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domingo, 28 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6061: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (5): A mina A/P que estropiou o Vasconcelos na estrada para Cambajú

1. Mais um texto, singelo mas comovente,  do José Cortes, que vive em Coimbra (*):


Data: 7 de Março de 2010

Assunto: Narrativas de Fajonquito

Como prometi na minha entrada para a tertúlia, aqui vai a narrativa de um acontecimento, durante a comissão na Guiné.

A mina que estropiou o Vasconcelos.

Estamos em Outubro de 1972, mais ou menos 6 meses de comissão, dia 12 ou 13.

Ao fim da tarde daquele dia, três viaturas civis estão estacionadas na parada do aquartelamento, junto ao parque auto, a carregar pessoal. Como sabes,  a lotação das viaturas era mais que lotada.

Partiram logo de seguida com destino ao Senegal,  via nosso destacamento de Cambajú, que ficava junto á fronteira.

Passado pouco tempo de terem partido, talvez uma hora, ouvimos rebentamentos. Contactados os destacamentos, Cambajú dizia que era na estrada de acesso ao destacamento, mas que não havia NT no local.

Informamos que iam a caminho três viaturas civis com destino ao Senegal.

Saiu o grupo do furriel Deus, e ao chegar à picada,  o que demorou algum tempo pois tiveram que cumprir as normas de segurança entre as quais picar a estrada, depararam com as três viaturas incendiadas dentro do mato e com os civis alguns mortos e outros feridos,  principalmente queimados. Foram atacados a roquetada.

Foram levados para o destacamento e foi pedida a evacuação dos feridos.

A evacuação só podia ser feita no dia seguinte pois entretanto escureceu e os helis não voavam de noite.

No dia seguinte logo cedo é formada uma coluna de apoio ao destacamento, tanto para reabastecimento como para ajudar a cuidar dos feridos civis.

A coluna partiu, e a partir da Bolanha de Nhacra, começa-se a pôr em prática os processos de segurança entre os quais a picagem da estrada. A velocidade da coluna é reduzida e avançamos a passo de caracol, como era necessário.

Eu seguia na Mercedes,  uma viatura pesada de carga,  que transportava colchões para os civis que não precisavam de evacuação mas ficavam no destacamento para serem tratados. E outros artigos de reabastecimento. A meu lado seguia o condutor,  salvo erro era o Celestino, apoiado no guarda lamas e em cima do pára-choques ia o Vasconcelos,  soldado mecânico,  que era a primeira vez que saía do aquartelamento.

Como a velocidade das viaturas era reduzida devido à picagem, e a segurança até ao local do acidente no sentido Cambajú - Fajonquito estava feita pelo pessoal do destacamento, quando nos aproximamos do local onde as viaturas tinham sido atacadas, a coluna parou, para que a segurança que estava na estrada seguisse nas viaturas para o destacamento e deixávmos os nossos na estrada.

O Vasconcelos,  pela sua inexperiência, mal viu as viaturas queimadas,  saltou do pára choques da Mercedes, para ir ver as viaturas que estavam dentro da mata aí uns 20-30 metros. Ao dar os primeiros passos,.  ouviu-se um rebentamento... Tudo no chão... Quando o pó começou a assentar,  os gritos do Vasconcelos quebram o silêncio que entretanto se estabeleceu pelo susto. O Vasconcelos tinha pisado uma mina A/P que estava colocada no trilho de acesso às viaturas civis.

A experiência do comandante do pelotão de milícia de Cambajú,  e talvez não só, não se safou de ser apontado como sabedor da localização das minas, tal foi a rapidez com que detectou a segunda mina e procedeu ao seu levantamento.

Depois de levantada a mina,  fomos buscar o Vasconcelos que não parava de gritar. A sua perna direita tinha desaparecido até á coxa, o fémur estava sem carne até ao joelho e a sua perna esquerda tinha fractura exposta do perónio e no joelho.

Colocado o Vasconcelos num colchão dos que vinham na viatura, a mesma partiu em direcção ao destacamento, onde tinha acabado de chegar heli que ia fazer a evacuação dos civis feridos no ataque do dia anterior.

No destacamento foi outra guerra,  porque os civis não queriam deixar que o nosso homem fosse evacuado e eles não. Os ferido mais graves acompanharam o Vasconcelos e os mais ligeiros ficaram, mas foi preciso o furriel Deus impor a sua autoridade de arma em punho.

Isto passou-se salvo erro (pelo dia) no dia 14 de  Outubro de 1972. Nunca mais soubemos nada do Vasconcelos.

Em Novembro de 1998, 26 anos depois, ouvi na Rádio Renascença uma mensagem onde só apanhei a palavra Deixóspoisar, liguei para a RR onde me foi dado o contacto de quem tinha deixado a mensagem. Quando liguei e do outro lado me responderam que quem falava era o Vasconcelos,  as lágrimas caíram pela cara abaixo,  a minha mulher de volta de mim a perguntar o que era, eu sem poder falar, tal era a emoção de estar a falar com a pessoa que eu nunca mais pensava encontrar. No fim de semana seguinte o Vasconcelos almoçou em minha casa comigo,  começamos a trocar alguns contactos que tínhamos e a partir daí os encontros da companhia fizeram-se anualmente, coisa que nunca tinha acontecido nos 27 anos antes.

Pronto,  esta foi uma das ocorrências em que estive envolvido, depois hão-de seguir outras.

Um abraço, José Cortes

2. No mesmo dia o José mandou a seguinte mensagem do seu camarada José Bebiano, com conhecimento ao nosso blogue:



Caro amigo José Bebiano: Espero não te maçar com os meus emails,  nem sei se queres recordar os tempos da Guiné.

 Queria-te perguntar se te lembras de um furriel da companhia 2742, que era de Coimbra.  Só o conheco lá e mesmo assim falámos pucas vezes, porque eu andava a ser enganado pelo sargento que a companhia tinha,.  do material de guerra. Entregou-me listas com armas que já não existiam e depois vi-me enrascado para me safar no fim da comissão. Valeu-me um sargento ajudante do Batalhão do Serviço de Material, que era pai do nosso alferes Filipe.

 Caso te lembres do nome do Furriel, que salvo erro se chamava Borges mas não tenho a certeza, agradecia pode ser que o encontre por cá. 

Já agora ainda não te disse mas eu sou de Coimbra,  nascido e criado. Sou funcionáriodo SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais), faço serviço já vinte e seis anos, como técnico de manutenção nos Hospitais da Universidade de Coimbra, ainda estou no activo pelo menos mais dois anos não quero ir já para casa. Tenho dois filhos, uma com 34 anos e um com 32 anos e um neto de cada um, que são a alegria dos avós. 

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

1. Mensagem de 8 de Julho , enviada pelo nosso Cherno Baldé, membro da nossa Tabanca Grande (*):


Caro amigo Luís,

Na continuação das estórias que chamei de 'memórias de infância' (**) envio mais dois excertos. O primeiro fala da minha família. Não queria enviá-la mas apercebi-me que faz falta para uma melhor compreensão das partes seguintes sobre as origens da família e alguns factos ligados com a fuga do irmão do meu pai e patriarca da família, o Sambagaia. O segundo fala do meu pai[, Aliu Tambá Baldé, ] e da encenação de um Marabú tradicional.

Obrigado e um forte abraço,

Cherno Baldé


2. Memórias do Chico, menino e moço (6)

DE CANHAMINA A SINCHÃ SAMAGAIA

Uma família a procura de estabilidade

A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. 

Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] .

O Naor terá morrido logo a seguir após uma doença prolongada (dizem que por desgosto pela morte do seu primo e amigo inseparável) e, com a morte prematura deste, acedeu ao lugar de patriarca da família, o Sambagaia, o irmão mais novo que lhe seguia segundo a linhagem.

Decorridos alguns anos após a morte de Naor, a nossa família saiu de Canhámina. Não consegui obter informações certas sobre as razões que motivaram esta mudança, todavia, algumas vozes especulam que estaria ligada a morte do Régulo Brandjame Baldé, cujo desaparecimento teria provocado uma luta de sucessão bastante perigosa no seio da família reinante.

De qualquer modo, a transferência para a zona de Farimbali, marca o início da liderança de Sambagaia na família e abre uma nova era, marcada por grandes dificuldades materiais de existência, alguma turbulência no seio da família e guerra política.

Para uma família que já estava, de certo modo, habituada a viver não muito longe da sombra do poder e das suas facilidades, a provação foi dura. As dificuldades do duro trabalho agrícola que era a principal actividade da família se juntou a desastrosa gestão do patriarca Sambagaia que utilizava os magros recursos da família (colheita de cereais e gado) para granjear reputação e mobilizar apoios, votando a família à fome e miséria contínuas.

As suas mãos largas e suas frequentes deslocações e viagens para o centro do poder e da administração colonial em Bolama onde servia de agente policial, e também procurava alianças, permitiu-lhe entrar, assim, nos meandros das intrigas e das guerras pelo poder, que eram suportadas pelo esforço da família, obrigando-a a vender tudo que existia, inclusive as vacas de seguro (teguê) das mulheres que normalmente não se vendiam, em obediência às regras de uma tradição secular.

A família estava sem posses, sem segurança para as calamidades naturais, bastante frequentes na época e junte-se a isso mudanças constantes de uma aldeia à outra de forma sucessiva e por períodos muito curtos, provocando a erosão dos poucos recursos disponíveis abalando com isso a coesão social preexistente no seio da familia.

Primeiramente saíram de Canhámina para Saré Saliu, lado norte da bolanha de Berécolom (onde encontraram e conheceram a família de um caçador profissional, originário de Forrea, chamado Samba Candé, vulgo Samforrea, pai da minha futura mãe, Cadi Candé), tendo aí permanecido por pouco tempo.

Nesta aldeia faleceu Paté (Pareru), o quarto dos cinco irmãos, após alguns anos de doença psíquica. Contam as más-línguas que ele ousara desafiar o patriarca Sambagaia ao pretender em herança a mais jovem das mulheres do falecido Naor, a Nhama Aua, filha de Brandjame, pelo que este o teria feito guerra através de forças ocultas para o enlouquecer. Outros afirmam que a jovem viúva teria escolhido do seu livre arbítrio o jovem e bonito Patê, provocando desta forma a desgraça deste.

Esta história ilustra, independentemente do que teria acontecido na realidade, que os vínculos de dependência e/ou obediência aos costumes e a tradição, na reprodução e manutenção das práticas culturais ancestrais, se faziam também por diversos meios, inclusive a difusão de falsas informações a fim de paralizar e/ou neutralizar o(s) adversário(s).

De Saré Saliu passaram para Solambuntô, aldeia situada junto a fronteira com o Senegal, a oeste de Cambajú. Por aqui, viveram uns poucos anos. O que estaria o Sambagaia a procura? Certamente uma base de apoio para as suas ambições politicas. Após Solambuntô, fizeram meia volta regressando para Saré Coba, aldeia vizinha de Sare Saliu. Foi aqui que os filhos de Naor, Baciro e Ioba foram circuncisados. Teriam vivido nesta aldeia perto de 3 anos.

De seguida, regressaram, de novo, para o lado sul da bolanha, e instalaram-se em Farimbali, na altura uma povoação enorme, situada perto de Canhámina (ver recenseamento de 1950), onde a minha mãe Cadi se juntou à família casando com o meu pai, Aliu Tambá (provavelmente entre 1949/50) e onde também nasceram os seus primeiros filhos, Aua (1951/52), Cumba (nome da esposa de Cherno Abdulai Shall, almane da mesquita de Farimbali)(1953/54), Ibraima (1955/56-), Carlos Bubacar (1957/58), hoje farmacêutico formado na Faculdade de Farmácia de Lisboa, e eu, Cherno Abdulai (entre 1959/60).

A partir desta localidade, Sambagaia lançou-se na corrida à conquista do poder da casa reinante de Sancorlã, fazendo frente aos seus primos de Canhámina. Tendo conseguido mobilizar para a sua causa um grande número de aldeias à custa de alianças fortuitas em terreno movediço num contexto social e político bastante atribulado, minado por ambivalências e sobreposição de poderes de naturezas diversas: colonial, tradicional, religioso etc.




Capa do livro de Manuel Dias Belchior, editado no início da década de 1960, A Grandeza Africana – Lendas da Guiné Portuguesa. (***)

Foto: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados


No momento decisivo, só ficaram ao seu lado as chefias e as aldeias de etnia Mandinga, nomeadamente de Sumbundo e Tendinto [ vd. carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line'], um número claramente insuficiente quando foram confrontados, no posto administrativo de Contuboel, perante a situação de escolher o futuro régulo de Sancorla.

Conforme já se referiu mais acima, a vida e situação em Farimbali não eram fáceis de suportar. A pobreza extrema, conflitos permanentes com os vizinhos, o mal-estar resultante da humilhação sofrida com a derrota de Sambagaia na luta pela sucessão do seu tio Brandjame tornava inviável a continuação da família numa aldeia minada por intrigas, encomendadas a partir de Canhámina em conluio com alguns representantes das autoridades administrativas de Contuboel e Bafatá.

Foi devido a esta situação, no mínimo embaraçosa, e a chacota que dela resultaram, segundo explicou a minha mãe, é que justificou a fundação, entre 1959 a 1960 de uma nova aldeia no lado norte da bolanha, a menos de 2 km de Sare Coba, na confluência de Berekolóm (antigo feudo mandinga do Séc. XIX), que recebeu o nome do chefe da família, Sinchã Samagaia, que literalmente quer dizer a aldeia de Samba Gaia. Para agradar aos seus amigos da administração de Bolama, Sambagaia deu-lhe o nome de Luanda (porquê Luanda e não Lisboa?...).

Esta mudança de residência coincidiu com o meu nascimento. Eu nasci em Farimbali mas fui baptizado, sete dias depois, na nova aldeia. Deram-me o nome de Cherno Abdulai em honra ao chefe religioso e almane da mesquita de Farimbali, originário de Futa Toro, do Senegal, que conduziu a cerimónia do baptismo.

Cherno não é propriamente um nome mas um título a que se dá aos homens letrados, que orientam a comunidade durante as orações, sobre aspectos da vida social/religiosa e ensinam o Alcorão às crianças. O seu apelido era Shall, que faz pensar nos acompanhantes do célebre homem de letras e também chefe de guerra, El-hadj Cheik Omar Saidou Tall que marcou profundamente o então Sudão Ocidental da época pré-colonial com a suaDjihad e que teria feito uma passagem discreta pelos actuais territórios da Casamança e da Guiné-Bissau antes de se estabelecer no Futa Djalon.

O meu pai, Aliu Tambá Baldé (ou Tambá Maudô, como lhe chamava a Mãe), era o mais novo dos irmãos que formavam a família. Trabalhador intrépido e fiel à disciplina familiar, esteve muito ligado ao Naor que, praticamente, conduziu a sua educação após a morte do pai. Esta mesma dedicação faria dele o preferido de Sambagaia. Na verdade, ele estava destinado a liderar a família após a fuga de Sambagaia pois, com a morte de Patê, o belo, ficavam ele e o Dembaro. Este último era mais velho que ele, todavia, não oferecia aos olhos de todos o carisma e as capacidades requeridas para isso.

Mas, as diferenças de pontos de vista entre Sambagaia e Tambá eram também conhecidas de todos e não raras vezes vinham à superfície. De referir que este último, descontente com a maneira como Sambagaia geria os destinos da família, tinha feito uma aliança com Dembaro a fim de formarem um fogão à parte (núcleo familiar restrito no seio da família alargada), separando-se de Sambagaia e seus filhos, embora continuassem a viver juntos.

Este facto, todavia, não impediu que este o tivesse indicado para trabalhar no posto de auxiliar de comércio que lhe tinham oferecido (primeiro em Farim e depois em Cambajú), entre os comerciantes lusos que faziam o negócio de compra e venda local de borracha e outros produtos agrícolas, talvez, no intuito de acalmar o seu apetite pelo poder que seus primos da casa real não viam com bons olhos. Aliás, mesmo assim, [Tambá] ver-se-ia obrigado, mais tarde, com o início da guerra contra a ocupação colonial na zona norte (1963/64), a exilar-se no Senegal para fugir da conspiração dos herdeiros directos de Brandjame e seus seguidores.

Tudo levava a pensar que viveríamos para sempre em Sinchã Samagaia, aliás Luanda, onde, finalmente, tínhamos encontrado um pouco de paz e sossego, para se tentar reorganizar e construir as bases de uma família normal para a época. Aqui nasceu a minha irmãzinha Ramatulai e foi aqui onde comecei a descobrir o mundo, a minha família (**).

Desde cedo ganhei o gosto da aventura acompanhando o meu irmão Ibraima na pastorícia dos poucos animais (gado bovino e caprino) que, entretanto, os nossos pais tentavam reunir. As deambulações atrás dos animais, as brincadeiras junto dos poços de água, locais onde davam de beber aos animais (Bidal), constituíam a minha única ocupação. Não tendo ainda idade para a iniciação à vida adulta, aqui tudo estava em aberto, a minha liberdade e curiosidade não tinham limites. Tudo acabou com o rebentar da guerra que pouco a pouco se alastrou a partir de Cola-Carresse (Oio) e atingiu o Sancorlã em cheio.

A desmoralização e o abandono que se seguiram no seio do Regulado, não condiziam com a epopeia da guerra de pacificação com o Graça Falcão ou Teixeira Pinto. Nós acabámos por fugir para Cambajú (**).

(Continua)


Bissau, Novembro de 2006

[Revisão / fixação de texto / bold / cores: L.G.]


2. Comentário de L.G.:

Meu caro amigo e irmão: Obrigado por teres tido a coragem de abrir, para nós, o álbum de memórias de família... É uma verdadeira saga... Ajuda-nos muito a entender o que foi a história do Séc. XX na tua terra, nomeadamente no chão fula. Mas também da nossa história, dos portugueses e dos europeus na época da expansão colonial, e do choque (cultural e não só) que isso representou para os povos africanos...
É, da tua parte, um gesto de grande hospitalidade, na melhor tradição fula, e de da grande apreço e amizade por nós, portugueses e guineenses, aqui reunidos na Tabanca Grande, debaixo do velho poilão... Percebo as tuas hesitações: revisitar o passado é sempre abrir a caixinha de Pandora... Estás, além disso, a expor-te e a expor a tua família, mostrando nesta aldeia global é que a Internet que afinal a tua família, tirando o contexto histórico, geográfico e cultural, é igualíssima a todas as outras nossas famílias, incluindo as nossas, do Minho ao Algarve, com as suas alegrias e tristezas, os seus altos e baixos, os seus amores e os seus ódios, as suas alianças e os seus conflitos, com os seus exemplos, bons e maus, de liderança, mas sempre com a mesma vontade e tenacidade na luta pela dignidade, liberdade e justiça...
É atravésa dessa instância de socialização que é a a família, que aprendemos, em primeiro lugar, a falar, a comunicar, a conhecer o que nos rodeia, a perceber o outro, o diferente, o estrangeiro... Mas é também, para o pior e o para o melhor, o lugar onde o aprendemos e imitamos os exemplos dos nossos maiores. Felizmente tiveste um pai e uma mãe que passaram o melhor das suas famílias, que são a memória, os valores, os princípios, a ética, o conhecimento, o nosso verdadeiro kit de sobrevivência. Vê-se que tens orgulho e ternura por eles... Obrigado, irmãozinho, em meu nome e em nome de todos nós. Um AB (Alfa Bravo), abraço. Luís

PS - Por azar, não tenho agora à mão a carta de Tendinto... Depois mando-ta... Está digitalizada mas ainda não disponível 'on line'...

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

Vd. também poste de 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4650: (Ex)citações (32): A Tabanca Grande ou... Global: de Contuboel, Fajonquito e Bissau com amizade (Cherno Baldé)


(**) Vd. postes aneriores da série:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

(***) Vd. poste de 2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

1. Quinta e última parte das memórias de infância do nosso amigo Cherno Baldé (aqui, na foto, à esquerda, o Engº Cherno Baldé, no seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento; em Cambajú e Fajonquito, era simplesmente o Chico, menino e moço, nado e criado no meio das tropas portuguesas) (*).

As crónicas do Cherno têm tido, entre os leitores do nosso blogue, um grande sucesso, pelço seu cunho espontâneo e autêntico, bem como pela qualidade da sua escrita. Fazemos votos para que ele dê continuidade a esta série, nomeadamente com as memórias do tempo que passou em Fajonquito (de 1968 até ao final da guerra e primeiros meses da independência) (LG)


FAJONQUITO: Terra da minha adolescência
por Cherno Baldé


Em 1968, [ e não 1958, como por lapso escreve o autor ], o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família. Todavia, o meu pai não estava satisfeito com a transferência porque ela tinha provocado a separação com o seu irmão Dembaro, cuja família não podia sair de lá naquela época de rigoroso controlo do movimento de pessoas, por parte das autoridades tradicionais fortemente empenhadas na guerra, sem um pretexto muito forte.

A nossa família, sobretudo, era muito suspeita após a fuga espectacular de Sambagaia, com quem [as autoridades tradicionais] tinham contas a ajustar. Durante mais de um ano, o meu pai esteve à procura de uma maneira de tirar de Cambajú o seu irmão mais velho ao qual tinha jurado fidelidade e assistência.

Finalmente, um ano após a nossa vinda chegou a outra metade da família com Dembaro à testa, para alívio e alegria do meu pai. Este me contaria, mais tarde, que tinha conseguido [isso], graças à ajuda e cumplicidade do Capitão da Companhia que estava colocado em Fajonquito (Cap Carvalho?) e que enviava regularmente um destacamento de 20 dos seus homens para Cambajú. Através de amigos, conseguiu falar com o capitão, explicando-lhe todo o melindre da situação. Este não deu muita importância ao caso e esperou até a altura de proceder à troca de destacamentos e disse ao meu pai para transmitir ao irmão de que devia estar preparado a qualquer momento para embarcar na coluna que traria de volta o destacamento que se encontrava em Cambajú. (**)

E foi assim que, de forma rápida e inesperada, o Dembaro e a família viajaram num camião GMC militar para Fajonquito, colocando tudo e todos perante o facto consumado e granjeando ainda o respeito devido aos amigos do Capitão da Companhia que detinha um poder enorme nas redondezas e, aparentemente, suplantava mesmo as autoridades civis.

Fajonquito, naquela altura, era enorme, devido à concentração das famílias que aqui encontraram refúgio depois dos ataques às suas aldeias ou por imposição das autoridades locais.

Em Fajonquito nasceram os meus irmãos mais novos: Barbosa, Aissatú e Cántaba; e, mais tarde, os filhos da segunda mulher do meu pai, Assiatu Embalo: Umo, Rosa, Mariama e Mamadu-Bobo.


Cherno Abdulai Baldé, Chico
Natural de Fajonquito,
Sector de Contuboel,
Região de Bafatá.

____________________

Notas de L.G.:


(*) Vd. postes anteriores:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

(...) Chamo-me Cherno Abdulai Baldé, nasci por volta de 1959/60. No quartel de Fajonquito chamavam-me Chico (de Francisco) e tinha amigos soldados que, na sua maioria, eram condutores ou mecânicos-auto. Tive as minhas primeiras aulas com oficiais Portugueses, em Cambajú e Fajonquito. (...)

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...)

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente. Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(...) No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

(...) Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda. Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia. (...)


(**) Pode tratar-se da CCAÇ 2435, comandada pelo Cap Inf José António Rodrigues de Carvalho e, posteriormente, pelo Cap Inf Raul Afonso Reis, unidade orgânica do BCaç 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, que assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 1685, em 7 de Dezembro de 1968, e vindo a ser substituída pela CCaç 2436, em 20 de Abril de 1970.

Ou então, mais provavelmente, trata-se da CCaç 1685, comandada pelo Cap Inf Alcino de Jesus Raiano, unidade orgânica do BCaç 1912, e mobilizada em Évora no RI 16: assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 1501, em 19 de Setembro de 1967, e vindo a ser substituída pela CCaç 2435 em 14 de Dezembro de 1968.

No entanto, o Chico diz-nos que "quando a minha familia se transferiu para Fajonquito, a companhia 1501 já estava no fim ou já tinha terminado a sua comissão mas, na memória de todos, em Fajonquito, tinham ficado gravadas estas insígnias em forma de números que perduraram no tempo. No meu caso, não sei explicar as razões, ainda era muito pequeno, mas a insígnia ficou para sempre"...

Recorde-se que CCAÇ 1501, comandada pelo Cap Inf Rui Antunes Tomaz, era uma unidade orgânica do BCAÇ 1877, mobilizada em Tomar no RI 15, tendo assumido a responsabilidade do subsector de Fajonquito e rendido a CCaç 1497, em 26 de Janeiro de 1967. Veio a ser substituída pela CCaç 1685, em 19 de Setembro de 1967.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

1. Continuação da publicação das memórias de infância do nosso amigo Cherno Baldé (aqui, na foto, à esquerda, jovem estudante em Kiev, Ucrânia, em finais dos anos 80; e, na outra foto, à direita, o Engº Cherno Baldé, hoje, no seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento).



Ataque ao aquartelamento de Cambaju

por Cherno Baldé (*)

Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. (**)

Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda.

Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia.

A primeira reacção do meu pai foi juntar toda a família dentro da casa onde funcionava a loja que, ao menos, por ter uma cobertura de zinco, era mais difícil de fazer pegar fogo, porque uma das tácticas dos homens do mato era precisamente a de fazer arder as concessões para aterrorizar as pessoas e aumentar a confusão.

Pouco a pouco parecia que os atiradores se aproximavam cada vez mais perto da loja onde estávamos escondidos e aí se concentravam as suas forças. O meu pai estava postado na varanda, junto a porta que dava acesso à loja, defendendo-se conforme podia. Ouvíamos o barulho dos tiros que faziam vibrar as chapas de zinco produzindo um eco ensurdecedor e, no meio desse barulho infernal, ouvíamos as vozes de pessoas que falavam, quase gritando, lá fora.

Mais tarde, o meu pai nos contaria que do aquartelamento tinham vindo dois milicianos [milícias] nativos de Farim e que o tinham intimado a deixar o local devido a forte concentração dos atacantes, ao que ele tinha recusado sob pretexto de que não podia abandonar a sua família que estava dentro da loja. Na verdade, também não queria abandonar a loja que lhe tinham confiado.

Consternados e indecisos, sem saber como convencer o meu pai a deixar a loja que, de facto, estava cercado dos três lados, já estavam a deixar o local quando um deles, instintivamente, perguntou a meu pai:
- O Senhor não tem outra arma melhor que esta mauser ? - disse, apontando para a arma que estava nas mãos do meu pai cujo cano estava fumegante e quase vermelho rubro devido ao ritmo acelerado dos tiros da arma de repetição.
- Infelizmente, não, meu irmão, mas tenho granadas que os brancos me deram e as quais não sei usar.
- Muito bem - disse o jovem miliciano [milícia] -, dê-me a tua arma e vai trazer-me essas granadas para limpar o sebo a esses bandidos.

O meu pai voltou com um saco de granadas na mão e entregou ao militar que tentava afastar os assaltantes já muito perto da varanda da casa, parecia mesmo que o principal alvo do ataque era a loja, situada na entrada leste da aldeia.

De seguida, este intimou o meu pai a entrar para dentro, enquanto ele se perdia na escuridão da noite. O meu pai obedeceu à ordem e no instante seguinte a casa tremia com o choque do estrondo da primeira granada e passados alguns segundos rebentou outra.

Lá dentro, apesar do esforço, as crianças e as mulheres penduradas umas nas outras, não conseguiram conter os gritos de medo e de pânico. No entanto, lá fora, não foram precisas mais, os disparos de armas ligeiras cessaram e em seu lugar ouvimos claramente, na noite, gritos e choros em várias línguas de pessoas que fugiam, e mais perto ainda, os gemidos dos que ficaram destroçados pelos estilhaços das terríveis granadas expansíveis (?) [defensivas] que o miliciano [milícia] estratégica e tacticamente tinha sabido lançar mesmo a tempo e no lugar certo e que fizeram estragos irreparáveis no meio dos assaltantes, provocando a debandada geral e fazendo abortar o ataque, certamente preparado com o objectivo de saquear a loja e provavelmente, quem sabe, liquidar os seus ocupantes, entre os quais estava eu, ainda criança com pouco mais de seis anos de idade.

Mas, com o decurso da guerra, eles voltariam mais vezes, e numa dessas incursões, chegaram mesmo a incendiar a aldeia inteira e seria nessa altura que Cambajú beneficiaria de uma reabilitação completa com casas de zinco para todas as famílias vítimas do incêndio, no quadro da política da Guiné Melhor do General Spínola a fim de encorajar os cidadãos a resistir à guerra mesmo em condições difíceis.

Na altura, já nós estávamos na localidade de Fajonquito onde passei toda a minha adolescência e inícios da vida adulta, claro, já em constante vaivém entre esta localidade e as cidades de Bafatá e Bissau.

_________

Notas de L.G.:

(*)Vd. postes anteriores:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(**) Dúvida: o pai do Cherno era mandinga ? Parecem ser mandingas os atacantes, do PAIGC, aqui referidos na história... Recorde-se que o pai do Cherno era empregado de uma casa comercial, em Cambajú... Mais tarde a família muda-se para Fajonquito.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio




1. O Cherno Baldé nasceu na antiga província portuguesa da Guiné, em Fajonquito, na zona leste, junto à fronteira com o Senegal, há cerca de 50 anos, numa sociedade sem escrita, sendo educado na cultura do seu povo, um povo de pastores, fulas, islamizados, tendo como vizinhos, pouco amistosos, os mandingas...

Aos cinco/seis anos, em 1965, viu pela primeira vez homens brancos, armados e equipados para a guerra, que se instalaram em Cambajú onde o pai era empregado de uma casa comercial... A primeira visão foi de terror... Mas a irrestível curiosidade infantil veio ao de cima: a descobertas das diferenças, dos cheiros dos corpos, dos comportamentos sociais...

Hoje ele pertence ao mesmo mundo desses homens brancos, aprendeu a sua língua, o português, formou-se na antiga União Soviética como engenheiro, faz uma pós-graduação em Lisboa na área da gestão. No seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, em Bissau onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento, há dossiês com palavrões como Segurança, Ambiente, Gestão de Estaleiros, Auditoria, Análise de Projectos, Gestão de Contratos, Formação de Formadores, Fiscalização de Obras de Conservação de Estradas, etc., que eram completamente inteligíveis para ele em 1965... Com a chegada dos homens brancos, passou o ser Chico, Jubi, Chico...

O texto que a seguir se publica (o nº 3 das suas crónicas, em que ele descreve a maneira como o Chico viu e viveu a chegada dos primeiros homens brancos à sua aldeia, é absolutamete fantástica, é uma peça de antologia etnográfica, de descoberta do outro, o estrangeiro, que provoca terror e fascínio... Nunca tinha lido nada parecido, da autoria de um guineense, sobre nós, homens brancos... Deliciado, já li o texto três ou quatro vezes seguidas...

Obrigado, Chico, obrigado Cherno, obrigado meu amigo e irmãoinho... És um caso sério de talento literário. Os meus, os nossos parabéns. A nossa Tabanca Grande fica mais rica, contigo. Faz uma boa viagem de regresso a a casa. Obrigado, djarama, kanibambo... LG

PS - Não te esqueças, que combinámos tratar-nos por tu... Era assim que os romanos se tratavam entre si. É assim que se tratam os camaradas e, por tabela, os amigos da Guiné. Foi distracção tua, já corrigi. Aqui somos todos primeiros entre iguais [em latim, primi inter pares], além de pertencermos todos à única raça humana que eu conheço (e que os zoólogos conhecem), a espécie Homo Sapiens Sapiens.

2. Eis uma mensagem do nosso amigo Cherno Baldé, que está em Moçambique, em viagem de serviço (»):

Amigo Luís,

Não tenho palavras para manifestar a minha gratidão pelo trabalho voluntarioso e desinteressado que estás a desenvolver para reunir pedaços de memórias espalhados por este mundo fora. Memórias que certamente nos unem a todos, independentemente de tudo o resto.

No dia em que descobri o Blogue da Tabanca Grande fiquei tão emocionado que, quase, não consegui pregar olho, porque a máquina do tempo dentro da minha cabeça activou-se e começou a vasculhar nos escombros do passado de forma desordenada. Foi como se tivesse reencontrado todos os meus amigos.

Muito obrigado pela confiança, a fidelidade no tratamento do material e também pela sinceridade das tuas palavras cheias de sabedoria. Vou encarar a vossa reacção positiva e o comentário simpático do Manuel Maia como sinais de encorajamento para prosseguir nas crónicas, esperando e rogando a Deus e a todos que as lerem, vejam nelas uma simples tentativa de descrição de factos na justa medida em que a minha memória falível e a minha capacidade intelectual bastante limitada forem capazes de os conservar e transmitir.

As opiniões e pontos de vista nele contidos só me engajam a mim e de forma alguma devem ser conotados com o país, o grupo étnico ou a raça a que pertenço.

Neste preciso momento encontro-me em Maputo (antiga Lourenco Marques), Moçambique, em missão de serviço e estou vislumbrado com a beleza da cidade. Aqui fez-se trabalho pensando no futuro e este já está a chegar.

A ti e a todos os teus colaboradores um grande KANIMAMBO.

Um forte abraço,

Cherno AB - Chico

3. Memórias do Chico, menino e moço (3) > Os homens brancos

por Cherno Baldé (*)

No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área.

Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo.

Quando chegaram, estávamos a jogar no largo da zona comercial que também fazia de paragem para as carroças que traziam mercadorias. Foi o barulho dos motores que nos alertou, como habitualmente, corremos atrás dos veículos, e foi nessa altura é que reparamos no insólito. As pessoas que estavam sentadas em cima dos veículos, todos vestidos com o mesmo tipo de tecido, um chapéu que se estendia de trás para a frente da mesma cor na cabeça e uma arma entre as pernas, completamente imóveis, não eram pessoas normais, como estávamos habituados a ver. Eram brancos, meu Deus do céu, tão branquinhos que se podia ver o sangue vermelho rubro a correr nas veias.

Não foi preciso dizer a ninguém, não houve nenhuma concertação entre nós. A nossa primeira reacção foi fugir, fugir dali com todo os pés. Eu fui directamente ao quarto da minha mãe que nesse momento se encontrava na cozinha, meti-me debaixo da cama, no mesmo sítio em que costumava esconder-me sempre que quisesse estar a salvo dos perseguidores, quando fazia das minhas. Não me lembro quanto tempo estive ali escondido, o certo é que o céu não tinha desabado sobre mim, sinal claro de que afinal não era o fim do mundo. Aliás, era o prenúncio de um novo mundo para mim ao qual, mais tarde, por força da minha educação e formação, viria a pertencer para sempre.

Passado o susto, agora era a curiosidade que tinha ganhado terreno. Não se falava de outra coisa na aldeia e seus arredores, houve mesmo pessoas que regressaram dos seus lugares de trabalho para assistir à vinda das pessoas de cor branca. Em todos, a curiosidade de ver aqueles seres estranhos suplantava o questionamento sobre as razões da sua presença. Queríamos ver e entender cada gesto, cada olhar, cada palavra desses seres de olhos azuis ou mesmo verdes que, entre nós, eram conhecidos só de alguns animais dotados de poderes especiais como os gatos que tinham sete vidas ou os eternos camaleões que tinham a capacidade de adquirir as cores de sua preferência.

Não admira que as pessoas tivessem medo deles, afinal de contas, o que eram eles, diabos ou feiticeiros? De certeza que não eram pessoas normais. Isto, nós iríamos compreender mais tarde. No dia seguinte, o meu amigo e colega, Samba, veio a minha casa para as brincadeiras habituais, falámos do acontecimento de ontem e fiquei a saber que tudo não passara mesmo de um susto injustificado pois, aqueles sujeitos eram soldados portugueses vindos directamente de Portugal, o que queria dizer nossos amigos e aliados.

Segundo Samba, “Eles vinham proteger-nos dos roubos e outras maldades que os terroristas, encabeçados pelos mandingas, nossos vizinhos e preguiçosos natos que, invejando a nossa posição e riquezas, queriam tirar-nos tudo”. “Alguns dos nossos colegas já tinham feito amigos entre os brancos recém-chegados e em troca lhes tinham oferecido latas de conserva de peixe muito saborosas com o azeite a escorrer pelos dedos quando as comiam”, disse-me ele.

Decidimos fazer o mesmo e fomos, sem medo, até o sítio onde estavam alojados. Quando chegamos junto deles, notámos que o acampamento estava cercado de arame farpado por todos os lados excepto num sitio por onde todos entravam e saíam. Estas circunstâncias não agradaram a minha natureza de felino livre e mandrião, arrepiava-me só a ideia de estar fechado num sítio donde não se podia sair livremente, a maior parte deles estava de tronco nu, só tinham no corpo uns calções curtos que quase deixavam ver as nádegas.

Que falta de vergonha, pensei comigo, pessoas adultas com as nádegas de fora. Todos tinham na cabeça aqueles chapéus estranhos que traziam no primeiro dia e que tinham uma ponta redonda pela frente a cobrir o fronte e descaíam para trás em forma de dois rabos curtos. Estavam todos ocupados, isoladamente ou em pequenos grupos, alguns limpando suas armas, outros lavando roupa interior ou colocando tendas de campanha.

Houve duas coisas que saltaram logo a minha vista: Eram todos bastante jovens, fisicamente robustos e bem nutridos, todos apresentando uma pelugem de cor preta e/ou acastanhada no peito.

Era um espectáculo ainda mais incaracterístico do que a primeira vez que os vira, e de mais a mais, havia um cheiro esquisito e forte que, certamente, estaria relacionado com aquela gente estranha. Mais tarde vim a saber que se tratava do cheiro de alho que eles utilizavam abundantemente na sua alimentação. Não pude avançar mais.

Sem prevenir o meu amigo que avançava para dentro da cerca, parecendo alheio a tudo, pensando certamente, no pão e nas conservas que nos esperavam, dei meia volta e pus-me ao largo. Contudo, ninguém pode fugir do seu destino e estava destinado que a nossa geração entraria lá dentro e faria amigos entre esses brancos de origem e modos estranhos e, sobretudo, ficaria para sempre ligada a esta gente de hábitos libertinos, ao gosto inesquecível da sua sopa, da sua batata, do bacalhau e grão-de-bico e a sua civilização através da aculturação que viria a sofrer por meio da escola.

Passado o tempo da surpresa e da incompreensão, acomodámo-nos perfeitamente dentro do acampamento. Fazíamos pequenos trabalhos de limpeza e em contrapartida tínhamos direito à sobremesa do amigo. Cada um tinha o seu amigo de quem esperava que lhe trouxesse as sobras do prato igual a um cachorrinho de casa. Eu não tinha conseguido arranjar um amigo de imediato, na verdade, o medo inicial não tinha permitido muita ousadia da minha parte. Felizmente, tinha umas irmãs muito giras que não precisaram se deslocar ao acampamento. Devo dizer que esses jovens soldados portugueses eram muito atrevidos e mal-educados não se coibindo de entrar nos recintos das nossas moranças (casas) para irem atrás de uma rapariga da forma mais descarada que havia, agarrando nos seios e nos traseiros, mesmo à frente dos pais.

Os velhos da aldeia, em vez de os corrigirem daquela falta de educação, riam-se e deixavam-nos levar avante a sua insolência. “Na sua terra, certamente, não sabem o que é a vergonha”, diziam eles, senão como é que se podia entender que um adulto andasse, quase, todo nu em pleno dia, e corresse atrás de rapariguinhas que, ainda por cima, não lhes eram prometidas.

E foi assim que a coberto das minhas irmãs mais velhas que tinham amigos que vinham a nossa casa, tive acesso facilitado ao acampamento e também a possibilidade de me aproximar dos brancos e pouco a pouco habituar-me ao seu cheiro peculiar de alho moído e aceitar a sua presença no meu espírito ainda assustado.

Esse cheiro, foi para mim, o primeiro sinal da diferença entre o campo onde habitavam, em estado puro, a nossa gente, todos falando a mesma língua e os mesmos costumes com o mesmo odor de terra com mistura de calor e bosta de vaca e o ambiente urbano onde viviam pessoas vindas de outras partes e se misturavam cheiros de origens diferentes, como o do alho que veio com os soldados portugueses e o cheiro que resultava da mistura da urina e excrementos de porco que só vim a sentir quando mudamos para a localidade de Fajonquito e que estava relacionado com a presença de porcos domésticos, animal que até aquela data não conhecia.

Fotos: Arquivo

___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para mundo

Guiné > Zona Leste > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) > Centro de Instrução Militar > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece...

A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, a norte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...


Foto: © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados.




1. Publicação da segunda de cinco pequenas histórias que o Cherno Baldé, novo membro da nossa Tabanca Grande, nos enviou, com memórias da sua infância e adolescência (*):


CAMBAJU: O primeiro contacto com o mundo exterior

por Cherno Baldé


Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente.

Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras.

O meu pai era encarregado de uma das casas de comércio, e aquele movimento a que não estava habituado, fascinava-me e me prendia a atenção ao lado do meu pai ocupado a atender as pessoas que vinham comprar mercadoria diversa. Ele nunca tinha tempo para mim e as minhas inúmeras perguntas.

Junto ao balcão, havia um velho aparelho de rádio que ora passava músicas do Mali em língua Bambara ora transmitia discursos intermináveis em Surua (Olof). Eu não gostava nem de uma nem de outra, todavia queria saber como é que aquelas pessoas tinham conseguido entrar lá dentro daquela caixa pequena e ficar por lá durante todos esses dias a falar e a cantar sem precisar de água ou comida, era a questão que me intrigava.

Todavia o meu pai não respondia às minhas questões ou porque não tinha tempo a perder comigo ou porque também tinha lá as suas dúvidas não esclarecidas, normais, na altura, para um aldeão iletrado como ele, mesmo trabalhando para gente da cidade. Quando não negociava com os comerciantes ambulantes que traficavam para o Senegal, atendia as mulheres que pediam conselhos sobre a escolha de tecidos para as próximas festas, no meio de risos e galanteios banais.

Ele tinha um jeito especial de atender as mulheres e via-se mesmo que o fazia com muito prazer. As mulheres, também, ao que parece, não eram indiferentes à simpatia do meu pai que todos consideravam um homem bem parecido. Ele raras vezes ficava irritado o que só acontecia quando alguém, de forma inesperada, mudava a sintonia do rádio e sobretudo se calhava que fosse a rádio da Guiné-Conakri onde de repente explodia a voz imponente de Sékou Turé.

Não era segredo para ninguém que as autoridades coloniais portuguesas não apreciavam aqueles que ouviam esta rádio e o meu pai, certamente, fazia parte das pessoas de bom senso. Ele tinha consciência clara da importância da formação escolar, numa altura em que o analfabetismo e o obscurantismo eram dominantes e se fazia sentir a entrada em força da religião islâmica na sua forma mais primitiva e intolerante importada por homens semi-letrados de Futa Toro e Futa Djalon.

Uma vez, ouvi-o lamentar, numa conversa com a minha mãe, a sua condição de analfabeto, pois este facto aprofundava a sua dependência e impotência 'vis a vis' dos seus patrões que vinham executar balanços regulares e que, não raras vezes, elogiavam seu desempenho financeiro, sem qualquer contrapartida, certamente, devido aos enormes lucros acumulados, numa zona de fronteira aberta ao tráfico e contrabando de mercadorias e de câmbio de divisas dos dois lados.

Esta constatação não será alheia ao facto de o nosso pai, insistir mais tarde, apesar da adversidade do ambiente reinante, na nossa educação escolar, já em Fajonquito, para onde o meu pai foi transferido, precisamente para trabalhar numa loja ainda mais importante, em jeito de prenda pela sua dedicação, mas também porque o acesso à localidade de Cambaju estava cada vez mais perigosa devido aos ataques e minas colocadas pelos guerrilheiros na estrada que ligava Fajonquito a Cambajú.

Cherno Abdulai Baldé, Chico
Natural de Fajonquito,
Sector de Contuboel, Região de Bafatá

__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Publicamos hoje a primeira de cinco pequenas histórias que o Cherno Baldé, novo membro da nossa Tabanca Grande, nos enviou, com memórias da sua infância e adolescência :


1. A primeira visão de uma máquina voadora

por Cherno Baldé (**)

Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes.

Estava com o meu irmão mais velho, Ibraima, a pastar as vacas nas imediações da aldeia, quando de repente ouvimos um ruído potente que vinha de cima. Quando nos virámos para ver, o avião já estava em cima das nossas cabeças, não dava para fugir, instintivamente, meti-me por baixo de umas raízes enormes de um poilão que estava por ali perto. Escondi-me o melhor que pude mas, foi por pouco tempo. 

Como o meu irmão estava a espreitar o avião e não lhe acontecia nada, sai também para ver. Na altura, os meus olhos viam com bastante nitidez e o avião voava a baixa altitude o que me permitiu ver, após uma breve inclinação deste, as pessoas sentadas, dois à frente e um na abertura lateral com as mãos apoiadas no que parecia ser uma metralhadora.

Esta visão ficou para sempre gravada na minha memória. Estranhamente, era também a visão da guerra que se alastrava pouco a pouco e que mudaria o cenário da vida, aparentemente pacífica, que levávamos até aí e mudaria, de forma inesperada, o caminho dos nossos destinos, criando, mais tarde, a incompatibilidade e a confusão entre o futuro que tínhamos vislumbrado na infância e ao qual queríamos dar continuidade e a nova realidade para onde nos tinha empurrado um destino diferente, passando pela escola portuguesa e enfrentando, assim, um futuro incerto e completamente desconhecido que nos levaria primeiro para Bafatá e mais tarde à capital, Bissau, onde funcionava o único liceu, na altura, e mais tarde para terras distantes e desconhecidas, no estrangeiro.

Uma vida feita de aventuras interessantes e também de sofrimentos, de conquistas e derrotas, de descobertas e imposições, de solidariedade e mercantilismo, sempre em ambientes de opressão cultural permanente e de recuo impossível, fruto da rápida transformação e globalização a que fomos sujeitos pela máquina de dominação Europeia e Ocidental.

Cherno Abdulai Baldé, Chico
Natural de Fajonquito,
Sector de Contuboel,
Região de Bafatá

__________

Notas de L.G. :

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje quadro superior  em Bissau...

(**) Próximas histórias:

2. CAMBAJU: O primeiro contacto com o mundo exterior

3. Os homens brancos.

4. Ataque ao aquartelamento de Cambaju

5. FAJONQUITO: Terra da minha adolescência

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3759: O Nosso Livro de Visitas (53): Em busca da história dos nossos Pais (B. Baldé, BIDMC/Harvard, EUA)

Guiné > Zona Leste > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...

Contuboel chegou a funcionar como importante centro de instrução militar, no início da política da africanização do Exército Português, no 1º semestre de 1969. Em data que não posso precisar, esse centro acabou por ser transferido para a ilha de Bolama, aparentemente mais segura. Em Junho de 1969, Contuboel era descrita como um "oásis de paz" (*) e nela dava-se formação às futuras CCAÇ 11 e 12 e a um grupo de combate da futura CCAÇ 14.

Foto: ©
Renato Monteiro (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector de Farim > Cuntima > Destacamento de Cuntima > CCAÇ 14 > 1970 > 4º pelotão. O Fur Mil At Inf Bartolomeu é 1º da direita. Esteve em Maio/Junho de 1969 comigo, em Contuboel.

Esta companhia independente, a CCAÇ 2592 , veio, no Niassa, com a CCAÇ 2590/CCAÇ 12, foi para Bolama para formar a CCAÇ 14. O pelotão do Bartolomeu (o 4º) foi para Contuboel. Aí deu a instrução de especialidade a um pelotão de Mandingas, oriundos da zona de Nova Lamego (Junho/Julho de 1969). O 4º Gr Comb da CCAÇ 2592/CCAÇ 14 foi depois para a Aldeia Formosa onde esteve 4 meses. A seguir, juntou-se ao grosso da companhia, aquartelada em Bolama. De Bolama, a CCAÇ 2592 CCAÇ 14 seguiu para o sector de Farim, destacamento de Cuntima, onde ficou como unidade de quadrícula até ao fim da comissão. Esta povoação ficava (e fica) a 1 Km da fronteira com o Senegal (**).

Foto: ©
António Bartolomeu (2007). Direitos reservados.


1. Recebi, no meu mail pessoal, a seguinte mensagem, com data de 17 do corrente, enviada por B. Baldé, e que estuda ou trabalha no Beth Israel Deaconess Medical Center, um hospital escolar da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, nos EUA [deduzo pelo endereço de e-mail, bbalde@bidmc.harvard.edu]:

Assunto - Sinceramente obrigado

Dear [Caro] Sr. Luis,

Tenho vindo a este blog procurar informações e que também são histórias dos nossos Pais, que serviram do lado do Exército Português. Apesar de escassas, já é alguma coisa.

Tem muita informação da zona de Xime e Bambadinca e quase nada do interior de Contuboel, como por exemplo Fajonquito, Cambadju, Sare Wale, Suna e outros pontos quentes da guerra colonial. Histórias chocantes como a de Almeida (ex-comando Português que se matou em Fajonquito, após matar o capitão, o Alferes e mais outros oficiais, todos Portugueses), histórias de Capitão Carvalho, etc.

Para além destes, seria encorajador para nós, filhos dos Baldés, Djalós, Jaus, Camarás, etc., vermos, se existirem, as fotografias dos nossos Pais, Tios, vizinhos que pereceram na guerra ou foram assasinados após a guerra pela máquina de vingança do PAIGC.

Este blog é muito importante para a história verdadeira da guerra colonial, não importa em que parte estava um soldado, o que importa é a história ser contada com factos reais e acima de tudo com honestidade.

Sinceramente

Obrigado

[Mensagem sem nome do remetente]


2. Comentário de L.G.:

Fico muito sensibilizado pela sua mensagem, e pelo apreço com que fala do nosso blogue. Desde Abril de 2005, vamos tentando, todos os dias, construir e manter pontes de memória e de diálogo entre nós, antigos combatentes portugueses que estiveram na guerra colonial na Guiné, e entre nós, tugas, e os nossos amigos e camaradas da Guiné-Bissau, independentemente de terem feito a guerra connosco, ao nosso lado, ou contra nós (do lado do PAIGC).

Eu próprio dei instrução, em Contuboel, a futuros soldados (na sua grande maioria, de etnia fula) , da minha Companhia de Caçadores, a CCAÇ 2590, mais tarde designada por CCAÇ 12 (***). Estive em Contuboel (Maio/JUnho de 1969) e depois em Bambadinca (Junho de 1969/Março de 1971).

Outra subunidade, composta por oficiais, sargentos e especialistas metropolitanos, e praças do recrutamento local, que se formou em Contuboel, na mesma altura, foi a CCAÇ 11, a que pertenceu o meu querido amigo Renato Monteiro, hoje um grande fotógrafo (****).

De acordo com a sua observação sobre o nosso blogue, não temos de facto tanta informação sobre Contuboel e outros sectores, a norte e a nordeste de Contuboel, na Região de Bafatá. Temos poucas referências a Cambaju, por exemplo. Mas fica, desde já convidado, a escrever no nosso blogue, de modo a colmatar as deficiências de informação apontadas. Como sabe, estamos sempre dependentes dos antigos amigos e camaradas, muito mais portugueses do que guineenses, que aparecem por aqui, com as suas memórias escritas e as suas fotos. Há seguramente ainda muitas histórias por contar e muitos factos por narrar, encadear e interpretar.

Deduzo que esteja a estudar (medicina) ou a trabalhar (como médico) nos Estados Unidados da América, no BIDMC, e que o seu pai tenha feito a guerra colonial do lado dos portugueses. Estamos muito interessados em saber a sua história pessoal e familiar. Temos incluisve um série a que chamámos O s Nossos Camaradas Guineenses, da qual só se publicaram ainda dois postes (*****).

Convido-o a integrar a nossa tertúlia (ou Tabanca Grande). Por razões de reserva de imagem ou até de segurança, podemos a título excepcional publicar os seus textos sob pseudónimo, se achar conveniente. Agora é importante é que sejam os próprios guineenses a contar a sua própria história e a história dos seus pais... Infelizmente não temos meios, financeiros, técnicos e humanos, (nem é a nossa vocação e missão) para fazer investigação de arquivo ou no terreno, sobre este período da história comumo dos nossos dois países. É importante que tenha consciência das nossas próprias limitações.-..

Estes tugas, que fazem todos os dias o blogue, podem dar uma ajuda mas não se podem substituir aos seus amigos e camaradas guineenses.

Mantenhas.

Luís Graça

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poset de 28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969) (Luís Graça)

(**) Vd. postes de

4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)

31 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1803: Tabanca Grande (7): Saudades de Contuboel (António Bartolomeu, CCAÇ 2592 / CCAÇ 14)

(***) Vd. poste de 21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia) (Luís Graça)

Na I Série do nosso blogue (de Abril de 2005 a Maio de 2006), foram publicados diversos postes sobre a CCAÇ 12, inckluindo a história da unidade (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969 / Março de 1971).

Vd. também poste de 2 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1640: A africanização da guerra (A. Marques Lopes)

(****) A CCAÇ 11 (recruta, instrução de especialidade e IAO) foi formada em Contuboel.

Sobre esta unidade formada a partir da CART 11/CART 2479, há já também diversos posts (uma parte dos quais da autoria do meu amigo Renato Monteiro):

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1001: Estórias de Contuboel (i): recepção dos instruendos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

30 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1005: Estórias de Contuboel (ii): segundo pelotão (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1015: CART 2479, CART 11 e CCAÇ 11 (Zona Leste, Gabu, subsector de Paunca)

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1017: Estórias de Contuboel (iii): Paraíso, roncos e anjinhos (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (v): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1612: Relembrando, com saudade, os nossos soldados fulas da CART 11 (Renato Monteiro / João Moleiro)

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

6 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2412: História de vida (8): Renato Monteiro, um homem de múltiplos... fotografares (Luís Graça)

13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3199: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (1): Contuboel (1968/69)

(*****) Vd. postes de:

21 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3340: Os nossos camaradas guineenses (1): O meu tributo (José Martins, ex-Fur Trms, Nova Lamego e Canjadude, CCAÇ 5, 1968/70)

26 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3357: Os nossos camaradas guineenses (2): Foram votados ao esquecimento e abandono (Jorge Picado, ex-Cap Mil, CCAÇ 2589, 1970/72)