqueçamos de que o país era um só e que a livre circulação de pessoas e bens é uma característica de qualquer país em paz, como seria o caso, segundo as autoridades.

Com dois grupos instalados à nossa retaguarda, trabalhávamos sem equipamento e desarmados e íamos colocando as minas de forma que elas só existissem à nossa frente. Colectávamos os elementos no campo, especialmente no que dizia respeito às orientações das ligações e lados dos triângulos. Depois, na tarde de cada dia, eu passava para papel de arquitecto o desenho do campo que ia surgindo.

O trabalho de campo era árduo, pois, passadas as temperaturas amenas da manhã, começávamos a suar e acusar cansaço. Penso que o suor nos empapava mais os camuflados do que se fôssemos andando pelo mato. Por isso, procurei que nunca trabalhássemos mais de duas horas. O regulamento – o célebre Manual de Minas e Armadilhas – obrigava à elaboração de um relatório onde o responsável pelo lançamento era obrigado a declarar que o “sapador” estava “bem comido, bem dormido e não fora incitado a apressar-se”.

Só relativamente à última condição eu tinha um certo controlo. Nunca fixei metas e, com a segurança montada, até podíamos fazer pausas. Mas, será possível que alguém que vai manipular umas dezenas de minas, no dia seguinte, durma bem? E terá apetite que lhe permita comer um pequeno-almoço que lhe garanta um teor de açúcar no organismo suficiente para que exista a concentração necessária à execução destas tarefas? Enfim, a situação era aquela e tínhamos que a aceitar, já que a não podíamos modificar.

Logo no primeiro dia poderia ter sucedido e comigo. Afastei-me da mina n.º 11 – a “onzima” – e, para não me esquecer onde a tinha deixado e poder continuar a partir dela, deixei-a assinalada com a bússola, um “pica” espetada no chão e um pequeno caixote de madeira vazio. Ao voltar pus o pé esquerdo no interior do espaço assim definido. Só quando senti o pé a ir abaixo é que vi que algo estava mal. Levantei-o mas seria tarde, se tivesse pisado a mina AUPS em cheio. Assim, pisando-a pela beira, ela basculou, mas não explodiu. Calei-me e procurei que, para além do Ramos e do Paiva ninguém mais soubesse.

Porém, dias depois a Isabel soube. Foi durante um jogo de cartas, nós os dois, o Paiva e o Jota Lopes.

Falou-se das últimas actividades e o Paiva disse:

- Veja lá mas é se acaba com aquilo das minas. Eu posso não ter a sua sorte…

Ele descaiu-se e eu tive que explicar à Isabel a sorte tinha tido. Não me era possível acabar com “aquilo”. Por isso, paulatinamente, fomos continuando a lançar.

A dado momento, estávamos no par de minas 437. Não me recordo porquê, mas creio que foi por termos tido que intensificar a actividade de patrulhamento, parámos o lançamento das minas, durante uma semana ou duas. Passado esse tempo e sabendo das dificuldades de referenciar as minas enterradas, propus que me deixassem verificar o campo.

Entretanto, o Coronel Durão “descobriu” as nossas mulheres e, tendo falhado a proposta de que Mansabá passasse a ser considerada suficientemente segura para poder ser habitada por mulheres brancas, a Isabel regressou a Lisboa. Estávamos em meados de Março e eu terminaria a comissão em princípios de Junho.

Julgava eu…

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8229: Memória dos lugares (153): Cacine, ao tempo do Pel Rec Daimler 2049 e da CART 1692 (António J. Pereira Costa)

Vd. último poste da série de 28 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7880: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (4): Em Mansabá, os últimos tempos de guerra

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7880: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (4): Em Mansabá, os últimos tempos de guerra

1. Mensagem de António José Pereira da Costa*, Coronel, que foi comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, com data de 16 de Junho de 2010:

Camarada
Aqui vai mais um texto meu.
Tive dificuldade em o construir e por isso saiu uma série de personagens esboçadas.
À consideração "superior".
Um Ab


A Minha Guerra a Petróleo (4)

Em Mansabá, os Últimos Tempos de Guerra

 Vista aérea da povoação e quartel de Mansabá
Foto de Carlos Vinhal

Conheci Mansabá em finais de Novembro de 1972. O quartel vasto era agora guarnecido por uma Companhia de Artilharia – a CArt 3567 (“Os Insaciáveis") – e duas Secções de Artilharia (obuses 8,8 cm), quando já fora sede de Batalhão e depois de um COp. Levar-nos-ia longe a análise da constituição dos Comandos Operacionais (COp), em diversos locais da Guiné e não cabe aqui discutir soluções tácticas, mas antes falar de pessoas. Dos que ali foram parar e dos que ali viviam o seu dia-a-dia. Hoje, passados todos estes anos, creio que ninguém tinha uma ideia acerca do que pretendia. Todos esperavam. Os nascidos e criados naquela terra e arredores deveriam ter dificuldade em entender o que se passara e o que se passava para que tivessem de viver circunscritos a uma localidade, sem puderem deslocar-se livremente e contactar com os seus, que residiam noutros locais, cultivar a terra um pouco mais longe, comerciar, em resumo: viver.

Mal ou bem, mas labutar no dia-a-dia. E, o que era pior, sabiam que, se fossem “apanhados”, teriam de passar a viver em condições muito mais difíceis quando não em situações de dolorosa inferioridade. É que, se a vida de guerrilheiro e da população que o apoia é duríssima, a vida de um prisioneiro será sempre um calvário. Não sabe onde e como estão os que teve de deixar para trás e, na sua nova situação, ser-lhe-ão sempre atribuídas as tarefas mais humilhantes, para além da desconfiança que sentirá sempre à sua volta. E não adianta tentar “comprar” o ex-inimigo…

Naquela altura os campos já estavam extremados. Quem estava de um lado sabia que não tinha possibilidades de se inserir e sobreviver no outro.

Não contactei muito intimamente com a população. Senti mesmo uma certa distância dela em relação a mim, ou seria a todos nós? Sim, nós, os outros, os que fôramos daqui para lá para… para quê? Para combater pela Pátria, pois claro! Para proteger aquelas populações da barbárie, das garras do “comunismo internacional” e assegurar o desenvolvimento pacífico daquela terra e (quem sabe?) “assegurar a passagem a uma maior autonomia”. Enfim, íamos fazer o que se dizia e era sabido que íamos fazer…

É, no mínimo, estranho que a guerra se constitua como factor de aceleração do desenvolvimento e de autonomia. Será que, se não houvesse guerra o desenvolvimento económico e social não se daria? Ou seria retardado? É-me difícil admitir outra forma de desenvolvimento que não seja assente na paz. No fundo, estamos a dizer que quem se revoltou tinha razão e assim conseguiu que a população vivesse melhor, embora pagasse caro essa melhoria. Verdadeiramente insanável esta contradição.

A “guerra” levava, naquela altura, dez anos e, hoje, parece-me que aquela terra e aquela gente padeciam de uma espécie da gangrena que as apodrecia cada vez mais. Os guerrilheiros faziam a guerrilha. Era o seu dever patriótico de homens que queriam ser livres. Imolavam-se, se necessário fosse, em combates curtos, mas intensos, contra um número considerável de conterrâneos seus e contra os que, vindos da “Metrópole”, os perseguiam por vezes com grande violência. Saberiam eles bem porque lutavam? Direi que sabiam.

Naquele tempo, parece-me que todos tínhamos (muitas) certezas. No meio estavam uns que suportavam, que aturavam as vicissitudes daquela situação sem puderem invertê-la. É o drama habitual das grandes massas de um povo que, não sabendo ou não achando necessário participar activamente, limitam-se a tentar sobreviver, oscilando, como um ponteiro desgovernado sobre o painel do momento. Normalmente, a História não regista o seu sofrimento, nem justifica a sua acção… ou falta dela.

Ao contrário da primeira comissão, desta vez, também nunca falei com nenhum guerrilheiro, nem com alguém que com eles tivesse vivido.

É certo que algo melhorara nos últimos tempos de guerra. Agora havia uma estrada asfaltada que levava a Bissau ou a Farim, estava montada uma rede de assistência médica e medicamentosa como nunca existira e o arroz era vendido a um preço simbólico: “cinco pesos e meio”. Ainda me recordo de uma grávida, em trabalho de parto, que foi evacuada para Bissau, por via aérea pelo, hoje general Martins de Matos.

Actualmente, nada disso por lá existe e, mesmo cá, as transmontanas têm os filhos nas ambulâncias…

Vivia-se em paz no interior da tabanca. Contudo numa tensão permanente. Havia que manter o inimigo à distância. Inimigo de quem ou de quê, isso é que era mais complicado de dizer… Para isso lá estávamos, mais de centena e meia de jovens – sim éramos jovens, é bom que se diga – que, com uma certa regularidade, faziam demonstrações de força e, com elas, garantiam que “os outros” não se aproximavam.

Vivia-se numa espécie de equilíbrio tenso e susceptível de se alterar ao menor sopro do acaso. Era a tal gangrena que minava e, cada dia, agudizava mais a situação. Uns já não, outros ainda não. Mas já não ou ainda não, o quê? O que é que cada um de nós, homem ou mulher, velho ou novo, nascido ali ou vindo de outro local, queria, em última análise? Dava a impressão de que aquela situação de equilíbrio iria alterar-se a qualquer momento. De que modo?

Andávamos todos à procura de sermos felizes. Cada um à sua maneira, construindo o seu amanhã à medida dos seus anseios e, quando não os identificava claramente, pelo menos queria que “aquilo” acabasse. Não me peçam estatísticas, percentagens ou tendências. Isso são abstracções de sociólogos ou de políticos carreiristas a justificarem – uns e outros – a marcha de um fenómeno que decorria naquele momento e não era possível parar nem condicionar.

O que pensaria o “Moisés Tchombé”, o chefe do posto, daquilo tudo? Chamávamos-lhe assim pela semelhança física com o ex-dirigente congolês. Será que exercia as suas funções a pensar no dever quotidiano a cumprir ou na simples sobrevivência, esperando que, quando “aquilo” acabasse, pudesse continuar tranquilamente a ser um bom “chefe de posto”? E os dois funcionários da Casa Gouveia, já aliciados para o “Partido”? Que esperariam eles, quando tudo acabasse, se acabasse? Claro que teria de acabar, mas… de que maneira? E o comerciante libanês (outro membro do “Partido”) que vivia como os seus colegas de profissão, num dia-a-dia de compra e vende toda e qualquer coisa que fosse necessária? E os velhos da tabanca, dotados da sabedoria que a idade sempre traz, o que pensariam daquilo? Como visualizariam o fim? Pensariam que o PAIGC, estava condenado a vencer e a tomar conta de tudo e, nesse caso, qual seria o papel deles? E se fosse a “Tropa” – reparem na expressão que usei e que usávamos – a ganhar, como ficaria todo o resto?

Há um indício técnico que, confesso, negligenciei: o Pelotão de Milícia estava incompleto e, embora o método de recrutamento estivesse modificado, centralizando-se num período de recruta num centro de instrução (que chegou a funcionar em Mansabá), parecia não haver interessados em recompletá-lo…

Estranho, para quem tinha que se defender diariamente de um inimigo que não se pode dizer que fosse muito contemplativo, como se viu naquele ataque “ao arame” em que arderam 21 casas. O que pensaria a população, em geral, das possibilidade de evolução da guerra? Valeu-nos naquela altura a Companhia de (instrução) Comandos Africanos que estava em formação e que fez as vezes dos bombeiros, apagando o incêndio, com baldes e bacias. Pedi às instâncias superiores cerca de 250 contos para reabilitar as casas e repor os bens daqueles que tudo tinham perdido. Nem um tostão veio. Não compreendi, na altura, a dificuldade em se aceitar que, em cada casa, houvesse pouco mais de dez contos em bens e alimentos. O PAIGC, vindo dos lados do Morés, atacou ostensivamente a tabanca e incendiou os telhados das moranças a tiro de RPG. O Amadu fala deste ataque, no seu livro e também não o entende(1). O conjunto tabanca mais quartel era grande e tinha um perímetro bem conhecido dos guerrilheiros. Um ataque cirúrgico, como hoje se diz, e que me pareceu um “ajuste de contas”, uma espécie de “perda de estado de graça”. Depois, veio o ataque à coluna de Cutia, a emboscada à coluna da CArt e à própria coluna grande de Bissau a Farim e volta. Terá sido o virar de uma situação de “equilíbrio”.

Uma morança de Mansabá atingida por fogo IN em 12 de Novembro de 1970
Foto de Carlos Vinhal

Tive contacto com o chefe da tabanca, logo no dia da minha chegada e, depois, só me pedia apoio para satisfazer qualquer necessidade da sua gente. Vi que os habitantes da tabanca viajavam pouco. Poderiam ir a Mansoa nas colunas da CArt. e daí a Bissau ou a Farim, na “coluna grande”, mas inexplicavelmente… não iam. Que se passaria para que tal sucedesse?

Dentre os habitantes da tabanca havia uns que não consegui entender. Não eram africanos. O senhor Zé, a mulher, D. Olinda, e uma filhota de três para quatro anos que tinham. Ele tinha explorado a Serração, alguns quilómetros a Sul, à beira da estrada, e hoje ainda abatia uma ou outra árvore que arrastava numa espécie de chassis que normalmente “até andava” fazendo uma fumarada de gasóleo não queimado. Ela cuidava da horta de casa e fazia funcionar um “restaurante barra café”. A filha enervava-se muito com os tiros da artilharia e com os ataques e o filho, com onze anos, acabara por obrigar os pais virem deixá-lo a casa de familiares, em Leiria.

Mansabá > 13ABR71 > Festa de Batisado da filha do senhor José Leal e dona Olinda > Nesta foto, da direita para a esquerda: Cap Mil Jorge Picado, senhor José Leal, Chefe de Posto (“Moisés Tchombé”) referido no texto, a esposa e uma das professoras ou filha do casal.
Foto de Jorge Picado, com a devida vénia.


Mansabá > OUT71 > A D. Olinda, esposa do senhor José Leal, e a filha de ambos no dia da festa do 1.º aniversário da menina
Foto de Carlos Vinhal

A dado momento, colocaram ali duas professoras “de primeiras letras”: a Sérgia, cabo-verdiana, gorda e que não parecia muito interessada na sua actividade e a Maria do Socorro, balanta, já havia concorrido ao título de miss Guiné, mas o júri teve de a eliminar por falta de qualidades estéticas… Tinha uma outra atitude e parecia querer dinamizar o funcionamento da escola. Suspeitei dela por evitar sistematicamente as colunas da CArt e procurar sempre seguir na “coluna grande”. Um dia impedi-lhe o embarque numa delas e, então, não tive dúvidas. Aos saltos em cima do unimog desatou a gritar “que estava farta dos cães colonialistas portugueses”. Então detectei “as malhas que o Império tecia”. O comandante do Batalhão ameaçou-me e obrigou-me a soltá-la. A rapariga estava fortemente “apoiada nas NT” e eu estava a pouco tempo de me vir embora. Após a independência, talvez em consequência dos “apoios” foi funcionária do Exército, no Estado-maior do Exército e na Repartição de Oficiais. Sei que continuou muito preocupada com o que não tinha – a beleza – ao ponto de comprar a uma daquelas vendedoras que frequentavam as unidades militares e as empresas, o bronzeador mais caro. Ao que me disseram assassinaram-na numa das viagens que fez à Guiné. O móbil do crime terá sido o simples roubo.

Que pensariam estas duas mulheres que viviam numa casa anexa à escola. Esta, que tinha sido um posto de comando e um centro de transmissões, era um edifício, de paredes sólidas, construído no “ano dos centenários” – 1946. Há fotos deste tipo de edifícios. Este era contemporâneo do Posto Administrativo, onde o “Moisés” vivia e cumpria as suas obrigações burocráticas, que eu, devo confessar, nunca entendi bem. Por despacho do General Spínola, o director da escola era eu e o segundo comandante do Batalhão era o inspector da circunscrição escolar na sua área. Por mim, nunca intervim no “processo de alfabetização em curso” a não ser para transmitir as instruções que me davam, prontamente contestadas pela Socorro. A escola foi inspeccionada uma vez, durante as férias e na ausência das professoras. Os resultados foram hilariantes e até deram direito a uma música com letra do alferes Rui Serras e música do Yellow Submarine. Prometo que conto um dia destes…

O que pensariam estas mulheres jovens, na altura, do que se passava à sua volta e o que terá sido feito da Sérgia?

E a “malta”? O que pensariam e como aceitariam aquilo tudo, os alferes – nunca tive mais de três devido à escassez de pessoal – os sargentos – entre os quais também existiam faltas, pelo mesmo motivo – e as praças?

Corro o risco de ser injusto, mas a avaliação que faço hoje é fruto de análise de pequenas situações que foram sucedendo então e que me sugerem que se tratava de uma unidade de “homens independentes”. Havia, penso, um núcleo de mentores que lideravam naturalmente. O primeiro-sargento Cipriano Canelas, amigo de outras situações, homem sensato, competente e dedicado, tinha uma característica que pode ser considerada uma forma de resistência: procurava vestir sempre bem, fardado ou à paisana. Aglutinava à sua volta o alferes Silva, ex-seminarista e, por consequência treinado para liderar, como todos os padres; o Bateira, furriel atirador com a valentia própria de quem conheceu os “ambientes do Brasil” e que manejava a MG 42; o Rui Serras, estudante falhado de medicina, angolano de Portalegre ou portalegrense de Angola, persuasivo e alegre que, como vi mais tarde, sabia bem congregar vontades; o Mota e Silva furriel atirador eficaz e reservado.

Depois havia outros, como os malogrados Vale das Transmissões, Sá Lopes, Ranger, sempre pronto a fazer jus à sua qualificação e o Costa, gigante atirador e marido da Júlia. Ainda me lembro do Ramos, magro e louro, meu companheiro naquela coisa das minas… e o Antero Paiva. E o Carvalho, o furriel “Enfermeiro”, que fazia os possíveis por assistir a população e a “malta”, com cuidado e a qualidade possível. Havia também o Alves da Artilharia, sempre sisudo, mas pronto na “hora do aperto” e eficaz no desempenho das tarefas que lhe tocavam.

Entre os soldados, relembro o “Boxista” que tinha andado a aprender a “Nobre Arte” mas com resultados modestos, o Pilo (é nome e não alcunha) pescador do bacalhau e que preferia estar ali com os pés no chão a andar aos tombos num dóri; o Valdez das Transmissões que tocava, na flauta de bisel “El Condor Pasa” acompanhado à viola pela Sousa Pinto da mesma secção.

Todos cumpriam e bem, mas sem entusiasmo excessivo. As coisas, faziam-nas porque era necessário fazê-las, desde a guerra às tarefas de guarnição. Dir-se-ia que resistiam à provação que lhes era imposta.

Não creio que “sofressem de patriotismo exacerbado”. A Pátria, para eles, não era ali… Não notei que odiassem o inimigo, mas distanciavam-se dele. Defendiam-se e faziam a guerra porque a isso os obrigavam e não detectei que nutrissem ódio pelo inimigo, mas também não me pareceu que tivessem qualquer simpatia ou compreensão pela parte contrária. Esta atitude de reserva vinha desde a primeira baixa sofrida pela Companhia, quando tinham pouco tempo de Guiné e eu ainda não estava com eles. Fora um ferido com mina lá para os lados de Manhau. Penso que se sentiram injustiçados e daí nasceu em espécie de revolta surda de quem não teme, mas que também não acredita e, sem outra saída, mantêm uma atitude de fria independência e de liberdade escondida.

Sem grandes alardes de valentia tive prazer em os comandar, mais como cidadãos do que como soldados.

(1) - Djaló, Amadu Bailo, "Guineense, Comando Português", (pág. 246 e 247), Ed. Associação de Comandos, Col. Mama
Sume, Lisboa, Março de 2010.
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Notas de CV:

Vd. poste de 27 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7874: Em busca de... (157): Camaradas da CART 3567 (António J. Pereira da Costa)

Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6614: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (3): Gente de Cacoca e outros