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sábado, 17 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24406: Agenda cultural (834): Apresentação do livro "Memórias de um Combatente", da autoria de José Ferreira, antigo Combatente em Angola, a ter lugar no Salão Nobre do Quartel dos Bombeiros Voluntários de Resende, dia 25 de Junho de 2023, pelas 16 horas (Fátima Silva e Fátima Soledade)

C O N V I T E

1. Mensagem das nossas amigas Fátima Soledade e Fátima Silva, ambas filhas de antigos combatentes do ultramar, enviada ao nosso Blogue hoje mesmo:

Boa noite, Carlos:
Temos o prazer de dar a conhecer o lançamento do livro "Memórias de um Combatente" do autor José Ferreira, também este combatente em Angola. Os seus textos atravessaram o Oceano Atlântico há mais de cinquenta anos. São testemunhos reais vividos por um jovem que se vê afastado da sua terra e dos seus.

Com a maior estima e consideração.
Fátima´s

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24282: Agenda cultural (833): Apresentação do livro "João Cardoso de Oliveira - homem e sacerdote", da autoria do nosso camarada António Mário Leitão, a levar a efeito no próximo dia 6 de Maio de 2023, pelas 16h30, na Igreja Matriz de Ponte de Lima

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Havia algo de tão íntimo nesta narrativa que Jaime Froufe Andrade me enviou em outubro de 2020 que me impediu, após sucessivas leituras que dela fiz, de publicitar a importância deste documento literário. Não há para aqui lamúria nenhuma, põem-se os dados na mesa, exibem-se os factos, fala-se de velhos que parece que têm que contar às escondidas que se fizeram homens para uma guerra para onde foram enviados ou que se juntam uma vez por ano para trocar impressões se foi ou não foi assim mesmo que aquilo se passou, isto depois de já se terem contado as baixas trazidas por mais um ano, daquele encontro para este. Não hesito em chamar-lhe monumento literário e dizer que Jaime Froufe Andrade, alferes-miliciano ranger, em Moçambique (1968-1970) lega à literatura da guerra colonial um texto de arromba, para mim está no pódio do que há de melhor, o Moçambique que ele vai soletrando sílaba a sílaba pode facilmente transmutar-se em picadas guineenses ou angolanas, é assim que se define a universalidade da escrita.

Um abraço do
Mário


Um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu

Mário Beja Santos

Os Manuscritos de R., por Jaime Froufe Andrade, com segunda edição em novembro de 2019, é um tremendo grito de desespero. No uso de uma arquitetura literária que tem escola, há um editor livreiro a quem foram parar às mãos os manuscritos, uma prosa inquieta, um carrossel de clamores, e tratada como obra póstuma cabe ao escritor burilar as tais folhas convulsas, encontrou a satisfação em dar inteligibilidade a frases descontínuas, e entramos de escantilhão num lugar de guerra, há misturas de falas, farrapos de recordações, alguém vem de mochila às costas, bornal encostado à anca, a descer a estrada da Circunvalação, com o Porto à esquerda, Matosinhos à direita. Tem um objetivo a milhares de quilómetros. Engane-se quem pense que ele vai sozinho, “Acompanha-me um infindável rol de lembranças, acontecimentos bons, maus, poéticos ou prosaicos, dramáticos, fúteis ou de mero entretenimento.”

Tudo em rodopio, em alvoroço, umas vezes estamos no presente outras vezes no futuro, ou num algures pretérito. Parece que vamos a caminho de Tete. E vamos habituarmo-nos a expressões inusuais na literatura da guerra, por exemplo, viventes-a-prazo-indefinido ou vivente-a-muito-curto-prazo. Há gente que aparece aqui com diferentes idades, tanto podem ter 25 como 90 anos, as marchas são frenéticas, quem parece delirante lembra-se que é um ranger, está a esgatanhar-se para que a memória lhe traga à escrita aquilo que se viveu e a dor como se viveu, deste modo:
“A estação quente estava no pino. Caminhávamos há várias horas pela savana. O sol, caustico, mostrava-se pior do que aguarrás. Fazia rechinar as pedras. Extenuados, trôpegos, seguíamos em fila indiana, a vários metros uns dos outros. Os corpos, sujeitos a uma temperatura de 50 graus, lembravam – se os houvesse – fósforos ambulantes, prontos a arder. O inferno mudara-se. Montara arraial nestes ermos desolados, onde parecia não haver vida.”

Quem delira e quem rememora prossegue esta viagem, é de presumir que se trate de uma fuga, haverá talvez um ponto de encontro, pois fique-se sabendo que tudo aquilo que aqui se escreve em desassossego e com raiva, estes velhos desaustinados, desmemoriados, guardavam, como dever final, imagens retiradas da net, tais como evacuação de feridos, viaturas militares esfrangalhadas, pessoal de G3 na mão a atravessar linhas de água a embrenharem-se na selva. Ponto curioso, tal como Jaime Froufe Andrade, este delirante autor dos manuscritos ainda lembra o nome de pessoas, bichos, rios e lugares que conheceu em Moçambique: Xeringa, Jaissone, Tsimbe; Cahora-Bassa; checa, maningue, saguá, tembé, chibante… é Moçambique e a guerra que lhes coube viver.

Este homem que tem objetivo, de nome Rodrigues, parece que chegou ao destino, dá entrada no hospital psiquiátrico. Agora sim, a guerra parece que está mais próxima, o Rodrigues anda dececionado com os filhos, estes inquietos, o pai não anda bem da cuca, tem muitas desconfianças, teme ser envenenado. Vai trocando informações e descobre que tem à volta antigos combatentes, há para ali alguém que grita:
“Portugal, lembras-te de nós? Não te faças de desentendido. Lembras-te? Somos aqueles que a teu mando reconquistámos a Pedra Verde, passámos dias de terror em Gadamael, pagámos muitas vezes com a vida em Mueda. Lembras-te? Fica-te mal esse teu esquecimento.”

E há os males menores, os maiores foram os que regressaram sem olhos, pernas e braços, ou ficaram estiraçados no capim, “porque tu nem com a viagem de regresso dos nossos corpos te importaste. Isso não se faz, Portugal.” Quanto aos males menores: “Batemos o queixo com o paludismo, urinámos sangue com bilharziose, fomos picados por mosquitos, mordidos por cobras; sofremos insónias com o som da quizumba, coçámo-nos, desesperados, até sangrar, com a penugem de vidro da vagem do feijão-macaco. Por ti, ingrato, até roídos fomos pela matacanha.”

Assume proporção gigantesca a litania por o país que esqueceu aqueles que mandou para a guerra, marcando-os no corpo, na alma, na consciência. Bem se grita, Portugal às vezes tem consciência do que eles passaram, dá-lhes isenção de taxas moderadoras, gratuidade nos transportes públicos, visitas aos museus nacionais, um discreto pecúlio uma vez por ano. E Jaime Froufe Andrade fala-nos no recém-morto-definitivo, alguém que tinha vivido assombrado pela guerra e fizera do mau-vinho o seu tratamento diário, a costumada vida familiar infernal, a mulher, os filhos e os netos aprenderam que existe uma síndrome pós-traumático.

Lá no hospital ou coisa parecida parece que há propósitos de partir para uma operação especial. Então, estoira na memória aquela recordação de que os Chiticula estava a ser atacado, um cabo de transmissões gritava desesperadamente de que aquela secção que montava guarda a máquinas de Arma de Engenharia, estava a embrulhar, à frente de um grupo de voluntários o nosso ranger pôs-se ao caminho. “Portugal, lembras-te de nós? Não te faças desentendido. Lembras-te?” Tudo isto se contava lá à malta do hospital ou da pensão onde se encontravam aqueles velhos que tinham andado pela guerra. Mas que fique bem claro que era mesmo um hospital e todos aqueles voluntários, em estado de grande tensão, lá vão progredindo a corta-mato, entram em Chiticula, não há camaradagem maior do que percorrer todos aqueles perigos e abraçar gente amiga. Tudo isto se vai contando entre viventes-a-prazo-indefinido.

A operação não descola, a falta de memória é evidente, alguém consola o alferes, quando ali chegarem e cheirarem o capim, a festa vai continuar. Sabemos agora que está tomada a decisão, vão partir em boa companhia. “Um último aceno e os primeiros passos rumo ao objetivo, situado a milhares de quilómetros. Indiferentes a uma lua pequena e desconsolada que entristece a noite, vamos já a descer a estrada da Circunvalação, com o Porto à esquerda, Matosinhos à direita.”

Estou finalmente a ressarcir-me do silêncio em que guardei esta joia que me foi enviada pelo Jaime Froufe Andrade, com data de 19 de outubro de 2020, é uma narrativa prodigiosa, uma escrita incandescente que não pode deixar indiferente quem andou de armas na mão por aquela ou por outras picadas, cada um de nós teve o seu Tete. O que posso dizer a quem me lê e ao Jaime Froufe Andrade, que conheci no Jornal de Notícias, onde escrevi 28 anos a fio, é que o ponho no pódio dos grandes livros que se escreveram da guerra de Moçambique, logo a seguir a Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz, e Olhos do Caçador, de António Brito, é narrativa de arromba, mais tocante monumento ao antigo combatente esquecido não há.

O Alferes Jaime Froufe Andrade e um guerrilheiro da FRELIMO.
Imagens extraídas do site Dos Veteranos da Guerra do Ultramar
Jaime Froufe Andrade, em 2015, durante uma entrevista
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24334: Notas de leitura (1584): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24316: Notas de leitura (1582): Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
O escritor Álvaro Guerra esteve na Guiné entre 1961 e 1963, os seus primeiros livros guardam memória da vida que levou no Sul, ele foi um combatente na região Sul, aqui recebeu ferimentos. Os livros "A Lebre", "O Disfarce", "Memória" e "O Capitão Nemo e Eu" (este de 1973) estão salpicados de episódios de guerra e de fascínio por todos aqueles horizontes de floresta, mistérios e afetos. "Memória" é um processo experimental e não um livro de contos, como alguma crítica anota. É uma escrita quase automática, textos fragmentados, por eles perpassam tiroteios na mata, recordações de infância, amores parisienses, o esplendor da natureza africana, até um episódio da chegada da sua unidade militar à Guiné em 1961, quando, à falta de instalações, foram metidos no Liceu de Bissau onde ocorreram cenas hilariantes. Dentre esses textos fragmentados o que se intitula "Ponta Tenente" é uma elegia de paixão perante a exuberância da natureza, pujante, mas onde o clima e a paragem de civilização podem reverter a favor das leis da selva, talvez seja esta a grande metáfora de construir e abandonar, a selva sufoca tudo quanto os homens construíram e abandonaram.

Um abraço do
Mário



Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra

Mário Beja Santos

Álvaro Guerra foi combatente da Guiné (1961-1963), recebeu ferimentos, depois de regressar estudou em Paris, onde viveu até 1969, praticou jornalismo em Portugal, foi diplomata. Em termos literários, esboçou inicialmente uma atração pelo Neorrealismo, em Paris afeiçoou-se pelo movimento Nouveau Roman, que teve entre as suas figuras mais representativas Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor e Claude Simon. Tratava-se de uma arquitetura narrativa de fragmentos, prosas aparentemente desencontradas, muitas vezes sem sequência cronológica, fez voga poucas décadas e não deixou continuadores, apesar de grandes criadores literários, como José Saramago, terem urdido construções espessas, autênticos blocos sem cedências a pontuação, irem beber ideias a tal processo narrativo.

"Memória" é uma das primeiras obras de Álvaro Guerra, abre com um tropel discursivo em que a sua memória regressa ao mato, numa cadência alucinante: “no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões zumbidos aos ouvidos meus sentidos todos na fusão com o nada e desesperado disso que eu sabia ser tarde para a escolha que não fiz e matava e no meio desse calor morria e me abria o caminho da justiça sem voz…”.

Houve quem escrevesse que era um livro de contos, não acredito, são textos recitados à volta de um eixo central, é o que vem à memória, quase de forma automatizada, há infância, há mesmo um passado colonial guineense que ele vai descrever admiravelmente no texto Ponta Tenente, falará dos seus amores em Paris e não escusará dizer-nos o que pensava da sua identidade: “Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sonho, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade-destino”. Um dos seus textos deste seu livro foi escolhido por João de Melo para a antologia "Os Anos da Guerra", tem seguramente a ver com a sua chegada a Bissau em 1961:
“A companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, quadros pretos, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio, bicos de Bunsen, estalactites e estalagmites, poliedros, frascos, boiões, um esqueleto muito pouco convincente e, ainda, como extra ali colocado para maior comodidade da tropa, alguns fardos de palha. Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro”.
A dita soldadesca ali montou a sua logística, adaptou-se, a palha serviu de colchão, apareceram cozinhas rolantes com uma refeição quente, houve protestos, até se brincou com o esqueleto.

Mas é o texto intitulado "Ponta Tenente" que merece as honras da casa, no que tange às memórias guineenses. Pode muito bem ter acontecido que Álvaro Guerra tenha conhecido os escombros desta granja implantada no Rio Grande, rebuscou dados históricos e deu-nos uma prosa aliciante, injustamente esquecida:
“Sangrada a terra por viagens sem regresso que levaram pais e filhos nos bojudos porões dos veleiros, restou da sangria a dissimulada lembrança e o silêncio e a vontade de Deus que tudo pode, até chegar e instalar-se o Tenente, o branco, que parecia não vir buscar nada e pelejou ao lado dos homens contra a pilhagem de Amadu Paté Coiada, régulo do Gabú, e contra o veneno de serpentes, os insetos, as febres, os tornados, a sede e a traição das onças e dos enviados do chão francês. Durante a guerra, montou quartel à beira do Rio Grande, junto do Cais dos Escravos; pelo Tcherno Kali possuíam os dois mais fogosos cavalos da região e repartiam entre si as mais belas virgens, em haréns de pacotilha, sem ofensa de Cristo e de Alá…”.

O tenente dedica-se à agricultura, há um vapor, de nome Maria, e cujo capitão, o cabo-verdiano Vicente, transporta as suas laranjas para o mercado de Bolama. Estas laranjas atingem uma carga simbólica que toma conta da narrativa, medram numa autêntica luxúria, é uma reprodução que abre caminho a uma vitória da agricultura, algo sem precedentes, um estranhíssimo milagre saído do ventre da terra:
“Os pés de laranjeira trazidos da metrópole com mil cuidados puseram-se a crescer, floriram um ano depois, deram as primeiras laranjas no segundo e, a partir do terceiro, o Tenente podia ter enchido com eles uma frota de cinco ou seis barcos iguais ao vapor Maria, na época da colheita, quando Ponta Tenente cheirava a laranja a três milhas de distância e grandes montes de frutos apodrecendo ao sol ladeavam a álea das acácias rubras que iam do tosco cais de tábuas de pão-sangue até à casa grande. Experimentadas como adubo nas searas, as laranjas ajudaram a crescer um amendoim ligeiramente adocicado e grossas e longas raízes de mandioca não totalmente brancas mas rosadas. Passados anos, Ponta Tenente florescia: ananases e abacaxis enormes e dulcíssimos também cresceram e se multiplicaram, o decrépito vapor Maria passou a fazer a viagem três vezes por mês, mas não era possível deslocar sequer a quinta parte da produção. Não só as laranjas apodreciam em Ponta Tenente. Legiões impressionantes de formigas pretas investiam periodicamente a casa grande, o armazém, a loja, que círculos de fogo tentavam defender dos ferozes ataques: gibóias, surucucus, cobras-verdes abundavam nas proximidades e realizavam incursões frequentes atraídas pela abundância, sem falar nos fedorentos saninhos, nas lúgubres hienas, nos destruidores bandos de macacos”.

Dá-se o envelhecimento do tenente, fica artrítico e grande consumidor de aguardente de cana ou vinho de palma. Inopinadamente, o vapor Maria um dia trouxe a mulher e o filho do tenente que não o viam há 14 anos, não suportaram o clima e reembarcaram no vapor, no meio do odor enjoativo do gergelim e dos ananases. Vieram as pragas da mosca, aquela empolgante civilização da Ponta Tenente vai gradualmente chegar ao sono profundo, a selva reocupa o lugar espoliado, a presença humana entrou em vias de extinção: “Nesse ano, morreu o Tcherno Kali, longe, no exílio do chão de Cacine. Meses depois, o tenente mobilizou tudo o que sobrava da população da tabanca para a colheita das laranjas, que são particularmente doces e sumarentas, e em número impressionante. Montanhas de laranjas rodeavam a casa grande, a álea das acácias rubras, e começaram a decompor-se, a espalhar um cheiro intenso, doce primeiro, acre, depois, à espera de uma frota imaginária que havia de as restituir à sua origem, porque o Tenente gritava, bêbado, trôpego, agitando uma das muletas como um sabre, nos inconcebíveis limites da loucura, ‘Vieram da China, hão-de ir para a China!’ ”.

E este texto parabólico sobre o mundo tropical onde as regras vegetais podem ter uma ordem bem contrária à dos humanos deixa o seu recado, através da simbólica de que tudo pode crescer naquelas terras úberes da Guiné, e por isso também nos fala da vingança da selva, de que tudo pode apodrecer, pode mesmo dar-se uma ofensiva da baga-baga que reduz ao estéril a exuberância de uma agricultura florescente e a terra pujante definha, verga-se à erva-daninha, ao mortífero clima.

A obra Memória bem merecia ser reeditada, revela a capacidade literária de um Álvaro Guerra ainda jovem e ainda muito ligado à sua experiência guineense.

Monumento a Álvaro Guerra em Vila Franca de Xira
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24309: Notas de leitura (1581): A economia guineense em 2017: oportunidades de import-export do lado português (Mário Beja Santos)

terça-feira, 2 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24276: Notas de leitura (1578). Lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro, "O Balanço de Uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.)...Vídeo com a recensão crítica do Presidente da República

 


O Presidente da República faz, de improviso, uma recensão crítica do recente livro do ten gen ref Leandro Garcia, "O Balanço de uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.), Cortesia do autor. O vídeo (que não está na página oficial da Presidència da República) chegou-nos, com pedido de divulgação,  por mão do Virgínio Briote, antigo alf mil 'comando' que esteve na Guiné com o então cap 'cmd' Garcia Leandro (tem 1o referências no nosso blogue mas não faz parte da nossa Tabanca Grande).





1. Mensagem do Virginio Briote, nosso coeditor jubilado, um histórico do nosso blogue (nascido em Cascais, frequentou a Academia Militar, e foi alf mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (Jan-Mai 1965); fez o 2º curso de Comandos do CTIG, comandou o Grupo Diabólicos (Set 1965 / Set 1966); regressou em Jan 1967; casado com a Maria Irene; foi quadro superior da indústria farmacêutica; editor literário do livro de memórias do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Portuguès", publicado em 2010, sob a chancela da Associação de Comandos):

Data - segunda, 24/04, 20:17 (há 2 dias)
Assunto - Vídeo com o Presidente da República por ocasião do lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro

Luis Graça e Carlos Vinhal, Caros Camaradas

O  meu antigo Cmdt CCmds, Garcia Leandro,  acabou de publicar o livro “O Balanço de uma Geração” (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp). 

Não pude estar presente (no dia 17 do corrente, na Fundação Calouste Gulbenlian) mas o general Garcia Leandro enviou-me a declaração do PR sobre a referida obra. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa aborda o tema da obra de forma interessante.

O vídeo, reproduzido acima, aqui disponível,  na conta You Tube / Luís Graça. Cortesia de Garcia Landro (8' 01")


Abraço do Virgínio Briote

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2. Mais  informação sobre o livro e o autor:



Neste livro dedicado à sua geração, o autor faz uma análise integrada de Portugal, no passado e no presente, com particular foco nos séculos XIX e XX e sobretudo nos consulados de Salazar e Caetano e da III República. Além disso, perspectiva o futuro possível, com base na sua vivência e testemunho.

De um modo articulado e objectivo, procura explicar a situação de Portugal a partir da década de 1950 e, nesse contexto, o comportamento de Salazar e de Caetano até 1974. Mas vai além desse período, pois faz o enquadramento internacional desde o século XIX, numa contribuição para interpretar a nossa História e como chegámos ao Estado Novo, depois de décadas muito difíceis e com grandes fragilidades.

Para o século XX, a sua análise, assente em dados concretos e factos vividos, aborda a questão ultramarina, os problemas, como foram encarados a partir do início da guerrilha em Angola e o que antecedeu o 25 de Abril de 1974. Que significou esse pedaço da História para a geração nascida durante a II Guerra Mundial e para as populações do então Ultramar?

Além de reflectir sobre esta questão e o funcionamento da III República, o autor analisa a reconstrução das Forças Armadas e das Forças e Serviços de Segurança, a sua modernização e a internacionalização. Ajudando a compreender este mundo em mudança, Garcia Leandro antevê como poderá ser o futuro do país a curto prazo, os problemas que se podem pôr a Portugal e a nossa viabilidade.

Este é um livro que faltava para uma compreensão melhor e independente de Portugal e das hipóteses que se porão para o futuro mundial.


Autor > 
José Eduardo Garcia Leandro


(i) nasceu em Luanda (1940):

(ii)  foi tenente-general do Exército desde 1998;

(iii) a sua vida profissional dividiu-se:

(iii a) entre o antigo Ultramar (Angola, 1962-1964 e 1970-1972; Guiné, 1965-1967;  e Timor, 1968-1970;

(iii b) tendo sido governador de Macau entre 1974- 1979);

(iii c) as funções de comando, a nível nacional e internacional (conselheiro militar da Delegação de Portugal junto da NATO entre 1987-1990, comandante da Componente Militar da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental da ONU em 1996, diretor do Instituto de Altos Estudos Militares e do Instituto de Defesa Nacional, e vice-chefe do Estado-Maior do Exército);

(iii d) e o ensino superior (no Instituto de Altos Estudos Militares, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa);

(iv) teve participação ativa em várias entidades ligadas à cidadania, foi membro do Conselho Geral da Universidade Aberta e presidente da Fundação Jorge Álvares, de 2016 a 2021, onde se mantém como curador;

(v) é académico,  correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa e membro do Conselho Supremo da Sociedade Histórica da Independência de Portugal;

(vi) publicou, em 2011, o livro "Macau nos Anos da Revolução Portuguesa - 1974/1979" e coordenou o livro "Portugal e os 50 anos da Aliança Atlântica", lançado em 1999 pelo Ministério da Defesa Nacional.

Fonte: Wook (com a devida vénia)

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos e itálicos: L.G.]
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Nota do editor;

Último poste da série > 1 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 23 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24165: Facebook...ando (73): "Palco Sombrio", de Alice Caetano (Almada, Emporium Editora, 2020, 276 pp.): Uma narrativa dinâmica centrada nos relatos do homem de teatro e ex-cap mil, Carlos Nery, CMDT da CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)



Capa do livro de Alice Caetano, "Palco Sombrio:  Guiné - Guerra Colonial e Actos Cénicos" (Almada, Emporium Editora, 2020, 276 pp.)


1. Mensagem de Alice  Caetano Tabanca Grande Luís Graça, com data de ontem, 19h00:

Boa tarde. Escrevi este livro recentemente. Intitula-se "Palco Sombrio: Guiné . Guerra Colonial e Actos Cénicos". Para a sua construção contei com a contribuição de algumas entrevistas a antigos militares, entre as quais a Carlos Nery, obtendo o seu maior contributo. Havendo interessados em adquiri-lo, enviarei pelo correio. Obrigada.


2. Sinopse do livro:

Com a Guerra Colonial na Guiné em pano de fundo, “Palco Sombrio” é uma narrativa dinâmica centrada nos relatos do capitão miliciano e ator, Carlos Nery de Araújo. Nunca será demais desconstruir, desmistificar e descolonizar o pensamento, repor a verdade e a mentira de histórias de sofrimento e coragem. Num magistral jogo de alternância entre o histórico, o biográfico e o ficcional, Alice Caetano transporta o leitor para coreografias de vida e teatros de guerra, palcos de irreversíveis ações individuais e coletivas onde, para o bem e para o mal, tantos gestos de amor e de ódio aconteceram.

Fonte: Emporium Editora (com a devida vénia...)


Leiria Monte Real > Palace Hotel Monte Real > 26 de Junho de 2010. V Encontro Nacional da Tabanca Grande > A paixão do teatro e da Guiné: o João Barge (e o Carlos Nery... (*).  "Os Gandembéis", poema de autoria coletiva (mas com forte contributo do poeta João Barge, 1944-2010), escrito em 1969, retrata a epopeia da CCAÇ 2317 em Gandembel e Ponte Balana. 

Infelizmente o João Barge iria morrer uns escassos meses depois, no príncipio de dezembro de 2010.(**)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. Sobre o Carlos Nery, que vai fazer 90 anos  no próximo mês de maio:

O Carlos Nery Gomes de Araújo, meu vizinho de Alfragide, natural do Funchal, onde nasceu em 1933 (vai fazer 90 anos em maio próximo), bancário do Banco de Portugal, 
reformado, homem do teatro amador (como ator e encenador na Companhia Maior), foi Cap Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)... 

Tem 36 referências no nosso blogue e várias histórias publicadas... Um grande senhor e bom camarada... Apresentou-se à Tabanca Grande em 18/4/2010:



Obrigado, Alice Caetano, pela notícia do livro (***). Um abraço ao nosso camarada e teu sogro Carlos Nery. Diz-lhe que queremos associar-nos à festa dos seus 90 anos!... E dispõe do nosso blogue, agora que és amiga da nossa página no Facebook, Tabanca Grande Luís Graça.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...).


Capa da revista do Expresso, edição de 16 de Janeiro de 1993.

"A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral" (*)

1. Segunda e última parte do artigo de José Pedro Castanheira (JPC), "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?" (Semanário "Expresso", edição de 22 de janeiro de 2023, Revista, pp. E|32 - E|37), publicada trinta anos depois da reportagem de 1993 (vd. capa, acima, da Revista do Expresso, de 16 de janeiro desse ano). 


JPC, jornalista e escritor, de 70 anos de idade, dedicou perto de metade da sua vida a tentar  responder à pergunta sobre o "autor moral", o "mandante",  da morte de Amílcar Cabral (AC) e a respetiva teia de cumplicidades . Desde 1993, ele tem explorado quatro hipóteses de investigação, apontando para os presumíveis "mandantes" do crime: 

(i) uma ação do gen Spínola e dos seuseus íntimos colaboradores, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras (a semelhança do que acontecera, em 1965, com o gen Humberto Delgado, assassinado com a sua secretária depois de cair numa cilada, em Espanha; 

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana).

Na nota de leitura anterior (**) fizemos, resumidamente, o ponto da situação sobre  o que se sabia sobre uma  eventual participação da parte portuguesa: não há indícios, nem factuais nem documentais, que permitam incriminar quer o gen Spínola (na altura, governador-geral e comandante-chefe da Guiné) quer a polícia política do regime.

Na segunda parte do seu artigo, o JPC explora a informação que ele tem continuado a recolher  sobre o eventual envolvimento de Sékou Touré bem como dos grupos que, dentro do PAIGC, podiam ter razões para assassinar o  seu  líder. 

Sékou Touré tem, contra si, o facto de ter "[recebido] no palácio os assassinos de Cabral ainda o cadáver estava quente, após o que os enviou para a tenebrosa cadeia de Camp Boiro, onde foram interrogados e torturados por forma a alterarem o sentido do seu depoimento — como o testemunhou o cabo-verdiano Alcides Évora (Batcha), convocado para servir de intérprete da polícia de Conacri" (JPC, Revista, E|36).

Dos arquivos de Conacri, o silêncio é total.  O que não admira,  quando se sabe que Sékou Touré, heroi da luta anticolonialista, governou com mão de ferro o seu país, de 1958 até ao ano da sua morte, em 1984.

 JPC também não conseguiu entrevistar Leopoldo Senghor (que suspeitava do envolvimento de Sékou Touré na morte do AC), mesmo munido de uma carta pessoal do então presidente da República Portuguesa, Mário Soares,

Dos franceses (que tudo fizeram, ao que parece, para derrubar Sékou Touré, inimigo fidalgal da França, antiga potência  colonizadora) também não houve luz verde para consultar, como era previsível,   os arquivos  secretos das "secretas", o "Service de documentation extérieure et de contre-espionnage" (SDECE). Idem, por parte da Itália, do Vaticano, etc., com os seus arquivos fechados a sete chaves.

Dois diplomatas da antiga Jugoslávia estiveram nas exéquias do AC, em Conacri, tendo constatado (e relatado) "um largo descontentamento dos ativistas e combatentes do PAIGC" em relação ao seu secretário-geral e líder histórico. 

Agostinho Neto, membro da Comissão Internacional de Inquérito, revelou, por sua vez,  que foram ouvidos cerca de 500 membros do PAIGC, presentes em Conacri, e desses "só 20 se exprimiram abertamente por Cabral".  De resto, parece que toda a gente sabia da "morte anunciada" do AC, em Conacri, exceto os cabo-verdianos... 

Deve-se realçar que tanto as informações dos diplomatas jugoslavos como de Agostinho Neto são de fontes secundárias. JPC cita-os em segunda mão. 

Infelizmente, por outro lado, diz JPC, "dos interrogatórios efetuados pelas  três comissões de inquérito nada se sabe. Muitas das confissões foram  arrancadas sob tortura. As cassetes áudio e/ou as respetivas transcrições desapareceram". Estamos a falar de um total de 465 pessoas!...

E o que é que resultou do apuramento da verdade dos factos e dos implicados na conspiração que levou à morte de AC ?... Houve "43 acusões de participação no golpe, 9 de cumplicidade e 42 de suspeitos. Todos guineenses"...

Como Pilatos, Sékou Touré lavou as mãos  e entregou-os ao PAIGC para fazer um simulacro de julgamento revolucionário e passá-los a seguir pelas armas, "nas regiões libertadas", para lá da fronteira.   

Não se sabe ao certo quantos fuzilamentos é que houve. JPC aponta para um número que parece ser mais consensual entre as diversas fontes: uma centena, não havendo na lista nenhum cabo-verdiano

"Na minha investigação, investiguei 23 nomes, entre os quais o matador, Inocêncio Cani, e os alegados cabecilhas, Momu Touré e Aristides Barbosa", anteriormente libertados por Spínola do Tarrafal.

'Nino' Vieira, entrevistado por JPC em Bissau,  falou da "matança de muita gente". Mas ele sempre desmentiu as insinuações ou suspeitas do seu envolvimento, de que se começou a falar mais abertamente depois do seu golpe militar de 14 de novembro de 1980.  De qualquer modo, na Guiné-Bissau, ainda hoje, há um silêncio sepulcral sobre o caso da morte do AC, enquanto em Cabo Verde o assunto continua a suscitar viva discussão.

JPC tentou, também em vão, recolher depoimentos de membros da Comissão Internacional de Inquérito. Abordou o embaixador de Cuba, em Conacri, Óscar Oramas,  um dos primeiros a chegar ao local do crime: não só confirmou  as más, mesmo péssimas, relações entre Osvaldo Vieira e Amílcar Cabral, como apontou a sua presença na cena do crime, "escondido atrás daquelas árvores" (sic)... 

Mesmo munido de uma carta de Manuel Alegre, amigo do embaixador da Argélia, dos tempos da rádio de ARoel,   Messaudi Zitouni, JPC nunca conseguiu o depoimento deste... 

Também esteve duas vezes com Joaquim Chissano..."Disse-me que reservava o relato para as suas próprias memórias. Até agora só saiu o primeiro volume (...) que termina em 1963". 

Da extensa bibliografia que já se publicou sobre AC (muito mais do que sobre qualquer outro dos líderes nacionalistas  de países como Angola ou Moçambique), o JPC destaca o livro de Julião Soares Sousa ("Amílcar Cabral. Vida e Morte de um Revolucionário Africano", Veja, 2012). Na sua opinião ( e na opinião de outros especialistas), é "a melhor e mais completa biografia" do AC. (Resultou de um trabalho académico do autor, o seu doutoramento em história pela Universidade de Coimbra.)

No capítulo sobre o assassínio do AC, Julião Soares Sousa, que é guineense, diz  não haver "margem para dúvidas": (...) "foi obra de dissidentes do PAIGC, com uma grande probabilidade de ter sido também um grande complô em grande escala, que ultrapassa as fronteiras da Guiné-Conacri" (citado por JPC, Revista, E|37).

JPC cita ainda duas fontes, a seu ver, importantes: o livro-testamento de Aristides Pereira e a série da RTP, "A Guerra", realizada por Joaquim Furtado: o episódio nº 25. emitido em 2012, é inteiramente consagrado à morte de AC. Pedro Pires é um dos muitos entrevistados, e o seu depoimento deve ser tido em conta (mesmo que ele continue, ainda hoje, a manter a sua tese  do complô português). 

Aristides Pereira, sucessor de AC à frente do PAIGC,  entrevistado por José Vicente Lopes ("Minha Vida, Nossa História", Spleen, 2012), "fala sem filtros, com uma clareza e limpidez totais, acentuando de forma porventura definitiva a responsabilidade de um importantíssimo sector da ala guineense na elimição de Cabral" (JPC). Cite-se as suas palavras: 

"Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (e de facto, o não o era: nasceu em Bafatá,  viveu apenas 10 anos em Cabo Verde onde fez o liceu, o que é pouco mesmo numa vida curta de 49 anos...).

Chegados ao fim da leitura do artigo, alguns leitores dirão que a montanha pariu um rato... No meu caso (não li o livro de JPC, publicado em 1995), fico com as ideias mais arrumadas. O autor fez um trabalho de investigação jornalística, sério, intelectualmente honesto, com rigor e método. Não é um trabalho académico. Mas tem 4 hipóteses de investigação, todas elas verosímeis.  

As duas primeiras, envolvendo a parte portuguesa, perdem hoje força, por falta de provas. Não se trata de "limpar a honra" dos portugueses (os militares e a polícia política), mesmo que entre os cabecilhas do matador, Inocêncio Cani, estejam dois ex-tarrafalistas, Momu Touré e Aristides Brabosa. As hipóteses iii) e iv) ganham força, nesta e noutras investigações mais recentes como a do cabo-verdiano Daniel dos Santos ("Amílcar Cabral: um outro olhar", Lisboa, Chiado Editora, 2014).  

[ Condensação / negritos: LG]
_________

Notas do editor:

 (*) Vd. postes de 


29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 7 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Último poste da série "Notas de leitura": 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24062: Notas de leitura (1554): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da  Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)


1. O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, já aqui fez uma exaustiva e brilhante  recensão do livro do Luís Cabral (*), livro de memórias, talvez um pouco  esquecido,  do meio-irmão de Amílcar Cabral, escrito no seu exílio.

Recorde-se que Luís Cabral esteve  detido mais de um ano no Forte da Amura, em Bissau, logo a seguir ao golpe militar de 'Nino' Vieira, seu primeiro ministro, em 14 de novembro de 1980,  até ser liberto por pressões internacionais, acabando por seguir para Cuba e Cabo Verde e por fim para Portugal, em 1984, país onde viveu até à sua morte, em 2009, vítima de doença prolongada. (Ironicamente, um mês depois de 'Nino' Vieira.) (**). 

No prefácio do livro de 461 pp., com data de outubro de 1983, e escrito na Praia,  Cabo Verde, ele diz que nunca lhe tinha passado pela cabeça escrever um livro sobre a sua vida e a sua luta. Foi na solidão da Amura, que foi tentado a escrever. E fê-lo sobretudo em homenagem ao Amílcar e demais companheiros: 

(...) "Mais tarde, já em liberdade, alguns dos meus antigos companheiros dão o seu apoio e uma apreciação amiga a este primeiro trabalho sobre a vida e a luta com o Amílcar, e, fornecendo-me importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentacão e encorajando-me a continuar a escrever as minhas lembranças sobre a heroica luta que conduziu os nossos povos à liberdade e independênci nacional" (pág. 9).

E no fim acressenta:

(...) Se é que tenho a uma pretensão, é a de considera que fiz o melhor do meu esforço para que tudo o que foi dito neste trabalho corresponda à verdade dos factos registados, embora com a consciência de, em muitos casos, não ter ainda chegado o momento de dizer toda a verdade" (pág. 11).

Não sei se o Luís Cabral chegou a ter a oportunidade, nomeadamente em entrevistas que foi dando, de "dizer toda a verdade" até ao momento da sua morte, em 2009, no antigo Hospital do Barro, nos arredores de Torres Vedras.  Ao que parece, estava nos seus planos escrever um segundo livro de memórias sobre a sua experiência como presidente da República da Guiné-Bissau. Teve 25 anos para o fazer, antes de morrer. Não chegou, infelizmente,  a escrevê-lo ou a publicá-lo. O que é pena.

Temos, todavia, que concordar que este seu primeiro (e único) livro é um documento importante para a historiografia da guerra colonial na Guiné, tanto mais que Luís Cabral era o nº 2 ou 3 do PAIGC, membro do "Bureau Político" e do "Conselho de Guerra", além de ter sido o primeiro presidente do conselho da República da Guiné-Bissau. Foi, além disso, íntimo confidente, grande admirador e fiel executante do pensamento e da estratégia  do irmão. Por outro lado, sabemos que os seus antigos companheiros, da cúpula do PAIGC,  já morreram todos ou quase todos, tendo levado para a cova os seus segredos, as suas melhores e piores memórias. Tirando Luís Cabral e Aristides Pereira, quem escreveu mais ? Ou dá a cara, falando em público, como é o caso do 'comandante' Pedro Pires ?!

Alguns antigos combatentes, membros da Tabanca Grande e/ou leitores do nosso blogue, nem sempre se sentem confortáveis quando falamos aqui do PAIGC, dos seus dirigentes, do seu pensamento e da sua história...como se o IN que combatemos, no TO da Guiné, não tivesse  um nome e protagonistas com um rosto... Como se tivéssemos combatida contra extra-terrestres!... Amílcar Cabral e Luis Cabral, por exemplo, estão na "lista negra"... Fazem parte dos ódios de estimação de alguns de nós... 

Mas se voltamos hoje a uma (re)leitura da "Crónica da Libertação" não é para santificar ou diabolizar ninguém, é apenas para melhorarmos e enriquecermos o conhecimento que temos daquele conflito em que estivemos envolvidos. E que não foi um conflito qualquer, Foi uma guerra prolongada e, em muitos casos, sangrenta e cruel. E, ainda mais do que isso, completamente estúpida e inútil.

Neste caso há "factos & mitos" que devemos pôr em evidência, numa linha que nos é cara, aqui, no blogue, que é a exploração das "memórias cruzadas", na continuação dos escritos de camaradas nossos como o Jorge Araújo, o Mário Dias, o António Rosinha ou o Patrício Ribeiro (estes dois últimos já como "paisanas", na República da Guiné-Bissau)...

Não vou cotejar o que diz (e muito menos o que omite, esquece, branqueia ou falsifica) Luís Cabral com o que os biógrafos de Amílcar Cabral  investigaram e escreveram. E são já  várias  as biografias do líder histórico do PAIGC.  Confesso que ainda não as li, conheço-as apenas das recensões que têm sido feitas, e nomeadamente pela mão do nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos. É preciso tempo e vagar para se ler, e a lista de prioridades de cada de um de nós é diferente. 

Da "Crónica da Libertação" vou, ao longo de vários postes, reter alguns pontos que me chamaram a atenção e que julgo ser também do interesse dos nossos leitores conhecer ou apurar melhor...  Por exemplo, a relação do PAIGC com os fotojornalistas e os cineastas, nomeadamente europeus, que ajudaram a alimentar o mito das "áreas libertadas", do "poder popular", dos "armazéns do povo",  das escolas e dos hospitais de campanha... 

Noutros casos, há perguntas que ficam no ar: teve ou não Luís Cabral um "copydesk" (editor literário) que o ajudou na feitura do seu livro ? Recordo-me de o saudoso Leopoldo Amado (vítima da pandemia de Covid-19, em 2021) me ter confidenciado, há uns largos anos atrás, na Feira do Livro de Lisboa, que a obra "O Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países", de Aristides Pereira  (Lisboa, Editorial Notícias, 2003, 974 pp.)  tinha sido em grande parte escrita por ele...

Não há nenhum mal nisso: muitos políticos e outras celebridades (nomeadamente do mundo do espetáculo) recorrem a jornalistas e escritores profissionais, como "copydesks", ajudando-os a publicar as suas memórias ou autobiografias...

Na ficha técnica do livro de Luís Cabral, editado em 1984 sob a chancela de "O Jornal", não há menção sequer de um revisor técnico e/ou de texto. Mas admitimos que tenha tido a ajuda de alguém na parte da escrita. No prefácio, o autor agradece, sem os citar, a "alguns dos seus antigos companheiros" que, além do apoio e estímulo, lhe forneceram "importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentação".

O livro foi publicado em julho de 1984. O prefácio escrito em outubro de 1983. E a detenção na Amura decorreu, presumivelmentre,  entre novembro de 1980 e o  final do ano de 1981 (13 meses). Esteve depois exilado  em Cuba e a seguir em Cabo Verde, nos anos de 1982 e 1983. 

O "making of" do livro deve ser deste período, mas curiosamente as referências a Cuba e à participação dos "internacionalistas cubanos" na luta ao lado do PAIGC são escassas ou discretas... Fala de um ou outro médico, mas nem sequer nos dá um número (mesmo que aproximado) dos cubanos que participaram na "luta de libertação", desde 1966. Como se isso se tratasse de um "segredo de Estado"...

O autor é também avaro ou omisso quanto a outros números: população sob controlo do PAIGC, tabancas, escolas, hospitais, armazéns do povo, "barracas" ou "bases", homens armados (incluindo milícias), mortos e feridos, ajuda externa, etc. (Quanto a desertors portugueses, acolhidos pelo PAIGC, fala em 20, se não erro.)

Luís Cabral nunca foi um "operacional", ou um "combatente", de armas na mão... Nem devia ter qualquer formação militar específica... De resto, nunca foi tratado como um comandante, como 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira ou Pedro Pires.  Pertencia ao aparelho político, ao "bureau"...  Mas tinha como pelouro, no interior do território da Guiné, a "reconstrução nacional das áreas libertadas" (sic). E, como Amílcar Cabral não tinha tempo para andar no mato, a caminhar, a pé, dias e dias, até à fronteira, o "mano" fazia as funções de "inspetor-geral"... dos combatentes e da população que os suportava... Em contrapartida, tinha boa memória para nomes, o Luís... 

De qualquer modo, é o homem de confiança do irmão para missões difíceis, nomeadamente na Região Norte e no Senegal (cujas autoridades só tardiamente abrem, ao PAIGC, o "semáf0ro verde" para o trânsito de homens armados, e de carregamentos  de armas e munições; e por essa razão o Luís passava mais tempo em Dacar, enquanto o Amílcar percorria as capelinhas a "ajuda internacional" e fazia o "marketing político" da sua "revolução africana").

A narrativa conserva um estilo de alguma oralidade, mas o autor raramente é traído pelo  crioulo guineense com que, supomos, se exprimia no dia-a-dia, para mais sendo casado com uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, Lucette Andrade (ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar), e lidando com muita gente de PAIGC de diferentes etnias. 

No final há um glossário, com 27 termos, para uso do leitor português (sem novidades para nós). O livro é ainda ilustrado com 3 dezenas de fotografias.

Numa primeira impressão, o livro tem algo de hagiográfico: o Luís Cabral viveu muito em função do irmão, que admirava acriticamente, pondo-o  no altar dos deuses ou semi-deuses (que para os gregos eram os heróis). E não é por acaso que as suas memórias acabam com as derradeiras recordações do Amílcar, no dia a seguir à sua morte em Conacri... 

Um dia depois, a 21 de janeiro de 1973, Luís chega a Dacar, e só então sabe da trágica notícia... É o último a saber, cruel ironia!... Senghor põe então um avião à disposição da delegação do PAIGC que se desloca a Conacri para as cerimónias fúnebres"...

Trata-se, mais do que um trajeto pessoal (o do guineense Luís Cabral, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, antigo contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma cunha do irmão, conceituado engenheiro agrónomo): é, de facto, uma crónica da "luta de libertação",  mas ao mesmo tempo é também a crónica de uma morte anunciada,  parafraseando o título de um dos romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez.  

Ao longo destas quatrocentas e tal páginas, que seguem um fio cronológico, embora sejam avaras em datas precisas, o autor não esconde que o seu irmão foi sendo alvo de várias tentativas de assassinato por parte de homens do seu partido... (A lista parece ser bem maior do que as referidas por Luís Cabral.) (***). A última, em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, foi fatal. 

Mas o Luís é incapaz de perceber as razões e as motivações que estão por detrás desta tragédia: como é que um homem como o irmão, Amílcar,  tão amado e até idolatrado por tantos, podia ser também tão odiado por alguns, para mais estando dele tão próximos ?

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


(...) É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas. (...) 

(**) Vd. poste de 1 de junho de  2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23726: Notas de leitura (1509): "Para Além do Amor", por Nelson Cerveira, edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia; 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Socorro-me habitualmente da ajuda que me dá a Biblioteca da Liga dos Combatentes, é neste território que encontro obras, de modo geral edições de autor, de antigos combatentes que aqui deixam os seus trabalhos. Foi aqui que conheci este livro de Nelson Cerveira[1], furriel-enfermeiro do BCAV 8320/73, terá sido o último batalhão que abandonou a Guiné. Nelson Cerveira foi depois para Angola onde geriu um hotel no Kwanza Norte, aqui terá encontrado matéria para escrever 3 livros relatando acontecimentos que tiveram a ver com a guerra civil de Angola. Forjou este romance cuja figura central um furriel ferido em combate, tem uma escrita singularíssima, uma narrativa onde não faltam elementos naturalistas e neorromânticos e grandes tiradas declamatórias.

Um abraço do
Mário



Os enfermeiros também tombam em combate

Mário Beja Santos

O título da obra é "Para Além do Amor", o autor é Nelson Cerveira [foto à direita], edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia, 2022. A singularidade da trama assenta na deliberada decisão do escritor em rebuscar uma prosa com laivos de naturalismo, neorromantismo, é uma prosa inflada de afirmações declamatórias e afirmações sentimentais que se inscrevem em atmosferas de dramatização, muitas lágrimas, muitos soluços, até se chegar à redenção que a obra propicia.

Estamos em maio de 1947, na região da Bairrada, em noite de tempestade, os donos da casa ouvem gemidos no celeiro, o agricultor nada vira coisa semelhante, uma moça de 16 anos, que era conhecida por Zeza, e que por ali deambulava por aldeias vizinhas, sem ninguém saber qual a sua origem, acabara de dar à luz. Depois somos introduzidos na história de Zeza, recuamos a 1930, mais uma história trágica, no parto morre a mãe, salva-se a criança que passou a ser criada pelos avós com o nome de Maria Cristina. O casal que recebe a criança que Zeza dera à luz, e que tinha recentemente perdido um filho, aceita criar esta bênção que lhe cai do céu.

Há um lavrador de nome Alfredo que vai trabalhar para uma das quintas mais ricas da região, fica encarregado pelo patrão de cuidar do filho, de nome Tomé, o menino tem 4 anos, irá formar-se em Direito. Alfredo virá ser caseiro da quinta, depois morre o patrão, o filho vende a propriedade. Amélia, a mulher de Alfredo tem um filho que morre apenas com 2 semanas. É nesta altura que nasce o filho de Zeza, em homenagem ao benfeitor, o casal põe-lhe o nome de Tomé. Anos depois os pais adotivos contam a história, mostram-lhe a fotografia de Zeza.

Tomé revela-se um jovem prudente, assenta praça em outubro de 1968 nas Caldas da Rainha, tirará a especialidade de enfermeiro, as aulas decorrem no anexo do Hospital Militar da Estrela. Finda a especialidade, ele e o seu amigo Jorge foram colocados no Hospital Militar de Coimbra, alugam um quarto numa casa no largo da Sé Velha. Vai começar o enfeitiçamento por uma jovem aluna de Medicina, isto em 1969, no reboliço dos acontecimentos estudantis. Tomé era amigo de Laura, esta amiga Aurora, o deslumbramento de Tomé, de todos o autor nos dá a descrição, Aurora está bem impressionada com Tomé, o seu aspeto resplandecente, o olhar aceso, as belas cores, o belo sorriso, estão os três em amena cavaqueira numa esplanada e aparecesse João, vamos ter aqui um discurso incomum, João possuía o dom especial de se encontrar à vontade em toda a parte e não faz mais nada, tem para ali uma larga tirada sobre a tirania colonialista, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, lembra aos presentes que a hora que estavam a viver era uma hora sombria e diz o autor que aquele jovem era apologista que o governo salazarista cairia quando a lava escandecente no seio da liberdade irrompesse as ideias libertadoras defendidas pelo comunismo. As discussões multiplicam-se, passa-se para a religião, duvida-se da imortalidade da alma, seguem-se os problemas da civilização, aqui começam as críticas ao comunismo, o Tomé mete-se na conversa, temos páginas e páginas sobre o cristianismo e as lutas acesas do protestantismo. As grandes tiradas declamatórias irão prosseguir, Tomé irá contar a Aurora o que andam a fazer os Movimentos de Libertação, e depois declara-se, Tomé é retribuído, andam enleados. Chegou a hora da mobilização, Tomé irá apresentar-se no Hospital Militar de Bissau, a despedida é dolorosa.

Em 21 de fevereiro de 1970, o furriel-enfermeiro Tomé apresenta-se no Hospital Militar, o espetáculo a que assiste nos corredores constrange-o. Irá ser colocado em Bissorã, escreve uma longa carta à sua amiga Laura. Aurora irá conhecer os pais de Alfredo na companhia de Laura e, entretanto, vamos saber um pouco da história desse ano durante a guerra, nova carta de Tomé para Laura, foi colocado em Guileje, conta-lhe como a guerra é duríssima. Tomé já está em Bafatá, em 26 de junho de 1971 um grupo do PAIGC penetra na cidade, faz diferentes estragos, provoca mortos e feridos. A partir desta data os familiares de Tomé deixaram de receber cartas.

Entramos num ciclo dramático, Tomé fora ferido, um tiro alojara-se na coluna quando socorria um ferido na parada, ficara paralisado, a partir de então, as suas pernas seriam duas rodas de cadeira. Laura visita-o no Hospital Militar da Estrela, Tomé desabafa: “Mais difícil do que viver uma grande paixão é falar dela. Mas tão difícil quanto falar dela é resistir a falar dela.” Dá a entender à amiga que é um cadáver da cintura para baixo, Aurora merece encontrar alguém que lhe possa dar tudo aquilo que ele a partir de agora não pode.

É evidente que este ciclo dramático vai torcer-se e retorcer-se até nos trazer uma outra imagem sobre o amor, haverá revelações conducentes à sublimação daquele amor, de tal modo que o desfecho tem filamentos de uma apoteose, assim:
“Não é por acaso que te encontras junto de mim, meu anjo secreto. Desde aquele dia que te vi naquele uniforme de capa e batina. Como uma sombra, saíste daquela praça no teu uniforme de estudante e eu, que nada sabia de ti, com toda a força do fundo do meu ser, respondia ao teu apelo, compreendi que essa jovem tão frágil estava carregada de toda a feminilidade do mundo e que bastaria tocar-te com um dedo para saltar dentro de mim uma faísca capaz de iluminar para sempre o meu caminho, o meu destino, o meu futuro… e que se não morresse fulminado ficaria preso por um desejo, magnetizado para toda a vida. Deus abençoa algumas pessoas com casamentos felizes e filhos saudáveis. Mas também abençoa outras pessoas com a força e resignação para aceitarem uma vida sem casamentos felizes nem filhos saudáveis. Ajuda-as quando esses sonhos não se concretizam, mostrando-lhes que após o fracasso de uma vida sonhada e não concretizada não têm que ficar com o espaço vazio, com um buraco nas suas vidas, onde antes estava o sonho. Existem outros sonhos a serem sonhados.”

A revelação do que aproxima Aurora a Tomé faz deste um homem feliz na contingência das suas limitações. O autor afirma ter-se socorrido de ideias e conceitos que recolheu dos livros "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievski, "O Doutor Jivago", de Boris Pasternak e "Velhice do Padre Eterno", de Guerra Junqueiro.

Despede-se, assim: “Se desejarem entrar em contacto com o autor para comentar esta obra ou prestar qualquer esclarecimento sobre qualquer outro livro da sua autoria, escreva para nelcerveira@gmail.com. O autor terá o maior gosto em esclarecer qualquer leitor que lhe dirija as suas dúvidas”.


BCAV 8320/73 - Guiné, Junho a Outubro de 1974 - O Nelson Cerveira foi Furriel Miliciano Enfermeiro da CCS
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Notas do editor

[1] - Vd poste de 5 DE JUNHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10002: Tabanca Grande (343): Nelson Henriques Cerveira, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAV 8320/73 (Bissorã e Bissau, 1974)

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23724: Notas de leitura (1508): Algumas (breves) notas sobre missionação (V) - Conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais