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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22885: O nosso blogue em números (75): Globalizados, somos vistos em muitos países, com natural destaque para Portugal (40%), EUA (25%), Brasil (5%), França (5%) e Alemanha (4%)... Pela primeira vez, aparece a Suécia no "Top 10" e a Guiné-Bissau no "Top 20"



Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

Infografia: Adapt de Blogger (2022) (com a devida vénia...)


Gráficos nº 5 e 6 - Principais localizações dos nossos "visitantes" (leia-se: visualizações de páginas, entre junho  de 2006 e o final de 2021): no Top 10, o destaque vai para Portugal (com cerca 40% do total), seguido dos Estados Unidos da América (25%) e o Brasil com 5%... Enfim, quando comparamos estes dois gráficos com os do ano passado (*), a estrutura mantem-se no essencial.


1. É caso para continuar a dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande"...

A principal origem dos que visitam o nosso blogue, quase dois terços, é Portugal (40%) e os EUA (25%) (Gráfico nº 6)

Segue-se, à distância, o Brasil (5%), a França (5%) e a Alemanha (4,1)%) e, pela primeira vez, a Suécia (1,3%) (a que poderá ser explicado, em parte, pela localização naquele país do...nosso  Zé Belo e das suas renas). E ainda com mais de 1%, o Reino Unido e a Rússia. No "Top 10" ainda estão a Polónia e a Espanha.

Este perfil não se tem alterado desde 2014, ano em que o Brasil perdeu o 2º segundo lugar para os EUA.  Os  EUA (que tinham  7,6% do total de visualizações em 31/12/2013), deu então um salto  para os 17,6%). E o Brasil ficou-se pelos 7,8%... 

Mas Portugal também vindo a perder peso relativo: em 2014 tinha uma "quota" de 48,2% (**). Há uma explicação: a crescente penetração da Internet em todos os países do mundo...(Veja-se  crescnte peso relativo do "Resto do Mundo".).

No mundo globalizado em que vivemos, somos vistos em muitos lados... Seguem-se por ordem decrescente (com menos de 1%) (,entre parêntesis indicam-se os números absolutos, em milhares) os sguintes países que aparecem no "Top 20":

Ucrânia > 62 mil
Região desconhecida > 58,5 mil
Itália > 56,3 mil
Canadá > 55,6 mil
China > 50,6 mil
Hong Kong > 35,4 mil
Países Baixos > 28,4 mil
Emirados Árabes Unidos > 27,2 mil
Guiné-Bissau > 23,5 mil
Outros > 1,38 milhões

Ficamos felizes por, no nosso "Top 20",  estarem 3 países lusófonos: Portugal (1º), Brasil (3º) e Guiné-Bissau (19º). E, nos restantes, há também muitos portugueses e outros falantes da íngua portuguesa que nos seguem ou visualizam, com regularidade, o nosso blogue, nomeadamente nos EUA, França e Alemanha. Destaque, já agora,  também para os Emiratos Árabes Unidos que aparecem, pela terceira vez (desde 2019), no nosso "Top 20"...  Seguramente que um dos nossos seguidores nas "Arábias" é o nosso coeditor Jorge Araújo... (***).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21744: O nosso blogue em números (69): No mundo globalizado, fomos vistos em muitos países, com natural destaque para Portugal (41%), EUA (25%) e Brasil (6%)...Cabo Verde e a Guiné-Bissau, infelizmente, ainda não aparecem no Top 20... São dois pequenos países, de resto com taxas de penetração da Internet desiguais: 63,3% e 12,7%, respetivamente

(**) Vd. poste de 3 de janeuiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14111: O nosso blogue em números (34): no final de 2014: (i) 6,8 milhões de visualizações de páginas; (ii) 676 membros registados; (iii) 14 mil postes publicados; (iv) 55600 comentários; (v) 1638 amigos no Facebook da Tabanca Grande...

(***) Último poste da série > 4 de janeiro de 2022 > 4 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22875: O nosso blogue em números (74): em 2021, tivemos 25 "baixas mortais" e 31 novos membros da Tabanca Grande (dos quais 13 a título póstumo)... Somos agora, entre vivos e mortos, 855 grã-tabanqueiros

sábado, 25 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22845: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XV: Dezembro de 1966: a Op Harpa em que é ferido com gravidade o Quebá Soncó, que depois irá para o hospital de reabilitação de Hamburgo, na Alemanha


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadicna) > CCAÇ 1439 (1965/67) > Missirá > O alf mil João Crisóstomo e o régulo do Cuor, Malan Soncó, alferes de 2ª linha.

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)
(a viver em Nova Iorque desde 1977, 
depois de ter passado por Inglaterra e Brasil)



1. Continuação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil at inf, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)

Parte XV: Memórias do Quebá Soncó



Dias 2, 3 e 4 de Dezembro de 1966

Realizou-se a Op FIFA no Chão Balanta que consistiu em emboscadas e batidas na região de Colicunda, Durante as emboscadas não houve contacto com o IN.

Foram capturados três elementos , sendo dois de menor idade e entregues ao posto Administrativo e o terceiro entregue ao BCAç 1888.


Dia 7 de Dezembro de 1966

Eu fiz parte desta operação, mas não me recordo de pormernores, excepto do momento em que Quebá Soncó foi ferido. Por isso transcrevo o que consta do relatório até esse momento, e falarei/lembrarei depois Quebá Soncó.

(...) A CCaç 1439 realizou a Op Harpa na região a N de Cherel, a fim de explorar uma informação dum prisioneiro que disse conhecer a casa de mato de Cubadjal.

O prisioneiro que serviu de guia não colaborou devidamente com a tropa, tendo conduzido por um itinerário muito vigiadoo pelo IN. Desta forma as NT foram detectadas a cerca de 1.000 metros do acampamento por uma a sentinela dupla que se encontrava colocada sobre uma árvore absolutamente camuflada. À aproximaçnao das NT a sentinela disparou várias rajadas de P. M. alertando desta forma todo o acampamento. Quando as NT, numa tentativa de aproximação rápida do referido acampamento o mesmo encontrava-se abandonado. Feita uma batida, foi encontrada uma tabanca a qual tinha sido da mesma forma abandonada." (...) 

"Resultados obtidos: Destruiram-se 13 casas de mato no acampamento IN e 10 casas na tabanca satélite.

Foi destruida grande quantidade de arroz e capturados 4 pentes de munições cal 7.9.

Baixas estimadas em número não estimado."


E o relatório diz então que, "quando a sentinela disparava sober as NT ( portanto no início da aproximação) foi atingido numa perna o caçador auxiliar contratado Quebá Soncó, evacuado para o HMP". 

E o relatório prossegue:

(...) "Mais uma vez foi distinguido o 1º cabo nº 5939264, Dionísio Lopes Ferreira, tendo demostrado a sua competência e sangue frio,  não abandonado o ferido mesmo debaixo de fogo IN,  prestando uma assistência permanente e cuidadosa." (...)

Lembro bem esses momentos e a dedicação e sangue frio do cabo enfermeiro, como vem descrito.

O que discordo é do momento e situação em que isso aconteceu. Se isto tivesse sucedido durante a aproximação, não teria havido mais esse assalto ao campo inimigo, deixando o enfermeiro a cuidar de Quebá Soncó.

Estas “rajadas de metralhadora” e o ferimento de Quebá Soncó foram depois do assalto quando já regressávamos e de repente começou um forte tiroteio, que era a uma distância razoável e que durou algum tempo. 

 Lembro-me que estava a disparar a minha G3 como um louco para onde me parecia vir o fogo IN, quando o o Quebá Soncó, que estava mesmo ao meu lado esquerdo,   foi ferido. E lembro que o fogo, embora de longe, ainda continuou por algum tempo, e de ver o enfermeiro Dionísio, ainda o tiroteio não tinha acabado, a ajudar o Quebá Soncó e logo a pedir que chamassem um helicópetro para o evacuar para Bissau.

Não sei se Quebá Soncó era considerado “caçador auxiliar contratado”. Ele era o filho do régulo de Missirá, Malan Soncó, a quem na devida altura iria suceder como régulo de Missirá. O que sei é que ele estava sempre connosco,  sempre com um grande sorriso contagiante e sempre voluntário inspirando com o seu exemplo o resto do pessoal da tabanca. 

Depois do meu regresso a Portugal,    escrevemo-nos por algum tempo. A sua volta à Guiné, em outubro de 1967.   simultânea com a minha ida para a Inglaterra,  ocasionou a perda de contactos. Mas lembro-o sempre assim, amigo e brincalhão também. E assim continuou, mesmo depois de ter sofrido a amputação duma das pernas. 

Uma das cartas que seguem, foi escrita já depois de ter regressado à Guiné  (, datada de Bambadinca, 18 de outubro de 1967). A outra carta que junto também, escrita quando ele estava na Alemanha Ocidental (, Hamburgo, 6 de agosto de4 1967), é uma boa amostra da sua jovialidade. Nunca mais o esquecerei. Já falei de Quebá Soncó numa outra ocasião (Vd. poste P21797)  (**)

Acabada a Guiné, quando voltei, logo que fui a Lisboa  fui visitá-lo ao Hospital Militar Principal.  Ficou contente de me ver e mostrou vontade de conhecer Lisboa antes de partir para a Alemanha onde ia para lhe porem uma perna artificial. E, mesmo na condição em que ele estava, de muletas  – ele insistia que não era problema e se podia movimentar – eu peguei nele e de taxi andei com ele  dum lado para outro  e mostrei-lhe Lisboa tanto quanto pude fazer.  Ele não o esqueceu e  depois de voltar à Guiné escreveu-me uma carta lembrando isso, carta essa que faz parte  do mencionado Poste de 23 /01/21 (**).


Dia 17 de Dezembro de 1966

No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta. Noto que esta operação é quase uma repeticão de uma que teve lugar em 10 de Junho, operação GOLO 1. A região era realmente muito perigosa, como tristemente e à custa de muitas mortes nas NT,  se viria a  confirmar depois da CCaç  1439 ter voltado, acabado o seu tempo de comissão na Guiné. E por isso a  frequente presença da CCaç 1439 nesta região, durante a nossa “comissão”.

Para que conste  transcrevo o relatório:

(...) "No dia 17 de Dezembro de 1966 realizou-se a Op Hera, no Chão Balanta, que  consistiu em montagem de emboscadas a N de Chubi e Sée seguida de batida às tabancas de Bissá, Funcor, Blassé, Sée e Chubi.

Durante esta operação não foram detectados quaisquer elementos supeitos. Verificou-se que a população  manifesta desejos de melhor colaborar com a tropa, dando a impressão de fadiga de descontentamento perante as atitudes do IN que visita aa tabancas, exigiundo tudo inclusive bufalos. As NT através de palestras e pequenos serviços de enfermagem continuous a exercer influência psicológica no seio da população.

 Dia 23 de Dezembro de 1966 : Ataque a Missirá (vd. próximo poste, Parte XIX)

 



Carta do (António Eduardo) Quebá Soncó, filho do régulo de Missirá, enviada ao João Crisóstomo,  Datada de Hamburgo, 6 de agosto de 1967. Reprodução de alguns excertos:

(...) "Sr. Crisóstomo, recebi a sua carta, há já algusn dias, mas foi-me impossível respodner-lhe mais cedo, do que peço muita desculpa. (...) Fui operado à bexiga, pois apareceram-me uns micróbios nela: não é nada de grave, pois há me levanto e não dói quase nada..

"Logo que cheguei à Alemanha, dali por poucos dias, deram logo a perna [prótese] e agora ando a treinar a andar. Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês. Ainda me custa um bocadinho mas, depois de estar mais habituado,já não me vai custar tanto. No princípio custava-me muito mais porque a perna [prótese] estava um pouco grande, mas depois tiraram-lhe 2 centímetros e agora isto vai bem".

E depois acrescenta: "Ainda conto ficar na Alemanha durante pelo menos mais um mês."

Sabemos que partiu para a Alemanha a 23/6/1967, pela carta que escreveu nessa data ao João Crisóstomo, a despedir-se dele e a agradecer-lhe a sua amizade (**).   Deve ter regressado a Lisboa em setembro de 1967. Esteve no Depósito Geral de Adidos à espera de transporte para Bissau aonde chegou a 3 de outubro de 1967, conforme aerograma datado de Bambadinca, 18 desse mês e ano.

Sobre o hospital disse ainda o seguinte:

(...) "Isto aqui é muito bonito e muito bom. Eu logo que possa sair para a rua, ponho-me logo a mexer pois as meninas aqui são muito boas e andam quase todas de mini-saia (...)

"A assistência médica aqui é tão boa como em Portugal ou ainda melhor, estamos todos muito satiosfeitos (...).

"Sr. Crisóstomo, como o Sr vai para Inglaterra e não pode ir ver-me ao hospital em Lisboa, eu fico muito triste, palavra de honra. Aproveito para lhe desejar boa viagem e muitas felicidades na Inglaterra" (...)

 



Aerograma do Quebá Soncó, para o João Crisóromo, datada de 18 de outubro de 1967, quando o destinatário já estava em Inglaterra. Num português quase impecável, o remetente dá conta do seu regresso a Bissau, depois de ter estado internado no Hospital de Reabilitação de Hamburgo, Alemanha  (então Ocidental) e pede desculpa de não ter podido responder mais cedo ao João Crisóstomo:

 " (...) estive muito tempo no Depósito Geral de Adidos  [em Lisboa] e só cheguei a Bissau em 3 do corrente ".

E acrescenta: 

"Já estive com a minha família que ficou não só muito satisfeita por me ver como também ficou muito agradecida ao amigo João Francisco  [Crisóstomo ] pelas atenções que teve comigo quando da minha estadia na Metrópole. Eu também nunca esquecerei a sua amizade e toda a vida hei de recordar os belos passeios que me proporcionou"


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22751: A nossa guerra em números (6): o bico-de-obra das viaturas de transporte...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet (que se tornou no auge da guerra a principal viatura pesada das Forças Armadas Portuguesas: em 10 anos, de 1964 a 1974,  a Berliet Tramagal produziu mais de 3500 viaturas Berliet).

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > CCAV 2748 (1970/72) > O Unimog 411 ("burrinho do mato"), depois da explosão de mina A/C em 16 de Abril de 1972.

Foto (e legenda): © Francisco Palma (2017) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contabane > Quirafo > Feverereiro de 2005 > Restos, descobertos mais de 30 anos depois, da fatídica GMC (sigla de General Motors Corporation) que serviu de caixão a muita gente, entre civos e militares,  no trágico dia 17 de Abril de 1972, na picada de Quirafo (entre o Saltinho, Contabane e Dulombi).

Foto (e legendagem(: © João Santiago / Paulo Santigao  (2006).Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá > Xitole > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72).. Era habitual viaturas civis, alugadas pelas autoridades de Bambadinca, sede do setor L1 (neste caso, o BART 2917), integrarem essas colunas, por falta de veículos de transporte pesados.


Foto (e legenda): © Humberto Reis  (2006).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Pel Rec Daimler 3089 (Teixeria Pinto, 1971/73) > Janeiro de 1972 >  A “oficina” do Pelotão Daimler, É visível o 1º cabo mecânico David Miranda que fazia o "milagre" de manter as viaturas sempre operacionais. Chegámos a ter duas ou três Daimlers, vindas da sucata de Bissau, para "canibalizar". Ao trabalho do Miranda muito ficou a dever o sucesso do Pelotão.

 Foto (e legenda): © Francisco Gamelas   (2016).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Caro/a leitor/a: sabia que...

(i) nos anos 60 do século passado, e para satisfazer as necessidades logísticas da guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial, nos teatros de operações de Angola, Guiné e Moçambique, o Exército Português teve de fazer aquisições de armamento e viaturas, no valor de 6 mil e 294 milhões de contos, o que, convertida a valores de hoje,  equivaleria a mais de 2 mil e 300 milhões de euros (, o equivalente ao orçamento da defesa nacional previsto para 2022);

(ii) no que diz respeito às viaturas militares, durante os anos em que se fez a sua renovação,  as despesas anuais, a preços de hoje, foram da ordem dos 200 milhões de euros: aquisição de viaturas novas como o jipes Willys, a vaitura média Unimog e a viatura pesada Berliet;

(iii) é em 1962 que aparecem os Unimog, de fabrico alemão: o Unimog 3/4 t Diesel (, o famoso "Burrinho do Mato", o Unimog 411; e o Unimog 4 de 1,5 t, o Unimog 404, mais versáteis,  e com ómelhor capacidade de adaptação ao terreno, em substituição das viaturas norte-americanas (jipões 3/4 t, GMC, Bedford, Chevrolet,  etc.) (a razão, para lá da versatibilidade e o consuno, tinha a ver com  o facto de os norte-americanos terem passado  a cumprir a resolução da ONU de boicote de equipamento militar a Portugal, fora do âmbito da NATO);

(iv) em 1965, o Exército português já dispunha no ultramar de 2 mil Unimog... mas as dificuldades burcoráticas atrasavam a entrega de viaturas novas e de sobresselentes: por exemplo, em Angola, em 1967, o número de viaturas (ligeiras, médias e pesadas) inoperacionais era das ordem dos 60% (!);

(v) o Unimog (acrónimo do alemão UNiversal -MOtor - Gerät) era produzido pela Mercedes Benz, tendo-se tornado na viatura média mais usada na guerra do ultramar; O 411 gastava 12 litros de gasóleo aos 100, e atingia a velocidade máxima de 53 km; o 404 ia aos 20 litros de gasolina aos 100, e atingis os 95 km /hora; 

(vi) em 1964, passou a produzir-se em Portugal a Berliet, sob licença francesa, a uma média de... 140 unidades anuais (, tendo passado mais tarde às 600); de 1964 a 1974, a Berliet Tramagal (a metalúrgica Duarte Ferreira) produziu 3549 viaturas para as Forças Armadas, ou seja 350 em média  por ano; a Berliet tornar-se-ia a principal viatura pesada nos 3 teatros de operações...

2. Cada subunidade  (companhia) deveria ter, em princípio, a seguinte frota ou parque de viaturas: 

(i) 3 a 4 viaturas ligeiras (jipes); (ii)  6 viaturas médias (3/4 t) (Unimog); e 3 viaturas pesadas (Berliet, Mercedes, GMC)...

A CCS do batalhão tinha uma frota maior: (i)  5 a 8 viaturas ligeiras (jipes); (ii) 4 a 6 viaturas médias (Unimog,  404 e 411), mais  3 viaturas automacas; e (iii)  3 a 5 viaturas pesadas (GMC; Mercedes, Berliet...) 

Acrescente-se, da minha experiência e do conhecimento da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), não me lembro de haver mais de um jipe, nem nunca lá vi nenhuma Berliet... E muito menos automacas (Unimog)

3. Mas a situação do material auto (aquisição de viaturas novas para substituição das inoperacionais e perdidas, fornecimento de sobresselentes, manutenção e gestão...) foi sempre um bico- de-obra durante toda a guerra, nos três teatros de operações... 

Na Guiné, recorria-se a viaturas civis para transporte de material, nas colunas logísticas. Dadas as características do terreno, clima, tipo de guerra, etc., o desgaste e a perda de material auto tinham que ser elevadas.

Por exemplo, em 1967, na Guiné existiam 2238 viaturas,  das quais 48% (!!!) estavam inoperacionais... Em 1971, a situação não era melhor. Veja-se o nº de viaturas, por tipologia (e entre parênteses a percentagem de inoperacionais):
  • 774 jipes (49%  inoperacionais);
  • 704 Unimog  404 (39,5% );
  • 438 Unimog 411 (26%);
  • 255 GMC (48,5%);
  • 119 Mercedes 322 (63%);
  • 98 Berliet (38,5%).
Já não falando das viaturas blindadas, as autometralhadoras, mais de 2/3 das quais estavam inoperacionais (!!!)... "En passant", havia em 1971, no TO da Guiné as seguintes viaturas blindadas:
  • 16 Panhard (25% inoperacionais);
  • 10 Fox (60%);
  • 108 Daimler (75%).

Tomando como referência os anos de 1966 e 1967, verifica-se que há, nos teatros de operações ultramarinos, em 1967: (i) 3000 viaturas ligeiras 1/4 t  (jipes), menos cerca de 30% do que em 1966: (ii) 6500 viaturas médias 3/4 t, mais 75% (relativamente ao ano anterior); e (iii) 1800 viaturas pesadas, menos de 9 % (por comparação com 1966). A ter havido alguma melhoria foi graças à entrada da Berliet e do Unimog.

Por exemplo, em 1968 a situação nos 3 teatros de operações era grave, justificando a urgência da aquisição de 7 mil viaturas: 4 mil para ultrapassar a fasquia dos 75% do quadro orgânico de cada unidade; e o resto para substituir as viaturas inoperacionais e perdidas que, na altura, em 1968/69, seriam da ordem dos 20% - 25% (o que nos parece subestimado).

A "doutrina em vigor era substituir, todos os anos, em média,  600/700 jipes, 1200/1500 Unimog, e 360/450 viaturas pesadas (Berliet, Merecdes)... O que nunca se conseguiu por falta de verbas...

De qualquer modo, temos que reconhecer aqui "o engenho e a arte" (esforço, dedicação, competência, desenrascanço, imaginação) dos nossos mecânicos auto (, o pessoal da "ferrugem", de resto mal representado no nosso blogue). Sem esquecer os nossos heróicos condutores auto que faziam das tripas (caixa de velocidades, travão, volante, guincho, etc.) coração!

Para o dispositivo militar existente em 1966, pode-se dizer que faltavam mais de um terço (35%)  das viaturas necessárias para as forças que estavam no terrno, situação que se veio a agravar com o reforço de efetivos em 1968, na Guiné e Moçambique.


Fonte: Adapt de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 204-212, e 294-299.
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sábado, 31 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22418: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XIII: Hamburgo, Alemanha Federal, 1967




Hamburgo > 1967 > O António Graça de Abreu e a sua namorada alemã
 


Hamburgo >  Ao centro, a imponente Rauthaus, a câmara municipal



 
Hamburgo >  O famoso Star Club, em Reeperbahn, onde os Beatles tocaram, em 1962,  antes de se tornarem famosos 



Hamburgo, > Jardim frente à janela do quarto

[ Texto e fotos recebidos em 16/7/2021] 
 

1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.


Hamburgo, Alemanha, 1967


A cidade de Hamburgo, nos meus dezanove anos, por causa da menina do Elba, loira e linda.

Bramfeld, a rua Steilshooperstrasse, o Stadtpark, encaminhar os meus passos. O senhor Balk, meu potencial sogro, nascido em Danzig, actual Polónia. Havia sido, então há vinte cinco anos atrás, soldado de Hitler, marchando, consumindo-se, combatendo na campanha da Rússia. Regressou vivo, sobreviveu à guerra. Falava pouco, saía de casa ao fim da tarde para, com amigos, se encharcar em schnapps, as aguardentes tedescas. Mas, com a minha quase sogra de Berlim, fez esta filha de olho azul e cabelos de ouro, doce e perfeita, meia de alabastro, meia de marfim, que me acompanhava e tomava conta de mim.

O Alstersee dividido em dois lagos, quantas vezes atravessado no frio do Inverno, à noite, com neve caindo devagar, no silêncio das águas geladas… Logo ali ao lado, levantava-se a imponência do rendilhado do poder na Rathaus, o palácio do município onde ainda havia judeus gerindo, governando.

Hamburgo, cidade hanseática, o rio Elba, o trato, o comércio, o saber fazer, o porto unido a todos os recantos do mundo.

Nesse tempo era a serena loucura, quase um ano na organizada e disciplinada Germânia, estudando alemão, trabalhando doze horas por dia numa espécie de restaurante, um Selbstbedienung encaixado na Hauptbanhof, a estação central dos caminhos de ferro.

Aos fins de semana, com a menina de Hamburgo, íamos dançar, unindo corpos e bocas no recato de uma discoteca romântica por detrás da Jungfernstieg, a rua central, ou, em alternativa, íamos pular, saltar com a batida das bandas de ocasião no Star Club, em Reeperbahn, onde os Beatles, recentemente, antes da fama, haviam tocado.

Recordo a visita à cidade de um decadente e obsoleto Xá da Pérsia. Grandes manifestações contra a sua presença, eu, entre estudantes alemães e muitos jovens iranianos a estudar em escolas de Hamburgo e Berlim, e os gritos "morte ao xá!".

Nos protestos, em Berlim, então sitiada entre Leste e Oeste, tiros da polícia e um jovem alemão assassinado [  em 2 de junho de 1967 ], de nome Benno Ohnesorg . (Vd. Wipedia:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Benno_Ohnesorg). Perfazia vinte anos, tal como eu. Os estudantes iranianos iriam em breve regressar a Teerão. Depois do ódio ao xá, reverenciariam o Aiatolah Khomeini. 

 No pequenino quarto alugado na pensão de Frau Hamm, um amor bonito para enfeitar os dias. Inge Balk e António, um infindável abraço luso-alemão. No Verão, a janela aberta para o respirar do jardim situado em frente, Planten un Blomen, plantas e flores.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22267: (Ex)citações (386): Valeu a pena andarmos todos à porrada, nós, e os ingleses, e os bóeres, e os alemães, e os cuanhamas, e os hereros, naquele Cu de Judas que era o sul de Angola e o Sudoeste Africano? (António Rosinha / Valdemar Queiroz)


Angola > c. 1900 > Deserto de Moçâmedes, sul de Angola, atual província de Namibe  > Um dos famosos carros boéres, a atravessar o rio Caculovar. Foto do álbum da família de origem boer, Schotanus, com antepassados no sul de Angola. Com a devida vénia...


Em 1884 um navio chamado 'India' deixou a Madeira com 222 colonos para cultivar a parte sul de Angola a convite do governo português (ver guia do colono de 1891, em português) , que ocupou Angola por quase 400 anos, durante os quais as tribos Bantu do norte começaram a se mover para o sul da África, deslocando os primeiros bosquímanos e hotentotes. 

Até ao século XIX, esta área em particular ainda estava largamente desabitada, exceto por alguns boéres sul-africanos que no século 19 se mudaram para a Huila, no interior de Angola, longe do domínio britânico, primeiro na antiga província holandesa do Cabo e depois no Transvaal. 

Os madeirenses aprenderam a cultivar a terra, a caçar e a construir robustos carroções de bois com os bôeres, que tinham adaptado um design não incomum da Holanda., e que controlava o comércio de transportes no sul de Angola para aborrecimento das autoridades portuguesas em Lisboa. 

O avô Domingos Rodrigues conheceu bem os Afrikaner Boers , e passou mais de 50 anos a ajudar a desbravar o sertão angolano: tocava as suas canções Boer na sanfona e falava Afrikaans. Os Boers saíram como tinham vindo, em várias ondas durante o século seguinte (nomeadamente com o êxodo de 1928 e de 1958), tendo sido encurtado a cada passo pelas autoridades portuguesas nas suas tentativas de construir uma nova vida



A Lee-Enfield, a espingarad padrão do Exército Britânico (adotada em 1895)


A Mauser 98 ou Gewehr 98 (. versão moderna), que fez a sua estreia na Segunda Guerra dos Boéres (1899-1902).

 
Comentários aos postes P22264 e P22266:

(i) António Rosinha (*)

A batalha de Naulila foi feita contra os alemães para defender aquela fronteira(sul). Os alemães que também nos massacraram em La Lys naquele tempo, forneceram armas aos Cuanhamas que eram muito difíceis e muito rebeldes e até bastante insociáveis e até 1974 não pagavam imposto.

Hoje, estes dias (jornais de duas semanas passadas), a Alemanha aceitou considerar genocídio aquilo que fizeram a sul de Naulila, ou seja, no sudoeste alemão (Namibia), genocídio contra os irmãos destes mesmos Cuanhamas que do lado de lá se chamam Hereros.

Os alemães precisavam dos rios do sul de Angola.

Os alemães perderam a I Guerra Mundial, com muitos sacrifícios da nossa parte, se a vitória tem sorrido aos alemães, Angola e Moçambique e seus habitantes tinham outro destino, principalmente os Cuanhamas, armados pelos alemães, falava-se em Mausers contra as nossas Lee-Enfields (ou coisa que o valha).

O 25 de Abril apanhou-me a fazer estradas exatamente naquela fronteira do sul.

Será que valeu a pena nós e os alemães andarmos à porrada naquele cu de judas?

É melhor perguntar aos descendentes de Agostinho Neto, de Lúcio Lara, de Eduardo dos Santos e de Savimbi, mais uns generais, eles é que se podiam pronunciar sobre o resultado final.

8 de junho de 2021 às 15:21

(ii) Valdemar Queiroz (*)

Rosinha

É uma chatice e não nos sai da cabeça, o que se passou com a colonização da América do Norte e do Brasil, a colonização espanhola agora não entra.


Aquilo é que foi, e porque em África não aconteceu a mesma coisa? Até já havia por lá mão d'obra de borla.

Parece que em África (subsariana) só a partir do séc. XVII, com a chegada dos camponeses calvinistas holandeses (boéres)(#) ( ao sulO, é que deixou de ser quase unicamente a "mina" do negócio de escravos. Os boers fixaram-se no terreno e dedicaram-se à agricultura como já tinha feito outros calvinistas na América do Norte.

Por isto, a África nunca poderia ser igual à 'era só mais uns aninhos e tínhamos outros Brasis pra nós, ou anos antes outra América para os ingleses, franceses e outros' e, agora, com a civilização cristã e ocidental não haveria todos aqueles problemas em África.

Não sabemos é se aconteceria o mesmo que aconteceu aos índios da América do Norte.

Abraço
Valdemar Queiroz

(#) boers, em neerlandês pronuncia-se bôarrss

8 de junho de 2021 às 18:04 


(iii) António Rosinha (**)


Umpungo, onde este heroi Roby morreu era ainda muito longe da fronteira e onde se deu a anteriormente mencionada batalha desatrosa de Naulila, só que os indígenas de Naulila eram Cuanhamas, e no Umpungo eram Mamuilas, da Huila.
Conheci desde 1958 estas regiões profissionalmente e conheci muitas histórias contadas por gente ainda viva de Sá da Bandeira e do Roçadas (Humbe) e Pereira D'Eça (Ondjiva).

Os alemães incitavam e armavam a população contra nós, mas não me tinha apercebido que vinham tanto para norte.

Ainda em 1958 ir de Luanda até estas regiões era muitíssimo complicado, apercebi-me porque trabalhei e percorri profissionalmente, em cartografia e estradas toda esta região.

O General Roçadas levou tareia e só mais tarde o General Pereira D'Eça é que dominou , mas só com a ajuda dos Boeres, porque estes muitos tinham-se refugiado no Sul de Angola, devido a guerras que mantinham com ingleses que nunca entendi bem, ainda viviam algumas familias naquela região no 25 de Abril, e do lado da Namíbia deram muita luta aos alemães.

Os boeres deixaram uma tradição de transporte animal, usada pelas nossas tropas no sul de Angola que constava quase exactamente com os nossos carros de bois que bastante estreitos, usavam os caminhos de pé posto dos indígenas, que com uma ligeira desmatação, ficaram a ser conhecidos por caminhos dos boeres, e desenrascava para levar armas e mantimentos em distâncias enormes.

Esta guerra no sul de Angola terminou com a derrota dos alemães nesta e noutras frentes evidentemente, mas o domínio total sobre a rebeldia dos Cuanhamas foi com uma batalha também célebre em Angola a batalha da Mongua com o General Pereira D'Eça.

Também nessa guerra foi usada alguma cavalaria e os Cuanhamas também usavam cavalos.

9 de junho de 2021 às 12:06 (***)

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Notas do editor:


sábado, 5 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21613: Os nossos seres, saberes e lazeres (427): Na RDA, em fevereiro de 1987 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2020:

Queridos amigos, 

Penso que o essencial desta viagem aproveitei cabalmente os apontamentos do meu bloco de notas. Nunca procurei desvendar a razão de fundo do honroso convite feito pelo Embaixador da RDA. Registou o que eu gostaria de ver e fiquei feliz pelas visitas culturais que fiz. Impressionou-me a reconstrução de Berlim e de Dresden, comparando a RDA com o que já vira na República Checa e na Bulgária, o nível de vida era muito superior, poder-se-ia dizer que havia um gosto duvidoso na habitação mas não havia nada relacionado com bairros de lata, passeando pelos mercados era enorme a variedade de frutas e legumes, e do que comi tudo tinha gosto. 

Sei que o anfitrião pretendeu que eu trouxesse uma mensagem positiva sobre as preocupações com a paz mundial e que pudesse dizer que a Alemanha de Leste era um estandarte de cultura. Agora que este meu bloco de notas vai para a reciclagem e que recordo aspetos completamente esquecidos da viagem de fevereiro de 1987, o que mais me impressiona é como em pouco mais de dois anos tudo se alterou no discurso e as expetativas dos alemães da RDA deram sinais bem distintos daqueles que o discurso oficial apregoava.

Um abraço do
Mário



Na RDA, em fevereiro de 1987 (6)

Mário Beja Santos

É o meu último dia útil em Berlim, amanhã, pela alvorada, serei recambiado para Lisboa, dou voltas à cabeça em que aeroporto fiz transbordo. 

Tudo vai começar, como habitualmente, ao romper da alva, recebi indicações de que entraremos no Ministério dos Negócios Estrangeiros pelas oito da manhã, vou receber os derradeiros ensinamentos sobre a RDA da paz e da cooperação, não me passa pela mente de que andará tudo à volta do papel dos Sociais-Democratas e da Acta Final de Helsínquia. 

Voltamos a uma década atrás, os meus oficiantes, são três, de fato assertoado, de gravatas de tons murchos, recebem-me numa sala bem iluminada, e o pontapé de saída passa pelas relações entre o Partido Socialista Unificado da Alemanha [PSUA] e o Partido Social-Democrata Alemão, da RFA. Fico a saber que o dito PSUA tinha, no início da década de 1970, boas relações com os finlandeses e os belgas. 

Cala-se um dos oficiantes e outro, com cara de muito poucos amigos, fala-me na decisão da NATO, muitos anos depois da Acta Final de Helsínquia (1975) de instalar mísseis Pershing II a pedido do Governo alemão, social-democrata e liberal. Os protestos foram muitos e diversificados, os movimentos pela paz estiveram muito ativos. Nenhum dos meus oficiantes irá ter o desplante de explicar que toda esta embrulhada começou com a decisão soviética de instalar mísseis intercontinentais balísticos SS-20 sem dar cavaco a ninguém, estava-se mesmo a ver a escalada de tensão que iriam provocar. Na continuação do discurso, o orador considerou que os Sociais-Democratas da RFA davam uma no cravo e outra na ferradura.

O primeiro oficiante retoma a palavra, desta feita a melhoria de relações entre o PSUA e o SPD da RFA. Tudo terá começado no seminário internacional sobre Karl Marx, participaram dezoito partidos sociais-democratas, nenhum dos intervenientes pôs em causa a paz, houve aproximação de posições entre o Centro-Esquerda e a Esquerda. Em 1984, o nosso líder e o líder social-democrata Willy Brandt estiveram reunidos vários dias e assinaram um comunicado sobre a paz dizendo que nunca mais de terra alemã deveria partir qualquer guerra, tudo se devia fazer a favor da paz apesar das diferentes conceções do mundo. 

As delegações dos dois partidos têm-se reunido amiudadas vezes, debatem as discrepâncias ideológicas, as leis do desenvolvimento social, uns e outros mantêm posições firmes, nós somos a favor do Socialismo avançado, os Sociais-Democratas preconizam uma sociedade de bem-estar. Têm assinado declarações conjuntas sobre armas químicas e nucleares. Procuramos sensibilizar os Sociais-Democratas para a política de paz dos países socialistas, explicamos de quem parte a guerra, procuramos cativar as forças indecisas. 

É nesse momento que o terceiro oficiante sai do seu mutismo e me dá a saber, a mim, pobre mortal, que contam com a minha mensagem dada a importância de que gozo na opinião pública portuguesa, olho o dito senhor com a maior das estupefações, sim, o senhor tem acesso à rádio e televisão, é escritor e publicista, é uma personalidade pública, é a pessoa ideal para contar o que viu, o nosso desenvolvimento pacífico e desmonte as mentiras de que temos uma das mais tenebrosas polícias políticas do mundo, de que somos subservientes de Moscovo, atoardas miseráveis.  Nós distinguimo-nos por nos preocuparmos com o objetivo final de um socialismo de justiça e equidade, estamos na dianteira a procurar resolver as questões do desarmamento, queremos postos de trabalho para todos, queremos manter as melhores relações com todos os partidos Sociais-Democratas, temos infelizmente grandes diferendos com os gregos, italianos, franceses e portugueses. Mas somos realistas, sem os Sociais-Democratas não haverá paz na Europa. Pode transmitir isso a quem de direito: temos de encontrar um entendimento muito grande, não podemos ignorar os vinte milhões de militantes de Sociais-Democratas em todo o mundo. 

E depois remeteu-se ao silêncio. Quando eu já fechava o meu bloco de notas, o primeiro oficiante retomou a palavra, ia expressar o seu ponto de vista sobre a Internacional Socialista face à Guerra das Estrelas, os Sociais-Democratas não defendem este tenebroso projeto de Reagan, no Congresso de Albufeira condenaram os projetos da Guerra das Estrelas, mas aquelas decisões não são vinculativas. Bom seria que os Sociais-Democratas continuassem a manifestar o seu repúdio.

Caminha para o meio-dia, Petra Petersen olha para o relógio, terá sido o suficiente para que os três oficiantes entendessem que chegara o fim da missa.

Gerald já está ao volante, iremos almoçar a Potsdam, no regresso terei a liberdade de ter umas horas para comprar recordações e fico feliz quando Petra me informa de que esta noite vou a um concerto no Schauspielhaus, a sala de música mais requintada da Berlim Oriental, à cautela, antes de partirmos para Potsdam, vamos passar pela praça e ver as suas proporções harmónicas e dar uma vista de olhos à Igreja dos Huguenotes e à Igreja Francesa.

Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA, felizmente já demolido
Escadaria do Palácio de Sanssouci, Potsdam

Terei a felicidade de voltar mais duas vezes a este esplendor barroco, aqui Frederico II da Prússia, o Rei Soldado, que dizia que o alemão era a língua dos cavalos, palestrou com Voltaire, os cuidados com este monumento são inexcedíveis, a folha de ouro faisca por todos os lados, já vi muita escadaria graciosa, mas atenda-se ao lance desta, a sua perfeita integração num espaço cénico sem igual. 

Verei belezas aparentadas em palácios dos czares, esta tentativa de associação entre o passeio com sombra refrescante e fontes consoladoras em dias de canícula. Por aqui passeei muito contente e depois partimos para Cecilienhof, a residência em que os três vencedores da II Guerra Mundial decidiram a partilha da Alemanha, quando já estava aberta a janela para a tormenta da Guerra Fria. 

O interior guarda todas as memórias desse encontro e das decisões tomadas. Um daqueles dias em Berlim, em plena Alexanderplatz, vi chegar um contingente do Exército norte-americano e outro inglês, fiquei a saber que faz parte do protocolo de Potsdam haver visitas de contingentes soviéticos na Berlim Ocidental e de norte-americanos e ingleses na Berlim Oriental, não passava de uma ritualidade a que ninguém dava importância.
Cecilienhof, Potsdam
Os protagonistas da Conferência da Sanssouci: Churchill, Truman e Stalin
Schauspielhaus, Berlim


Voltamos a Berlim, está decidido que compras só no aeroporto, vou passarinhar pela cidade, ao meu ritmo, entrarei na Galeria Nacional, depois na Catedral de Santa Edwiges, tem um grupo coral de fama mundial, Herbert von Karajan gravou uma interpretação da 9.ª Sinfonia de Beethoven com este portentoso conjunto, vou cirandar pelas ruas laterais, o frio ainda aperta, em determinada altura avisto guardas numa baiuca, estamos perto do muro, e sigo para uma terra de ninguém, 

Potsdamer Platz, quem te viu e quem te vê, neste exato momento não passas de um terreno espetral, tudo se alterará radicalmente com a Berlim capital da Alemanha reunificada, aqui se espalharão edifícios arrojados, o laboratório arquitetónico mais experimental de toda a Europa passará por aqui. 

Regresso ao hotel, é hora da janta, imagine-se volto a comer aquela bela sopa russa que me alimentou em Königstein, devoro aquele pão preto fresco e apetitoso, com uma ligeira camada de manteiga, nada de trutas ou qualquer peixe insípido, toca de manducar um pedaço de joelho de porco, saborosíssimo, com batata cozida e couves, nada mais. 

Faço os últimos arranjos, sigo para o concerto, se a memória não me atraiçoa tudo começou com o poema do Êxtase, de Scriabin, seguiu-se o duplo Concerto para Violino e Violoncelo de Brahms, e aqui vem uma branca para a segunda parte, era uma daquelas sinfonias majestosas e líquidas, a execução foi fulgurante mas não retive lembrança, o que significa que não me tocou.

Passeio à volta da praça, que grande beleza, vou despedir-me da Porta de Brandeburgo, é aquela sensação de atmosfera de mundo fendido, vejo ao fundo, no extenso Tiergarten, a Coluna da Vitória, esta fronteira é uma aberração, sempre se circulou por aqui em todas as direções. Encolho os ombros, só posso deplorar a situação. Ligo o televisor no quarto, Peter O’Toole discute com Richard Burton em alemão no filme Beckett, baseado na peça de Jean Anouilh e dirigido por Peter Glenville, filme de 1964, que monstruosidade, massacrar uma obra modificando-lhe a língua, e por isso fico contente que esta tropelia não aconteça em Portugal.

Para não variar, é manhã cedo e sou levado ao aeroporto pela guia e o fiel condutor. Agradeço-lhes todas as gentilezas de que fui alvo, ainda me passou pela cabeça entregar discretamente uns dólares a cada um, seria uma indignidade. E caminho para o retorno.

Resta comentar a última fotografia, é mistério que vou levar para a tumba, quando regressei ontem à noite do concerto tinha esta fotografia encostada à porta do quarto, ainda pensei em ir à receção, não sei se se tratava de uma mensagem ou de uma brincadeira. Veio comigo e aqui está o último mistério da minha viagem, não sei quem são estes militares e com toda a franqueza não sei o que hei-de fazer da fotografia. O mais importante é que eu estou pronto a refazer todo este passeio, a Alemanha para mim é um fascínio.
Gendarmenmarkt, onde a Igreja dos Huguenotes e a Igreja Francesa ombreiam o Schauspielhaus
Catedral de Santa Edwiges, Berlim
Uma das fotografias mais insólitas da minha vida
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Notas do editor:

Poste anterior de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21602: Da Suécia com Saudade (85): A base aérea de Beja e o apoio alemão ao esforço de guerra de Portugal em África (José Belo)



José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada, 
1968/70); cap inf ref, jurista,  autor da série "Da Suécia com Saudade;  vive na Suécia 
há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia; tem 180 referências no nosso blogue: 


1. Mensagem de José Belo:

Date: terça, 10/11/2020 à(s) 01:39
Subject: A base aérea de Beja e o apoio alemão

A localizacão estratégica da planície alentejana, longe de um possível teatro de guerra, foi decisiva para a instalação de uma estrutura militar de grandes dimensões que deveria funcionar como plataforma entre a Europa e os Estados Unidos no caso de uma ofensiva militar soviética sobre a Alemanha.

A instalação desta base teve papel preponderante no auxílio alemão a Portugal, destacando-se o fornecimento de equipamentos militares,sem os quais seria muito difícil a Portugal enfrentar as guerras em África. "garantindo ao mesmo tempo o tratamento em hospitais alemães de militares portugueses gravemente feridos em combate!.

Quando foi conhecido o teor do acordo entre os dois países de imediato surgiram críticas por parte dos governos africanos, obrigando o governo alemäo a "prestar mais atençã à sua posicäo externa de solidariedade com os justos anseios dos povos africanos".

A partir de 1964 assistiu-se a um progressivo arrefecimento nas relacöes luso-alemãs,  designadamente no campo militar, com reflexos na utilização prevista para a base de Beja.

Dá-se ento uma alteraÇÃo no conceito estratégico de defesa da NATO.

A obtenção de paridade nuclear entre as duas superpotências em 1966 relegava para segundo plano a rede de apoio logístico na retaguarda que tinha sido concebido para Beja.  (Será detalhe interessante o facto de o governo espanhol só autorizar a passagem de aeronaves alemãs pelo seu espaco aéreo com destino a Beja desde que os pedidos fossem solicitados com uma semana de antecedência e "caso a caso").

Foi programado alojar em Beja 5.250 cidadãos da RFA [República Federal Allemã],entre militares,funcionários,e respectivas famílias.

Näo era possível antecipar do ponto de vista humano as consequências resultantes deste súbito acréscimo de população estrangeira com um "nível de vida e culturalmente superior ao da grande maioria dos residentes da cidade".

Esperavam-se profundas transformações na ordem sócio-económica local.

E, quase espelhando problemas com as bajudas-lavadeiras na Guiné..., uma das preocupações residia no relacionamento dos militares estrangeiros com as... mulheres de Beja!

A comissäo luso-alemã que presidia à instalação do projeto militar, reclamava um código de conduta que "deveria servir de guia aos forasteiros quanto aos costumes locais". Principalmente quanto às relações com as mulheres, pois "seriam mais susceptíveis de causar conflitos com a população masculina". (G'anda alentejanos!)

As famílias abastadas de Beja foram confrontadas com o alastramento do "fenómeno militar alemão".
Não estavam a conseguir garantir a continuidade do "pessoal para servicos domésticos do sexo feminino a que habitualmente se dá a designação de...criadas de servir". (E o ditador lá voltou a "meter água" junto dos seus amigos do latifúndio. )

Os alemães ofereciam um salário mensal de 1.500 escudos que contrastava com os 300 escudos pagos pelas famílias abastadas.[em 1965, equivaleriam, a preços de hoje a cerca de 590 euros, e 118 euros, respectivamente, ou seja, os alemãs pagavam cinco vezes mais].

Por outro lado as instalacöes destinadas ao pessoal alemäo "näo deveriam incluir instalações para as criadas de servir." Estas exigências locais, entre outras, foram recusadas.

Em 1966 chegou à Base o primeiro contingente militar alemäo. Ali se mantiveram até 1993.

A estrutura militar que os alemães ergueram em Beja estava preparada para receber aeronaves de grande porte.

A própria NASA selecionou a pista como alternativa de aterragem para o Space Shuttle. Foram pistas classificadas como as de maior extensão a nível europeu.

Com uma área de mais de 800 hectares, tem condições para receber aeronaves de grande porte para além de 60 aviões tipo C-130 e mais de 300 aviões F-16.

Esta capacidade de acolher grandes meios aéreos é de importäncia extrema como base de retaguarda.
Concluídas muitas décadas desde o arranque de um projecto dimensionado para fazer face a um determinado contexto geoestratégico, cresceram as dificuldades com a manutencäo desta estrutura de grande dimensão pelos elevados custos envolvidos.

As restrições orcamentais impostas pelo governo reduziram a actividade militar na FAP e vieram a reflectir-se na manutenção e funcionamento desta Base.

Mas, e à distância no tempo, talvez seja melhor concentrarmo-nos no sério problema então surgido com as...criadas de servir!

Adaptação / condensação: J. Belo

Fontes: "Folha de S. Paulo", jornal "Público", Ana Mónica Fonseca, historiadora ("Política Externa Portuguesa/Dez anos de relaçöes luso-alemäs 1958-1968").
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21524: Da Suécia com Saudade (84): Ainda as “anedotas” do outro lado da “Cortina de Ferro”: recordações da Deutsche Demokratische Republik (José Belo)

sábado, 28 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (425): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
A vida é assim, mexemos num dossiê que tem na capa Bruxelas e aparece-nos um caderno com largas dezenas de páginas referentes a uma viagem à República Democrática Alemã, no início de fevereiro de 1987, nem por sombras eu podia adivinhar que dentro em breve, no meu televisor doméstico, eu ia ver manifestações do muro, este escavacado, os berlinenses a passar de um lado para o outro, a queda de um regime sem sangue, seguir-se-á a reunificação, tudo ao contrário do que me era dito pelos anfitriões, aquele socialismo científico parecia fadado à eternidade.
Neste dia, o que me encheu as medidas, foi o Museu de Pérgamo, como é evidente não desgostei do trabalho aprimorado para erguer das cinzas o Bairro Nicolau e creio que um dia irei partir para as estrelinhas sem ter decifrado o que é que as autoridades alemãs orientais esperavam de mim, das suas mensagens políticas, de um acolhimento bem amável e de um programa cultural inexcedível. Foi assim, limito-me a transcrever dados essenciais de um caderno, continuo intrigado, na primeira página escrevi que no domingo vou ser recebido por um arquiteto em Potsdam, o Sr. Globisch, isto deve ser uma questão da idade, lembro-me de Potsdam, se acaso me encontrei com o Sr. Globisch, já está tudo na nuvem.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (5)

Mário Beja Santos

Saímos junto da Catedral de Berlim, tenho à minha direita a fachada da Galeria Nacional, atravessamos uma ponte com motivos escultóricos altamente militaristas, avançamos para a ilha dos museus. O prato-forte deste espaço museológico é o chamado Museu de Pérgamo, é o monumento mais valioso e procurado que ali se alberga. Para surpresa de Petra Petersen, depois de ver o desdobrável do museu e a localização dos espaços, e da manifesta ênfase dada às peças mais procuradas, peço para ir ao terceiro andar ver as fotografias de toda a aventura arqueológica alemã no Próximo Oriente, no território turco, inclusive nas ilhas da Ásia Menor. As expedições arqueológicas alemãs não eram inocentes. A política de Berlim era favorável a alianças sólidas com o império turco-otomano, pretendia-se acesso ao Mediterrâneo Oriental, às matérias-primas, sonhava-se com o caminho-de-ferro Berlim-Bagdade. Apostou-se forte na arqueologia, ali estava um acervo fotográfico a mostrar escavações e o fulgor dos seus resultados. Os turcos desprezavam os gregos, os seus monumentos estavam sempre prontos para vender. E não houve qualquer dificuldade na compra do Altar de Pérgamo nem nas fabulosas Portas de Istar, um dos monumentos mais impressionantes de uma civilização perdida.
Descemos ao museu e os deslumbramentos sucedem-se, a fachada do Mercado de Mileto impressiona pela dimensão, pela harmonia das proporções, por nos deixar supor a elevação desta cultura. Como tinha pedido antecipadamente em Lisboa para visitar o Altar de Pérgamo, por ali movimentei entre aquelas lutas mitológicas de gigantes, nada tinha visto nem nada verei ao longo da vida que provoque tão grande impressão, é uma organização única do aparato escultórico, tudo agenciado para que aquela obra-prima feita de pedra, mesmo com lacunas, nos deixe em estado de choque. E depois Babilónia, perguntei-me qual o grau de conservação e restauro para que aquele cromatismo quase faiscante parece ter sido feito ontem.
Foram muitas emoções no dia de hoje, irei esta noite à Ópera de Berlim, na Unter den Linden, ver o bailado clássico Ondina, interpretações inolvidáveis e a surpresa da música de Hans Werner Henze, numa boa interpretação orquestral. Está previsto um dia em cheio, logo de manhã de novo no Bairro Nicolau, o arquiteto Viktor Schlichte não me deixa regressar a Lisboa sem eu saber perfeitamente o que fez e como fez, a partir das cinzas. A última recordação que ainda conservo é que quando saí da Ópera fui até à porta de Bradenburgo, antes de entrar no espetáculo ainda contemplei a bela peça que é a escultura de Frederico da Prússia. Mas a Porta de Bradenburgo enche-me de lembranças, percorro a Praça de Paris, vi inúmeras fotografias desta Berlim reduzida a escombros, ali perto, espetral, está o edifício do Parlamento, percorrei a Unter den Linden que tem à sua esquerda edifícios mastodônticos, como a Embaixada da União Soviética, fico ali a contemplar a fronteira da Guerra Fria, aquela porta que escapou às bombas, e mostra triunfante a quadriga da Vitória.
Porta do Mercado de Mileto, 165 d.C.
Altar de Pérgamo
Porta de Istar, Babilónia

Vou pelo meu próprio pé até à igreja românica do Bairro Nicolau, o arquiteto não me dá tréguas, conta como fez uma ligação entre aquele bairro, a área da Câmara Municipal, como organizou toda aquela arquitetura que consegue ligar harmonicamente o passado ou o presente, com o Spree ali ao lado. Estudou a fundo a história da velha basílica românica que está em estreita ligação com a fundação de Berlim, é uma “igreja-salão”. Num trabalho de reedificação aproveitaram-se fotografias de um arquivo da Prússia. O discurso deste arquiteto entusiasta dirige-se agora para a construção do bairro, como aproveitou o que terá sido um tribunal medieval, como se reconstruiu um palácio rococó. Na zona do bairro havia o restaurante mais velho de Berlim, que foi destruído durante um bombardeamento de 1943. Já saímos da igreja do Bairro Nicolau e andamos à volta do casario, 850 apartamentos, restaurantes, lojas de todo o tipo, salas de exposições e galerias de arte. Para a sua contextualização urbanística o arquiteto pôde contar com estátuas que estavam depositadas em museus, ferros forjados, inúmeros indícios do passado ficaram cravados nesta nova urbanização. A brincar, tínhamos começado às oito e meia da manhã, aproximávamo-nos das onze horas, ia ser de novo recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por alguém que eu já conhecia, o embaixador Vogel. Guardo no meu bloco de notas a conversa havida a meio da manhã de 6 de fevereiro de 1987. Eu não suspeitava mas ia receber informação sobre os apoios da RDA aos povos africanos, infelizmente não é o apoio que o Governo da RDA desejava, havia o condicionalismo da corrida aos armamentos. E fiquei a saber que os países do Tratado de Varsóvia apresentaram no início de 1986 um programa detalhado para a retoma da confiança e transferência de meios para os países subdesenvolvidos. E a lição continuou, a URSS não realiza há ano e meio um só teste nuclear, na expetativa de que os EUA aceitem a moratória nuclear, fico a saber que não aceitaram, fizeram entretanto vinte testes nucleares, querem forçar a URSS a gastar fortunas na corrida aos armamentos. E há a aposta na desestabilização, é o caso de Angola, de que as tropas cubanas são o obstáculo principal para a independência da Namíbia. Voltamos às questões africanas, limito-me a ouvir. A diplomacia portuguesa devia contribuir para que não houvesse ingerências nestes novos países independentes. Os fogos de guerra civil em Moçambique depauperam os recursos do país, os rebeldes matam os cooperantes. A RDA ajuda as organizações das mulheres comunistas, promove também a cooperação na saúde, no desporto e no comércio externo, formam os quadros africanos, a RDA construiu um complexo industrial têxtil em Moçambique, o seu custo foi suportado por um comité de solidariedade. Uma granja agrícola na região do Niassa foi destruída pela Renamo. A RDA foi forçada a retirar os seus especialistas do complexo têxtil de Mocuba. A RDA gostaria de colaborar conjuntamente com Portugal no desenvolvimento económico de Moçambique.
Findou a sessão, o embaixador despediu-se, é hora do almoço, Petra avisa-me que durante a tarde haverá nova sessão informativa, no mesmo local, e depois uma surpresa cultural. Suspiro, resignado mas Petra alegra-me, eu pedira-lhe para comer uma chucrute tradicional, com mostarda forte.
Igreja românica do Bairro Nicolau, Berlim
Estátua de Frederico, O Grande, da Prússia, Unter den Linden
Edifício da Ópera da Berlim RDA, tal como a conheci na viagem de 1987
Cartaz do bailado clássico Ondina, música de Hans Werner Henze
Porta de Brandeburgo, Berlim
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21565: Os nossos seres, saberes e lazeres (424): Na RDA, em fevereiro de 1987 (4) (Mário Beja Santos)