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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19253: Notas de leitura (1127): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Contrariando a opinião de outros investigadores, incluindo René Pélissier, Joshua Forrest entende que todo o período de pacificação e ocupação não permite admitir que a potência colonial tenha ficado numa posição dominante e altamente interventiva nas sociedades rurais - estas, segundo ele, continuaram à margem, refutando os impostos, mantendo o seu próprio comércio, rivalidades e formas de cooperação multiétnicas. Os representantes da administração eram escassas centenas, tirando a CUF e a Casa Gouveia os outros interesses económicos eram assumidos por ponteiros e madeireiros, obrigados a estabelecer relações cuidadas com as populações locais. A administração colonial portuguesa manifestou-se frágil como o Estado pós-colonial continuará a manifestar-se frágil.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau:
O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (4)

Beja Santos

A I República foi confrontada com as repetidas sublevações das diferentes etnias guineenses, basta recordar o grau de intensidade a que estas se manifestaram entre 1890 e 1909. É neste momento que se decide, custe o que custar, a que o governo de Bolama estenda a sua autoridade fora das praças e presídios e que toda a região se torne segura, obediente e que os nativos paguem impostos. Foi encontrado um oficial experimentado, o Capitão João Teixeira Pinto que, antes de mais, quis conhecer o mato rebelde. Encontrou em Vasco Calvet de Magalhães um aliado extraordinário, arranjou-lhe auxiliares fulas e apresentou-o ao mercenário senegalês Abdul Indjai, em Bafatá. Teixeira Pinto apercebeu-se que Indjai estava à frente de um grupo bem preparado de mercenários, quase todos eles equipados com espingardas de cinco tiros.

A campanha inicia-se no Oio, os povos locais mantinham-se intransigentes, recusando a tributação e não aceitando as ordens de Bissorã. Teixeira Pinto põe-se à frente dos seus auxiliares e confronta-se com os Balantas, de finais de Março a princípios de Abril. Os Oincas atacam Bissorã e é nesse momento que entra em ação o corpo de mercenários de Abdul Indjai. São destruições sem conta, por onde passam incendeiam, pilham e trazem escravos. Em Junho o Norte do Oio rende-se. No fim do ano de 1913 foi morto um oficial português na região de Cacheu. Segue-se uma expedição violentíssima contra os Manjacos de Pelundo, Basserel e Churo, não faltarão destruições e massacres. Um pouco como um castelo de cartas, a resistência é sufocada ou apaziguada. E Teixeira Pinto, sentindo que o Oio, Cacheu e Mansoa já não oferecem luta precipita-se sobre a península de Bissau, bombardeia Nhacra, entra em Antula, Intim e Bandim. Os principais fulcros da sublevação foram estancados, as operações na região do Cacheu, S. Domingos, Farim, Oio, Mansoa, Geba e Porto Gole trouxeram o compromisso de que as populações iriam pagar a tributação. O grande rei Manjaco de Basserel viu o seu território reduzido e os Papéis da região de Bissau viram igualmente a sua estrutura quebrada.

Mas graves problemas vão subsistir: em Canhambaque haverá rendição em 1918, mas será fogo de pouca dura; e a autonomia de Indjai, que passa a ser o senhor do Oio e do Cuor, salda-se num período de terror, que obrigará Bolama a decretar uma expedição sangrenta e que culminará com o exílio de Indjai em Cabo Verde. Ficarão bolsas de resistência que irão sendo temporariamente silenciadas. Graças à tributação, mesmo com altos e baixos, a administração entra no interior do território. Joshua Forrest insiste de que comunidades rurais aceitaram superficialmente acatar o poder colonial, não dispõem de capacidade perante o armamento do exército e da armada portuguesa. Mantém-se uma resistência ao pagamento da tributação e as lutas em Canhambaque prolongar-se-ão em 1925 até terem o seu termo no período de 1935 e 1936. Haverá sublevação em Nhacra em 1924 e o autor repertoria hostilidades em Bolama, Farim, Gabu e permanentes estados de revolta dos Balantas, como aconteceu em Maio de 1944, em Catió. Na década de 1930, houve que sufocar as resistências dos Felupes em Suzana-Jufunco. O Capitão Velez Caroço entrou em Suzana em 1 de Novembro de 1933, destruiu tudo e dois dias depois Jufunco. O tratamento dos resistentes é implacável. O autor observa que são décadas de uma palpável não-aceitação da soberania portuguesa. Mesmo os Fulas e os Beafadas nem sempre foram completamente fiéis à potência colonial, exigiam melhores pagamentos pela sua prestação ao lado das dezenas ou centenas de soldados regulares. Também considerando o que se passou nas sociedades rurais durante estas décadas do século XX, o autor mostra casos de rejeição de chefes impostos pelas autoridades portuguesas, uma vincada manutenção das práticas animistas, caso dos Manjacos, e a manutenção de políticas de relação entre etnias para a vida em assentamentos. Ganhou normalidade a criação de povoações com diferentes etnias, mesmo mantendo as tabancas separadas: esta situação ganhou total visibilidade até ao início da luta armada, Manjacos, Beafadas, Fulas, Mandingas, Balantas, entre outros, aceitaram viver uns ao pé dos outros, cultivando a terra em áreas separadas. O autor mostra o caráter multiétnico da região do Cacheu e cita António Carreira que ali foi administrador, ele registou o bom relacionamento entre Papéis, Balantas, Cassangas, Banhuns e Brames, mas também Manjacos aderiram a viver em comum com as outras etnias, não haverá mesmo conflito com os islamizados, as práticas animistas de uns e dos islamizados por outro lado serão acatadas. Mas tornou-se indiscutível que eram os grupos animistas que ofereciam mais resistência na Guiné, os Fulas e os Beafadas eram mais cooperantes com as autoridades coloniais e num campo de certa indecisão estavam os Mandingas.

Analisando a essência do Estado colonial, Joshua Forrest recorda que o grande atrito passava pelos impostos e pela inexistência de grandes grupos económicos, eram as comunidades rurais as detentoras da terra, eram eles que escolhiam os termos da exportação, nomeadamente o amendoim. O comércio transfronteiriço passava à margem do controlo alfandegário, os guineenses atravessavam a fronteira senegalesa, comerciavam com djilas ou faziam trabalho temporário tanto no Senegal como na Guiné Francesa.

O sistema administrativo era deficiente e corrupto, refere o autor. Na década de 1930 havia na Guiné um total de 359 funcionários, mas os próprios relatórios dos governadores referiam uma quase paralisia por falta de dinheiro, daí a falta de produtividade e a bancarrota moral do funcionalismo. O autor é minucioso na apresentação de dados sobre a recolha da tributação e o trabalho forçado. E diz que o Estado colonial era de uma enorme fraqueza, uma tal fragilidade que impedia uma presença constante nas sociedades rurais, deixando-as autónomas.
No próximo texto far-se-á referência à mobilização multiétnica destas sociedades rurais tanto no período da luta armada como depois no Estado pós-colonial.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 26 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19234: Notas de leitura (1125): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19246: Notas de leitura (1126): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (62) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19234: Notas de leitura (1124): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
A investigação de Joshua Forrest é tão refrescante nas suas premissas que é indeclinável abrir-se à controvérsia. Para entender o que falhou na grande consigna que precedeu a luta vitorioso liderada por Amílcar Cabral, intitulada Unidade e Luta, é preciso ir muito atrás, à inexistência de Estado nos períodos pré-colonial e colonial, e ao facto de que tal ausência, bem como a ausência da própria nação eram superadas por identidade étnica e um maleável sistema de alianças que permitiu às sociedades rurais serem as portadores do património histórico, económico, social e cultural da Guiné. A unidade preconizada por Cabral, demonstrou-se, não sensibilizou as comunidades rurais a passar de nação a Estado dirigido por um partido-Estado. E o autor exemplifica com inúmeras formas de alianças, como se pode avaliar no período em análise, entre 1890 e 1909. Seguir-se-á um período de grande acalmia após a pacificação de Teixeira Pinto. Inevitavelmente, a potência colonial não se apercebeu a tempo e horas que era impossível manter submissa aquelas comunidades rurais que tinham repelido o ocupante português.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (3) 

Beja Santos 

“Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, é uma das investigações mais argutas e audaciosas que se publicaram no novo século sobre a Guiné pré-colonial, colonial e pós-colonial. Como se referiu em textos anteriores, o ponto de partida do investigador norte-americano é de que a fragilidade do Estado é um dado permanente daquele território, foram e são as sociedades rurais o esteio económico, social e cultural, sociedades com uma enorme capacidade volitiva para estabelecer acordos de interesse, por motivos de segurança ou de resistência, a despeito da sua autonomia, conseguindo preservar identidade no colonialismo e já na Guiné independente.

Estamos agora na segunda parte do ensaio, no auge da ocupação, um período que se situa entre 1890 e 1909, ou seja o degrau anterior às campanhas do Capitão Teixeira Pinto. Forrest recorda o envolvimento da administração nos problemas de Fuladu, a região do Gabu, onde vão estabelecer alianças com os Fulas, pondo e depondo chefes. Encetam campanhas militares para dominar povos de etnia Balanta, Papel, Manjaca e Oinca (o povo que habita a região do Oio) e os animistas Beafadas. A resistência será enorme: em Farim, Geba, Ziguinchor e Cacheu, até mesmo às portas de Bissau. Isto só foi possível graças a um sistema de alianças entre etnias. A potência colonial procede a um tipo de “africanização da guerra”, recorre aos Fulas como auxiliares e na casa dos milhares. Essa africanização estender-se-á a Mandingas e Beafadas, bem como a grumetes.

Ocupar e pacificar é praticamente uma causa perdida, não há meios. Para pagar aos auxiliares, a administração autoriza que estes saqueiem e pilhem as povoações onde entram. Neste período, pasme-se, ainda existe um relativo equilíbrio quanto a armamento, falamos de rifles e munições, adquiridas no comércio informal. Para o autor, o momento de viragem ocorrerá nos anos 1907-1908, há manifesta intenção política de que se ocupe o interior da Guiné. É Governador Oliveira Muzanty, viverá o grande cerco de Bissau e será o vencedor da campanha do Geba, contra Infali Soncó. Forrest refere a identidade Oinca, ela é um bom exemplo da mistura étnica numa região em que recentemente tinham chegado os Balantas, os Mandingas islamizados, os Mandingas Soninké (animistas), vindos do Forreá e Gabu fugidos às guerras entre os Fulas e Beafadas. É um caso de relações interétnicas pacíficas e juntar-se-á a esta complexidade os Balantas-Banaga.

A administração portuguesa não sabia compreender a noção de cooperação entre as etnias, entendeu-se que o melhor era aproveitar a proposta de um acordo de paz e deixar o Oio por conta própria. Porque o historial da tentativa de ocupação era penoso para Portugal. Em 1897, o Tenente Graça Falcão comandou uma coluna militar contra os Mandingas Soninké, perante um assalto verdadeira devastador, os auxiliares Mandingas viraram-se contra Graça Falcão e foguearam-nos, Falcão retirou para Farim. Subsequentemente, Falcão recrutou mais auxiliares e soldados, pretendia combater os régulos Mamadu Paté Coiada e o Beafada Infali Soncó (este tinha sido reconhecido pelos portugueses em 1895 como chefe). Vive-se então um grande período de turbulência e o resultado foi um impasse. Breve, a presença portuguesa na região centro-norte da Guiné encontra-se comprometida. Em 1902, durante o governo de Júdice Biker ocorre o já referido acordo de paz com os Oincas, a parte portuguesa não ficou bem no retrato, os Oincas prometeram pagar tributação, nunca cumpriram.

É então que tudo muda em 1907, com a revolta de Infali Soncó, impedindo a navegação do Geba, estabelecendo uma aliança com um número apreciável de régulos. Infali ofende um oficial da armada, José Proença Fortes, Muzanty vem a Lisboa pedir meios, perder o Geba e o acesso ao Gabu era regressar à estaca zero. Vai então ocorrer uma expedição envolvendo canhoneiras munidas de metralhadoras, virão tropas de metrópole e de Moçambique. Em 1908, Infali será derrotado e foge os outros régulos propõem acordos de paz. No Norte da província, a situação não é muito feliz, os Djolas infligem pesadas baixas aos portugueses, foi necessário partir de Lisboa uma coluna militar, com artilharia e até médico. Forrest observa que estas vitórias coloniais eram todas elas efémeras, mal partir o efetivo militar iniciava-se a contestação.

O grande cerco de Bissau foi uma rebelião séria, havia antecedentes, de tal modo que os portugueses se viram na contingência de trazer para Bissau auxiliares Beafadas e Fulas e tropas de Cabo Verde e Angola. À volta de Bissau, os régulos de Antula, Bandim e Intim, de Safim e Nhacra, tinham efito uma aliança para contrariar a presença portuguesa. Em Maio de 1894, o Governador Sousa Lage atacou Bandim e Intim, a cerca de dois quilómetros de Bissau. Em Julho desse ano, foi a vez dos Papéis de Biombo, com apoio dos Balanta, atacarem Bissau, afundando três barcos. Garantir a segurança dos europeus dentro da fortaleza de Bissau era pouco crível. O dado curioso é que enquanto Oliveira Muzanty prepara uma severa reação no Geba, Bissau está em estado de sítio, as comunicações com Conacri tinham cessado. Os comerciantes estrangeiros, crucialmente interessados num estado de paz, estabeleceram conversações com os régulos, incitando-os a pagar multas pela rebelião, os Papéis recusaram. A reação portuguesa foi um bombardeamento das povoações Papéis à volta de Bissau. Forrest descreve com todo o detalhe estas danças e contradanças, pode avaliar-se como todo o governo de Oliveira Muzanty foi passado a combater e a resistir. Regressará a Portugal em Janeiro de 1909 deixando a Guiné em pura rebelião.

Joshua Forrest avalia a situação do seguinte modo. Trata-se de um período (1890 a 1909) de permanente contestação da autoridade colonial. Esta conta com a fidelidade dos Fulas e Beafadas. O Oio, com as suas enormes florestas, é uma região que vive uma quase independência. Só se pode entender o vigor desta resistência pelos acordos entre as diferentes etnias. Tudo se vai alterar com a chegada do Capitão Teixeira Pinto, para o autor vamos entrar num período de terror e de pilhagem dos mercenários, com Abdul Indjai à frente.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 19 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19207: Notas de leitura (1122): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19225: Notas de leitura (1123): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (61) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18861: Notas de leitura (1085): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (44) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,

Estamos ainda num período em que os gerentes de Bolama e Bissau têm a caneta em riste, escrevem desassombradamente, a carta para Lisboa, em 16 de Agosto de 1918, em que o gerente de Bissau pede à administração para receber bem o eis governador Ivo Ferreira, que passava ao gerente informações confidenciais têm o seu quê de maquiavélico e oportunista, não se esquece de dizer que a ação do governador foi simplesmente nula.
Enceta-se um período de grandes dificuldades, o poder de compra deteriora-se, e não surpreende a carta dirigida ao gerente de Bissau, em 14 de Fevereiro de 1921 em que os trabalhadores nas obra do banco em Bissau vêm muito respeitosamente pedir aumento de vencimentos, andam de mão estendida, quando em Lisboa, quando tinham sido contratados os salários eram o triplo. A não serem correspondidos, informa Sua Excelência que tinham que regressar a casa.
Abdul Indjai partira para Cabo Verde, o BNU em Bissau procurava vender tabacos e não descurava a possibilidade de se abrir uma delegação em Bafatá.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (44)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

Uma das singularidades que encontramos neste período da vida das duas agências do BNU na Guiné é a comunicação franca para Lisboa das opiniões dos gerentes, em matérias compreensivelmente delicadas.

Veja-se a carta enviada por Bissau em 16 de Agosto de 1918 tendo como assunto o ex-Governador Ivo Ferreira que seguia para Lisboa e fora substituído por coronel Oliveira Duque:

“É natural que o senhor Ivo de Sá Ferreira visite V. Exas., e neste caso rogamos a V. Exas. que lhe dispensem todas as provas de especial deferência, auxiliando-o mesmo, se possível for, em qualquer pretensão oficial que este senhor tenha, pois que assim não fazemos mais do que retribuir alguns serviços que nos prestou.

Muitas vezes e quando governador, deu-nos importantes informações, particular e confidencialmente, sobre medidas que iam ser tomadas quer pelo governo da Província quer pelo governo da metrópole; algumas vezes foram-nos essas informações de grande valor, principalmente as referentes à proibição de exportar as oleaginosas para o estrangeiro.

Sobre a sua acção na Província quase nada podemos dizer, porquanto da nojenta e mesquinha política local sempre vivemos bastante afastados; a sua acção administrativa e de fomento foi… simplesmente nula. Enfim, um governador como tantos outros; deixa o cargo com pena porque era rendoso, e não encontrará outro equivalente com facilidade.

É todavia um governador que nos convém, porque tem pelo Banco uma grande consideração, estando sempre e de antemão disposto a conceder-nos tudo quanto lhe pedíssemos”.

No ano seguinte é a vez de Bolama comunicar a Lisboa o triste fim do régulo do Oio Abdul Indjai, um indefetível companheiro de Teixeira Pinto nas diferentes campanhas.

Atenda-se à informação como facto e aos comentários subsequentes:

“Tendo-se rebelado o régulo Abdul Indjai, foi batido pelas forças do governo e aprisionado bem como os seus conselheiros. Estão já em Bolama.

Este régulo era um dos de maior prestígio na Guiné e de nomeada pelos actos de banditismo praticados, que se estendiam até dentro do território das colónias estrangeiras fronteiras à nossa, o que em tempo deu lugar a reclamações diplomáticas por parte do governo francês e inglês. Há anos que foi batido e deportado para S. Tomé, conseguiu, quando passou por ali em viagem às colónias o falecido príncipe real D. Luís Filipe, ser indultado, regressando à Guiné.

Quando das operações levadas a efeito para bater os Papéis, o governo utilizou os seus serviços, tendo desempenhado então papel preponderante e exercendo todos os excessos sobre os vencidos e pilhando alguns milhares de cabeças de gado.

Acabada a campanha, não se julgou suficientemente pago, ficou com armas e vinha de exigência em exigência rebelando-se contra o governo. Dotado de grande astúcia e muito inteligente, chegou a impor ao governo que lhe fosse dada uma percentagem sobre todo o imposto de palhota cobrando actualmente nas regiões que ele ajudou a bater, entre outras exigências. Ultimamente preparava-se para tomar Farim e vir até Bissau. O comércio estava já temendo que com ele fizessem causa outros régulos.

Depois deste feliz resultado, desenhou-se porém um certo movimento político contra governador, capitaneado segundo dizem pelo Major Médico Francisco Regala, que faz serviço em Bissau, que veio aqui, levando alguns membros do Conselho do Governo a votarem contra a expulsão da colónia do régulo, a ser antes submetido a julgamento nos tribunais. Este julgamento seria demoradíssimo e talvez impossível pela dificuldade de se cumprirem determinadas formalidades judiciais. O certo é que o Conselho votou por maioria que fosse entregue aos tribunais e não expulso. Esse facto causou certo alarme entre o comércio pois a permanência na Província do prisioneiro era certamente a repetição dos factos ocorridos e um incitamento para outros régulos.

Hoje reuniu de novo o Conselho do Governo em sessão deliberativa, e talvez porque alguns chefes de serviço reconhecessem o caminho errado que iam seguindo com politiquices contra o governador, acompanharam os vogais eleitos votando por maioria a expulsão da colónia por 10 anos, máximo período que a Carta Orgânica permite, fixando-lhe para cumprimento do desterro, por proposta do governador, a ilha da Madeira”.



Imagens retiradas da revista “Mundo Português”, da Agência Geral das Colónias

Nesse mesmo ano a Companhia dos Tabacos de Portugal é sondada pela agência de Bissau para a venda de tabacos nacionais na Guiné. Em carta endereçada aos diretores da empresa, o gerente de Bissau recorda a necessidade absoluta da empresa tabaqueira fabricar tabaco folha que se rivalize com o importado dos EUA, em pipas, pois esse tabaco tinha grande procura em todas as regiões da colónia, era uma verdadeira fonte de riqueza.
E especificava para Lisboa:
“Para que V. Exas. possam adquirir tabaco idêntico ao preferido neste mercado, fizemos duas amostras com todas as indicações de preços e qualidades. Para que V. Exas. possam avaliar da importância deste artigo de consumo nesta colónia, transcrevemos aqui as quantidades e valores de tabaco folha importado entre 1912 e 1916, elementos este tirados das estatísticas oficiais.
É para lamentar que não esteja completamente nas nossas mãos a venda deste artigo, quer importado de algumas das nossas colónias, quer reexportado para esta; verifica-se que Portugal concorre com um número bastante pequeno, de quilos de tabaco para a sua possessão da Guiné.
Finalmente, temos a informar-lhes que por enquanto o tabaco folha preferido pelo gentio da Guiné é o de produção da América do Norte. Se não estamos em erro, no ano de 1916-1917 a firma desta praça Salomão Pereira Neves & Companhia importou do Brasil tabaco em ramos e não foi bem aceite neste mercado.

Rogamos a V. Exas. a maior atenção neste assunto, aliás muitíssimo importante para os nossos interesses, pois como atrás deixámos dito é um artigo de grande consumo e bastante compensador e de grandes vantagens para o comércio com o gentio. Em certas localidades da colónia chega o tabaco folha a correr como moeda e é um grande auxiliar para os pequenos comerciantes que vão ao interior da Província nas ocasiões das campanhas de compra de produtos.

Quanto aos cigarros, hoje dificilmente poderemos reconquistar o mercado não só pela grande invasão de cigarros e tabacos estrangeiros, sobretudo o brasileiro, por preços relativamente moderados, como também pelo grande atraso com que ultimamente têm sido executadas as encomendas de tabacos nacionais”.


Mostram-se os dois únicos documentos existentes anteriores a 1917, que estão no Arquivo Histórico do BNU, datam de 1911

O BNU em Lisboa pretende saber, em 1920, se deve abrir uma filial em Bafatá. Dir-se-á aqui antes de tempo que a questão da filial de Bafatá se irá arrastar até ao fim da presença portuguesa, em 1974.

A carta do gerente de Bolama avança com os seguintes esclarecimentos:

“Todas as casas importantes têm sucursais em Bafatá, há ali também alguns comerciantes estabelecidos, começando outros a estabelecerem-se para a região de Gabu.

Desde que ali fosse montada uma agência ou subagência, estamos certos que todas as casas que levantam fundos em Bolama e Bissau para operarem ali e que os enviam em embarcações, passariam a levantá-los em Bafatá. E, decerto, os pequenos comerciantes em vez de recorrem às sucursais das casas importantes ali estabelecidas recorreriam à nossa dependência. Esta teria sem dúvida um movimento com resultados compensadores.

A Província está hoje por completo pacificada e assim continuará devido a ter sido proibida há anos a importação de pólvora e a venda de armas ao gentio. O único régulo irrequieto era o Abdul Indjai, que conservava armas em virtude dos serviços prestados ao governo, mas desde que foi batido e expulso da colónia não mais se fala de possíveis rebeliões.
Bafatá dista de Bolama, por via terrestre, aproximadamente 170 quilómetros e por via fluvial aproximadamente 130 milhas; de Bissau por via fluvial dista 90 milhas também aproximadamente. Por terra vence-se a distância a cavalo em alguns dias de marcha, por via fluvial em lanchas à vela, pequenas embarcações a vapor e motores de explosão. As embarcações a motor podem levar 11 a 12 horas de Bissau a Bafatá, sucedendo às vezes levarem muito mais; as embarcações de vela 3 dias normalmente.

As demoras dão-se se não se navega em concordâncias com as marés.

Nos meses de Dezembro a Março só com a maré alta se pode passar no baixo entre Gam-Jarra e Geba.

Não nos consta que haja casa em que nos possamos instalar. Os fundos podem ser transportados com a mesma segurança que de Bissau para Bolama ou vice-versa”.

E envia para Lisboa um mapa indicativo do movimento marítimo de Bafatá, extraído de documentos oficiais, mas dizendo que não merece inteira confiança.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 13 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18841: Notas de leitura (1083): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (43) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18850: Notas de leitura (1084): “Máscaras de Marte”, por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18856: Historiografia da presença portuguesa em África (125): 1917: O BNU na Guiné e as convulsões republicanas (1) (Mário Beja Santos)


A Catedral de Bissau numa imagem de 1954, na obra de propaganda “Fotografias Guiné, Início de um Governo”, referente à chegada à Guiné do Governador Mello e Alvim.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Na documentação avulsa existente no Arquivo Histórico do BNU encontrei uma interessantíssima documentação saída do punho do Inspetor João Jacinto David que viera de Angola para analisar a situação do BNU em Bolama e observar de perto a instalação da filial de Bissau.
Apercebeu-se de várias coisas: os azedumes à volta do Governador Andrade Sequeira, que não terá deixado grandes estimas na Guiné naquele período de inquéritos a Teixeira Pinto e em que Abdul Indjai é já publicamente tratado como um vilão; e o gerente Moreira, de Bolama, parecia agir por conta própria, intimidava, o inspetor David faz-lhe a cama.
E há tumultos republicanos por aquelas bandas, como iremos ver mais adiante.


1917: O BNU na Guiné e as convulsões republicanas (1)

Beja Santos

Em 1917 o inspetor David vem de Benguela até Bolama, cabe-lhe inspecionar as contas e o funcionamento dessas instalações e apurar o que se está a fazer para instalar a agência de Bissau. É um período de enorme agitação: o governador, o Tenente-Médico Andrade Sequeira confronta-se com Teixeira Pinto e Abdul Indjai, a Liga Guineense divide-se em fações, perante a atitude do governador, Abdul Indjai é responsabilizado pelo chamado massacre de Bor, terá atraído uns régulos que mandou chacinar. A desunião entre republicanos também é evidente. Chegará um novo governador, o Coronel Manuel Maria Coelho. Convém não esquecer que em princípios de 1916 Portugal entrara na I Guerra Mundial.


Foi no Arquivo Histórico do BNU que encontrei algumas peças que melhor clarificam a história do Banco a partir de 1902 e revelam as lutas encarniçadas entre diferentes fações, tudo graças à profusa documentação que o Inspetor João Jacinto David vai enviando para Lisboa.




Vejamos os dados históricos que o Inspetor regista sobre o BNU no seu relatório:

“Durante os sete anos decorridos desde 20 de setembro de 1902, data em que foi aberta a agência, até 31 de dezembro de 1909, estiveram os negócios da agência confiados aos empregados do negociante A. S. Gouveia. No decurso daquele período de tempo, sofreu o Banco o prejuízo de 16 contos, sem que a agência prestasse qualquer serviço de especial apreço.
Reconhecendo a Exma. Gerência que semelhante situação era inconveniente e prejudicial aos interesses do Banco, resolveu, em louvável acerto, escolher o Sr. Victorino José Pereira para vir desempenhar o cargo de gerente.
Assumiu as funções do seu cargo em janeiro de 1910, instalando a agência em um modesto e mesquinho quarto no rés-do-chão do prédio onde funciona a Repartição de Fazenda, e por esta cedido gratuitamente por algum tempo.
Sendo deprimente e insuficientíssima uma tal instalação, deliberou a sede mandar construir um prédio para uso exclusivo da sua agência, adquirindo-se para o efeito em setembro de 1912 dois talhões de terreno em bom local.
Em abril de 1914, ajustou-se por escritura de empreitada com o carpinteiro António dos Santos e o pedreiro José Gaspar Júnior a construção do prédio por 19 contos. Mas quando a obra ia adiantada e o prédio estava em vias de conclusão (março de 1915), abateram as paredes, arrastando o telhado e destruindo quase todo o trabalho feito!
Não dispondo os empreiteiros de recursos para suportar o prejuízo, viu-se o Banco, pela força das circunstâncias, na necessidade de reconstruir o prédio à sua custa, despendendo quase o dobro da quantia primitivamente ajustada e gasta”.

A documentação do Inspetor David traz observações do maior interesse. Vejamos o que ele escreve de Bolama para Lisboa em 12 de março de 1917:
“Governador da Província Sequeira. Está ausente da província desde julho do ano passado e creio que não voltará a ocupar o cargo, tantas e tão sérias são as irregularidades apuradas na sindicância aos seus actos a que está procedendo o Governador-Coronel Manuel Maria Coelho. Pelo menos, assim me foi afirmado por pessoa de confiança e da intimidade do Coronel Coelho.
O Governador Sequeira foi um fraco que se deixou dominar por completo pelo círculo que o rodeava constantemente, nele incluído o Secretário do Governo Sebastião Barbosa. Operando todos juntos, tiveram a habilidade de intrigar o governador com quase toda a gente.
Para se avaliar do procedimento do Sr. Sequeira, bastará dizer que só agora estão sendo publicadas por ordem do Sr. Coelho as portarias dimanadas do Governo Central com data de Abril do ano passado, em que o Governador Sequeira é censurado asperamente e se dá razão a funcionários por ele perseguidos.
Parece-me que a uma autoridade dotada destes predicados que obriga o Governo a mandar à Província um oficial superior do Exército para sindicar dos seus actos falta autoridade moral para censurar ou se queixar seja de quem for, desde que se colocou uma situação deprimente de todos conhecida”.

O gerente de Bolama, nestes relatos, aparece como um cafajeste. O inspetor David junta ao seu relatório uma carta recebida em 5 de maio de 1917 do comerciante João Baptista Pimentel. Vale a pena proceder à sua leitura:
“Com o devido respeito e consideração, tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Ex.ª. um facto que se deu há pouco tempo, entre mim e o actual gerente dessa agência.
Indo eu no dia 2 do corrente a essa agência fazer um depósito da mesada da minha família, fui convidado pelo Sr. Gerente Moreira a falar com ele no seu gabinete.
Julgando eu que o referido gerente pretendesse falar comigo acerca de qualquer assunto comercial, acedi ao convite. Sem mais nem menos fez-me esta pergunta: ‘o senhor quer fugir ao contrato que fez com o Carvalho?’.
Porquê? – respondi-lhe eu.
Porque fez com o Carvalho um contrato de 150 toneladas de mancarra que não quer cumprir.

Então esclareci o caso, dizendo-lhe que tinha combinado em Bissau com o Sr. Carvalho (gerente da casa comercial Salomão, Pereira, Neves & Cª.) fornecer-lhe 150 toneladas de mancarra, sob a condição de não adiantar dinheiro suficiente para a compra desse produto, e que não tendo o Sr. Carvalho cumprido com o que me prometera, resolvi não lhe entregar senão a quantidade de mancarra equivalente ao débito que, antes da aludida combinação, eu tinha com a firma Salomão, Pereira, Neves & Cª.

Depois do Sr. Moreira reconhecer que eu estava resolvido a não entregar as 150 toneladas de amendoim ao Sr. Carvalho, apresentou-me um livro dizendo: ‘Sabe o que é isto?’ – ‘Olhe: isto é o livro negro, todo o nome que para aqui vier perde crédito no Banco, se o seu figurar aqui não só o Banco lhe corta o crédito como também a Casa Gouveia, a Companhia Agrícola dos Bijagós e Jansens.

A maneira autoritária e descortês com o que Sr. Moreira me dirigiu esta ameaça, levou-me a dizer-lhe que enquanto tivesse braços não precisava dos seus favores, nem do Banco nem de qualquer casa comercial que pusesse em dúvida a minha honestidade. Mais lhe disse ainda que não devia favores ao Banco nem tão pouco a ele, ao que me respondeu dizendo que eu devia favores ao Banco pois tinha levantado dinheiro aí.
Fiz-lhe então ver que pelo facto de essa agência me aceitar letras não me considerava devedor de favores do Banco, mas sim ao sacador.

Nunca julguei, Sr. Inspetor, que o Sr. Moreira na qualidade de gerente pudesse arvorar-se em advogado de qualquer estabelecimento com o fim de me censurar ou vexar.
A má vontade do Sr. Moreira para comigo vem de longe, porque, possuindo eu bens no valor superior a 6 contos, não tem aceitado letras de valor de 150 escudos quando me prontifico a servir de sacador. V. Ex.ª., crendo, pode examinar os documentos existentes nos arquivos dessa agência para se certificar que nunca foi protestada qualquer letra minha.

Em 1916 paguei nessa agência 7.800 escudos; de janeiro a abril do corrente ano paguei ao Banco mais de 6 contos de fornecimentos enviados de Lisboa, apesar da grande crise que atravessa esta Província.
O actual gerente, ao que parece, jurou aos seus manes vingar-se de mim.
De quê? – Não sei.
Desculpe-me V. Ex.ª. a incorrecção das frases e o incómodo que lhe dei, prendendo por alguns momentos a sua atenção”.

A partir de junho, nos documentos enviados pelo inspetor David, o gerente Moreira será posto num banco de réus.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18835: Historiografia da presença portuguesa em África (123): Sobre as fortalezas da Guiné e da África Oriental, pelo Capitão Henrique C. S. Barahona; Typographia do Commércio, 1910 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18279: Notas de leitura (1037): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (20) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Vive-se um período histórico que a historiografia mais comum considera tratar-se do fim das sublevações. Ver-se-á para um documento aqui incerto que há muito de ilusionismo. Bolama entrou numa desagregação irreversível, já há serviços importantíssimos em Bissau, somos igualmente informados que prossegue a penúria do papel-moeda e que há muito desânimo agrícola no Sul.
Ainda há quem confie que as obras no ponte-cais de Bolama alevantará a cidade, insiste-se na importância da ponte sobre o Corubal, velho sonho para interligar os Bijagós ao continente e este às dependências francesas.
Cresceu o número de civilizados, segundo o último censo e a presença de negociantes sírios assume o maior relevo.
Na consulta dos primeiros copiadores do BNU de Bolama, hoje praticamente indecifráveis, encontrei no cadastro dos clientes nomes como o do pai de Amílcar Cabral, os Saiegh e os Buscardini, funcionários e comerciantes implantados em várias regiões. Uma curiosidade e nada mais.

Um abraço do
Mário



Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (20)

Beja Santos

Ao vigésimo episódio do levantamento documental sobre o BNU da Guiné, importa fazer um ponto da situação. O BNU abre uma delegação em Bolama, capital da colónia, em 1903. No Arquivo Histórico do BNU não existe qualquer documentação anterior a 1917, ano em que é constituída outra delegação em Bissau. Daí a ausência de documentação sobre questões fundamentais, como é o caso da entrada da colónia na I Guerra Mundial ou referências às campanhas do Capitão João Teixeira Pinto. Cedo se irá verificar uma crescente rivalidade entre a delegação e a filial, Lisboa ver-se-á obrigada a delimitar as áreas de atuação. A generalidade dos comentários críticos ou hipercríticos assinados pelos responsáveis do BNU em Bolama ou Bissau transcendem o entendimento da comunicação hierárquica, devia haver um protocolo discreto que autorizava os gerentes a contarem com detalhe em minúcia o que julgavam de mais relevante e da socioeconómica e política da colónia. Daí a infinidade de verbetes a anunciar partidas e chegadas, a comunicar o exílio de Abdul Indjai ou o que um gerente em Bissau chama a vida imoral do Governador Carvalho Viegas. Os gerentes não se podiam imiscuir na política e a prova disso é uma carta enviada em 31 de Março de 1931 por Vieira Machado para o gerente de Bissau:

“A propósito do incidente ultimamente ocorrido entre vossas senhorias e o senhor intendente dessa cidade, de novo recomendamos que ponham de parte todas as suas inimizades pessoais, sempre que se trate de assuntos que se prendam com o banco, que não queremos ver envolvido, de longe ou de perto, em semelhantes assuntos.

Também mais uma vez – que esperamos que seja a última – proibimos vossas senhorias de se imiscuírem na política local, a que devem ser de todos alheios, evitando, assim, escusadas desinteligências ou conflitos com quer que seja.

Procurar viver no melhor entendimento com todos, deve ser a constante preocupação de vossas senhorias, deste modo se poupando e poupando o banco a quaisquer dissabores”.

Têm pois os gerentes rédea solta para contar o que julgam de mais significativo, e escusado é dizer que tais apontamentos, pelo seu ineditismo, dão um forte contributo à caraterização da vida da colónia, à evolução dos mercados e ao timbre, em diferentes ângulos, do que era a presença portuguesa desde a I República ao Estado Novo. Acresce que o leitor deve estar informado que há relatórios em falta, dados que são nalguns casos supridos pela documentação avulsa que é possível consultar neste arquivo histórico. E postas estas considerações, voltemos a 1934. A filial de Bolama, a propósito da situação da Praça recorda que de há muito se pensa em transferir para Bissau a capital, ali já se encontram as direções dos serviços do Estado, na sua maior parte. E logo observa que disso se ressentiu a Praça de Bolama, pois o comércio local perdera uma grande parte dos seus clientes com a saída de tão grande número de funcionários. A vida comercial desta Praça estava eriçada de dificuldades devido principalmente à falta de papel-moeda. Como é comum observar-se nestes relatórios, alude-se à situação das colheitas, e o que se diz é para registar:

“A colheita da mancarra na zona de Bolama, por via de regra, é tardia. Começa em fins de Dezembro e prolonga-se até à segunda quinzena do mês de Abril. Os maiores agricultores são Brames e Manjacos, os quais, por sua vez, tarde começam as lavouras. Os Beafadas e os Mandingas que habitam as regiões de Quínara e Cubisseco também se dedicam a lavoura da mancarra, mas em escala muito reduzida, visto que, uns e outros, por índole, são excessivamente ralassos (mandriões).
A colheita deste ano deve ser fraca porque os agricultores indígenas desanimados em fase dos reduzidos preços do anterior, quase que se desinteressaram da cultura desta oleaginosa.
A colheita do coconote começa agora e estende-se até ao princípio das chuvas. No fim destas também se faz a sua apanha, mas já em menor escala.

Presume-se que a colheita do arroz, em que já entrámos, seja mais abundante do que a do ano passado, por alguns indígenas terem abandonado a cultura da mancarra, dando preferência à do arroz”.


Não é incomum estes relatórios incluir uma panorâmica das obras em curso, desde as redes viárias as instalações portuárias. Informa que está preconizado o prolongamento da ponte-cais de Bolama para a acostagem direta de navios de longo curso. E não esconde a expectativa deste melhoramento: “É opinião unânime que o prolongamento na extensão de 15 a 20 metros resolveria o problema na acostagem de vapores, com manifesta vantagem para o desenvolvimento e facilidade do tráfego entre a capital da colónia e os restantes portos da Guiné e da metrópole”.

Neste relatório, o gerente inclui dados do censo da população segundo o recenseamento de 1933-1934-1935. Em termos de população “civilizada” teríamos 6 mil indivíduos e a população indígena ultrapassaria os 409 mil habitantes. E avança um elemento curioso: o número de indivíduos da raça branca aumentara em 256 em relação ao censo de 1928. Um terço destes civilizados é constituído por estrangeiros com especial destaque para os sírios.

Na ausência de dados sobre a vida da colónia em 1931, avança-se para uma carta do gerente de Bissau para Lisboa com dada de 10 de Janeiro de 1936, referente a revolta da ilha Canhabaque:
“Parece que o governo da colónia pretende acabar de vez com o foco da revolta ou rebeldia que naquela ilha desde há muito existe, ou só durante pouco tempo deixou de existir.
O indígena de Canhabaque não tem pago imposto de palhota e não manifesta pelas nossas autoridades grande respeito, ao que se afirma.

Precisa de uma lição-mestra, mas só colhido de surpresa se lha pode dar. Com o aparatoso espetáculo de mobilização de regulares e de irregulares, não pode resultar nada de útil, porque o indígena, sabendo como sabe sempre tudo quanto lhe interessa e conhecendo como conhece a inferioridade do seu armamento, não chega, por via de regra, a ter contacto com as forças do governo. Trocam-se meia dúzia de tiros em emboscadas, as tropas regulares gastam milhares de cartuchos e centenas de contos e no fim a ação militar limita-se a umas tantas palhotas incendiadas. Porque homens, gados e outros haveres, tudo se passa para as restantes ilhas do arquipélago, consideradas pacíficas ou para o continente, para a região do Cubisseco.

Começou há dias a acção militar na ilha de Canhabaque e logo de início, ao quinto tiro de uma peça de artilharia esta rebentou tirando a vida ao Sargento Correia, que a comandava. Parece que há mais uma ou duas dúzias de feridos, não surpreendendo que o tenham sido pelos próprios irregulares.

Dizem os entendidos que a melhor época para o ataque a ilha é a do começo das chuvas, porque nessa altura todo o indígena ali regressa para tratar da lavoura. Afirma todos que nessa época e com o barulho que se está a fazer em volta de um mero caso de polícia, resultara nula toda a acção governativa porque os Bijagós, avisados a tempo, limitar-se-ão a deixar na ilha meia dúzia dos mais atrevidos, que dispararão à queima-roupa, bem escondidos no mato, ou em covas disfarçadas, abertas no chão e em lugares apropriados, que lhes permitem fuga imediata. Portanto, a ocupação ou a batida da ilha não será grande feito nem precisará de grandes heroísmos; mas, acabada a “guerra”, serão propostas as medalhas para os heróis, a ilha ficará guarnecida por dois ou três postos militares, com ajudas de custo para os comandantes e os Bijagós regressarão com manhosa submissão e continuarão a ser senhores da ilha.

Tem sucedido sempre assim e a história repete-se.

É por isso que os que conhecem a Guiné são da opinião que só resultaria útil uma acção rápida e inesperada – a acção que, de preferência, se realizaria em princípio das chuvas, por dois motivos principais: primeiro, porque facilmente se poderiam castigar os rebeldes, apanhados em conjunto; segundo, porque se lhes reduziria o poder guerreiro devido à humidade da pólvora que eles guardam em recipientes de barro.

Quanto a nós, temos opinião diferente.

Somos de parecer – mero modo de pensar de um homem pacífico que nada sabe de guerras – de que a melhor altura para reprimir estes pequenos actos de rebeldia é sempre após os actos praticados, colhendo de surpresa os rebeldes.

Com grandes preparativos e mobilização aparatosa de irregulares, é dar ao indígena a impressão de que o governo só por só não tem força para reprimir uma revolta. E o pior é que os próprios auxiliares, a breve trecho, se podem capacitar que é mesmo assim, e o resultado desse convencimento pode acarretar consequências desagradáveis”.

Enfim, os gerentes não eram abstémios em contar o que viam ou ouviam e este documento deixa outra prova, a que segue:

“Há dias, qualquer mal-intencionado dos muitos que vivem pelas colónias, perguntava-nos se já tínhamos reparado na coincidência curiosa de se darem sempre actos de rebeldia quando os postos militares na Guiné não eram comandados por oficiais. Que nunca tínhamos reparado, respondemos-lhes. Pois repare e verá que é assim. Se um oficial está no posto, acrescentou, o indígena paga o imposto com mais ou menos dificuldade, mas paga; o oficial sai e o indígena recusa-se a pagar, desrespeita a autoridade, envenena as águas, fere ou mata um ou dois soldados. E, ao despedir-se, dizia-nos ainda o nosso interlocutor que o indígena não gosta de pagar impostos em duplicado”.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 26 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18255: Notas de leitura (1035): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (19) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18266: Notas de leitura (1036): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17819: Historiografia da presença portuguesa em África (95): A intriga política na Guiné, 1915-1917 (Armando Tavares da Silva, historiador)


João Teixeira Pinto (1908), cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Foto gentilmente cedida pelo Prof. A. Teixeira-Pinto, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).(*)
 
Foto (e legenda) : © A. Teixeira-Pinto (2007). Todos os oireitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva, historiador:

Luís,

Quem se interessar em conhecer o que foi a vida política na Guiné a seguir à campanha de Teixeira Pinto em Bissau em 1915 e as circunstâncias que vieram a originar um processo de sindicância realizado por Manuel Maria Coelho a mando de António José d'Ameida, desejará ler o texto anexo. Foi o que se me proporcionou após a leitura do post P 17807 de Beja Santos.(*)

Abraço
Armando





Capa do livro de Armando Tavares da Silva. “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.)


2. A Política na Guiné, 1915-1917

por Armando Tavares da Silva

Os antecedentes que levaram o governador Andrade Sequeira a abandonar a Guiné a 11 de Julho de 1916 estão largamente referenciados e descritos em “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926”. E aí se encontra muito mais informação do que aquela transmitida para Lisboa pelo gerente do BNU em Bolama, que Beja Santos transcreve no seu Post n.º 17807 de 29 de Setembro.  (**)

[José António] Andrade Sequeira  [.Portalegre, 1876 - Portalagre, 1952, capitão-tenente médico naval,] tinha feito graves acusações a Teixeira Pinto sobre a forma como decorrera a campanha de Bissau de 1915, e acontecimentos subsequentes.

Estas acusações foram submetidas à apreciação do vice-almirante na reforma Guilherme Augusto de Brito Capelo  [1839-1926] que, relativamente às mesmas, promoveu vários inquéritos e diligências, tendo ouvido, além do próprio Teixeira Pinto, anteriores governadores, entre eles Josué d’Oliveira Duque, sob cuja governação tinha decorrido a campanha de Bissau. (***)

Será em resultado do parecer de Brito Capelo que António José d’Almeida, na altura presidente do ministério e ministro das colónias, elabora um projecto dispensando Teixeira Pinto das provas de major. E, ao conhecer por telegrama de 1 de Julho este projecto, Andrade Sequeira responde ao ministro considerando que tal projecto demonstrava que tinham sido consideradas “inanes e talvez caluniosas” as acusações que fizera a Teixeira Pinto. Considerando-se numa situação “crítica e melindrosa” pedia que se fizesse “toda a luz” sobre os documentos da última campanha e que determinasse responder em conselho de guerra “a fim de ser punido quem caluniou ou quem prevaricou”. Neste caso confiava que lhe seria dada previamente a demissão. E a 11 de Julho de 1916 Andrade Sequeira abandona a Guiné seguindo no paquete para Lisboa.

Em Lisboa, Andrade Sequeira pede ao ministro um rigoroso inquérito “a fim de se averiguarem abusos vários praticados na colónia” e que ele ”sobejamente” documentara em seus relatórios. E para que o ministro ficasse inteiramente à vontade solicita-lhe a sua exoneração, que é recusada. 

António José d’Almeida [Penacova, 1866- Lisboa, 1929] manda então que o coronel Manuel Maria Coelho investigue na própria província “as irregularidades que porventura tenha havido, discriminando as respectivas responsabilidades”, e que ao mesmo tempo se abra um ”rigoroso inquérito sobre a vida pública da mesma província, para assim se esclarecerem tantas e tão variadas queixas”, que haviam chegado ao ministério das colónias.

Enquanto Andrade Sequeira permanece em Lisboa, Manuel Maria Coelho [Chaves, 1857-Lisboa. 1943] é investido em Janeiro de 1917 no cargo de governador interino e tomará as medidas várias que entendia necessárias para realizar a sindicância de que fora incumbido e ouvir as queixas e participações de quem pretendesse fazê-las. O relatório dessa sindicância é terminado a 2 de Julho de 1917 e a essência do seu conteúdo e conclusões é extensamente referida no livro acima indicado [, “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)”].

Importa aqui referir que nos comentários produzidos sobre este livro no Post n.º 17591 de Beja Santos (****) e referentes à presença e actuação de Manuel Maria Coelho na Guiné em 1917, apenas é referido que este “envolver-se-á numa teia de acusações a uma coluna de polícia à ilha de Canhabaque”. Beja Santos esqueceu-se ou não reparou na importância da sindicância realizada por M. M. Coelho e suas conclusões, não a mencionando no referido Post. Porém, tendo-se dela conhecimento e havendo sobre a mesma uma extensa documentação,  não poderia ela ser olvidada, sob pena de se estar a privar o leitor do conhecimento de um conjunto importante de factos políticos determinantes na vida da colónia. Por isso eles estão relatados com objectivos de rigor e imparcialidade tal como o mostra a documentação existente.

Igualmente no mesmo livro são extensamente expostas as acusações que Andrade Sequeira faz a Teixeira Pinto, já acima referidas, assim como a defesa do próprio e os depoimentos de todos os que foram ouvidos sobre essas mesmas acusações, tendo igualmente como fonte documentação exclusivamente pública. É o relatório de Brito Capelo de 28 de Abril de 1916 que conclui que as acusações que lhe foram dirigidas pelo governador Andrade Sequeira não tinham fundamento e que, se “houvera erro”, a responsabilidade quanto à campanha era do governador Duque.

Também todas estas circunstâncias, pela sua importância na caracterização da vida política e social da Guiné, não poderiam deixar de ser relatadas, havendo delas conhecimento. E para quê, se assim não tivesse sido? Para se evitar ser acusado de se estar a “chamar a si a defesa do bom nome de Teixeira Pinto” – defesa esta que era independente do reconhecimento do “acervo de acusações” de atrocidades cometidas por Abdul Injai e os seus homens na campanha de Bissau? 

Para se ocultar o conhecimento do clima de intriga e conflitualidade política existente na Guiné – como de resto a carta do gerente do BNU acima referida claramente indicia? Para se ocultar os “tristes e graves sintomas da situação moral de uma parte do funcionalismo que cerca o governador”, que deveria prestar-se a “um procedimento imediato e enérgico”, e que poderia comprometer a “segurança da colónia” – como refere o parecer de Brito Capelo?


Foto de Abdul Injai em 1915, herói do Oio, no auge da sua glória. 

Sobre a vida política da colónia e as várias facções de que se compunha a sociedade guineense, também se refere o relatório da sindicância de M. M. Coelho, que constituía, de resto, um dos objectivos da missão que lhe fora confiada. Verificara que a presença do elemento cabo-verdiano desempenhava aí grande influência. Era o pano de fundo sobre o qual tudo se tinha passado e que, em parte, o explicava. 

Essas facções habitavam os dois principais centros: Bolama, onde estava o funcionalismo, e Bissau, importante pelo comércio aí estabelecido. A “guerra aberta” em que se transformou o conflito entre Andrade Sequeira e Teixeira Pinto, em que se misturavam “ambições, invejas, ódios, punha em evidência dois males terriveis a que era indispensável prover remédio; o fermento de rebelião do indígena, alimentado pela falta de patriotismo dos elementos cabo-verdianos, que vivem, alastram pela Guiné e a exploram, e a conivência de funcionários europeus e europeizados nessa absorção da província por elementos de sentimentos patrióticos mais que duvidosos, quais são esses cabo-verdianos”. 

 Manuel Maria Coelho identificava claramente a existência de dois partidos: o “partido dos cabo-verdianos e de poucos europeus, de que Andrade Sequeira se fêz chefe e protector, e [o] dos europeus e, felizmente alguns cabo-verdianos, que se agrupavam ao redor do nome de Teixeira Pinto”.

Parece, de resto, que a Guiné sempre viveu num clima de intriga: são várias as referências de governadores à existência de intrigas, quer nas disputas entre régulos, quer por elementos estrangeiros, que assim perturbavam o curso da administração da província.

Manuel Maria Coelho (em 1910).
Cortesia de
Casa Comum / Fundação Mário Soares
O relato dos acontecimentos de Bissau de 1891, da sua razão de ser, das diligências tendentes a compreender e explicar a sua origem e a subsequente procura da paz e harmonia, está cheio de referências a “intrigas”. Em 1891 o governador estava convicto de que as hostilidades entre as duas tribos papéis da ilha de Bissau, Intim e Antula, se deviam às ”intrigas dos habitantes da praça”, que “formando dois partidos” entre os beligerantes ”alimentavam a guerra”. 

O mesmo governador dirá que “o gentio branco e mulato (filhos da ilha do Fogo, principal colónia em Bissau) estão [...] mancomunados com os gentios e grumetes para nos desrespeitarem e desacatarem a autoridade; e os estrangeiros colaboram neste vil procedimento”, fim para que se serviam de “intrigas de toda a ordem”. E na procura de nomes dos instigadores do clima de desconfiança, um grumete afirma que “se fossem só portugueses e não do Fogo os que estavam na praça, não havia nunca guerra, nem com os grumetes, nem com Intim”. (*****)

Parece que a “intriga” é, ainda hoje, algo sempre presente na vida pública da Guiné-Bissau: quem assistir a reuniões em que se discute a sua situação política e administrativa poderá ouvir com alguma frequência pronunciar-se a palavra “intriga”.

Armando Tavares da Silva
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  20 de março de 2007 > Guiné 63/74 - P1615: Historiografia da presença portuguesa em África (5): O Capitão Diabo, herói do Oio, João Teixeira Pinto (1876-1917) (A. Teixeira-Pinto)

Vd. também  7 de abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8057: Notas de leitura (226): João Teixeira Pinto, A Ocupação Militar da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

(...) Aqui se dá por terminado o relato das 4 campanhas de Teixeira Pinto entre 1913 e 1915.

A pacificação foi um facto, mas só se deu por concluída em 1936. Teixeira Pinto irá morrer no combate de Negomano, frente aos alemães, em 26 de Novembro de 1917.

Abdul Injai irá cair em desgraça e será deportado. Todo este episódio da campanha de 1915 decorre já numa atmosfera de envenenamento que preludia as calúnias sobre o grande herói Teixeira Pinto. Lastimavelmente, todos estes episódios históricos estão mal estudados, parece que a Guiné só ganha importância aos olhos do historiador com a chegada do comandante Sarmento Rodrigues. Coisas da história. (...) 


sábado, 29 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17628: Historiografia da presença portuguesa em África (83): Um testemunho sobre a deportação de Abdul Indjai em 1919 (Mário Beja Santos)

Abdul Injai
Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
O Gabinete de Património Histórico da Caixa Geral de Depósitos possui todo o riquíssimo arquivo do BNU. Por ali ando, a ler relatórios e documentação avulsa, nesta primeira fase circunscrito a agência de Bolama.
Esta agência entrou em funções em 1903 e funcionou até ao fim da capital em Bolama, 1941. A documentação que eu tenho consultado começa na I Guerra Mundial, e presta-se a vários tipos de surpresas. O que há de mais surpreendente é, sobretudo na fase em que a agência de Bolama corresponde a um período vigoroso da vida da capital e do seu comércio, as apreciações por vezes chocantes do gerente, não no relatório mas num anexo, é de admitir que fosse para leitura confidencial, no topo da administração em Lisboa, esta devia autorizar o uso de terminologia quase bombástica ao relator.
E este ofício com informação sobre a deportação de Abdul Injai é uma bela peça, é com muito orgulho que vos apresento o seu teor.

Um abraço do
Mário


Sobre a deportação de Abdul Injai em 1919, um testemunho

Beja Santos

A minha mais recente investigação dá-me imensas satisfações, junto tudo o que posso e o que de pertinente encontro escrito a partir da agência em Bolama do BNU, asseguro-vos que há para ali documentação relevante, necessariamente para ser compulsada com outras fontes documentais.

Há um ponto enigmático do funcionamento daqueles relatórios para o qual ainda não encontrei justificação plausível. O gerente prepara um copioso relatório que descreve o ano financeiro, as letras protestadas, os créditos, o dinheiro estrangeiro, o mais que se sabe. Findo este documento segue-se um anexo onde por vezes encontramos comentários chocantes, frases desbocadas, apreciações eminentemente políticas. Devia haver um protocolo interno em que a administração em Lisboa solicitava comentários discretos ao gerentes, seria uma forma dos decisores, ao nível do topo da administração, conhecerem, caso a caso, o que corria bem e mal na colónia, tinha ali materiais para previsão, especulo eu.


Aqui há uns dias foi lançado um mote sobre o mais que controverso Abdul Indjai, cada um de nós deu as suas razões. Pois nas minhas andanças acabo de encontrar com data de 25 de Agosto de 1919 um documento dirigido a Lisboa, tendo como assunto “Guerras”. Vejamos o teor do ofício enviado pelo gerente:
“Tendo-se revelado o régulo Abdul Indjai da região do Oio, foi batido pelas forças do governo e aprisionado bem como os seus conselheiros. Estão já em Bolama.
Este régulo era um dos de mais prestígio na Guiné e de nomeada pelos atos de banditismo praticados, que se estendiam até dentro do território das colónias estrangeiras fronteiras à nossa, o que em tempos deu lugar a reclamações diplomáticas por parte dos governos francês e inglês. Há anos que foi batido e deportado para S. Tomé, conseguiu, quando passou por ali em viagem às colónias o falecido Príncipe Real D. Luís Filipe, ser indultado, regressando à Guiné.
Quando das operações levadas a efeito para bater os papéis o governo utilizou os seus serviços, tendo desempenhado então papel preponderante e exercendo todos os excessos sobre os vencidos e pilhando algumas milhares de cabeças de gado.
Acabada a campanha não se julgou suficientemente pago, ficou com armas e vinha de exigência em exigência rebelando-se contra o governo. Dotado de grande astúcia e muito inteligente, chegou a impor ao governo que lhe fosse dada uma percentagem sobre todo o imposto de palhota cobrado atualmente nas regiões que ele ajudou a bater, substituição de oficiais e sargentos em determinados postos e ainda outras exigências. Ultimamente preparava-se para tomar Farim e vir até Bissau. O comércio estava já temendo que com ele fizessem causa outros régulos, quando numa feliz operação foi cercado e aprisionado. Morreu um alferes e algumas praças indígenas.
Da parte dos rebeldes houve algumas centenas de mortes não só devido aos tiros da artilharia como ao corte de cabeças feitos pelos auxiliares e pelo gentio que vinha sofrendo os rigores da gente do régulo preso. 
Depois deste feliz resultado desenhou-se porém um certo movimento político contra o governador, capitaneado segundo dizem pelo Major Médico Francisco Regala, que faz serviço em Bissau, que veio aqui, levando alguns membros do Conselho do Governo a votarem contra a expulsão da colónia, do régulo, e ser antes submetido a julgamento dos tribunais. Este julgamento seria demoradíssimo e talvez impossível pela dificuldade de se cumprirem determinadas formalidades judiciais, parecendo que havia só o intuito de protelar a questão com fins políticos. O certo é que o Conselho em sessão consultiva votou por maioria que fosse entregue aos tribunais e não expulso. Este facto causou certo alarme entre o comércio pois a permanência na província do prisioneiro era certamente a repetição dos factos ocorridos e um incitamento para outros régulos.
Hoje reuniu de novo o Conselho do Governo em sessão deliberativa, e talvez porque alguns chefes de serviço reconhecessem o caminho errado que iam seguindo com politiquices contra o governador, acompanharam os vogais eleitos votando por maioria a expulsão da colónia por 10 anos, máximo período que a carta orgânica permite, fixando-lhe para cumprimento do desterro, por proposta do Governador, a ilha da Madeira”.

Em rigor, Abdul Injai parte para Cabo Verde e ensaia a sua defesa, adoece e ali morre, nunca chegou a ir à ilha da Madeira. Este testemunho evidencia os excessos a que se entregou um homem que foi figura determinante nas campanhas de Teixeira Pinto, acirrou ódios nas populações, intimidou a administração, inquietou os comerciantes, ficou literalmente só como qualquer tirano descontrolado. Um testemunho destes vale pelo que vale, nunca pode ser tomado como verdade axiomática, há que comparar, envolver outros testemunhos até encontrar a resposta mais imparcial possível, com base no juízo crítico do cientista social. É assim que se faz a História.
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Nota do editor

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sexta-feira, 21 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17609: Historiografia da presença portuguesa em África (82): o caso de Abdul Injai: "Roma não paga a traidores" (António J. Pereira da Costa).... "mas Lisboa e Paris também não" (Cherno Baldé)... Ainda comentários de Hélder Sousa, Mário Beja Santos e Nuno Rubim



Foto de Abdul Injai em 1915, herói das "campanhas de pacificação",  no auge da sua glória, tenente de 2ª linha, régulo do Óio e do Cuor



1. O nosso editor LG mandou um email a alguns dos nossos amigos e camaradas que se interessam mais por temas de história, que se reproduz a seguir, seguir dos comentários recebidos (*)

Assunto - Abdul Injai: quem foi afinal ? Herói ou vilão ? Nacionalista ou mercenário ? Cabo de guerra ou bandido ?...

Amigos e camaradas:

Lembrei-me dos nomes de alguns de vocês porque se interessam pela história da Guiné-Bissau e de Portugal e pelas "pontes" que temos vindo a construír juntos...

Infelizmente não temos muitos "interlocutores" na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, nem sequer muitos amigos e camaradas, na Tabanca Grande, que se interessam pela historiografia da presença portuguesa em África...

Estes são temas "maçudos", para muitos dos nossos leitores, que obrigam a ler e a refletir, e que não são compagináveis com o formato Facebook, Reader's Digest, Correio da Manhã e similiares...

Ficamos gratos, os editores do blogue, àqueles de vocês que quiserem e puderem acrescentar algo mais (nem que seja duas linhas...) ao nosso limitado conhecimento sobre esta figura, "tão lendária quanto controversa", que foi o Abdul Injai, "companheiro de armas" do capitão Teixeira Pinto, tenente de 2ª linha, régulo do Oío e do Cuor, e que acabará por morrer no desterro...

Todos os heróis, santos e similares são controversos, por que são "mais do que homens e menos do que deuses"...

Seguindo a linha editorial do blogue, não diabolizamos nem santificamos ninguém, do Teixeira Pinto ao Amílcar Cabral, do Alpoim Calvão ao 'Nino' Vieira...São figuras históricas que fazem parte da nossa galeria de referências e memórias...

Um abraço e boas férias, se for caso disso. Mantenhas. Luís Graça

18 de julho de 2017 às 14:30


2. Comentário de Mário Beja Santos

Luís,

 Vale sempre a pena retomar a análise de personalidades históricas face às quais não existe o crivo da imparcialidade, como é o caso do régulo e chefe da guerra Abdul Indjai. 

Quem vai mais longe no seu estudo é Armando Tavares da Silva em "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926" (Caminhos Romanos, 2016). Vale a pena ler o que o investigador refere deste herói caído em desgraça. Logo em 1906 Abdul Indjai, por ordem do governador Almeida Pessanha vê dissolvido o seu bando de homens armados, Abdul é preso e deportado para S. Tomé.

 Por ocasião da visita do príncipe real D. Luiz Filipe a S. Tomé em Julho de 1907, Abdul terá obtido do príncipe permissão para regressar à Guiné. Será figura cimeira ao lado de Oliveira Muzanty nas campanhas de Badora e Cuor, Infali Soncó procurara uma sublevação com outros régulos, tornou mesmo o Geba intransitável, o que obrigou as autoridades de Lisboa a autorizarem uma impressionante mobilização de topas europeias, moçambicanas e muitíssimos auxiliares guineenses. Nunca se vira no Geba tantos brancos tantas lanchas, tantos canhões, tantos animais de tiro. Infali deixou uma imagem desgraçada no Cuor, anda sempre cercado pela sua tropa de choque, expolia, sequestra, reduz à servidão, é um tiranete.

Calvet de Magalhães, administrador de Bafatá, vê nele [, Abdul Injai,] o homem certo para apoiar Teixeira Pinto. Abdul Injai ganha uma fama terrível, no que permite matar e destruir e roubar. O poder, enquanto régulo do Oio, ter-lhe-á chegado à cabeça, desrespeita as autoridades administrativas, preparou um brutal confronto que o levará ao desterro, irá morrer em Cabo Verde, sem antes, porém, ter procurado levar por diante um processo que conduzisse ao seu julgamento. 

A minha opinião, Abdul Injai pertence ao rol de figuras que atingiram um certo pico de glória ou fama, como Marques Geraldes ou Graça Falcão e que tiveram depois a faculdade de se atirar para o abismo. Dir-se-á sem hesitação que foi a figura fulcral nas campanhas de Teixeira Pinto e que o seu rasto de prepotências, extorsões, violências sem controlo o precipitaram na desgraça, tornou-se no antigo herói de comportamento intolerável que importava deixar ao abandono.

19 de julho de 2017 às 11:00


 3. Comentário de António J. Pereira da Costa

Olá,  Camaradas

Há quem diga que "Roma não paga a traidores" e eu acrescento "e não consta que o venha a fazer brevemente", mas isto sou a pensar...

19 de julho de 2017 às 12:13

["Roma não paga a traidores" é uma expressão que a voz do povo, ou seja, o mito, a lenda, atribui ao general romano Quinto Servílio Cipião, vencedor dos Lusiatanos (139 a. C.), aos carrascos de Viriato, seus companheiros, quando vieram reclamar o prémio prometido pelos conquistadores romanos. (LG)]


4. Comentário de Hèler Sousa

Olá

O António José tem razão.... mas pode acontecer que os "traidores" não o cheguem a ser.... podem ser dedicados cúmplices!

19 de julho de 2017 às 14:46



5. Comentário de Cherno Baldé


Caros Amigos,

O Abdul Indjai foi homem da sua época, época de uso da força pela forçaa, da prepotência, da violência extrema para dominar e sujeitar o homem à razão do mais forte.

Pedir ou exigir ao Homem (Abdul Indjai=desenraizado-guerreiro-aventureiro++) que fosse razoável e correcto no exercício das funções da Regência de populações civis, que em África, apesar de selvagens e primitivos, era uma função hereditária e de longa e metódica preparação, a semelhança do que se passava no "Velho Continente", era confundir o Deus com o Diabo.

O que aconteceu ao Abdul Indjai já tinha acontecido ao Alfa Iaia, Chefe do Labé (Futa-Djalon) em finais do Sec. XIX. Os Franceses para conquistarem o território do Futa-Djalon (cobiçado por Franceses, Ingleses e Portugueses), precisavam de uma aliança interna para conquistarem o poder e foi o Alfa Iaia que foi habilmente utilizado,  para depois o afastarem com um pretexto idêntico ao usado pelos Portugueses para afastar o Abdul Injai.

Sim,  senhora. "Roma não paga a traidores", também Lisboa e Paris, idem, aspas...  Da mesma forma que não se pode esperar que o Lobo seja um excelente pastor de ovelhas.

Como se não bastasse, a história voltaria repetir-se com o não menos famoso caso do gen. Brik-Brak, aliás Ansumane Mané, quem é que não se lembra?

Um abraço amigo,
Cherno AB

6. Comentário de Nuno Rubim:

Caro Luís Graça

Este é um dos casos em que julgo que cada um deve tirar as sua próprias conclusões depois de consultar obras sobre o assunto.

No acervo do AHM [Arquivo Histórico Militar]  que te envio, a obra de Teixeira Pinto é fundamental, mas Pélissier constitui para mim a obra mais objectiva e isenta.

- A Ocupação Militar da Guiné, Lisboa: Agencia Geral das Colónias, 1936

- História da Guiné, René Pélissier,  trad. Franco de Sousa, Lisboa: Estampa, 2001, 2 v

21 de julho de 2017 às 08:03
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Nota do editor:

(*) Vd. último poste de 18 de julho de  2017 > Guiné 61/74 - P17596: Historiografia da presença portuguesa em África (81): quem foi Abdul Injai, companheiro de armas do capitão Teixeira Pinto, nas 'campanhas de pacificação' de 1913-1915, e por ele promovido a tenente de 2ª linha, régulo do Oio e do Cuor ?... Herói ou vilão ? Mercenário ou nacionalista ? Aliado ou inimigo ? Cabo de guerra ou bandido ?

terça-feira, 18 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17596: Historiografia da presença portuguesa em África (81): Quem foi Abdul Injai, companheiro de armas do capitão Teixeira Pinto, nas 'campanhas de pacificação' de 1913-1915, e por ele promovido a Tenente de 2.ª linha, régulo do Oio e do Cuor?... Herói ou vilão? Mercenário ou nacionalista? Aliado ou inimigo? Cabo de guerra ou bandido?


Foto de Abdul Injai em 1915, herói do Oio, no auge da sua glória. 


1. O nome do "lendário" e "controverso" Abdul Injai, "companheiro de armas" do capitão Teixeira Pinto (1913-1915), tem aparecido aqui, amiudadas vezes, nos últimos tempos, a propósito quer da divulgação do livro "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é hoje", da autoria do 2.º sargento reformado António dos Anjos (edição de autor, impresso na Tipografia Académica, Bragança, 1937), quer da publicação das notas de leitura do livro do nosso grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva , “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926” (Porto, Caminhos Romanos, 2016).

Afinal, quem foi Abdul Injai (ou Indjai ou Njai), nascido no que é hoje o território do Senegal, de etnia uolofe,  muçulmana (, etnia maioritária do Senegal atual)? Herói ou vilão? Mercenário ou nacionalista?  Aliado ou inimigo?  Cabo de guerra ou bandido? Alguns guineenses não hesitam em pô-lo hoje  na galeria dos seus  heróis, nacionalistas, ao lado dos "combatentes da liberdade da pátria".

Sabe-se que em 25 de novembro de 1914, Abdul Injai, já régulo, foi nomeado tenente das forças de 2.ª linha "por ter dado sempre sobejas provas de sua dedicação ao Governo e manifestado a mais heróica valentia", como "chefe indígena", nomeadamente na campanha do Oio, sob o comando do capitão Teixeira Pinto.

Cinco anos depois, ele cai em desgraça, por alegadamente ter usado e abusado do poder como régulo do Oio e do Cuor. Em 8 de julho de 1919, foi declarado o estado de sítio nas regiões de Bissorã e Farim, em virtude de Abdul Injai se recusar a acatar as ordens do Governo. Um mês depois, a 16 de agosto, é preso em Farim, depois de se entregar às forças do Governo.

Acaba por ser destituído dos seus cargos e deportado para a Madeira, por 10 anos, mas morre em Cabo Verde. Faltam-nos também pormenores sobre esta parte final da vida do Abdul Injai.
Aqui ficam alguns excertos, recolhidos tanto no nosso blogue como noutras fontes da WEB. Os títulos e a fixação de texto são da responsabilidade do nosso editor LG. (*****)


(i) Abdul Injai, o maior herói-vilão da Guiné Portuguesa

por Mário Beja Santos (*)

Nenhuma outra figura guineense do período colonial se revelou tão paradoxal, suscitou tanta paixão nas admirações e ódios, sobretudo no chamado período da «pacificação», que se estende até 1936.

Os relatos são muito contraditórios, é patente a falta de objectividade das diferentes fontes de exaltação e detracção. Abdul Injai era um djalôfo ( oriundo do Senegal, não da Gâmbia, como às vezes se lê), trabalhou como criado em Bissau e aparece em 1913 ao lado de Teixeira Pinto, na campanha do Oio, onde se distingue pela sua incontestável bravura. Acompanha Teixeira Pinto em novas surtidas, sobretudo em Bissau e arredores, é reconhecido como herói, à semelhança de Mamadu Sissé.

O prémio foi a sua nomeação para régulo do Oio e do Cuor, nesta última região terá tido um comportamento bárbaro, deu provas de saqueador e chefe de bando que praticava roubos abomináveis. Depois, começou a ser contestado no Oio pelas arbitrariedades, desafiou as autoridades de Bolama, o governador mandou uma coluna militar, em 1919, veio preso, foi desterrado primeiro para Cabo Verde, veio a morrer na Madeira.

O seu nome é referido como de combatente destemido que se corrompeu seduzido pelo oiro, por se ter posto à frente de rapinantes. Ele que garantira morrer a combater foi capturado e deixou-se levar como um qualquer preso de delito comum.

Lânsana Soncó, o almani de Missirá, foi a primeira pessoa que me falou da sua lenda. Prometo estudar melhor tão contraditória e paradoxal figura. (...)


(ii) Operações de polícia na área do comando militar de Bissorã e circunscrição civil de Farim em 1919

por José Martins(**)

Circunscrição de Farim – região do Comando Militar de Bissorã: Declaração do estado de sítio em Julho de 1919, em virtude de Abdul Injai, régulo de Oio, se ter declarado em aberta rebelião, depois de três anos de abusos de autoridade, situação que o governo desculpou, face aos significativos serviços prestados, pelo mesmo, a Portugal nos muitos combates que travou na Guiné, demonstrando uma valentia e lealdade ímpares

Pelos seus serviços a Portugal e à Guiné, foi promovido a Tenente de 2ª Linha, foi-lhe dado o regulado do Oio e, sendo chefe incontestado pela sua gente, foi um grande auxiliar do Capitão Teixeira Pinto e Tenente Sousa Guerra que, apoiado pelas suas gentes, auxiliou muito o governo da província a pacificar aquelas terras.

A causa próxima do estabelecimento do estado de sítio tem as suas origens em Abril de 1916, altura em que o régulo Abdul Injai começou, com prepotência, a aplicar multas aos chefes da povoações limítrofes das suas, fazendo exigências várias, entre as quais, trabalhar nas sua terras sem direito a qualquer pagamento.

Tendo em conta a sua “folha de bons serviços”, foi sendo aconselhado a alterar a sua posição, não só em relação à administração mas também em relação aos povos seus vizinhos. Estes avisos e/ou conselhos não só não surtiram efeito como agravaram a situação, o que levou Abdul Injai, em Abril de 1919, a atacar com a sua gente a povoação de Solinto-Tiligi e, em 29 de Maio do ano de 1919, apoderou-se das espingardas que a administração havia distribuído às populações do Cuor.

Como condição para proceder à devolução das armas, exigia uma indemnização de 40 contos, além da percentagem de 10% do imposto de palhota cobrado em Mansoa, Oio, Costa de Baixo e Bissau.
A aceitação destas condições colocaria, o governo da província, em situação de subalternidade, levaram à constituição de uma coluna de polícia que, em 3 de Agosto de 1919, entrou em combate com as forças revoltosos, tendo aprisionado Abdul Injai e os seus mais directos colaboradores, que foram desterrados para Cabo Verde.

Abdul Injai viria a falecer pouco tempo depois, terminando assim a vida de um aventureiro que prestou relevantes serviços à Guiné, mas também lhe criou grandes problemas, obrigando à adopção de medidas extremas para contrariar a sua atitude.

Nesta operação perdeu a vida o Alferes Afonso Figueira e 9 dos seus soldados.

Condensação de: José Marcelino Martins (**)


(iii) Abdul Injai, um herói guineense, ao lado de Amílcar Cabral  
por Fernando Jorge Pereira Teixeira (***)


(...) Temos até de acreditar, se preciso for, que o nosso povo é mais do que é. Temos que acreditar que é esse é o mesmo povo que gerou Abdul Injai, Unfali Soncó, Mussá Moló, Bacampolo-Có, Okinka Pampa, Honório Barreto, Amílcar Cabral, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Simão Mendes, José Carlos Shwarz e tantos outros, poderá sublimar-se e superar a si próprio; e quem sabe se das dores dos morticínios, da guerra, dos golpes, e sofrimentos sem fim, não brotara do seio do povo Guineense uma nova plêiade de heróis. (...)


(iv) Abdul Injai, a conquista portuguesa e o levante de 1919 na Guiné-Bissau : manifestação pública de um discurso oculto

por Michelle Sost dos Santos (****)


(...) O presente trabalho tem como objetivo geral analisar as relações estabelecidas entre Abdul Injai - régulo das regiões do Cuor e Oio na Guiné - e os representantes portugueses dentro do contexto imperialista do início do século XX. Apesar de estarem em contato com os povos da Guiné desde o século XV, os portugueses não tinham domínio efetivo sobre a região. No entanto, a partir das transformações no sistema econômico ocidental e a sua necessidade de expansão, o continente africano foi invadido por uma onda imperialista, que resultou na disputa entre os países europeus sobre os seus territórios. Dessa forma, Portugal viu-se obrigado a efetivar seu domínio sobre a região da Guiné. No entanto, é impossível falar de dominação, sem falar de resistência, e é esse o objetivo principal desse trabalho. As ofensivas portuguesas foram ferozmente combatidas pelos diferentes povos da Guiné, o que retardou por quase um século a implantação do sistema colonial nessa região.

O caso de Abdul Injai não se enquadra nesses modelos tradicionais de resistência, e por isso, faremos distinção entre dois momentos em sua atuação: no primeiro, enquanto chefe de um exército de mercenários e agindo em prol de seus interesses, ele estabelece aliança com as forças portuguesas. Através do discurso público de combate aos povos locais, ele afirma seu poder na região e garante suas nomeações de régulo do Cuor e do Oio. No entanto, a condição de régulo não estava de acordo com o poder que Abdul almejava, pois conotava submissão à administração colonial portuguesa. Dessa forma, o seu segundo momento de atuação que é o levante de 1919, além de ser uma resistência armada evidente ao sistema colonial, é a confirmação de que as suas ações anteriores não visavam à afirmação do domínio português na região, mas, provavelmente, a afirmação de seu próprio poder. (...)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de outubro de  2008 >  Guiné 63/74 - P3320: Historiografia da presença portuguesa em África (8): Abdul Indjai, herói e vilão (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 1 de março de 2013 > Guiné 63/74 - P11177: Para que a memória não se perca (4): Histórias da dobragem do século XIX para o século XX (José Martins)

(***) Vd texto de Fernando Jorge Pereira Teixeira: refflexões de um nacionaçista: parte I: o nosso desígnio como povo. In: Projeto Guiné-Bissau Contributo

(****) Vd. Santos, Michele Sost dos - Abdul Injai, a conquista portuguesa e o levante de 1919 na Guiné-Bissau : manifestação pública de um discurso oculto. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Curso de História: Licenciatura. [Consult em 18 de julho de 2017]. Disponível em http://hdl.handle.net/10183/149538

(*****) Último poste da série > 15 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17585: Historiografia da presença portuguesa em África (80): Uma peça de ourivesaria a exaltar o paternalismo colonialista (Mário Beja Santos)