Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 675. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta CCAÇ 675. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 8 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
 
É bem verdade que todos estes testemunhos coletivos vão ter que ser tomados em conta pelos futuros historiadores. Esta região do Xime que aqui se viveu em 1967 e inícios de 1968 se transformou radicalmente de um ano para o outro. Quando a CCaç 1550 partiu, extinguiu-se o destacamento da Ponta do Inglês, desapareceu Samba Silate, ao que se dizia a maior tabanca de todo o leste da Guiné, o PAIGC atacava com ferocidade as tabancas entre Amdalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, com o evoluir da guerra abandonou-se Moricanhe, para mim uma aberração tal medida, era um posto avançado de inegável importância para proteger tanto o Xitole como Bambadinca. E Galomaro, que os autores tratam por colónia de férias, passou a ser sede de Companhia, daqui partiu uma em fevereiro de 1969 para uma operação de retirada de Madina do Boé, teve pesadas vítimas.
 
Honra a quem escreveu este legado de memória, tão singelo e tão terno.

Um abraço do
Mário



CCAÇ 1550, todos presentes e lembrados, 50 anos depois

Beja Santos

A obra intitula-se "Memorial, O livro dos 172 autores", DG Edições, 2018. Quem coordenou foi José Marques Valente, mal soube do acontecimento telefonei-lhe e pedi-lhe o documento, é um memorial enternecedor, pelo registo onde primam testemunhos quase incógnitos, onde cada um depositou as suas imagens e as suas memórias. 

Partiram para a Guiné em 20 de abril de 1966, a 26 seguem em coluna-auto de Bissau até Farim, vão sem armas, passam pelo K3, atravessaram na jangada o Cacheu, em Farim organizaram-se para ir para Binta e Guidage. Há uma apresentação sumária do setor, recorda-se que o Corredor de Sambuiá estava encravado entre Binta e Bigene. 

Vão então para Binta e segue para Guidage um grupo de combate reforçado. Foram render a CCaç 675, a do Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, é história para nós conhecida, JERO escreveu a vida do primeiro ano da Companhia, é um documento histórico. É uma primeira fase de comissão que não deixou péssimas memórias: 

“Nos oito meses que permanecemos em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Apenas por três vezes foram disparadas granadas de morteiro e tiros de metralhadora para dentro do aquartelamento e tabanca”

A relação com as populações terá sido magnífica, havia escola a funcionar e tratamentos para guineenses e senegalenses. Fizeram patrulhas de reconhecimento e foram a Sambuiá. Nas proximidades desta área sujeita a controlo do PAIGC destruiu-se uma ponte pedonal, via de acesso às culturas de arroz. Foram sempre felizes a picar as estradas, nunca houve sinistros no contingente militar.

E um dia a Companhia muda de poiso, vai para o Xime, Ponta do Inglês, Taibatá/Demba Taco e Samba Silate. No Xime a CCaç 1550 era reforçada com o Pel Caç Nat 53 e milícias da tabanca, na Ponta do Inglês havia um grupo de combate reforçado, Taibatá/Demba Taco, milícias e população em autodefesa e em Samba Silate população em autodefesa, mais adiante um destacamento em Galomaro, uma secção e muitas espingardas Mauser. Esta Guiné e esta região, nos inícios de 1967, serão bem distintas daquela que irei conhecer a partir de agosto de 1968.

A CCaç 1550 viera render a CCav 678, nessa altura havia flagelações praticamente todos os dias na Ponta do Inglês e picava-se o itinerário entre Xime e Bambadinca com muitos cuidados, não só as minas mas as emboscadas num local conhecido por Ponta Coli, sobretudo. Deixara de se fazer a ligação por terra entre o Xime e a Ponta do Inglês, aquele itinerário foi um sorvedouro de vidas e de viaturas. Explica-se a constituição da população do Xime, a organização do aquartelamento, a construção de uma paliçada. A vivência na Ponta do Inglês é mais do que inóspita:

“Formado por uns abrigos, onde se comia e dormia, rodeados por arame farpado e postos de vigia, estavam ali cerca de 40 homens, armados com G3, Morteiro 60 e bazuca. Os abastecimentos e correio eram entregues pela Marinha, que passava regularmente no Xime. A água era recolhida, diariamente, num poço a uns 500 metros do arame farpado, com a ajuda da única viatura disponível. Diariamente, sob o mesmo ritual, picava-se o percurso do arame farpado ao poço e avançava-se com o Unimog e os bidões. Uma parte do pessoal ficava de arma aperrada, enquanto os outros com balde e corda puxavam a água, até encher os reservatórios. O poço onde se ia buscar água era comum às nossas tropas e às populações do outro lado da bolanha (controlada pelo IN), pelo que o teste antiveneno para verificar se a água estava envenenada era praticamente desnecessário”.

Fala-se da vida em Taibatá e de Samba Silate, na margem esquerda do Geba, local de cambança de grupos IN, e há referência de que do outro lado do rio estava a zona de Mato de Cão onde acima havia bastantes casas de mato do IN. E recorda-se as matas onde o IN se instalava: Galo Corubal, Bissari, Fiofioli, Ponta Luís Dias, Buruntoni e Poindom. Galomaro, ao tempo, era uma paz de alma, em pleno Cossé, zona de Futa-Fulas, encruzilhada comercial entre o Senegal e a Guiné Conacri.

O aquartelamento do Xime é passado a pente fino e as imagens que o livro publica foram-me imediatamente familiares, incluindo a capelinha, a messe de oficiais, as caravanas ali instaladas, até os arruamentos dentro da tabanca. Detalha-se o que cada um fazia, desde a carpintaria, aos eletricistas, à mecânica auto.

E segue-se o lado emocionante do memorial, as fotos destes 172 autores, os seus nomes, posto e alcunha. E lembra-se que 45 já tinham partido deste mundo. Temos os testemunhos das doenças, dos medos, faz-se o elogio dos bravos, como se constituíam pés-de-meia, como se comia mal e se procurava comer bem, são testemunhos genuínos como o de um 1.º Cabo que em maio de 1977 foi a Demba Taco que tinha sido atacada, saqueada e incendiada durante a noite:

“Ficou um rasto de destruição, com civis mortos e outros raptados. Quando lá chegámos, do pouco que ficou, tudo fumegava.

Depois de feito o levantamento da situação, foi escalada a 1.ª Secção composta por sete militares, para ali ficarem a manter a segurança e ordem na reconstrução da tabanca. Não tínhamos qualquer tipo de abrigo. Ali ficámos com alguns alimentos, numa temperatura superior a 40º até que chegou a hora de preparar a primeira refeição. Foi necessário escolher, entre os sete camaradas, quem tivesse aptidão para cozinhar.

Destacado o soldado A. F. que logo improvisou com duas pedras e uma fogueira os meios para preparar a nossa refeição de batatas cozidas e atum de conserva. Mas quando nos preparávamos para distribuir as batatas e o atum, deparámo-nos com imensas crianças, olhando famintas. Jamais poderei esquecer este cenário. De entre as crianças destaquei uma, de nome Umaru Baldé, de 12 anos, que nessa noite tinha perdido o pai e a mãe.

Criei um sentimento de amizade e ternura que quando acabei a missão, em Demba Taco, me custou a separação desta criança. Com o tempo e as circunstâncias, perdi-lhe o contacto, mas nunca esquecerei este miúdo que me marcou profundamente nos quase três meses que estive em Demba Taco, em que dia a dia as minhas refeições eram repartidas com ele”
.

Obra tocante na composição e pelo recurso ao anonimato, vejam as imagens do livro, leiam a folha solta sobre o Victor, feita pelo organizador do livro, o José Marques Valente, a quem já comuniquei que este belíssimo testemunho seria publicado num blogue onde teremos o orgulho em o acolher, bem como aos seus camaradas da CCaç 1550.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21959: Notas de leitura (1344): “Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21824: (In)citações (179): Lembranças de JERO e do seu legado literário (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2021:

Caríssimo,
O JERO vai fazer falta a todos, ficará na memória de muitos e o seu irrepetível legado literário será peça obrigatória que os investigadores, no futuro, não deixarão de esmaltar como caso único de um cronista que deu voz coletiva a um grupo de jovens que seguiu incondicionalmente um inesquecível comandante de companhia.

Um abraço do
Mário


Lembranças de JERO e do seu legado literário

Mário Beja Santos

C
onheci o JERO quando tive a oportunidade de ler o "Diário da Companhia de Caçadores 675"[1], ele era assumidamente o responsável pela narrativa, não escapava ao leitor o tom de exaltação pela figura do Capitão Tomé Pinto (que ficaria conhecido como o Capitão do Quadrado) e as vicissitudes desta unidade durante o ano, por Binta e arredores. Trata-se do primeiro diário de uma unidade militar, tem um escrivão dotado de fala coletiva, teve seguramente acesso aos dados da atividade operacional de uma companhia que chegou a um local, em 1964, infestado pela guerrilha, havia mesmo o desplante da população afeta ao PAIGC fazer descaradamente lavras a escassos quilómetros do quartel. Há momentos impressionantes deste diário de JERO, tenho repetidamente observado aquela descrição em que o capitão é ferido e até ser evacuado para Bissau foi alvo de transportes de um afeto, de uma solidariedade impressionantes pelo que continham de genuíno, de uma afabilidade sentida.

Pedi para falar com JERO, havia algo de estranho naquele diário, era facto que se tratava de uma edição do ano seguinte, mas as comissões são mais prolongadas, o Capitão Tomé Pinto partira para um curso que lhe daria a promoção a major, a CCAÇ 675 acusou a falta daquela figura icónica, aquele verdadeiro traço de união que metia valentia, lucidez e muito tempero na liderança. JERO, bem como o seu afável camarada Belmiro Tavares, explicaram que aquele ano marcara a memória de todos, tudo o mais fora uma sucessão de obrigações.
Este tipo de observações seriam confirmadas pelo livro seguinte de JERO, "Golpes de Mãos"[2], o antigo furriel-enfermeiro sentia-se liberto para ter uma escrita um pouco mais desabrida e descrever os factos circunscrevendo-se à sua própria leitura dos acontecimentos. Fiz a recensão da obra, o General Alípio Tomé Pinto fez questão de nos reunirmos, o que aconteceu num restaurante ali para os lados da Avenida da República, em Lisboa, vieram algumas explicações sobre aquele diário truncado. E conhecedor como sou do que mais significativo se escreveu e compõe a literatura da guerra da Guiné, guardei para os meus livros os adjetivos de admiração deste diário, obra única de voz coletiva pelo punho de um cronista que nunca alardeia qualquer gabarolice, eleva a épica de uma unidade de caçadores que em escassos meses limpa a sua zona de ação, sem desfalecimentos, e às ordens de um destemido capitão.

Encontrámo-nos recentemente, e a afabilidade era a mesma. Estava a preparar o livro "Nunca Digas Adeus às Armas", o ponto de partida era um poeta popular que cantava as lides do BCAV 490, e em dado momento cruzam-se as vidas do batalhão de Farim e os homens de Binta, havia esclarecimentos, o Belmiro Tavares promoveu o encontro a três, de novo contei com a afabilidade de JERO, a rememorar factos. Tínhamos aprazado um encontro para a apresentação do meu livro no Palácio da Independência, obviamente que convidara o General Alípio Tomé Pinto e os seus camaradas, não se efetivou devido à pandemia, conversámos ao telefone, era tudo questão de aguardar uma nova oportunidade. Não haverá nova oportunidade de me encontrar com JERO, mas o seu legado literário, a sua serenidade, o facto de ele ser um guardião de memórias como nenhum outro, faz com que eu o guarde na lista das grandes cordialidades, sabedor como sou do seu diário é obra incontornável da literatura da guerra da Guiné. E assim me curvo respeitosamente diante do cronista de olhar sempre iluminado e basto sorriso.
____________

Notas do editor

[1] - Vd. postes de:

21 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9071: Notas de leitura (304): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

25 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9094: Notas de leitura (305): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

28 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9107: Notas de leitura (306): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (3) (Mário Beja Santos)
e
2 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9128: Notas de leitura (307): Dois Anos de Guiné - Diário da Companhia de Caçadores 675, por Fur Mil Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

[2] - Vd. poste de 26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de Janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21819: (In)citações (178): Até já, José Eduardo!... (Joaquim Mexia Alvez, régulo da Tabanca do Centro)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21814: In Memoriam (386): José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (1940 - 2021), ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), escritor, jornalista, bloguista, grande camarada e amigo do peito (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

IN MEMORIAM


José Eduardo Reis de  Oliveira (1940-2021)
Foto: Tabanca do Centro (2021)

Era carinhosamente conhecido, pelos seus conterrâneos, amigos e camradas, como "Jero" (,pseudónimo jornalístico que usava desde os 18 anos) e morreu esta noite, aos 80 anos, no hospital de Alcobaça, onde estava internado há alguns dias (*). 

Ía completar os 81 anos em 4/4/2021. Foi  fur mil enf,  CCAÇ 675 (Binta, 1964/65). Deixa obra como escritor, jornalista e  bloguista. Era um homem culto, crente e de uma grande humanidade e afabilidade.

Membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca do Centro, autor da série "Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira)" (, desde meados de 2009), era um homem querido por todos, a começar pelas gentes da sua terra que amava como ninguém  e era o seu grande cicerone (, aliás, o título do seu terceiro livro, chama-se simplesmente "Alcobaça, é conigo"... E eu chamava-lhe, na brincadeira, "o último monge de Alcobaça") (**)

Choramos por ele!... A nossa solidariedade na dor por esta grande perda vai, antes de mais, para a viúva, a filha, os netos e a restante família, 


1. Poste acabado de publicar no blogue da Tabanca do Centro, e assinado por Joaquim Mexia Alves:

Quarta-feira, 27 de janeiro de 2021 > P1274: PERDEMOS UM AMIGO DO PEITO

Caríssimos camarigos

Trago-vos, hoje, uma tristíssima notícia.

Faleceu esta noite o nosso amigo José Eduardo Oliveira (JERO), em Alcobaça, a sua amada terra.

O José Eduardo estava doente, recentemente, tendo sido internado no Hospital de Alcobaça, mas nada fazia prever este terrível desfecho que nos deixa em estado de choque.

O José Eduardo era um amigo muito especial para mim, e para todos nós, pois era um homem bom, um contador de histórias, um exímio conversador, sobretudo um amigo do seu amigo, franco, leal e verdadeiro.

Gostava de poder escrever muito mais sobre o José Eduardo, mas neste momento faltam-me as palavras porque o choque é demasiado grande.

Rezo por ele e por toda a sua família, a quem a Tabanca do Centro, com todos os seus membros, acompanha nestes momentos de dor

Abraços fortes para todos.

Que Deus tenha o José Eduardo no seu eterno descanso.
Joaquim Mexia Alves



Alcobaça > Setembro de 2011 > O jornalista, escritor e nosso camarada e amigo JERO (acrónimo de José Eduardo Reis de Oliveira), autor de "Alçobaça é Comigo", o seu terceiro livro.

Foto ( e legenda(: © JERO (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


2. "Alcobaça, é comigo, camaradas!": um das muitas boas lembranças que tenho do JERO (**)

por Luís Graça

Alguns de nós perguntarão, legitimamente: Mas o que é que este livro tem a ver com a Guiné e a nossa guerra ? E eu, à partida, não sei responder por que não conheço nenhuma das trintas histórias, contatas e recontadas pelo JERO, na tertúlia do barbeiro, entre duas barbas e um cabelo...

É verdade que podia pôr a notícia do lançamento do 3º livro do JERO noutra série, Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres... Mas achei que estava bem aqui, na nossa Agenda Cultural... 

 Por outro lado, quem é que não tem curiosidade em saber as conversas dos homens no momento da tosquia ? Sempre ouvi dizer é que na cara dos pobres que os barbeiros aprendem... A barbearia teve sempre os seus encantos e mistérios. Mesmo na guerra, em tempo de guerra, nos nossos Bu...rakos, também tínhamos o nosso baeta... Em dia de tosquia, baixavam-se as guardas, esbatiam-se as hierarquias, rangiam-se os dentes, dizia-se mal do "patrão", cobiçava-se a mulher ou a laveira do alferes ...

Em especial na província, o sítio onde os homens punham a conversa em dia e, noutros tempos, transpiravam e alguns conspiravam... Nela pontificava uma personagem, popular mas ao mesmo tempo estranha, mágica e poderosa, que era o barbeiro mas também o barbeiro-sangrador, o enfermeiro, o tiradentes, o confidente...

Enfim, estou curioso em ler as histórias do Jero, temperadas com o aço da navalha do seu barbeiro... Tanto mais que ele, além de grande, encantador e sedutor contador de histórias, ele, a sua figura, algo mística, arrancadada das esculturas do mosteiro de Alcobaça, faz-me sempre lembrar um aristocrático e medievo monge cistercense, daqueles a quem devemos quase tudo ou muito do que somos enquanto povo...

No meu caso, falo como português, estremeno, à beira mar plantado... O vinho, a pera rocha, a maçã reineta, os cereais, a doçaria, as bebidas espirituosas... mas também e sobretudo o "imaterial" das nossas sociedades, a que chamamos cultura, ou que é o outro lado da cultura: os livros, a língua, a música, as artes, a arquitetura, o ensino da medicina, e por aí fora...

Não se nasce impunemente em Alcobaça. E por isso o JERO com toda a humildade e autencidade pode vir, a terreiro, dizer, alto e bom som: É, camaradas, Alcobaça é comigo!... E eu estou com ele, meu camarada da Guiné. O lançamento de um livro é sempre um exercício de cultura e memória. Mas também de partilha e comunicação, ou seja, é um ato da aventura humana.

"Escrever um livro, plantar uma árvore e fazer um filho", não foi o Eça de Queirós quem o disse, foram os intelectuais da Alta Idade Média, os monges do Ora et labora (reza e trabalha), os únicos que sabiam ler e escrever, quando o Portugal, hoje milenário, ainda (ou já) era uma criança, o Condado Portucalense...

Um xicoração muito grande para o JERO, antecipado, para o caso de eu não poder estar amanhã em Alcobaça, a tempo e horas, na sua festa, no lançamento do seu livro. Saudações para a família, amigos e camaradas da Guiné que se quiserem e puderem associar a este festivo evento, que é também da nossa Tabanca Grande... LG

PS - Há mais cistercenses em Alcobaça, para além do Jero... Por exemplo, o nosso Amado Juvenal, mesmo que mais laico do que o Jero, mas não menos talentoso contador de histórias... (Isto, este talento, vem-lhes do ADN monacal, ou terá sido cultivado - ou no mínimo temperado - nos rios e bolanhas da Guiné ?)
____________

3. Informação de última hora, veiculada pelo nosso camarada Joaquim Mexia Alves, dá conta de que amanhã, pelas 17 horas, no cemitério de Alcobaça, depois de cerimónia fúnebre, o nosso amigo José Eduardo será sepultado.
 
Escusado será dizer que qualquer deslocação a Alcobaça será improcedente atendendo às condicionantes impostas pelo COVID. O que o José Eduardo mais quereria neste momento é que os seus amigos continuassem a cuidar de si próprios, protegendo-se o mais possível.
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 : P21809: In Memoriam (385): José Pardete Ferreira (1941 - 2021), ex-alf mil médico, CAOP1, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1971; cirurgião, médico especialista em medicina desportiva, foi diretor clínico do Hospital de São Bernardo, e presidentedo Rotary Club de Setúbal, poeta e escritor (Hélder Sousa / Luís Graça)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O bardo descarrega as suas penas, o seu companheiro de viagem prossegue em grande círculo, vai ao início da guerra, às suas primícias, tenha o leitor curiosidade e fartas leituras o esperam, tanto para entender o que foi a ascensão nacionalista na Guiné e como cedo se impôs o pensamento de Amílcar Cabral, como para acompanhar a digressão do aparato subversivo, em ondas os insurretos foram-se formar na China e na Checoslováquia, mais tarde na URSS, muito mais tarde virá o apoio cubano, entrementes haverá notórios progressos no armamento.
Por isso aqui se recupera as memórias do "Homem Ferro", um fuzileiro que conheceu a subversão desde 1962, por muitas andanças, em 1963, se apercebeu do alastramento da guerrilha e dos seus focos poderosos.
E aqui também se fala da CCAÇ 675, em 1964 encontraram Binta como território onde agentes do PAIGC se deslocavam folgadamente. Os reforços portugueses foram chegando a conta-gotas, revelar-se-ão insuficientes para estancar a dispersão da guerrilha.
A lira do bardo tem acordes de sofrimento, temos toda a vantagem em tentar perceber os ventos que sopram da guerrilha.
É o que aqui se faz.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (39)

Beja Santos

“Dois colegas com azar
os seus dias terminaram.
O pessoal do Batalhão
grande mágoa passaram.

Para serem tratados
os médicos os examinaram
e algumas chapas lhes tiraram.
Sendo ambos operados
alguns dias foram passados
e soro começaram a levar.
Fartaram-se de penar
com os sofrimentos de gravidade
e foram para a eternidade
dois colegas com azar.

O Francisco António foi o primeiro
que a morte levou.
O António Amaro, desmoralizado
ao ver a falta do companheiro,
o 1.º Cabo e o Furriel enfermeiro
a falar o reanimaram.
A verdade não lhe contaram
para ver se ele não esmorecia.
Mas como o azar o perseguia
os seus dias terminaram.

Este último se aguentou
quarenta e seis dias a sofrer.
Mas começou a emagrecer
porque a hemorragia não estancou.
De dia a dia piorou
levando muita injeção.
A 10 de maio se soube então
que o último suspiro deu.
Pois ele e o Francisco comoveu
o pessoal do Batalhão.

Os pais com aflição
souberam que os filhos tinham morrido.
Pois lançaram grande gemido
naquela região.
Perto da mesma povoação
estes rapazes se criaram
para o Ultramar abalaram
despediram-se com suspiros e ais
e no fim do tempo seus queridos pais
grande mágoa passaram.”

********************

Continua a litania dos padecimentos, o bardo não pára de trombetear desaires e agonias, parece que todo o Batalhão está exposto às mais rudes provas. É nisto, por contraste, que este companheiro do bardo vasculha esta nova guerra da Guiné na sua fase primigénia e encontra um relato sobre os primórdios da luta armada, até ao seu desenvolvimento. Dele já fez referência em obra sua com parceria, intitulada “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: um roteiro”, Fronteira do Caos Editores, 2014, tem a ver com as memórias de um combatente intitulada “Homem Ferro”, seu autor é Manuel Pires da Silva, responsável pela edição, com data de 2008. Tem-se sempre em conta que o leitor é leigo, iniciou-se nestas leituras da guerra da Guiné, procura compreender como desabrochou o conflito na área militar, mais complexo é explicar que houve uma prolongada germinação do nacionalismo, formaram-se diferentes partidos, em 1959, Amílcar Cabral em reunião com outros companheiros do Partido Africano para a Independência, tomaram decisões de fundo, Rafael Barbosa e outros ficaram no interior da Guiné em subversão, Cabral e outros partiram para Conacri para encontrar apoios que dessem incremento sério à guerrilha, como veio a suceder, o mesmo Cabral capitaneou os grandes debates com forças concorrentes, o PAIGC, a partir de 1965, foi reconhecido como a força categórica e exclusiva na frente da libertação nacional. Vejamos agora o que viveu um jovem, a partir de 1962, é um relato que dá muito para pensar.

As memórias do fuzileiro Manuel Pires da Silva trazem surpresas, uma delas é abrir novas perspetivas ao que se passou na Guiné em 1962, ninguém desconhece que as investigações dirigem-se sempre para os acontecimentos a partir de Janeiro de 1963, insista-se que há como que uma nebulosa sobre os preparativos da subversão e a respetiva resposta do lado português. Manuel Pires da Silva conta-nos como se fez marujo, ele levou uma vida atribulada em Vale de Espinho, concelho do Sabugal, mourejou no campo, trabalhou com o pai numa oficina de carpinteiro de carros de bois, andou a furar batentes de portas com martelo e formão, fez a instrução primária, andou no contrabando e apanhou alguns sustos. Adolescente, veio com o irmão mais velho para Lisboa, deram-lhe trabalhos de construção civil, foi depois carpinteiro de cofragem, sentia-se desalentado, queria ir mais longe. Inscreveu-se na Marinha, fez a recruta em Vila Franca de Xira, aos 17 anos era segundo-grumete voluntário. Em 1961, foi frequentar o curso de Fuzileiro Especial, recebeu a boina.

É incorporado no DFE 2, destinado à Guiné, ali chega em Junho de 1962. Que missões tiveram? Fazem guarda ao Palácio do Governador, levam prisioneiros do PAIGC para a Ilha das Galinhas, são mandados para o Sul, onde o PAIGC já desencadeava ações de sabotagem. A primeira operação de reconhecimento visava obter informações das gentes das tabancas de Campeane, Cacine, Gadamael Porto, entre outros lugares; seguem depois para Bula, havia fortes suspeitas de guerrilheiros infiltrados naquela zona. Descreve o efetivo da Marinha, ao tempo. O DFE 2 é pau para toda a obra: operação em Darsalame; vão ao rio Corubal em lanchas de fiscalização, “chegam às tabancas e só vêem velhos, mulheres e crianças, que fogem para todo o lado. Rebentam-se canoas, interrogam-se pessoas, mas ninguém sabe nada”. Em Dezembro, vão até Caiar. “Quando se tentava contactar com a população da tabanca, surge o tiroteio, o primeiro contacto com as armas de fogo do inimigo. O comandante é ferido no pé direito, tendo sido o primeiro fuzileiro ferido em combate”. Pouco antes do Natal, voltam ao rio Corubal, os botes são postos na água e sobem o rio. “Passada cerca de meia hora após largar do navio, ouvem-se rajadas de pistola-metralhadora”. E escreve mais adiante: “A situação agravava-se de dia para dia. O Comandante-Chefe andava preocupado, pois Lisboa não mandava reforços suficientes. Esta preocupação era partilhada pelo Comandante da Defesa Marítima, Capitão-de-Fragata Manuel Mendonça”.

Em Março de 1963, fazem batidas nas áreas de S. João, Tite e Fulacunda, no mesmo mês em que os guerrilheiros se apoderaram dos navios “Arouca” e “Mirandela” perto de Cafine. A situação agrava-se no rio Cobade e Cumbijã, os guerrilheiros atacam ousadamente as embarcações. Na sequência do acidente aéreo que vitimou um piloto e levou à captura do Sargento-Piloto Lobato, os fuzileiros bateram a zona, encontraram o cadáver do piloto sinistrado e os restos do avião. “Os guerrilheiros tinham a população do Sul completamente controlada. Os fuzileiros estavam ali sozinhos a remar contra a maré”. Em Julho, com o apoio de um pelotão de paraquedistas, passam Gampará a pente fino. É nisto que foi necessário acudir na área do Xime, todos os dias há fugas para o mato; no mês anterior, foram até à tabanca de Jabadá, tendo sido recebidos a tiro. O inimigo já desencadeia ações violentas a partir da mata do Oio. “Entretanto, a ilha do Como começa a tornar-se intransitável devido à presença dos guerrilheiros”; a tabanca de Jabadá continua em pé de guerra, a aviação lança bombas de napalm, para intimidar os guerrilheiros, o destacamento desembarca e só encontra velhos e miúdos feridos. A guerra surge à volta de Porto Gole, o inimigo não se deixa intimidar e reage com muito fogo, os fuzileiros sentem-se encurralados, aproveitando uma aberta, eles retiram e pedem apoio da aviação. No dia seguinte voltam, desta feita assaltam o objetivo. “Quando o bombardeamento pára, o destacamento arranca para o assalto final. Depara-se com mais de 50 casamatas, algumas crianças feridas, a chorar, e dois ou três velhos, também feridos. Registam as informações que eles querem dar”. Quando estão a retirar, recebem instruções da aviação, um grupo de guerrilheiros voltou ao objetivo. Os fuzileiros conversam entre si, tanto esforço e o inimigo não se apresenta. A seguir a este relato, o DFE 2 anda numa completa dobadoira, seguem para Gã Vicente e descobrem um novo inimigo, as abelhas. Por esse tempo vão chegando à Guiné mais reforços, o DFE 7, mas a subversão ultrapassa a capacidade de tomar sempre a iniciativa, a fazer fé em tudo quanto ele escreve, o Sul não dá parança. O que está hoje historicamente provado, e muito bem documentado. Em Novembro, é por de mais evidente que o PAIGC controla as ilhas de Como, Cair e Catunco. A resposta é a operação Tridente em que o DFE 2 participa. O DFE 9 chega em finais de Fevereiro.

Tudo se agrava no rio Corubal, as embarcações são constantemente alvo de emboscadas, atacam a navegação na Ponta do Inglês, e mesmo no canal do Geba. Volta-se à península de Gampará, vão com o apoio de forças terrestres, conclui-se que o inimigo não estava até então implantado no terreno. E depois atacam Cafal Balanta, Cafal Nalu e Santa Clara, há fogo do inimigo que só deixa de reagir quando chegam os T6. E no mês de Junho acabou a guerra para o DFE 2. Ele volta à metrópole, à Escola de Fuzileiros, é convidado para dar instrução. E em Outubro de 1965, lá vai Manuel Pires da Silva no DFE 13 a caminho de Luanda.

Vamos agora mais adiante, ao Diário da CCAÇ 675, a Companhia do Capitão do Quadrado, quando chegaram em meados do ano de 1964 à região de Binta, encontraram tudo em estado de sítio, já se fez referência à sua mentalidade ofensiva, o Capitão do Quadrado foi ferido e está hospitalizado em Bissau, a unidade militar em agosto nomadiza até Guidage, no fim do mês regressa o Capitão do Quadrado e em setembro recomeça a polvorosa, golpes de mão, patrulhamentos, batidas.
Também o furriel-enfermeiro é poeta como o nosso bardo, deixa um sinal dos seus afetos numa publicação de caserna, abre com versos melancólicos, lágrimas de despedida lá no cais, são os dias de viagem até à Guiné, ele questiona:  
“Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria Querida?”.

E despede-se com versos confiantes, animosos:
“À dúvida, ao desânimo, seguem-se a segurança, a fé;
O dever do bom português é mais forte. Vamos lutar,
As dificuldades, os sacrifícios vencem-se de pé.
Mais fortes, mais homens, com honra havemos de voltar.

E quando chegar esse dia ansiosamente esperado,
os vossos corações alvoraçados, delirantes
Voltarão a descortinar no cais festivo, engalanado,
Sorridentes mães, esposas, noivas, felizes como dantes.”

Mas ainda há muito que contar desta Companhia. E um dia destes, pasme-se, chega a hora do BCAV 490 ir para território menos atribulado. Bissau espreita, o estado de ânimo do bardo dará sinais de uma candura, de um rejuvenescimento que desconhecíamos desde aqueles tempos em que a grande questão era a má comida da recruta.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20514: Notas de leitura (1251): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Era dever elementar tentar uma contextualização da "média duração" do período embrionário do nacionalismo guineense até aos anos de arranque da luta armada, isto para melhor entender as atribulações em que vivia o BCAV 490 e as dores e atribulações que o bardo notifica no seu longo poema. É curioso o que Silva Cunha escreveu em "O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril", em 1977, a propósito da sua visita à Guiné onde foi confrontado com a falta de resposta adequada a uma guerrilha que fora metodicamente planeada para irradiar entre a região Sul, o Corubal e o Morés, havia a expetativa de, com as populações em fuga e o desmoronamento económico, fosse impossível repulsar a guerrilha. Silva Cunha atribui a responsabilidade em parte ao diferendo entre o Governador e o Comandante-Chefe, julgava-se que Arnaldo Schulz, na unificação dos poderes político-militares, operasse um milagre. O que não aconteceu, mesmo passando os efetivos de 10 mil para 25 mil homens, por razões que todos nós hoje conhecemos, não era uma questão de fé nem de bravura nem de habilidade na liderança, não se suspeitava de que aquele adversário ia gradualmente ganhando consciência de que o seu armamento era muito mais sofisticado do que o português.
O tempo e a determinação fizeram o resto.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (38) 

Beja Santos 

“Nos fins da nossa comissão
continuamos a lutar.
Da 487, 3 companheiros
foram feridos ao retirar.

Todos os dias alinhamos
não conseguimos descansar.
Para a estrada patrulhar
grandes martírios passamos.
Emboscadas apanhamos
nesta nossa transição,
carregamos os géneros de alimentação
e bebida para se beber.
Mas continuamos sempre a sofrer
nos fins da nossa comissão.

Do Batalhão de Cavalaria
todos os homens são arrojados,
passam-se uns maus bocados,
mas temos sempre valentia.
O bando de rebeldia
armadilhas nos vem armar.
Os Sapadores a examinar
algumas vão levantando,
enquanto o tempo se vai passando
continuamos a lutar.

24 homens se emboscaram
perto da mata cerrada,
passaram lá a madrugada
até que os bandidos chegaram.
Grande ataque travaram
morrendo muitos bandoleiros.
O grupo de traiçoeiros
pensou em nos cercar,
e tiveram então azar
da 487 3 companheiros.

Um tiro no pulso apanhou
o amigo Augusto Ribeiro.
Foi perto de um carreiro
que o Amaro ferido ficou.
O António Francisco também levou
uns tiros ao regressar,
tiveram que o evacuar
junto aos seus camaradas.
Por haver muitas rajadas
foram feridos ao retirar.”

********************

Enquanto o bardo não pára de clamar os sinistros, as muitas canseiras, a expetativa do fim da comissão militar, voltamos à companhia de Leopoldo Amado, pedindo-lhe colaboração para o grande plano de fundo em que evoluiu a luta armada, talvez o exercício valha a pena para melhor se clarificar as atribulações em que viveram as gentes do BCAV 490 e companheiros próximos como a CCAÇ 675. Num extenso ensaio intitulado “Da embriologia nacionalista à guerra de libertação na Guiné-Bissau”, inserido no livro “Guineidade & Africanidade”, Edições Vieira da Silva, 2013, Leopoldo Amado vai até aos alvores do nacionalismo guineense na década de 1950, recorda as independências nos países limítrofes, a presença crucial de Amílcar Cabral a partir do outono de 1952 até 1955, quando regressou com a mulher, ambos bastante combalidos com paludismo, a criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que será uma das alavancas do PAI (depois PAIGC), os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 no Pidjiquiti, o processo sinuoso da fundação do MLG – Movimento de Libertação da Guiné, as decisões tomadas em Bissau em 1959, em que Rafael Barbosa é constituído como o dínamo da subversão, recrutando jovens para Conacri, a presença de Cabral em Conacri onde irá fundar a Escola Piloto, o envio, em 1960, de 25 elementos para a formação ideológica e militar na Checoslováquia e outros 30 para a China e 5 para a União Soviética, enquanto decorre a mobilização no mundo dos agricultores. Dentro desta trajetória, é desencadeada a partir de fevereiro de 1960 uma operação de difusão de panfletos e comunicados subscritos pelo Movimento de Libertação da Guiné, as autoridades locais informam Lisboa, a conta-gotas chegam unidades militares. É tido em consideração um histórico de aproximações e roturas entre grupos pró-independentistas, com um extenso corolário de lutas renhidas em território senegalês e da Guiné Conacri. 1962 é o ano da prisão de importantes quadros do PAIGC na Guiné enquanto se prepara a operação subversiva a partir da região Sul, certificado igualmente que na região do Morés há condições excecionais para desencadear e fazer irradiar a luta armada. A questão interminável dos diferendos entre grupos e grupúsculos acaba por pôr frente a frente a FLING e o PAIGC, no ano seguinte é o PAIGC que ganha o reconhecimento internacional inequívoco.

Resolvido um grave problema relacional entre as autoridades da República da Guiné e o PAIGC por causa de armamento que entrava à sorrelfa através do porto de Conacri, e que chegou mesmo a levar à detenção de responsáveis como Aristides Pereira, Luís Cabral e Vasco Cabral, questão que foi resolvida com o regresso de Amílcar Cabral, iniciava-se a mobilização da população no Sul.
Vale a pena dar a palavra a Leopoldo Amado:  
“A região ao Sul do rio Geba e a Oeste do rio Corubal tem o aspecto de uma gigantesca mão cujos dedos, apontados para o Atlântico, formam alongadas e sucessivas penínsulas separadas pelos rios Grande de Buba, Tombali, Cumbijã e Cacine, apresentando uma óptima configuração para a prática de guerrilha, na medida em que essas penínsulas são extraordinariamente recortadas por centenas de canais e de rios que quase as atravessam de um lado ao outro, não menosprezando, neste particular, a enorme amplitude das marés, quando as águas sobem, mesmo na época seca, em que as margens dos rios e dos braços ficam alagadas em enorme extensão, tanto mais que toda a terra é excepcionalmente plana e baixa.
Compreende-se assim a razão por que, na altura, as estradas eram poucas e más e porque todas elas dispunham de inúmeras pontes e pontões. A destruição destas obras, fácil de levar a cabo, determina o isolamento terrestre das povoações que passam a ficar dependentes da navegação fluvial ou das ligações aéreas. O PAIGC, conhecendo bem o terreno, escolheu justamente a região Sul para nela iniciar uma actuação que supunha poder levar a cabo com relativa rapidez e facilidade”.

Decorre o segundo semestre de 1962 num estado de agitação permanente que fragmenta a economia, apavora as populações, é-se obrigado a tomar partido, uns partem sobre a proteção do PAIGC, outros apelam às unidades militares mais próximas. Está dado o mote para a separação das águas.

Leopoldo Amado

Voltando ao texto de Leopoldo Amado, em julho foi criada a Frente Norte, na região de Mansoa – Mansabá – Farim. Isto não esquecendo que provocado o estilhaçamento no Sul se atravessou o Corubal, atacando a povoação do Xime, era nítido que o PAIGC procurava estender a sua atividade para mais longe. Mansoa é uma das portas da região do Oio, região de florestas densas e quase sem estradas.

E o historiador escreve:
“Em 30 de Junho de 1963, um grupo armado do PAIGC inutilizou a jangada de Barro, no rio Cacheu, a qual garantia a ligação entre aquela localidade e Bissorã, indiciando esta acção a intenção de atacar toda a região. Efectivamente, a 1 de Julho foram alvejadas viaturas entre Binta e Farim. Em 2, os grupos guerrilheiros do PAIGC tentaram destruir com explosivos diversas pontes e pontões nas estradas Olossato – Farim, Olossato – Mansabá e Mansoa – Nhacra. Montaram também uma emboscada na estrada Mansoa – Bissorã, fazendo cinco feridos às tropas do Exército português. Em 4 atacaram Binar, onze quilómetros a leste de Bula e Olossato, entre Bissorã e Farim. Em Binar mataram o régulo e raptaram o encarregado do Posto Administrativo. Em Olossato saquearam as casas comerciais. Em 6 de Julho, ao entardecer, os grupos guerrilheiros do PAIGC emboscaram uma força de Mansabá, quando esta regressava de um reconhecimento ao Morés. Na noite de 12 para 13, outros grupos destruíram vários pontões na estrada Olossato – Mansabá. E em 18 atacaram Encheia, onde não havia qualquer força militar. A situação deteriorou-se depois, o Exército português, apesar dos esforços esperados feitos para recorrer aos pontos atacados. Os efectivos militares eram, porém, muito escassos. Pelo contrário, o PAIGC dispunha de numerosos grupos, todos dotados de armamento relativamente aperfeiçoado e abundantes munições. A breve trecho, em grande parte da região do Oio, as populações nativas, aterrorizadas pelos contendores, ou faziam causa comum com eles ou eram expulsas das suas tabancas. Aquelas que resistiam ou que queriam manter-se neutrais, eram castigadas ou dizimadas e as suas tabancas incendiadas. Assim aconteceu em Bigene, Canfandá, Mamboncó, etc.”

Leopoldo Amado regista a evolução da luta armada na região Sul, com mais cortes de estradas, destruição de pontões, flagelações, colocação de abatises, lançando o pandemónio nos transportes, inclusive foi incendiado o barco a motor da carreira Bolama – Ponta Bambaiã. O fornecimento de armamento é cada vez maior, as autoridades portuguesas estão confusas quanto à dimensão da atuação do PAIGC. Por falta de efetivos, as unidades militares sentiam-se impotentes para fazer frente ao ataque metódico às infraestruturas rodoviárias.
Mais uma vez se dá a palavra a Leopoldo Amado:
“Além de criar um vácuo que lhe proporcionasse refúgio seguro em Morés, o PAIGC pretendeu também inutilizar os eixos rodoviários de interesse económico como sejam os de Mansoa – Mansabá – Bafatá, por onde se escoava boa parte da mancarra produzida pelo Leste da Guiné e alguma da madeira cortada na região do Oio. Aliás, Mansabá constituía um importante cruzamento de estradas, pois por ela passam, além do eixo Mansoa – Bafatá, os de Bissorã – Bafatá e Farim – Mansoa. Daí que, a certa altura, parecesse ser intenção do PAIGC de isolar Mansabá. Esta actuação fez diminuir o trânsito rodoviário para o Leste da Guiné com o que ficaram sobrecarregados os já congestionados transportes fluviais do rio Geba”.

As informações obtidas pela PIDE não eram suficientes para asfixiar ou repulsar o movimento subversivo. Havia enorme expetativa do que se iria passar a Norte, Senghor era ainda extremamente prudente com o tráfego das armas, via nesta fase com desconfiança o PAIGC, tinha um grave contencioso com Conacri. A situação vista do lado português é de acalmia na Península de Bissau e no Arquipélago dos Bijagós, o “chão manjaco” não aceita interferência do PAIGC e de Bafatá para o Gabú os Fulas asseguram fidelidade à soberania portuguesa. Silva Cunha visita a Guiné e constata a crispação existente entre o Governador Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa. Irá escrever, depois do 25 de Abril, que “Do nosso lado, não havia uma ideia de manobra bem definida e, o que era mais grave, não se acreditava que fosse possível resistir eficazmente ao adversário. As nossas guarnições estavam distribuídas pelo território numa quadrícula nem sempre bem concebida, mantendo-se nos aquartelamentos, numa posição de pura defensiva. Praticamente não havia forças de intervenção e se nessa altura não sofremos um revés sério foi mais por falta de força dos adversários do que em resultado da nossa acção”. Há, pois, neste período de 1963 a 1965 alguns “olhos do furacão”, o BCAV 490 está num deles, assim se compreende a aflição do bardo, registando pelos seus nomes os camaradas sinistrados.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 20 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20474: Notas de leitura (1248): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (37) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20490: Notas de leitura (1249): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20420: Notas de leitura (1243): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (35) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Aproveitando a circunstância de o bardo se centrar em situações do quotidiano, desde acidentes de viação a caneladas com fratura, pretendeu-se dar o quadro ambiental daquele ano de 1964, turbilhonante, foi um doloroso separar de águas, gente em fuga para países limítrofes, gente a ser obrigada a tomar posição, como o régulo Malan Soncó, do Cuor, que resistiu a todas as ameaças e pediu proteção às tropas portuguesas.
Na área em que se movimentavam as unidades do BCAV 490 este relato do Leopoldo Amado parece rigoroso, minucioso, sobre tudo quanto aconteceu naquela convulsão territorial. Leopoldo Amado estudou aturadamente a documentação portuguesa, como demonstrou. Atribui a Schulz uma falta de estratégia e de conhecimentos para uma resposta firme, o que está longe de ser verdade, basta ler as suas diretivas e instruções. Quando ele chega à Guiné, em maio de 1964, está tudo num autêntico pé de guerra, ele tinha que responder à defesa das populações, foi a reboque do alastramento imprimido pelo ímpeto guerrilheiro. Veremos adiante que estas diretivas de Schulz estavam sustentadas por um conhecimento real da situação, fez previsões que bateram certo, importa não esquecer que não lhe deram os meios que aquela avalanche exigia, independentemente de todos os erros que terá cometido na implantação de destacamentos.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (35)

Beja Santos

“Setúbal teve grande azar,
sendo logo evacuado.
O Sadio, bom camarada,
ficou um pouco atrapalhado.

Como sempre acontecia,
e quando havia vagar,
o futebol íamos praticar
a qualquer hora do dia.
O Artur tudo vencia
com o seu modo de driblar.
O Ruas, a atrapalhar,
fez grande exibição
e o Rebelo ao jogar-se ao chão,
Setúbal teve grande azar.

O 1.º Cabo Clarim
de Setúbal é natural.
Ficou com a perna muito mal
ao jogar à bola em Farim.
A pouca sorte surgiu assim,
sem andar no mato cerrado:
este pobre desgraçado
a perna direita rachou
e a avioneta poisou,
sendo logo evacuado.

O nosso amigo Caixeiro
quis ser condutor na estrada.
Ia levando uma porrada
pelo nosso Comandante Cavaleiro.
Pagou grande conta em dinheiro,
ajudado pela rapaziada.
Numa árvore deu uma pancada
que o Unimog amolgou
e grande susto apanhou
o Sadio, bom camarada.

Rondas temos que fazer
aqui neste aquartelamento.
No mato em todo o momento
terroristas se estão a prender.
Aqui a Farim vieram ter
mas não tiraram resultado.
O Jacinto ficou assustado
atirando-se para o chão
e o Sargento Napoleão
ficou um pouco atrapalhado.”

********************

O bardo dá-nos notícias do quotidiano, onde não faltam acidentes mortificantes. De novo emerge a vontade de procurar entender um pouco melhor o que se vai passando nesse ano de 1964 por toda a Guiné, e assim perceber com mais clareza as tribulações em que vivem as unidades do BCAV 490. Vai-se fazer uso da tese de doutoramento de Leopoldo Amado publicada com o título “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional, 1950-1974”, edição do IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, 2011, precisamente dando atenção ao que ele escreve sobre esse ano de 1964:
“Em todo o primeiro semestre o PAIGC despendeu esforços enormes para dispersar as tropas portuguesas, nomeadamente com a abertura de novas frentes de combate, com objetivos claros de provocar a diluição daquelas, apesar de concentrar o principal esforço de guerra ao Norte do Canal do Geba, de onde alastrou a Farim, na margem direita do rio Cacheu, e a toda a área circunvizinha, em especial para Leste e Nordeste. No final de Janeiro, aquele centro populacional, já importante, encontrava-se já isolado, pois as unidades guerrilheiras do PAIGC, destruindo pontes, montando emboscadas, colocando abatises e minas, procuraram cortar as estradas que ligavam a vila às povoações de Bigene, a Oeste, Bissorã, a Sudoeste, Mansabá, a Sul, e Cuntima, a Nordeste. Além disso, havia notícias de novas infiltrações de grupos do PAIGC pelas fronteiras Leste e Nordeste da Guiné, na direção de Farim. Estes grupos teriam o seu ponto de irradiação em Koundara, na República da Guiné.
Esta situação agravou-se ainda mais durante os meses de Fevereiro e Março, com as constantes flagelações a Farim e Binta, onde o PAIGC objetivava claramente a destruição de infraestruturas, a saber, pontes e pontões, ao mesmo tempo que fustigava as populações civis da área de Jumbembem – Canjambari – Cuntima, com o objetivo de as desequilibrar psicologicamente e de as ‘coagir’ a colocarem-se do seu lado. Esta atuação levou Fulas e Mandingas a fugirem para o Senegal e originou a paralisação quase completa das serrações locais e da atividade madeireira, de que Farim é um dos principais centros da Guiné.
Entre os rios Cacheu e Mansoa, a grande mancha florestal do Oio era a mais afetada, tendendo o PAIGC a alastrar a sua atuação para Oeste, na direção de Binar e Bula, e para Leste, tomando como eixo a estrada Mansabá – Bafatá. Por quase toda esta grande área, os guerrilheiros atacavam as forças militares portuguesas em operações que flagelavam aquartelamentos e povoações. Essas ações do PAIGC foram em geral caraterizadas por uma enorme agressividade, na área de Umpabá – Biambi (entre Binar e Bissorã) e no troço Bissorã – Olossato (que viria a deter o recorde de emboscadas entre todas as estradas da Guiné). Merece também referência especial a oposição do PAIGC à reabertura da estrada Mansabá – Bafatá, numa altura em que elementos do Exército Português estavam entregues às tarefas de limpeza de inúmeros abatises”. 

Leopoldo Amado
E, mais adiante:
“Nesse ano, o PAIGC alarga a sua atuação para o Norte, a partir do Oio até à fronteira com o Senegal, criando assim condições para poder ser reabastecido a partir deste país. Iniciou também a atividade no extremo Noroeste da Guiné e na área do Boé, visando pressionar a etnia Fula, e surge pela primeira vez com o chamado Exército Popular, numa ação sobre Guilege. De notar ainda, neste princípio de 1964, as flagelações em Mansabá, a Binar, ao Olossato e às zonas suburbanas de Bissorã e de Mansoa, bem como a primeira atuação dos guerrilheiros na estrada Bula – São Vicente, única que permitia ligações seguras entre Bissau e toda a região fronteiriça a Norte do rio Cacheu.
Em Abril, a atividade do PAIGC agravou as já enormes dificuldades das atividades económicas coloniais, na medida em que, conjugada com a obstrução das estradas que, na margem Sul do Cacheu, dão acesso à região, a sua ação abrangeu o ataque às serrações madeireiras que restavam e a destruição das tabancas fulas da zona fronteiriça de Cuntima, povoação, aliás, alvejada mais do que uma vez, na noite de 27 para 28, por diversos grupos de guerrilheiros que nesses mesmos dias atacaram Farim. O trânsito nas estradas tornava-se dia a dia mais difícil e perigoso, pois o PAIGC não só continuava a destruir pontes e pontões, a colocar abatises e a montar emboscadas, como começava também a implantar minas.
A primeira colocação de minas foi assinalada a norte do rio Cacheu, em Maio de 1964, numa altura em que a atividade do PAIGC já atingira o porto de Binta e se aproximava de Bigene. Os ataques às tabancas de Genicó e Sansancutoto, respetivamente a oeste e noroeste daquele porto, e a destruição da ponte de Sambuiá indicavam que os guerrilheiros pretendiam interromper as ligações rodoviárias entre Bigene e Farim e tornar ainda mais precária a situação em toda a área, ao mesmo tempo que, no Senegal, se procedia a uma grande campanha de mobilização junto dos refugiados (…). Em Junho de 1964, grandes massas nativas indefesas refugiam-se quer no Senegal (a maioria), quer ainda em Bissau, procurando fugir a todo o custo das pressões exercidas sobre elas dos dois lados: guerrilheiros e exército português”. 

E Leopoldo Amado acrescenta uma outra dimensão do alastramento da guerrilha:
“O alastramento para oeste do meridiano de Bula, realizado por grupos vindos do Senegal, foi feito em perfeita combinação com a progressão para leste de Farim e do Oio. Do mesmo modo, junto à fronteira senegalesa, o PAIGC começava a atuar na área de Canhamina, a sudeste de Cuntima. Um conjunto de ações e infiltrações desde Canhamina, ao norte até Cantacunda, Banjara e Badora, indicava claramente que o PAIGC pretendia alargar para leste a atividade que até então desenvolvera apenas nas regiões do Oio e de Farim”.

O historiador recorda também as atividades na chamada Região Centro-Leste, Enxalé, Xime, aliás foi no Xime a primeira localidade a usar-se o RPG, a bazuca soviética. No Corubal, em especial entre Margai e Ponta Varela, começaram os ataques aos navios comerciais ou de transporte pessoal. Ao norte de Bambadinca, em abril, a tabanca de Missirá foi assaltada. Outro aspeto que não se pode minimizar é o do uso de novos armamentos, metralhadoras, morteiros 82, o seu uso alastrou-se por muitas regiões e o uso de minas anticarro armadilhadas e detonadas à distância com a ajuda de um fio preso à cavilha de segurança. Pensa-se que ficou mais nítido o ambiente narrado pelo bardo a partir de Farim. Em Binta, como veremos adiante, a CCAÇ 675 reage com uma mentalidade ofensiva pouco comum, iremos ler algumas páginas do diário de JERO.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 29 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20395: Notas de leitura (1241): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (34) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20409: Notas de leitura (1242): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (4): “O Prazer da Leitura”; Teorema e FNAC, 2008 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20395: Notas de leitura (1241): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (34) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Retoma-se o Diário de JERO e algumas das suas páginas mais emocionantes e sintetiza-se alguns dos títulos significativos da história do BCAV 490 na sua zona de ação, aspeto bem curioso não muito distante por onde começou a sua atividade operacional, antes de ser lançado na batalha do Como.
Recorda-se Amândio César e até de uma sua visita a Binta. Procura-se escavar este período da guerra da Guiné e dói a falta de documentação ou relatos fundamentados. A mágoa é tanto maior quanto se sabe que à volta desse "homem providencial" de nome António de Spínola tudo se procurou deixar publicado, desde as suas primeiras diretivas, as suas viagens ao mato, as suas entrevistas, as suas aparições mediáticas nos Congressos do Povo, e o mais que se sabe. Com Louro de Sousa e Schulz é bem o contrário, parece mesmo que se procurou construir a imagem de que foram líderes impreparados para o turbilhão da luta armada. E não deixa igualmente de ser curioso que quem anda a historiografar nunca cite as instruções mais importantes destes dois oficiais-generais que estão publicadas em diferentes volumes da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África.
Enfim, muito caminho há a percorrer para se chegar à verdade histórica e a uma justa cronologia de toda aquela guerra.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (34)

Beja Santos

“Tivemos 3 feridos
o Sousa cego ficou.
José dos Santos Pascoal
muito sangue derramou.

À tardinha trabalhando
para estarmos descansados
fazendo recuar os malvados
que nos cordéis vão tropeçando.
Vamos granadas armando
nos sítios mais escondidos
para ver se os bandidos
não nos vêm atacar,
mas um dia, com azar,
tivemos três feridos.

Um grande desastre se dava
ao espoletar uma armadilha:
o 407 afrouxou a cavilha
e nisso não reparava.
Ao Alferes Monteiro a entregava
e o percutor desarmou.
Neste momento rebentou
levando-lhe dois dedos de uma mão.
E nesta mesma ocasião
o Sousa cego ficou.

A 13 de Outubro se seguia
quando uma mina explodiu,
o António de Sousa se feriu,
às 16 horas do dia.
No helicóptero se metia,
directamente para o Hospital.
Com seus colegas, muito mal,
tudo foi evacuado
e com o corpo estilhaçado
José dos Santos Pascoal.

Neste mês aconteceu
outra coisa amargurada:
Emídio bom camarada
no dia 25 morreu.
Uma úlcera lhe apareceu
que a morte originou.
Essa nascença rebentou,
foi grande a infelicidade
até ir para a eternidade
muito sangue derramou.”

********************

O bardo continua a desfiar o seu rosário de desditas, volta-se àquela bela página contida no diário de JERO, o “Diário da CCAÇ 675”, onde se descreve a retirada do Capitão do Quadrado para o Hospital Militar 241, cercado pela ternura dos seus militares.
É um texto pleno de sinceridade e ternura:
“Embora necessariamente combalido, o nosso capitão enquanto caminhava tranquilizava os que o acompanhavam que se sentiam manifestamente impressionados pelo acontecimento.
Renovado o penso e depois de estancada a hemorragia que tinha voltado a surgir durante a caminhada até à coluna, pediu-se helicóptero para evacuação urgente já que não se podia avaliar da extensão do ferimento e da sua gravidade. O estilhaço tinha penetrado profundamente e poderia ter lesado algum órgão importante.
Organizada a coluna, voltaram-se as viaturas já com todo o pessoal montado, iniciando-se o regresso o mais depressa possível pois o estado do nosso Capitão inspirava sérios cuidados.
Recusando-se a tomar sedativos que lhe aliviariam as dores mas que o tornariam inconsciente, continuou a dar ordens que eram transmitidas pelo furriel-enfermeiro.
Apenas uma centena de metros tinham sido percorridos quando, no meio de uma mata fechadíssima, um inimigo emboscado atacou. Um tiro de pistola inicial e depois rajadas de pistola-metralhadora. As viaturas pararam imediatamente, os ocupantes ripostaram o fogo inimigo.
Por duas vezes o Alferes Santos, que deve ter sido referenciado pelo inimigo por ter dado ordens em voz alta, foi particularmente visado, passando uma rajada de pistola-metralhadora bem perto da sua cabeça.
De salientar no momento, a calma e sangue-frio do nosso Capitão que foi sempre transmitindo ordens, insistindo pelo afastamento da coluna o mais rapidamente possível da zona de morte da emboscada. Com frequência, soldados abeiravam-se do Unimog onde seguia o nosso Capitão perguntando pelo seu estado, não conseguindo ocultar uma lágrima teimosa que descia pelos seus rostos sujos de terra e suor.

Cerca do meio-dia, quando seguíamos na região de Sansancutoto, surgiu dos lados de Binta o helicóptero pedido para a evacuação do nosso Capitão que, já há cerca de duas horas ferido, começava a sentir-se enfraquecido e com dores que os solavancos da viatura tinham aumentado.
Montada a segurança em círculo, o helicóptero desceu em manobra perfeita numa clareira junto à estrada.
O momento que se seguiu não mais será esquecido por todos aqueles que o viveram.
Alguns daqueles homens de camuflado que poucos quilómetros atrás tinham zombado das balas inimigas, desprezando a morte com um sorriso altivo nos lábios, choravam agora como crianças despedindo-se do seu capitão.
Não menos comovido, este, deixava correr livremente pelo seu rosto marcado pelo sofrimento, lágrimas de que um homem não se envergonha.
Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca do helicóptero; outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate; outro ainda quase que o obrigava a beber a água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa.
Será difícil para um mortal comum cujas emoções fortes nunca passaram além da discussão com um polícia por causa do estacionamento do carro ou de um momento mais emotivo de um desafio de futebol ou de uma tourada, avaliar do que se sente num momento destes, quando se vê sofrer um homem, que além de um chefe de excepção, é um amigo a quem se quer como a um pai e pelo qual todos nós daríamos um pedaço da nossa vida, um pouco do nosso sangue.”

E de Binta e de um ferimento que felizmente não trouxe graves consequências ao Capitão do Quadrado retorna-se à história do BCAV 490. Se nos é lícito fazer uma síntese, recorde-se que partiram para a Guiné em julho de 1963, onde permaneceram cerca de dois anos. Haverá um número substancial de alterações nos Comandos no decurso da comissão, farão inicialmente um conjunto de operações na região do Oio, partem depois para a Operação Tridente, que durou 71 dias. Após um período de recuperação em Bissau, o BCAV 490 sedia-se em Farim, o seu campo de ação não será minimizável: Farim, Jumbembem, Cuntima, Binta, Bigene, Barro, Guidage, Canjambari, viu-se que a CCAÇ 675, em Binta, foi confrontada com o inimigo que praticamente se passeava pela sua zona, o PAIGC precisava de transportar gentes, armamento e munições, abastecimentos de toda a ordem, através de corredores que saíam do Senegal e que apontavam primordialmente para a região do Oio. A história da unidade detalha minuciosamente as diferentes operações, a partir de junho de 1964, recorde-se a operação realizada à região de Farincó-Mandinga, em 24 de setembro de 1964, de que resultou captura de material e foram destruídas cerca de 37 casas de mato. Igualmente aqui se fez referência ao grave acidente sofrido em 5 de janeiro de 1961 pelo Pelotão de Morteiros 980. Sucedem-se as operações em que se destroem algumas casas de mato e se captura material, emboscadas, nomadizações, como é timbre na guerra de guerrilhas, vai-se da falta de resultados a sucessos inesperados. Foi o caso da Operação Vouga, realizada pela CCAV 487, em 31 de maio de 1965, não longe de Farincó e Fambantã, entrou-se num acampamento, houve reação de fogo, o inimigo resistiu e depois retirou, apreendeu-se bastante material, e escreveu-se no relatório que o inimigo persistia em permanecer na área, mudando de lugar. Em junho desse ano, deu-se a rendição do BCAV 490, foram-se deslocando de Farim para Bissau e de Bula para Bissau, ficaram aquartelados em Brá até ao embarque para Portugal. A história da unidade elenca os efetivos, as baixas sofridas, condecorações e o resumo do material mais importante apreendido às forças do PAIGC.

É tempo de voltar ao escritor e jornalista Amândio César e ao seu livro “Guiné 1965: Contra-Ataque”, Editora Pax, 1965.
É o seu regresso à Guiné para fazer reportagens, fala de Bissau e da sua evolução, da variedade de etnias que se espalham pelo território, a natureza da guerra subversiva conduzida por Amílcar Cabral, elenca os progressos no sistema educativo, faz o balanço de um ano de governo do General Arnaldo Schulz, as batalhas vencidas na doença do sono, da lepra e da tuberculose, as belezas do artesanato, recorda com saudade o falecido Capitão Francisco Torres de Meireles, falecido na região do Xime em junho desse ano, visita o régulo de Pachisse Sené Sané, acredita piamente que Bolama recuperará o esplendor do passado, visita o Chão Felupe, onde assiste a uma luta livre ao lado do Rei do Caruai, comove-se com o Juramento de Bandeira em Nhacra e visita Binta, onde foi recebido pelo Capitão Tomé Pinto e os seus oficiais.
Dedica alguns parágrafos a Binta, elogiosos:
“Diga-se desde já que quando a tropa aqui chegou encontrou apenas 38 pessoas nas tabancas que constituem Binta. A recuperação vai-se verificando dia após dia. O Capitão Tomé Pinto apresenta-nos o professor de Binta. Binta tem para mim um estranho significado: aqui deixou a vida o filho de um velho amigo meu – o Furriel Vilhena de Mesquita – que, em seis meses de Guiné, fora duas vezes gravemente ferido e morreu ao deflagrar de uma mina na estrada de Binta a Bigene. Vi partir o Furriel Vilhena de Mesquita para a Guiné e depois acompanhei o seu pai – o jornalista Rebelo de Mesquita – quando os despojos do filho chegaram a Lisboa”.

É um relato eivado de propaganda, contudo fala-se prudentemente da guerra, mais do desenvolvimento, dedica-se alguma atenção à história da imprensa na Guiné, à indústria no Ilhéu do Rei, dedica todas as suas reportagens aos soldados da Guiné, pela sua coragem, pelo seu sacrifício. Como atrás se disse, Amândio César fará uma segunda visita à Guiné, não se cansará de elogiar o trabalho de Arnaldo Schulz, considera que a subversão está a ser detida e a generalidade da população mantém-se fiel à soberania portuguesa.
Veremos adiante numa diretiva de Schulz datada de 1 de dezembro de 1966 que ele tece previsões muito sombrias para o futuro da Guiné.

(continua)
____________

Notas do editor:

Poste anterior de 22 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20371: Notas de leitura (1238): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (33) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20381: Notas de leitura (1240): Mário Cláudio, nos cinquenta anos da sua obra literária (3): “Tiago Veiga”; Publicações Dom Quixote, 2011 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20347: Notas de leitura (1236): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (32) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fazem tréguas na indagação do que terá sido o pensamento estratégico dos dois Comandantes-Chefes que precederam Spínola, não se perca de vista que a história da guerra da Guiné carece fundamentalmente de uma investigação sistemática ao período que vai de 1962 a 1968, pairam ainda muitas nebulosas, há muita pesquisa em arquivos por fazer, a verdade histórica continua altamente condicionada.
Veio à ribalta o Capitão José Pais, que comandou a CCAÇ 14, em Farim, e abre-se o livro do diário de JERO, em Binta, em meados de 1964, andava tudo numa deriva, vai chegar a tropa do Capitão do Quadrado, entrou tudo num virote.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (32)

Beja Santos

“Muitos colegas foram feridos
os azares vão aparecendo.
Quando já estavam curados
o Diogo Augusto ia morrendo.

Ao caminharem pela estrada
feriram o furriel Ferreira
e no David à sua beira
acertaram com uma granada.
Nesta grande emboscada
Marques e Varela atingidos,
nos momentos aborrecidos
o Santos aleijou uma mão.
Neste mês de S. João
muitos colegas foram feridos.

O 490 a penar
muitos feridos já tem
e 6 baixas também
e não deixam de actuar.
Estão a ter muito azar
sempre com ataques sofrendo.
Vão o tempo percorrendo
nos arredores de Farim
e até que se chegue ao fim
os azares vão aparecendo.

O Garcês se aventurou,
pelo Comandante foi louvado.
Depois de ter rastejado
duas armas apanhou.
A sorte o acompanhou
mas tiveram azar muitos soldados:
depois de dois meses passados,
Varela e seu companheiro
foram feridos num carreiro
quando já estavam curados.

Helicóptero mandaram chamar
e para Bissau os levou.
O Varela na Amura ficou
levando o tempo a coxear.
O Santos, no Hospital Militar,
a operação lhe vai fazendo
12 dias não comendo,
começou a emagrecer
depois de tanto sofrer,
Diogo Augusto ia morrendo.”

********************

É da mais elementar justiça, já que continuamente aqui se fala em Farim, sede do BCAV 490, procurar uma peça literária alusiva, felizmente que ela existe. No dobrar do século, como é do conhecimento dos interessados, a literatura da guerra da Guiné viu uma das suas dimensões reforçada, o género memorial, começaram a aparecer livros de memórias às catadupas em detrimento do romance, novela, conto e até historiografia. “Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais, edição de autor, 2001, é um grande livro de memórias, um documento inusitado pela fala do coração. O então Capitão José Clementino Pais era já um experimentado oficial do Exército: alferes, foi prisioneiro na Índia; depois, combateu para os lados de Nambuangongo; teve seguidamente uma comissão em Cabo Verde, e à quarta foi de vez, arribou à Guiné à frente da CCAÇ 14, feriu-se com gravidade em Farim, seguiram-se três anos de internamento hospitalar. É uma prosa onde não há enxúndia, é tudo económico e hábil, tem recorte de relatório. O desfiar das recordações anda sempre à volta de uma questão central que é cuidadosamente demarcada e depois segue em espiral. São narrativas avulsas que podem navegar entre o sentimental e a bruteza mais dura que a guerra consente. Para quem testou tal prosa, é bem penoso, constrangedor mesmo, diante desta arquitetura de contos reduzidos à medula, quase agrestes na geometria, ensaiar o resumo desta prosa de primeiríssima qualidade.
Fiquemos aqui com uma tocante história de amor, “A Xuxa e o soldado Marquito”.

“O Cabo Sila procurou nosso capitão, coisa de dimensão tamanha se passa na tabanca, envolve pessoal da CCAÇ 14, tropa Mandinga, sediada no perímetro de Farim, e convém esclarecer que quartel no sentido habitual do termo era coisa que não havia: uma arrecadação e um cubículo que servia de gabinete ao capitão, ao 1.º Sargento e a um Cabo ajudante entregue à papelada. Os poucos furriéis habitavam numa casa na povoação e os soldados na tabanca. É nisto que começa a história.

- Então diga Sila. Que se passa?
- Tem mesmo ‘pobrema’ nosso capitão. Tem menininha que gosta mesmo do soldado Marquito e já fugiu de casa do pai três “vez” para ir ter com Marquito!
- Então o que há a fazer é casá-los. Se gostam assim tanto um do outro!?
- Mas, nosso capitão, Xuxa é Fula e Marquito é Mandinga.

E Sila continou:
- Tem ainda outro ‘pobrema’ mais difícil.
- Sim. Diga lá.
- Menininha já casou com sobrinho do ‘Homem Grande’ de Jumbembem e ‘Homem Grande’ veio ontem na coluna para saber o que se passa.

Havia para ali coisa séria e explosiva. Foi chamado Marquito, confirmou tudo mas não tinha 3 mil pesos para casar com a Xuxa. Chamou-se a autoridade religiosa, não havia problema de casar Fula com Mandinga, a questão era devolver o dinheiro ao ‘Homem Grande’ de Jumbembem. À cautela, nosso capitão convocou reunião com toda a tabanca, até o chefe administrativo compareceu. Nosso capitão até cita o Corão. Chegou-se a um compromisso, nosso capitão adianta os 3 mil pesos, Marquito depois pagará em prestações. Nosso capitão, finda a reunião, pergunta a Sila se a reunião tinha corrido bem. 
- Muito bem nosso capitão. Mas agora ‘vai ter pobrema’, vais ter muito soldado a querer casar!

No dia seguinte, o primeiro-sargento, alarmado, comunicou que 27 soldados também queriam casar.
Estabeleceram-se umas regras que o General Comandante-Chefe, Spínola de seu nome, aprovou e casaram-se todos.
Só os que ainda não tinham ‘mujer’.”

E já que estamos em maré literária, é igualmente de elementar justiça abrir alas a um documento que faz parte da História, o diário da CCAÇ 675, conhecido como o 1.º Volume de “Dois Anos de Guiné”. É a todos os títulos um texto singularíssimo. Será porventura o primeiro diário de uma unidade militar na Guiné, meticulosamente escrito e documentado. Quem lhe deu letra de forma foi um furriel-enfermeiro de nome José Eduardo Reis de Oliveira, JERO assim ficará conhecido. O comandante da companhia era Alípio Tomé Pinto. O livro foi dado à estampa em 1965, em edição pirata, tivesse o Estado-Maior do Exército conhecimento desta ousadia e o hoje General Tomé Pinto passaria por muitos amargos de boca, descaro como este nunca se vira, contar tintim por tintim a história da unidade militar, logo a partir de maio de 1964, viagem a partir de Lisboa, chegada ao estuário do Geba, instrução operacional e em junho, no fim do mês, a companhia vai para Binta, Tomé Pinto ficará conhecido como o Capitão de Binta ou o Capitão do Quadrado.
Logo a descrição do aquartelamento:
“O local tinha uma forma mais ou menos rectangular, limitada por vedações de arame farpado num perímetro de cerca de 800 metros. Na ‘arquitectura’ de Binta avultavam a estrutura enorme de seis grandes barracões que tinham servido para armazéns de mancarra, agora abandonados e cheios de imundícies. Existiam ainda quatro habitações de pedra e cal, pequenas, duas das quais habitadas por famílias indígenas, uma outra onde dormiam os soldados do pelotão do Alferes Sequeira, da CCAV 489, que desde há três meses se encontrava na região, rodeada por bidons cheios de terra e troncos de palmeira, e ainda outra habitada por um indígena funcionário da Casa Gouveia. Os arruamentos eram regulares mas mal cuidados, com montes de lixo por toda a parte.
Disseminada ao longo de um caminho que saía do aquartelamento, estendia-se durante cerca de dois quilómetros a tabanca de Binta, com alguns bons edifícios de adobe e cal, e com muitas moranças, agora quase na totalidade desabitadas. A referir ainda uma importante serração de um metropolitano de nome Ribeiro, na Província há cerca de 30 anos, importante negociante de madeiras”.

Houvera uma receção com tiroteio, Tomé Pinto não está pelos ajustes, inicia a 3 de julho o reconhecimento da região envolvente, vão começar os estragos. População controlada pelo PAIGC anda por ali muito perto. Há nativos que são cercados, recusam a parar, são abatidos. Entra-se na tabanca de S. João. Junto à tabanca foram encontradas uma mala com manuscritos antigos, e três bicicletas, uma delas carregada com um saco de arroz, catanas e ferramentas agrícolas.
A seguir, parte um contingente para uma batida à região de Lenquetó, situada a cerca de 12 quilómetros de Binta:
“Passámos pelo esqueleto carbonizado de uma camioneta da serração de Binta que o inimigo havia destruído há poucos meses.
Às 4.45 horas estávamos perto do nosso objectivo. Ouviu-se por momentos com nitidez no silêncio da noite o ruído característico do pilão. Não muito longe cães latiram. Lentamente, a distância que nos separava de Lenquetó foi percorrida. Às 5.15 horas começou-se o envolvimento da tabanca, instalando-se em meia-lua os dois grupos de combate. Poucos momentos depois, viram-se alguns indivíduos sair caminhando na nossa direcção, sendo-lhes gritado que fizessem alto. Retrocederam rapidamente fazendo fogo de pistola de dentro da tabanca. As nossas tropas abriram fogo e durante alguns momentos 70 armas automáticas crepitaram fragorosamente numa mensagem de morte. A reacção do inimigo embora diminuta fez-se sentir. Um ‘suicida’ descortinou o nosso Capitão em pé e avançou para ele correndo com um ‘canhangulo’ em posição de fogo. Foi abatido depois de meia dúzia de passos”.

Esta mentalidade ofensiva vai continuar, chegam ou louvores, sucedem-se as batidas, os golpes de mão, as emboscadas com êxito, faz-se contacto com a população no Senegal, começam as obras de beneficiação, as forças do PAIGC começam rapidamente a sentir que a vida não lhes corre de feição, toda aquela região era cultivada por população controlada, todo aquele mês de julho vai permitir à CCAÇ 675 um relativo e provisório domínio de terreno.
Nem tudo são rosas, e JERO passa ao papel o que se viveu em 29 de julho de 1964:
“Quando anoiteceu, uma secção comandada por um cabo, foi emboscar-se junto da serração, apenas a 50 metros do aquartelamento, com a missão de aprisionar qualquer indivíduo que viesse a sair da casa de um nativo, que se suspeitava querer passar para os terroristas.
Tinha havido o cuidado de recomendar a todos os soldados para não fazerem fogo, pois se na verdade alguém saísse de tal casa suspeita, não levaria armas. Só em última instância e em caso de fuga utilizariam as armas. Infelizmente, apesar de todas estas recomendações e de não correrem qualquer espécie de perigo do exterior, a fatalidade aconteceu.
Um soldado, já depois da secção instalada, ao deslocar-se por detrás de um colega seu, foi tomado inexplicavelmente por um inimigo e atingido com um tiro à queima-roupa.
O estampido alarmou toda a gente e momentos depois soube-se da triste novidade.
Socorrido o mais rapidamente possível ainda no local do desastre pelo médico e enfermeiro da companhia, logo se verificou ser desesperado o seu estado. Conduzido depois ao posto de socorros do aquartelamento, entrou em coma, vindo a falecer poucos minutos depois.
O infeliz soldado, de nome Augusto Gonçalves, de Santiago do Cacém, veio assim a acabar de maneira estupidamente trágica os seus dias, morto por um próprio colega em que a noite e o medo fizeram disparar precipitadamente a sua G3.
Mas a vida não pára e a nossa missão iria continuar.
Embora com o luto na alma, não cruzaríamos os braços nem nos deixaríamos abater pela fatalidade.
Em breve o inimigo voltaria a sentir a força e a coragem indómita da tropa de Binta. E os resultados obtidos no nosso primeiro mês de operações falavam melhor do que ninguém do valor e da qualidade dos homens da 675”.

Depois desta viagem a um livro de memórias e a um diário (deste, voltaremos a falar) vamos regressar à “Resenha Histórico-Militar da Guiné” neste período de 1964, impõe-se procurar um pouco de luz para perceber como os altos comandos procuraram sustar a sublevação, organizar populações aterrorizadas, contrariar um inimigo ainda mal municiado mas já determinado, em 1964 o PAIGC está posicionado a pé firme na região Sul, a população pulverizou-se, quem ficou debaixo da bandeira portuguesa vive no perímetro dos destacamentos, quase todos eles na orla marítima, os outros, perto da fronteira ou no interior, irão sendo sistematicamente flagelados, instala-se o corredor de Guileje; ainda em 1963, forças do PAIGC atravessaram o Corubal, instalaram-se relativamente perto do Xime, cultivam bolanhas e não estão muito longe do Xitole; e consolidaram posições nas matas do Morés, vão estabelecendo corredores a partir do Senegal. Reconheça-se, entre outros méritos, que esta Resenha Histórico-Militar abre alguma luz sobre o delineamento estratégico de Louro de Sousa e Arnaldo Schulz, em termos de investigação é insuficiente, é certo e seguro que há muito papel nos arquivos dos ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar que precisam de ser pacientemente examinados e sistematizados para se perceber qual o alcance da linha estratégica que os dois primeiros Comandantes-Chefes imprimiram à máquina militar, desde que começou a luta armada até à chegada do Brigadeiro António de Spínola.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 8 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20324: Notas de leitura (1234): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (31) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20333: Notas de leitura (1235): “Astronomia”, por Mário Cláudio; Publicações D. Quixote, 2015 (Mário Beja Santos)