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quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23634: Historiografia da presença portuguesa em África (335): As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Reiteradas vezes aqui se tem feito referência ao padre António Joaquim Dias, um franciscano que viveu 8 anos na Guiné e que deixou descrita a história das missões católicas na Guiné, foi o pioneiro, mais tarde distinguir-se-á o trabalho, que continua a ser referência essencial, do padre Henrique Pinto Rema, já aqui largamente citado. Faz-se sinopse de uma conferência proferida por este missionário franciscano em agosto de 1942, ele dá conta desse historial missionário e da obra que se começou a efetuar a partir de 1932, data marcante para o reinício da atividade missionária na Guiné, onde os franciscanos preponderavam e preponderam.

Um abraço do
Mário



As missões católicas na evolução político-social da Guiné Portuguesa

Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala no missionário franciscano padre António Joaquim Dias [foto à direita], viveu na Guiné mais de 18 anos, e sobre ela escreveu abundantemente, no boletim mensal dos missionários franciscanos, como leitor recordará. No entanto, este sacerdote virá a destacar-se como investigador e historiador com nome de António Joaquim Dias Dinis, foi mesmo condecorado em 1961 com a Ordem do Infante pelos seus relevantes trabalhos. Não deixou de ter polémicas, como aquela que travou com Teixeira da Mota pela descoberta da Guiné.

Proferiu uma conferência sobre as missões católicas no curso de férias da Faculdade de Letras de Coimbra, em 20 de agosto de 1942, e o seu trabalho de marca científica será publicado na revista Biblo, volume XIX, 1943. Começa por referir que regressara há meses da Guiné após 8 anos consecutivos de atividade nas missões católicas. Dedicara-se ao estudo do passado da colónia, nomeadamente das suas missões, razão pela qual aceitara o convite para abordar este tema.

Não ilude verdade, diz serem bastante débeis os ecos da nossa atuação missionária na Costa da Guiné, do século XV ao século XX, não existiam ruínas nem vestígios do passado missionário. Dá ao auditório um vasto leque de informações, desde a geografia à etnografia. Apresenta-lhes uma definição de missões católicas: assistência e ação religiosa e civilizadoras, dos sacerdotes católicos e dos seus colaboradores leigos. E recorda que a Guiné Portuguesa é o território que pertence a Portugal desde que no século XVII principiou o cerceamento dos nossos vastos domínios. A delimitação da Guiné, a Terra dos Negros, principiava a norte na margem do rio Senegal, e faz então uma citação do Canto V d’Os Lusíadas, estrofe 102:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente.


Cita documentos comprovativos sobre a finalidade religiosa dos Descobrimentos, lembrando que em 1455 o Infante D. Henrique entregara a espiritualidade da Guiné à Ordem de Cristo. Em 1462, o Papa Pio II, em breve dirigido a um bispo de Rubicão, nas Canárias, diz constar-lhe que ele andava empenhado em converter infiéis, moradores nas ilhas Canárias na província da Guiné, e que, em razão da pobreza da terra e dos habitantes, os presbíteros e clérigos seculares se recusavam a viver ali.

O conferencista destacou a atividade missionária de Frei Afonso de Bolano, nomeado pelo Papa Xisto IV, em 1472, Núncio Apostólico para a conversão dos infiéis, a viverem em Granada, Guiné, África e ilhas do Atlântico. Tal nomeação gerou polémica com os superiores das Ordens Religiosas, e a decisão acabou por ser revogada. No entanto, Xisto IV outorgou em 1475 que Frei Afonso Bolano recrutasse 16 religiosos da família franciscana nas províncias de Portugal, Santiago de Compostela, Castela e Aragão. Esta missionação revelou-se ineficaz, por várias causas: isolamento em que viviam os visionários; clima mortífero; o islamismo tudo fazia para dificultar a atividade missionária; antipática e até a hostilidade do indígena para com o europeu, em razão da escravatura. E observa: “Não me parece que a Missão tenha findado por menos zelo dos obreiros; mas sim por motivos idênticos aos que tornaram improfícuas as expedições dos missionários dominicanos a Benim e ao Senegal em 1487 e 1488, respetivamente”.

Foram depois chamados os Jesuítas para fundar um colégio em Cabo Verde e missionário na Guiné. Os Jesuítas enviaram os padres Baltasar Barreira, Manuel de Barros e Manuel Fernandes e o irmão leigo Pedro Fernandes. Barreira apresentou o seu programa ao Provincial dos Jesuítas: tratava-se de uma missão para examinar as condições da região e sugere que ela se mantenha no maior segredo. O padre Baltasar Barreira partiu de Santiago em dezembro de 1604, aportou em Guinala, no rio Grande de Buba, e daqui desceu para a Serra Leoa. Na sede em Lisboa dos Jesuítas, em São Roque, deu-se uma inflexão estratégica, ofereceram-se padres para Angola, pois considerou-se que Cabo Verde era insalubre para ter um seminário. Aconteceu que não foi concedido a Companhia de Jesus o exclusivo da missionação de Angola, foi nomeado para Bispo de Angola e Congo um dominicano. Então os Jesuítas fundaram uma missão na Serra de Leoa, foi aqui que Baltasar Barreira e Manuel Álvares encetaram atividade missionária. O rei Filipe, em 1608, mantinha os Jesuítas em Cabo Verde e ordenava visitas à Guiné. Em Cabo Verde fundar-se-ia uma casa professa. Dificultava-se a ida de padres para a Guiné alegando que faziam falta em Cabo Verde. Em 1642, os Jesuítas abandonaram definitivamente Cabo Verde e Guiné.

Escreve o autor: “É digno de censura a teimosa dos reis castelhanos, que, por via do colégio e por coisas de somenos importância, impediu a missão missionária na Costa da Guiné, precisamente quando ela ali era mais necessária”. E regressaram então os franciscanos.
Aos poucos, a presença estrangeira cresceu na Costa da Guiné. Houve projetos de introduzir Capuchinos Italianos, mas não se concretizou. Os franciscanos chegaram a Cabo Verde em janeiro de 1657. Desembarcaram em Cacheu dois padres, em 1660. Principiaram a sua atividade na etnia Banhum e passaram a Farim, seguiram para os Cassangas e depois o Casamansa. E chegaram a Bissau onde os cristãos estavam abandonados e a igreja paroquial encerrada.

Foram criadas, nas décadas seguintes, hospícios em Cacheu, Bissau e Geba. O primeiro bispo de Cabo Verde que visitou Guiné foi D. Frei Vitoriano do Porto, e por duas vezes. O autor traça um martirológico missionário impressionante. As ordens religiosas entraram em franca decadência em finais do século XVIII. Deu depois a extinção das Ordens, em 1834, foi golpe mortal na região, as cristandades definharam. O renascimento deu-se em 1932, com a reabertura da missionação: renasceram as antigas paróquias de Bissau, Bolama, Cacheu e Geba. “Na Missão Central de Bula, nas escolas missionárias de Bissau, Có, Pelundo, Churo, Cacheu, Geba, Bor, e no asilo-creche de Bor, as futuras gerações aprendem a amar a Deus”.

Asilo da Infância Desvalida de Bor, em 1939
Em Geba reabilita-se uma Igreja
Imagens da missão franciscana na Cumura, na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23616: Historiografia da presença portuguesa em África (334): Personalidades e olhares sobre a Guiné que poucos recordam ou conhecem (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23551: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Se acaso existe algum valor nestas impressões de viagem e no cuidado posto pelo Padre António Joaquim Dias quanto à história da presença missionária franciscana na Guiné, dar-se-á o caso o estudioso ou curioso poder reter o olhar de um missionário que ali viveu intensamente na década de 1930 e transitou para a seguinte. Não faz o panegírico da missionação franciscana, mas não ficamos com dúvidas que foi uma pequena saga a sua instalação, o seu fervor apostólico. Como homem do seu tempo, deixou registado o seu olhar sobre aquele mosaico étnico que deixava qualquer viajante assombrado, como era possível em território tão diminuto encontrar-se aquela riqueza multiétnica, multilinguística, aqueles usos e costumes que variavam radicalmente no mesmo espaço e lugar, numa convivência alegadamente pacífica, sem qualquer radicalismo religioso, que se prolonga aos dias de hoje. Tenho vários cartapácios ainda para ler, vamos ver quantas mais surpresas nos reserva o Padre António Joaquim Dias.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O Padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa. Elaborou um texto sobre os missionários franciscanos na Guiné e conta que em 1931 foram desviados do campo apostólico de Moçambique os primeiros missionários, não foi operação indolor, como ele escreve:
“Antigos e prestimosos obreiros de Deus e da Pátria, lamentavam o abandono a que eram condenados. Na Guiné havia míngua de obreiros. Durante anos, um único sacerdote foi todo o clérigo da colónia. Gostosamente prestamos aqui homenagem cordial ao Padre José Pinheiro, ainda vivo e reformado após mais de 30 anos de serviço na Guiné, o qual soube trabalhar sozinho e aguentar-se, esperando contra toda a esperança dias melhores, menos agrestes. Estes surgiram em 1931, com modesto reforço, ao qual se seguiu outra um pouco mais nutrido, em 1932”.

E recorda o seu estabelecimento na vila de Cacheu, as bases da missão central de Bula, em chão de Brâmes ou Mancanhas, a primeira missão da Guiné depois de séculos de entorpecimento religioso e paralisação missionária. Relata os acontecimentos entre 1934 e 1937, não ilude a falta de recursos, começam a aparecer escolas em Farim, em Có, refere que o Governador Carvalho Viegas não era grande apoiante do trabalho missionário, mas que, no entanto, sabia fazer propaganda da presença missionária, iam surgindo artigos anónimos aludindo à obra de assistência social e às missões religiosas, isto quando na prática era o próprio governador que as não apoiava. Nesse ano de 1935 apareceu o Reformatório de Menores e Asilo de Infância Desvalida de Bor, com o auxílio de mais quatro irmãs Franciscanas Hospitaleiras. As baixas eram enormes, em 1936, Padre Pedro, absolutamente exausto, era forçado a sair da Guiné. No ano seguinte era inaugurada a Escola do Sagrado Coração de Jesus de Pelundo. Interrompe aqui o Padre Dias a sua descrição para nos falar de aspetos etnográficos e etnológicos que julga pertinentes divulgar, e espraia-se sobre o mosaico étnico da Guiné.

À luz dos conhecimentos da época, refere a seguinte tipologia: Fulas e Mandingas provenientes de uma mistura de Etíopes e de Nigríticos (negros sudaneses e nilóticos); as demais tribos constituiriam o grupo dos Nigríticos litorais ou guineenses, que não usam línguas Bantus. Diz faltarem estudos sobre a origem e parentesco etnográfico destas gentes africanas e alude a algumas referências sobretudo da literatura de viagens sobre as gentes da Guiné, caso das obras de Valentim Fernandes e de Duarte Pacheco Pereira, pondo ênfase que no século XVI já figuravam na Guiné os Balantas, os Felupes, os Banhuns, os Beafadas e os Nalus. Há também referências à tribo Papel, eram situados na chamada Costa de Baixo, nas ilhas de Pecixe e Jata e provavelmente também na ilha de Bissau.

Os Bijagós também não são esquecidos. André Alvares de Almada, no seu "Tratado Breve dos Rios da Guiné", cita e localiza diferentes etnias, com exceção dos Baiotes, Manjacos, Fulas e Futa-Fulas, e depois o Padre Dias lança-se numa apreciação do mosaico étnico.
Os Felupes já nos primeiros anos do século XVI ocupavam a posição geográfica atual; os Baiotes estavam agora confinados entre o rio Cacheu, os Felupes, os Banhuns e a fronteira, mas não são referenciados na já citada literatura de viagens e o Padre Dias diz mesmo que o Padre Marcelino Marques de Barros dá os Baiotes como uma subdivisão dos Felupes; os Banhuns tinham um território que constituía centro comercial das ilhas de Cabo Verde, estendiam-se pela margem esquerda do rio Casamansa avançando por cima dos Felupes, e eram cingidos ao sul pelos Brâmes, que já lá não existem, e por cima e pelos lados por Cassangas; estes, assentavam no local que cingia os Banhuns, o Padre Marcelino Marques de Barros faz dos Cassangas uma subdivisão dos Beafadas; os Mandingas apareciam agora instalados nas regiões de Farim, Paxisse e Oio (onde tomam o nome de Oincas), alargaram durante o século XVI o seu espaço territorial para a região de Mansoa até às margens do estuário comum aos rios Geba e Corubal; os Balantas terão descido do rio Casamansa para as zonas em que hoje vivem: Barro, Bissorã, Mansoa e Nhacra; os Buramos ou Brâmes comprimiram-se inicialmente entre o rio Cacheu e os Banhuns, foram-se espalhando por toda a região de entre os rios Cacheu e Geba, contam hoje com os regulados de Bula, Có e Jol, o Padre Marcelino diz que os Brâmes são uma subdivisão dos Banhuns; os Papéis podem ser confundidos com os Brâmes por ocuparem territórios afins e estendem-se hoje por toda a ilha de Bissau; os Manjacos são os marinheiros da Guiné, permanecem um ponto de interrogação no quadro etnográfico da colónia, Brâmes, Papéis e Manjacos mantêm afinidades etnográficas e linguísticas; os Beafadas ou Beafares já no século XVI ocupavam as regiões onde hoje vivem, do Quínara ou Guinala, e do Cubisseque e Bissegue, é dado como seguro existiram afinidades linguísticas entre Beafadas e Manjacos; os Nalus mantêm-se igualmente no território que habitavam no século XVI, a sul do rio Tombali; os Fulas constituíam no passado o Grande Império Fula ou Grão-Fula, que principiava no rio Senegal e se estendia para o Sudão, em concorrência com o Grande Império Mandé ou Mandinga, Fulas-Forros e Fulas-Pretos representam migrações Fulas, que foram deslocando para o litoral grupos étnicos instalados primitivamente a leste, são os autóctones mais bronzeados da colónia e ocupam atualmente as zonas do Gabú, Bafatá e Forreá; os Futa-Fulas ou Fulas do Futa Djalon, enviados outrora ao Forreá para extensão da supremacia política, é o tipo mais aproximado do Fula clássico, não foram mencionados pelos escritores de Quinhentos, por não existirem então no nosso território, povoam atualmente a região do Boé; os Bijagós são indígenas de cor preta, encontrando-se porém nalguns sinais evidentes de mestiçagem, dialetos e costumes variam quase de ilha para ilha, podendo admitir-se talvez a hipótese de imigrações várias.

Depois desta exposição sobre os grupos étnicos, o Padre Dias especula o número de habitantes da Guiné, mas diz claramente que falta um recenseamento seguro. O seu poder de observação vai até aos usos e costumes, como se exemplifica:
“As tatuagens estão em moda em alguns grupos étnicos. Usam-nas Manjacos, Brâmes, Papéis, Balantas e Bijagós, no peito, no ventre, nas costas e braços. São produzidas por escarificações à faca ou agulha e infetadas ou cheias de massa de azeite de palma com cinza. Os Mandingas usam tatuar-se na testa e frontais. Os Futa-Fulas tatuam os lábios a azul, pintam da mesma cor as pálpebras inferiores e abrem sinais particulares nas palmas das mãos. Notam-se penteados exóticos em quase todas as etnias, são feitos com pente indígena de madeira, semelhante a largo e comprido garfo de muitos dentes. Os Felupes ornam a carapinha, depois dos dez anos, confiadas de búzio; os Papéis de Biombo (ilha de Bissau) usam risca ao meio ou então tranças isoladas apertadas na base ou ainda tranças em torno da cabeça, de onde pendem anilhas de latão. Os exóticos penteados das mulheres Futa-Fulas, sobremontados por alta forma de palha, são adornados com fita de palha tingida de negro e abastecida de moedas e contas. Os Balantas penduram anéis e anilhas de latão da carapinha torcida e besuntada de azeite de palma e carvão moído, ou então rapam a cabeça, à faca ou a vidro, deixando somente algumas placas de cabelo, de forma redonda, ou valada, longitudinais ou transversais. Das pequenas tranças das mulheres Beafadas pendem conchas e moedas, em toda a volta da cabeça. Finalmente são inconfundíveis os dois sistemas de penteado Bijagó: tufos de cabelo soerguidos no alto da cabeça ou então empastada a carapinha toda em azeite de palma, barro ou carvão moído".

(continua)
Guiné - Catedral de Bissau
Guiné - A Igreja de Cacheu, única relíquia dos velhos tempos
Mancanha em dia de festa
Missão do Felupes. A casa que serve de igreja, escola e residência missionária
Bolama. A procissão na festa de S. José
Guiné. Tipo bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23533: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23464: Historiografia da presença portuguesa em África (327): O arquiteto Luís Benavente e o restauro da Fortaleza da Amura no número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se regressa à história da Fortaleza de S. José da Amura a pretexto das intervenções propostas por um arquiteto de nomeada, Luís Benavente, alguém que deixou nome em importantíssimos trabalhos de reedificação e construção. Entendia que a Amura corria o risco de ter "coisas a mais", era entendimento, desde o início da guerra da independência, que a fortaleza devia ter um importante desempenho militar, ali se colocou o Comando-Chefe, ali tinham estado unidades militares, garantiu-se a solidez dos panos de muralha, mas Luís Benavente era contrário a uma excessiva ocupação daquele espaço, havia que respeitar a consagração do monumento nacional. Era no seu interior que o Governador e Comandante-Chefe António Spínola reunia diariamente com os seus Altos Comandos, a Amura viveu outro momento histórico em 26 de abril de 1974, as unidades militares em peso tinham aderido ao MFA, daqui partiram para depor, no Palácio do Governo, o General Bettencourt Rodrigues, que no dia seguinte seguiu para Lisboa.

Um abraço do
Mário



O arquiteto Luís Benavente e o restauro da fortaleza da Amura

Mário Beja Santos

Luís Benavente é um nome sonante da arquitetura portuguesa no século XX. No número que a revista Oceanos de outubro/dezembro de 1996 dedicou às Fortalezas da Expansão Portuguesa, o professor José Manuel Fernandes dedicou um artigo a este insigne arquiteto e ao seu trabalho nas fortalezas de África. E escreve: “Durante 17 anos – nas décadas de 1950, 60 e 70 – o arquiteto Luís Benavente esteve ligado às fortificações da costa africana, com especial relevo para os monumentos nas ilhas de S. Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, mas também na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique e até no Gana. Destacado do Ministério das Obras Públicas, onde era Diretor dos Monumentos Nacionais, Luís Benavente pôde dedicar-se com certa continuidade a visitar, estudar, fotografar e desenhar inúmeras fortalezas, executando propostas de restauro ou de reconstrução para vários desses vestígios militares da Expansão Portuguesa em África. O seu espólio profissional está depositado na Torre do Tombo”. A revista Oceanos mostra imagens do Forte de S. Sebastião em S. Tomé, a Fortaleza de S. José da Amura em Bissau, a Fortaleza Real de S. Filipe na Ilha de Santiago e o Forte de S. Pedro da Barra em Angola.

Luís Benavente visita a Guiné de 12 a 15 de julho de 1962, visita o Fortim de Cacheu, que entende como uma “reconstrução com possibilidades dentro do que de facto deveria ter sido” e visita uma pequena mas interessante igreja nas suas proximidades, “provavelmente do início do século XVII”. Segue para Bissau e visita S. José da Amura que considera “obra notável pelas suas proporções e dimensão”. Recomenda o levantamento destas duas obras militares com proteção urbanística da de S. José e com medidas para restauro e controlo da intervenção arquitetónica no seu interior. E é ao restauro de S. José que irá dedicar-se nos anos seguintes, conhecendo-se uma sua proposta desenvolvida com data de 25 de fevereiro de 1969 e despachada positivamente por Rui Patrício em 18 de março de 1969. Num ofício do Ministério do Ultramar, com data de 18 de junho de 1970, o arquiteto discorda da hipótese de “pôr coisas a mais” no interior da fortaleza, sugerindo que novas funções militares sejam resolvidas em outro edifício, alheio à fortaleza. Neste mesmo ofício refere o desejo, expresso em conversa com António de Spínola, de que “… à Fortaleza fosse dado através do seu restauro um aspeto de acordo com a sua importância e mérito”.

No relatório de 1962, Luís Benavente mencionava a construção inicial de S. José da Amura (em 1696, pelo Capitão-mor José Pinheiro) e a sua primeira construção (em 1753, segundo planos de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, continuada em 1766 com traçado pelo Coronel Manuel Germano da Mata).

Não é a primeira vez que o nome Luís Benavente é invocado no blogue. Em 13 de janeiro de 2015, a então doutoranda Vera Mariz aludia à remodelação de 1968/69 da fortaleza da Amura para passar a receber o Comando-Chefe, a Companhia de Polícia Militar e o Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau, de que o arquiteto notoriamente discordava, eram coisas a mais dentro de um monumento nacional, propunha que tais serviços militares fossem incorporados em edifício à parte. (Vd. postes P14145 e P14147)

Bem curiosa me parece a intervenção do arquiteto guineense Fernando J. P. Teixeira que no VII Encontro do Conselho Internacional dos Arquitetos de Língua Portuguesa se referiu à evolução histórica da fortaleza. Recorda que as datas da construção desta fortaleza não são coincidentes nas diversas fontes consultadas e não deixa de citar uma observação do Visconde Sá da Bandeira: “… e o cimento da cantaria bem podia ser amassado com sangue; porque mais de dois mil dos nossos que morreram nesta edificação, e não foi senão sob o fogo de canhões de uma esquadrilha que se conseguiu elevar a praça de guerra S. José de Bissau”. Criada a Companhia Geral de Comércio e Navegação do Grão-Pará e Maranhão, com estatutos em 1775, uma das deficiências notadas pela administração nos portos de Bissau e Cacheu era a fragilidade das suas fortalezas. As edificações anteriores tinham sido o Forte de Cacheu, construído em 1589 e os fortes de Guinala e Biguba, no Sul, tinham sido construídos de adobe e pouco duraram. A Companhia reclamava trabalhos de defesa em Bissau e Cacheu para se garantir o comércio. Esta mesma Companhia negociou com o régulo de Intim a compra de uma porção de terra para erguer a fortaleza. E assim se traçou um quadrado de pedra com mais de uma centena de metros por fachada, com doze metros de altura, flanqueado por quatro bastiões. O interior esteve permanentemente em reparação, estava destinado a residência do governador de Bissau, a ter casernas para 200-300 soldados, uma igreja e um poço. Os seus baluartes passaram a ser conhecidos por Bandeira, Balança, Onça e Puana.

Os Papéis hostilizavam a presença de quem vivia dentro dos muros de Bissau, eram muros de pedra e cal, com quatro metros de altura, fora achava-se a povoação com centenas de palhotas e meia dúzia de casas onde residiam negociantes e agentes de firmas francesas, de Gorée e inglesas, da Gâmbia, estavam sujeitos a todos os ultrajes, razão pela qual havia quem defendesse a ideia de transferir os armazéns e estabelecimentos para o Ilhéu do Rei.

É na visita de 1962 que Benavente aconselha o levantamento e a proteção urbanística do forte e medidas para o restauro e controlo de intervenção arquitetónica no seu interior. Já se sabe que em 1970 Benavente discordava de pôr coisas a mais dentro da Amura. Seguramente que se referia às instalações do Comando-Chefe, da Polícia e do Comando-Chefe do Agrupamento de Bissau.

A dinâmica de Bissau contribuiu para que S. José da Amura ganhasse respeitabilidade. Em 1914 Bissau foi elevada à categoria de cidade. O engenheiro Guedes Quinhones traçou-lhe o risco que de certo modo veio a conhecer execução. Apareceram as grandes casas comerciais, o Banco Nacional Ultramarino, surgiu a primeira fábrica de gelo acionada por um locomóvel. Em 1923 o governo concede foral ao município de Bissau, dois anos depois foi inaugurado o novo mercado e o cemitério municipal, em 1935 lançou-se a primeira pedra da futura Catedral de Bissau. No ano seguinte, o antigo bairro indígena passou para Santa Luzia e passou a fazer parte integrante da cidade. De 1936 a 1939 a cidade cresce e surge o bairro Portugal com casas destinadas a funcionários. Em 4 de dezembro de 1939 a Amura é considerado monumento nacional. E em 1941 é inaugurado o Monumento ao Esforço da Raça, que tinha sido começado a construir em 1934 (as pedras tinham vindo do Porto, onde fora feito o projeto da autoria do arquiteto Ponce de Castro).

A cidade transformara-se, a Avenida da República ganhou vida com a Catedral e o Palácio do Governo. E as muralhas do baluarte de Puana, em S. José da Amura, que haviam ruido, foram reerguidas em 1946. Dentro erigiu-se um Monumento aos Heróis da Ocupação.

É esta em síntese a história do principal monumento que a presença portuguesa legou à República da Guiné-Bissau.

Três imagens retiradas do trabalho do arquiteto Fernando J. P. Teixeira sobre a evolução histórica da Fortaleza de S. José da Amura publicado no site didinho.org
Entrada chamada do Pidjiquiti
Fortaleza da Amura, imagem de 1962, de Durval Faria, já publicada no blogue
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, hoje na Praça dos Heróis Nacionais
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quarta-feira, 1 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Escapara-me esta obra de divulgação saída do punho de um jornalista cheio de pergaminhos. Não foi por acaso que surgiu em 1933, estamos numa época em que se procura a todo o transe publicitar os valores imperiais. No que toca à sua narrativa sobre a Guiné, Rocha Martins deu provas de grande probidade, não foi aos arquivos mas consultou a melhor bibliografia da época, não ilude a pressão exercida pelos franceses e ingleses para reduzir a presença portuguesa na Senegâmbia e descreve sumariamente a vida atribulada dos três primeiros governadores. Não se trata, pois, de obra de consulta imperativa para investigadores, era um puro exercício de divulgação, acontece que muito bem redigido. No seu todo, Rocha Martins podia dar-se por satisfeito com o seu libelo patriótico, ao mostrar que aquelas parcelas do Império sobrantes de tanta procela eram um motivo de orgulho pátrio, e a elas devíamos rapidamente atender, começando por as habitar, e fazê-las progredir.

Um abraço do
Mário



História das colónias portuguesas, por Rocha Martins

Mário Beja Santos


"História das Colónias Portuguesas, obra patriótica sob o patrocínio do Diário de Notícias", é da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa, reputado jornalista e plumitivo admirado, a edição é de 1933, Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade.

Como é óbvio, circunscrevemos as apreciações à colónia da Guiné. O autor faz um esboço histórico, refere as etnias, a natureza das selvas e dos rios, fala-nos nas companhias de tráfico de escravos e deixa o seguinte comentário: “Enorme e estranho território, nuns lugares fertilíssimo, noutros selvático e adusto, era habitado por tribos de caráter guerreiro, havendo, todavia, algumas que muito se compraziam em viver com os portugueses. O principal tráfico que se fez foi o da escravatura. Os Mouros, desde há muito, se entregavam àquele negócio, tendo em suas terras de Marrocos não só cativos negros mas brancos e cristãos. Os primeiros convertidos foram Fulas e Mandingas”.

Refere com detalhe a figura dos lançados, dos conversos ao Islamismo, observa usos e costumes: “Vestiam calção e camisola curta, usavam sandálias e barrete de algodão, à mourisca. Possuíam cavalos muito bem adestrados; as armas de guerra eram constituídas por zagaias, couraça de algodão empancado para lhes cobrir o peito e o ventre".

Enuncia as informações apresentadas por André Álvares d’Almada no seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dizendo que a mercadoria mais preciosa nesta época era o sal, que os Jalofos e os Mandingas transportavam. Era monopólio régio – trocavam o sal por oiro, escravos e estojos finos. Na esteira de André Alvares d’Almada faz a descrição do reino de Budamel. Relaciona Cabo Verde com a Guiné: “Na ilha de Santiago, onde se tinham instalado, em que os mercadores partiam e estabeleceram-se em Cacheu na Aldeia de Buramos ou Papéis de Cacanda e ali os portugueses viviam em comum com os indígenas. Manuel Lopes Cardoso, sem dúvida judeu, conseguiu, em 1588, uma concessão régia, podia construir em Cacheu uma fortaleza. Na margem direita do rio de S. Domingos estabeleceu outra feitoria em território Banhum, duas léguas abaixo de Cacheu”. É um autor que se sente dotado para contar histórias que sejam inclusivamente apreciadas por leitores de jornais. “Houve um português que se tornou marido da filha do rei Foulo, o grande soberano. Chamava-se João Ferreira e nascera no Crato, houve um filho deste matrimónio. Os indígenas alcunharam-no de Ganagoga – um homem que sabia todos os dialetos da negraria”. Os géneros que os portugueses levavam aos guinéus eram vinho, panos da Bretanha, vidros e moedas de dois reis.

Dá-nos também preferência do Mandimansa e depois foca-se em Cacheu. O primeiro Capitão-Mor de Cacheu foi António de Barros Bezerra, que trouxe criados, escravos, foragidos, vadios. Fortificou a povoação, rodeando-a de altíssima escadaria, abriu-se um fosso onde entravam as águas e se podia navegar. Artilhou o forte, feito de adobe e coberto de colmo, tal como a Igreja de Nossa Senhora do Vencimento. No período dos Filipes, o comércio dos portugueses continuava a ser o dos escravos, marfim e algum oiro. Vassalos de outros países penetravam à vontade em território onde primeiramente se manifestara só a presença portuguesa. Dá-nos igualmente a saber que com a restauração foi nomeado Capitão-Mor de Cacheu Gonçalo Gamboa de Ayala, que fundou Farim. Inevitavelmente, fala-nos das companhias do tráfico de escravos, da Companhia de Cacheu que introduziu na Nova Espanha dez mil toneladas de negros; não deixa de mencionar a Companhia de Grão Pará e Maranhão e das dificuldades sentidas, sucedeu-lhe a companhia de comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e Cacheu, extinta em 1786. E começa o apertado cerco à Senegâmbia Portuguesa, a cobiça francesa, pretendia o porto de Bissau. É referido a demolição da fortaleza de Bissau, no reinado de D. João V, virá a ser refeita no reinado de D. José. Rocha Martins refere o período anárquico que se viveu durante as invasões francesas em que a Corte for para o Brasil. E depois de nos dar um quadro da vida em Bissau, Geba e Bolama e da Ilha das Galinhas refere a tentativa dos Franceses e dos Ingleses para os expulsar da região. A intensidade da intervenção francesa no princípio do século XIX, fala-se da questão do Casamansa, das diligências de Caetano Nozolini e António Pereira Barreto e como se conseguiu impedir a presença britânica em Bolama. Refere a política de Latino Coelho, Ministro da Marinha e Ultramar que aprovou uma nova divisão administrativa da Guiné em 1869. Ao Conselho de Cacheu juntavam-se Farim, Ziguinchor, Mata e Bolor; a Bissau pertenciam Geba, Colirna, Orango e Bolola.

Depois do chamado desastre de Bolor, dá-se autonomização da Guiné em 1879, e é nomeado como primeiro Governador o Coronel Agostinho Coelho. Este relatou para Lisboa que a situação era tremenda, exercia-se um certo domínio em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Bolama e sobre meia légua de terra denominada Colónia do Rio Grande. “Portugal exerce um simulacro de soberania, tem vindo a abandonar lugares como Bolor, no rio de S. Domingos onde havia um destacamento de três praças com o fim único de içar a bandeira quando passa o navio. Em S. Belchior, Viena, Fá e Corubal não há bandeira nem autoridade portuguesa. Os negociantes de Buba pagam além de presentes isolados a um outro rei a respeitável soma de oito contos de reis a título de imposto. Franceses e indígenas de Buba não reconheciam o domínio nacional. As fortalezas caíam em ruína. Para policiar todas as regiões havia duzentos e tantos soldados e para os rios uma velha escuna A Bissau”. É neste quadro que vai atuar o primeiro governador com um pequeno efetivo a que se irão juntar 142 praças do batalhão de Moçambique: obrigando o régulo de Orango a pagar a austríacos 6 mil francos que lhes tinham roubado; os Fulas atacaram Buba que foi defendida por 200 portuguesas; os Beafadas atacaram os Fulas. Rocha Martins refere ainda a atividade do segundo e terceiro governadores.

O segundo, Pedro Inácio de Gouveia, recebeu espingardas do governo central, nesse tempo os franceses intervinham escandalosamente no Casamansa, declaravam que Portugal só possuía Ziguinchor. Os Fulas atacavam no Rio Grande, foi necessário enviar um contingente que os obrigou a fazer a paz. Rocha Martins refere o papel do tenente Francisco Marques Geraldes e como Bakar Kadali derrotou os rebeldes no Forreá, obrigando Mamadi Paté a pedir a paz. O terceiro governador foi o oficial da Armada Francisco Gomes Barbosa, e Rocha Martins escreve: “Os Franceses iam apertando o cerco do seu território, encravando a Guiné. Tinham Senegal e queriam Casamansa, ocuparam ilhas sob o título de Riviera do Sul. A Inglaterra dominava na Gâmbia e na Serra Leoa. Ia porém chegar o momento em que se inaugurava o período contemporâneo da vida colonial com a Conferência de Berlim, onde se decidiu os destinos das possessões em África. Os portugueses tinham ido à descoberta; nenhum povo os precedera nessa obra; depois, mercê do domínio espanhol, das suas lutas indestinas, da grandeza das suas possessões, que as cobiças maldeixavam, iam ver-se em situação de que lhe era difícil defender o que lhe pertencia. Conseguiu-se, porém, à custa de um novo esforço. Ressuscitaria, em parte, a sua velha epopeia”.

Notas bastante curiosas de alguém que se afadigou em tempos de Ditadura Nacional a fazer uma radiografia do Império, num texto cheio de motivação e onde houve o cuidado de procurar dar informações idóneas à luz dos conhecimentos da época.

Mapa de África datado de 1572
Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
Sonô, a escultura guineense mais disputada nos leilões internacionais
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23286: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (25): Cacheu, restos que o império teceu... - II (e última) Parte


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > O que resta do Monumento em homenagem do "V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique [1460-1960]... Nas proximidades fica a antiga Casa Gouveia, agora comvertida em Memorial da Escravatuar e do Tráfico Negreiro.


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Cacheu > "Este monumento ...em que a pedra não está a aguentar...como nós", escreve o Patrício com fina ironia...


Foto nº 3 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) > Aspecto parcial, com alguns dos 16 canhões de bronze...


Foto nº 4 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Cacheu >  Forte de Cacheu (séc. XVIII): exterior e porto


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu >  Chacheu > Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro >  O museu foi inaugurado em 8 de julho de 2016... mas já apresenta sinais de degradação (manchas de salitre nas paredes interiores, por exemplo, visíveis nesta foto...) > O grande mentor deste projeto museológico foi o nosso amigo Pepito (1949-2014) que já não viveu para poder assistir á sua inauguração. É aqui lembrada por uma foto (da autoria de Luís Graça: Lisboa, Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade de Lisboa, 2006...e tal como o retratado, a palmeira também já não existe...)... Na foto à sua direita, o antigo edifício da Casa Gouveia, em ruínas, que foi recuperado para nele ser instalado este museu. 

O projeto da construção deste memorial, dando continuidade ao projeto Percurso dos Quilombos, recebeu um financiamento da União Europeia e  resultou dos esforços e colaboração da ONGD guineense Ação para o Desenvolvimento (AD), da Associazione Interpreti Naturalistici (AIN), de Itália, da COAJOQ, Cooperativa Agropecuária de Jovens Quadros e a Fundação Mário Soares.

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de um conjunto de fotos que nos foram enviadas recentemente pelo nosso colaboador permanente Patrício Ribeiro (Bissau), sobre a cidade do Cacheu e os restos da presença portuguesa (*). Fotos tiradas no domingo, dia 15 de maio, no Cacheu onde esteve em trabalho.

Sobre o Mmeorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu, ver aqui um excerto de página da UCCLA:

 Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu

A cidade de Cacheu (Membro Efetivo da UCCLA), no norte da Guiné-Bissau, conta, desde o dia 8 de julho, com um memorial dedicado à escravatura e tráfico negreiro, erguido num edifício em ruínas cujas obras de reabilitação foram custeadas pela União Europeia.

O memorial consiste num pavilhão multiusos, salas de formação, residência para investigadores e um museu que preserva alguns artefactos que marcavam o dia-a-dia dos escravos. A população de Cacheu contribuiu com os artefactos - colheres de cozinha, tachos, correntes, ferros que serviam para marcar os escravos depois de passados em lume, chicotes - que podem ser contemplados no museu.

A iniciativa é da organização guineense Acão para o Desenvolvimento (AD), com apoios de várias organizações locais e internacionais, nomeadamente a Fundação Mário Soares de Portugal que forneceu técnicos para a reabilitação arquitetónica do antigo edifício da Casa Gouveia hoje transformado no memorial.

O memorial foi apresentado como sendo um espaço que visa "valorizar a memória de uma realidade que marcou profundamente os países africanos e ainda hoje permanece com grande acuidade nas sociedades dilaceradas pelo tráfico negreiro".

A ideia da construção do memorial foi iniciada pela AD em 2010, no âmbito do projeto Percurso dos Quilombos, sempre contando com o apoio financeiro da União Europeia, dai que o representante desta comunidade na Guiné-Bissau, Vítor dos Santos, tenha enaltecido o trabalho realizado até aqui. "O memorial inicia hoje um longo caminho representando um elemento de união entre o presente e o passado e o futuro da comunidade em seu território bem como uma ligação com outros territórios (...) Estados Unidas, o Canada e o Brasil na perspetiva da compreensão da própria historia e da construção da memória histórica".

O ministro guineense da Cultura, Tomas Barbosa, disse que o memorial deve ser usado como um chamariz para os descendentes de escravos para que possam voltar à terra dos seus antepassados. (...)

Fonte: Excertos de UCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa > Guiné-Bissau, Cacheu > Inaugurado memorial de escravatura em Cacheu. Publicado em 09-07-2016 (com a devida vénia...)
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Nota do editor:

terça-feira, 17 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23271: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (24): Cacheu, restos que o império teceu... - Parte I


Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Uma das 16 peças de artilharia que defendiam a entrada do rio Cacheu.

"Os trabalhos de recuperação do antigo forte colonial foram desenvolvidos de Janeiro a Março de 2004, com recursos da ordem de cem mil Euros, disponibilizados pela União das Cidades Capitais de Língua Oficial Portuguesa (UCCLA). Visando assegurar a sua utilização como área de lazer e cultura, além de promoção do turismo, foram promovidas a reurbanização de seu interior, onde foram instalados diversos equipamentos de lazer e recolocadas as estátuas dos navegadores portugueses Gonçalves Zarco e Nuno Tristão, os primeiros europeus a atingir as costas da Guiné, no século XV. Nas antigas edificações de serviço foram instaladas uma biblioteca e salas de convívio." (Fonte: Wikipedia)


Fpto nº 1A > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > "O forte, de pequenas dimensões, apresenta planta na forma de um rectângulo, com 26 metros de comprimento por 24 metros de largura, com pequenos baluartes nos vértices. As muralhas, em pedra argamassada, apresentam cerca de quatro metros de altura por um de espessura. Encontrava-se artilhado com dezasseis peças. O Portão de Armas, com mais de um metro e meio de largura, é o seu único acesso." (Fonte: Wikipedia)


Foto nº 2 > Guiné -Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI)    > Hoje funciona como depósito de alguma estatuária colonial... como é o do que resta da estátua, em bronze, do governador Honório Barreto... Veio de Bissau, ficava justamente no centro da Praça Honório Barreto, perto do Hotel Portugal, hoje Praça Che Guevara.


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) > Restos da estátua de Teixeira Pinto, o "capitão-diabo" ...Estátua, em bronze, da autoria do professor de Belas Artes, o escultor Euclides Vaz (1916-1991), ilhavense. Encontrava-se no  Alto do Crim, antigo parque municipal, onde agora está a Assembeleia Nacional. (*)

 

Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Antigo Forte ou Fortim de Cacheu (séc. XVI) >   O que resta da estátu, também em bronde, do Nuno Tristão:  erigida por ocasião do 5º centenário do seu desembarque em terras da Guiné (1446), a estátua ficava no final na Av da República, hoje, Av Amílcar Cabral... Esta artéria, a principal avenida de Bissau no nosso tempo, vinha da Praça do Império ao Cais do Pidjiguiti, tendo no final a estátua de Nuno Tristão; no sentido ascendente, ou seja, do Pidjiguiti para a Praça do Império, tinha à esquerda a Casa Gouveia, por detrás da estátua, e mais à frente, à direita, a Catedral.


Foto nº 5 > Guiné > Bissau > Região de Cacheu > Forte de Cacheu (séc- XVIII) >  Restos da estátua de Diogo Gomes, que até à Independência, estava em Bissau,  frente à ponte cais de Bissau...


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segundo Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura colonial do Estado Novo, o pedestal na ponte cais de Bissau (agora vazio) da estátua do Diogo Gomes ainda lá estava em há meia dúzia de anos, tal como a inscrição, um exerto do canto VII dos Lusíadas, "Mais mundo houvera"... 

O pedestal é obra do Gabinette de Urbanização do Ultramar (GUU). A estátua, entretanto removida em 1975 para o forte do Cacheu, deve ser da autoria do escultor Joaquim Correia, autor de monumento análogo que ainda hoje está de pé na cidade da Praia, Cabo Verde. 

Esta e outras estátuas (Honório Barreto, Nuno Tristão, Teixeira Pinto) faziam parte de "um escrupuloso programa de 'aformoseamento' do espaço público", integrado nas comemorações do 5º centenário do desembarque de Nuno Tristão. na altura do governo de Sarmento Rodrigues (1945-48). 

No entanto, a colocação das estátuas destas figuras históricas da colonização só será efetuada na segunda metade da década de 1950 [Vd. Ana Vaz Milheiro - 2011, Guiné-Bissau. Lisboa, Círculo de Ideias, 2012. (Coleção Viagens, 5), pp. 32-33].

Obrigado ao Patrício Ribeiro, o "nosso último africanista" que resiste, desde 1984, à usura (física e mental)  do tempo, da história, dos trópicos, no país, a Guiné-Bissau, que ele escolheu para viver e trabalhar,  e que se lembra, de vez em quando,  de nós e realimenta as nossas "geografias emocionais"  do tempo de soldadinhos de chumbo do Império... 

As fotos acabaram de chegar, ainda estão frescas, mas há mais para uma segunda parte. (***). O Patrício diz-me,  sempre dsicreto e  lacónico, que "sim, todas a fotos, foram tiradas no domingo passado, em Cacheu onde estive a trabalhar. Umas são  sobre o porto do Cacheu e outras sobre a "fortaleza do Cacheu". 

Eu que não sou especialista em arquitetura, muito menos militar e colonial, confesso que são sei distinguir um forte, uma fortaleza e um fortim...Com cerca de  624 metros quadrados de área total, e muros "altos de 4 metros", aquilo parece-me mais um "castelo de areia" do meu tempo de praia, quando eu era menino e moço e construía "castelos de areia"... Mas, enfim, lá cumpriu a sua missão, mal ou bem, não podendo nós, todavia, esquecer que o seu passado "esclavagista"  como tantos outros pontos da costa africana ocidental... 

PS - Patrício, fico feliz por teres trabalho (tu e os teus "balantas"), mas preocupado por teres de trabalhar ao domingo, como, de resto, muito boa gente... Em primeiro lugar, também precisas de descansar. Por outro, não respeitando o Dia do Senhor, ainda corres o risco de seres transformado, como o ferreiro, em "dari" (o nome afetuoso que os guineenses chamam ao nosso "primo" chimpanzé). Nestas coisas, é bom estar com Deus, Alá e os bons irãs...

2. Faça-se a devida pedagogia destas fotos, para os iconoclastas de todo o mundo, e de todos os quadrantes político-ideológicos, mas também para os nossos "saudosistas do Império", leitores do nosso blogue...  Aproveito para citar um comentário do nosso querido amigo Carlos Silva (a quem desejamos rápidas melhoras), e que é um dos nossos camaradas que melhor conhece (e ama) a terra e a gente da Guiné-Bisssau (****):

(...) "A estátua de Teixeira Pinto estava situada no Alto de Crim, onde actualmente está situada a Assembleia Nacional.

O monumento com o busto de Teixeira Pinto creio que situava-se na baixa de Bissau, próximo da catedral e foi inaugurado em 1929 pelo Governador Cor Leite de Magalhães. (...)
 
Quanto às estátuas que refere o Armando Tavares da Silva, presentemente estão as 3 dentro da Fortaleza do Cacheu. Pelo menos estavam em Abril de 2019, mas antes estiveram fora da fortaleza, mas próximo da mesma,  das quais tenho fotos dos anos 90 e de 2001 e de outros anos.

Falei com vários altos dirigentes, incluindo com o falecido Presidente Interino Manuel Serifo Nhamadjo sobre este tema e todos concordam que as estátuas fazem parte da História do país, mas não há vontade política para fazer seja o que for.

Para mim, os pedaços das estátuas estão lá na fortaleza de castigo e para lembrar o colonialismo.

E duas estátuas já foram à vida, a do Comandante Oliveira Mozanty que estava em Bafatá, da qual tenho fotos de 1997, toda partida, mas que já foi para a sucata, embora continue por lá o pedestal em granito preto com relevos e muito bonito.

A outra era a de Ulisses Grant, presidente dos EUA que arbitrou o caso de Bolama entre Portugal e os Ingleses. Esta também foi para a sucata." (...)


(***) Último poste da série > 7 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23238: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (23): Bafatá... e as nossas "geografias emocionais"

(****) Vd. poste de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21747: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (80): busto do capitão Teixeira Pinto, em Bissau, c. 1943 (Armando Tavares da Silva)

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23255: Historiografia da presença portuguesa em África (316): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Revelou-se bastante esclarecedora a leitura do livro de Marcello Caetano O Conselho Ultramarino, Esboço da sua História, Agência Geral do Ultramar, 1967. O investigador explica-nos de forma iniludível como Fontes Pereira de Melo criou um órgão de grande autoridade e abrangência, escolheu mesmo vogais efetivos e extraordinários de gabarito, e daí dizer-se que de 1854 a 1868 o Conselho Ultramarino viveu um período distintíssimo, obviamente que suscitando invejas políticas e muitas tensões pelos pareceres emanados e a legislação que sugeria. Como sempre acontece, os seus inimigos assim que chegaram ao poder puseram-no em coma induzido. E é por isso que dá gosto folhear estes volumes cheios de memórias, pareceres, estudos, a generalidade deles direcionados para Angola mas também percorrendo as diferentes parcelas do Império, aqui se encontram surpresas que qualquer investigador da área imperial não pode ficar indiferente, basta ver esta Guiné, seguramente a colónia mais pobrezinha de estudos, pareceres e memórias.

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (3)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República Colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… No artigo anterior, detetei agora, cometi o erro ao considerar que a parte oficial destes anais incluíam pareceres e até estudos, é redondamente falso, a parte oficial contempla a legislação, toda a outra matéria é versada na parte não oficial. E agora, uma breve explicação sobre a vida neste período do Conselho Ultramarino que os investigadores consideram um dos mais brilhantes e dinâmicos da sua história. Ele insere-se no período da Regeneração, este Conselho teve este período áureo entre 1851 a 1868. Deve-se a quê?

Em julho de 1851, tendo triunfado a Regeneração, Fontes Pereira de Mello decretou um novo Conselho Ultramarino, a fonte inspiradora terá sido Almeida Garrett. Era composto por sete vogais efetivos e sete extraordinários. No seu trabalho sobre a história do Conselho Ultramarino, Marcello Caetano, em publicação da Agência Geral do Ultramar datada de 1867, fala das suas amplas competências: tinha de ser necessariamente ouvido sobre importantes matérias legislativas, governativas e da administração, e tinha poder para emitir consulta nos recursos contenciosos entrepostos para o Governo dos atos dos governadores coloniais; podia tomar a iniciativa de estudar e propor providências a adotar pelo governo, fiscalizar e recrutar o funcionalismo ultramarino. Missão especial era a de velar pela execução das leis sobre o tráfico da escravatura e de estudar a colonização, dirigindo para o mundo ultramarino a emigração que se encaminhava para o estrangeiro. As resoluções do Conselho eram convertidas em consultas, provisões ou portarias, conforme os casos. Em 1854, iniciou-se a publicação do boletim e anais do Conselho Ultramarino. Os anais eram a parte oficial contendo os atos do Governo e da administração, consultas do Conselho, resoluções dos tribunais superiores, relatórios, etc., e a parte não oficial era constituída pelo acervo de memórias, notícias, narrativas e quaisquer estudos sobre matéria colonial. Como é evidente, este órgão deverá ter provocado imensos engulhos e reticências, em setembro de 1868 foi extinto e criado em sua substituição a Junta Consultiva do Ultramar. Com a I República, surgirá o Conselho Colonial (1911 a 1926).

Esclarecido o que é a parte oficial da não oficial, dá-se agora conta de alguma matéria que possa ser considerada útil para o estudo da Guiné, e que não venha noutras fontes documentais.

Em 22 de dezembro de 1857, João Severiano Duarte Ferreira, Diretor da Alfândega de Bissau, dirige-se ao Sr. Visconde de Sá da Bandeira que o encarregara de apresentar algumas reflexões relativas ao comércio da Senegâmbia Portuguesa, causas da sua decadência e meios a empregar que obstem à sua completa aniquilação. Diz ele:
“No tempo em que de Bissau e Cacheu se exportavam escravos, pouca ou nenhuma importância se dava naquelas localidades ao comércio lícito, porque dois ou três negociantes que ali residiam só tratavam de obter dos estrangeiros a maior soma possível de mercadorias próprias para a compra de escravos, com o fim de embarcar estes por sua conta para a ilha de Cuba e para os portos do Brasil, ou para os venderem aos navios que iam ali buscá-los. Os lucros resultantes deste tráfico inumano eram enormes, e aumentavam na razão direta das dificuldades no transporte dos negros. Em 1842, cessou completamente a exportação de escravos de Bissau e Cacheu, e foi então que os negociantes olharam com mais alguma circunspeção para o comércio lícito que até ali tinham, por assim dizer, desprezado. O Governo da Província ignorava completamente quanto dizia respeito a Bissau, Cacheu e dependências, porque poucos dos governadores ali iam, e os que iam, tão pouco tempo ali se demoravam, que retiravam tão instruídos das coisas da Guiné como tinham ido; e eis por que nem propunham ao Governo da Metrópole as medidas que convinham adotar para o desenvolvimento comercial e agrícola daquela parte dos domínios de África.

Quando o comércio lícito entrou a chamar a Bissau e a Cacheu maior soma de navios estrangeiros, e exportação, que até ali tinha sido clandestina, por ser de escravos, se tornou patente e visível, por ser de produtos do país, o Governo Provincial fixou para ali com mais cuidado a sua atenção. Mandou a Bissau empregados da sua confiança e orientou-se quanto lhe foi possível na importância comercial daqueles pontos; mas no desejo de remediar o mal até ali feito, de conceder por quatro o que vali pelo menos doze, caiu no extremo oposto exigindo mais do que realmente se podia e devia exigir pelos direitos de exportação e consumo.

Fala-se geralmente em comércio português de Bissau e Cacheu, quanto a mim aquele comércio é mais estrangeiro do que nacional, porque os negociantes portugueses residentes naqueles pontos não são outra coisa mais do que caixeiros das casas comerciais e inglesas, americanas, francesas e belgas, que autorizam os seus agentes a deixarem a crédito a diversos os carregamentos que para ali mandam”
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Nesta detalhada memória para o Visconde de Sá da Bandeira, o Sr. João Severiano Duarte Ferreira tudo faz para ser minucioso: como se processa o comércio de Bissau, Cacheu e dependências; a natureza do crédito dos negociantes estrangeiros, em que os negociantes de Bissau e Cacheu chegam a dar como garantia as casas das embarcações, os escravos, tudo o que possuem; as enormes despesas inerentes ao comércio ao longo da costa correm todas por conta e risco dos negociantes portugueses ali residentes, são um sorvedor dos lucros; e temos a exorbitância dos direitos de exportação e consumo, que coloca os comerciantes portugueses em desvantagem com os comerciantes estrangeiros das colónias vizinhas, etc.

E em jeito de despedida, faz sugestões a Sá da Bandeira:
“No meu entender, a mancarra devia não só ser livre de direito de saída, mas ainda estabelecer-se um prémio honorífico para aquele negociante que maior porção dela exportasse nos portos de Bissau e Cacheu. Uma pauta ou tabela de direitos, tal qual deve ser, não é trabalho de poucos dias, nem talvez de um só indivíduo, deve ser muito estudada e meditada, devem-se consultar documentos oficiais e ouvir as pessoas competentes. Talvez este trabalho, entregue a uma comissão em Bissau, vindo os trabalhos dela relatados pelo governador-geral da Província, e finalmente vista e examinada aqui por pessoas entendidas na matéria e conhecedoras das localidades, desse o resultado que se deseja. Deus guarde a Vossa Excelência por muitos anos”.

Não deixa de ser curioso observar que esta situação comercial de ultra dependência é também observada e documentada por outros autores que por aqui andaram um pouco antes e muito depois. Estamos perto de nos despedir, há só mais dois documentos muito curiosos de que vos daremos conhecimento no texto seguinte, o último sobre estes anais do Conselho Ultramarino.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23227: Historiografia da presença portuguesa em África (315): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (2) (Mário Beja Santos)