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sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23621: Notas de leitura (1495): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Começo por pedir desculpa por demorar a publicação do final da história do BCAÇ 513, a que atribuo enorme importância pela natureza do relato, francamente não sei porque não concluí a recensão ao tempo, voltei à biblioteca da Liga dos Combatentes, fiz a necessária releitura de fio a pavio, compulsei as operações das três companhias de artilharia, a de caçadores, os relatórios dos pelotões de reconhecimento, e sou levado a considerar que quem queira estudar a guerra da Guiné irá ficar com uma imagem bastante rigorosa do Sul em 1963, todo o comércio se desarticulou, a Casa Gouveia e a Ultramarina fecharam as portas, tudo foi saqueado e incendiado e coube particularmente à BCAÇ 513 e às suas diferentes unidades o esforço hercúleo de procurar contrariar o que ninguém podia prever, sobretudo numa Guiné de 1962 tinha escassíssimas unidades militares.

Um abraço do
Mário



Um documento eloquente, peça de historiografia: A história do BC 513 (3)

Mário Beja Santos

Por que motivo atribuo tanto relevo a este documento? Publicado em 2000, numa verdadeira edição para amigos, a História do BC 513, da autoria de Artur Lagoela, abre luz sobre o primeiro ano da guerra, o estado do conflito na região Sul, os colonos e os comerciantes já tinham desaparecido e as populações, espavoridas ou rapidamente afetas ou constrangidas, com maior ou menor brutalidade, pelo PAIGC, tinham-se disseminado pelas pequenas vilas à sombra das tropas portuguesas, ou nas matas ou na República da Guiné.

Peça de historiografia, pelo acervo informativo, mas igualmente um documento de ternura e de respeito pela memória, basta pensar na dedicatória do exemplar oferecido à Liga dos Combatentes: “De todos nós, combatentes do BCAÇ 513, que prestou serviço na Guiné entre 25 de julho de 1963 e 25 de agosto de 1965, daqueles que por lá perderam a vida e daqueles que voltaram deixando lá parte dela, aqui fica um muito pouco de nós, num livro chamado História do Batalhão, e também um grande reconhecimento que os combatentes sabem ter por quem nunca os esquece. Mas a nossa história, essa, ficará sempre por contar. Ela seria o enorme somatório de todas as histórias de todos nós, amalgamadas com todos os nossos sentimentos, todas as nossas indignações, angústias, inquietações, desesperos, raivas, medos, coragens, esperanças, desilusões, amizades, amores, tudo como unido pela fortíssima argamassa que é a irmandade que nasce e perdura entre aqueles que foram combatentes.” Assina o antigo Alferes Miliciano Sapador José Filipe da Cunha Fialho Barata.

Recapitulando, este BCAÇ irá agregar várias companhias de artilharia (494, 495 e 496), uma companhia de caçadores (411) e um pelotão Fox (888), um pelotão de morteiros (979), entre outros. Coube-lhes a região Sul, uma extensão enorme, incluindo a fronteira, Buba, Aldeia Formosa, Cacine, Mapatá, Ganjola, e mais, tudo abandonado, uma falta total de instalações, tudo para construir, não havia pistas para aviões; a guerrilha implantada na região de Incassol, nas margens do rio Corubal, nas margens do rio Cumbijã (em Bantael Silá) e em Cacine (Campeane), para além das zonas de passagem como Ganturé-Guileje. É o período em que se intensifica o uso de minas antipessoal e anticarro, se reagrupam as populações Fulas, que tinham sido atacadas e expulsas nos itinerários Guileje-Mejo-Nhacobá-Buba-Fulacunda, todas as casas de construção europeia pertencentes a comerciantes tinham sido destruídas, as da Casa Gouveia e as da Ultramarina. Não havia, na época em que o Batalhão chegou ao Sul, ainda destacamento em Guileje. Os grupos da FLING foram rapidamente ultrapassados pelo PAIGC, a população Beafada aceitou colaborar com este partido.

Cada vez que leio estes relatos que se copiam uns aos outros sobre a passividade ou a incapacidade de resposta das nossas tropas à extensão da guerrilha, interrogo-me se essas mentes iluminadas que destratam o trabalho de Louro de Sousa e Arnaldo Schultz que se deram ao trabalho de ler relatos como este, em que se fala da ocupação de Gadamael ou de Guileje, a abertura do itinerário Guileje-Gadamael, do itinerário Sangonhá-Cacoca, Cacoca-Cacine e a ocupação de Cameconde irá ser frequentemente flagelada.

Artur Lagoela vai apensando relatórios de operações, uns referentes à ocupação de localidades abandonadas, outros à abertura e limpeza de itinerários, a presença contumaz, não faltam emboscadas, flagelações, a guerrilha já dispõe de metralhadoras, bazucas e estão a chegar os morteiros, não há qualquer referência ainda a canhões sem recuo. Aspeto curioso que merece relevo é a permanente participação das autometralhadoras nas atividades operacionais, bem como os pelotões de morteiros. Em novembro de 1964, Guileje é já um alvo que o PAIGC não poupa. Não deixa de impressionar como o autor dispõe cronologicamente as operações, mês após mês, já não se está só na fase de abrir itinerários, pretende-se ir mesmo às bases do PAIGC, aonde há população, caso de Bantael Silá ou Darsalame, destroem-se estas populações provisórias, mas nas operações subsequentes descobre-se que a guerrilha e a população voltaram. Há parágrafos que ajudam o investigador a perceber que o dispositivo da guerrilha estava fortemente implantado no Sul, as posições ocupadas eram muito vigiadas e de difícil acesso, em abril de 1965, por exemplo, Os Fantasmas já fazem aqui operações. Há registo da ação psicossocial na região de Buba, procura-se conquistar a confianças dos Nalus de Cacine, dá-se apoio às populações dos regulados de Guileje e Gadamael, há postos de socorro em Cacoca e Sangonhá.

De maio a agosto de 1965, o Batalhão permanece no setor de Bissau, procede a patrulhamentos, não se detetam atividades subversivas. E Artur Lagoela despede-se com a listagem das baixas e louvores, agradece o auxílio da Força Aérea e da Marinha e o Tenente Coronel Luís Gonçalves Carneiro no seu relatório não deixa de mencionar que o PAIGC apresentava o Sul como região libertada, propaganda contraditada pela presença das nossas tropas, disseminada por muitos quartéis, destacamentos e tabancas em autodefesa. Como é evidente, o retrato que aqui se fixa é de um Sul onde se iniciara uma grande desarticulação já no segundo semestre de 1962, onde as populações fugiram ou aderiram ao PAIGC, fizeram crescer povoações como Buba, Fulacunda ou Aldeia Formosa, o BCAÇ 513 participou nesta operação de contrariar uma extensa terra de ninguém e é por isso com imenso valor que este trabalho de Artur Lagoela e os seus amigos, mais de meio século passado.

Para quem quer estudar a guerra da Guiné, obra de leitura obrigatória.


Bem-vindos a Sangonhá, imagem do blogue
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Notas do editor:

Vd. postes anteriores de:

15 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23526: Notas de leitura (1475): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (1) (Mário Beja Santos)
e
19 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23539: Notas de leitura (1476): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23610: Notas de leitura (1494): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22975: Notas de leitura (1417): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
Muitos dos sonhos e promessas dos líderes do PAIGC revelaram-se impraticáveis, Rosemary Galli estudou aprofundadamente o modelo de desenvolvimento rural seguido na colónia portuguesa e depois, nos regimes de Luís Cabral e Nino Vieira, disseca as lógicas de funcionamento, o que os líderes do PAIGC pretendiam e o que rotundamente falhou no modelo produtivo e exportador, como recaiu sobre os camponeses o ónus da reconstrução e como estes viraram as costas ao sistema estatal. É preciso ter investigado muito para sintetizar e tirar as conclusões de estratégias que falharam e que, pior do que tudo, comprometeram o desenvolvimento rural da Guiné-Bissau no médio a longo-prazo.

Um abraço do
Mário



A economia guineense: Do desenvolvimento colonial a Nino Vieira (2)

Beja Santos

Devemos à investigadora norte-americana Rosemary Galli uma poderosa análise do desenvolvimento rural da Guiné-Bissau, as suas pesquisas e reflexões são altamente fundamentadas e profundamente incómodas para as decisões políticas tomadas por sucessivos governos guineenses depois da independência. Vimos no texto anterior um resumo do quadro histórico da agricultura na Guiné-Bissau a partir da colonização portuguesa e da lógica que imperou no Estado Novo.

A guerra de libertação nacional, como é óbvio, condicionou o modelo produtivo e, consequentemente, o modelo exportador. Durante a guerra houve migração em grande escala: ainda hoje não se sabe ao certo o número daqueles que fugiram para o Senegal e para a Guiné-Conacri; dezenas de milhares foram para Bissau; constituíram-se reordenamentos que, de algum modo, alteraram o figurino das produções agrícolas; e uma grande quantidade de jovens abandonou as suas casas para se juntar aos combatentes pela libertação; houve bombardeamentos dos diques e invasão dos arrozais pela água salgada.

A maior parte do peso da reconstrução do pós-guerra recaiu sobre os camponeses: a reparação de diques exigiu capital e mão-de-obra em grandes quantidades; foi preciso passarem alguns anos até a água das chuvas dessalinizar os campos de arroz; os camponeses não tinham economias e contaram com pouca ou nenhuma ajuda do Governo. O investimento do Governo em infraestruturas económicas foi mínimo. Entre 1975 e 1980, quase não houve qualquer extensão do sistema rodoviário. O olhar de Rosemary Galli vai em todas as direções, o seu balanço sopesa o sistema de transportes, as infraestruturas, o abastecimento e os preços. Lembra que o melhoramento do sistema fluvial teria representado uma grande ajuda para o setor camponês das zonas orizícolas do sul. Antes do século XX a maior parte do comércio fazia-se através das rias, depois da independência quase nada foi feito para revitalizar este sistema de comunicação. A frota era velha e encontrava-se principalmente nas mãos do Estado, os autocarros e camiões propriedade do Estado cedo ficaram inoperacionais e com falta de manutenção apodreceram. 

O PAIGC procurou substituir com a sua própria rede de lojas a Casa Gouveia e as casas comerciais autorizadas pelo Governo em cada área que libertava. Depois da guerra os chamados Armazéns do Povo tomaram conta da Casa Gouveia e de uma sociedade comercial de capital estatal e privado, a SOCOMIN, para complementar as atividades dos Armazéns do Povo. O sistema revelou-se extremamente inconveniente, supercentralizado, ineficiente e corrupto. E, pior do que tudo, não chegava de facto aos produtores rurais. Atribui-se as causas da ineficácia a uma política de importações inadequada, à inexperiência dos gestores do sistema e a uma má distribuição dos produtos entre os diferentes setores. E a política de preços foi determinante para o insucesso. Embora o PAIGC tivesse elevado os preços ao produtor após a independência, estes não acompanharam a subida dos preços dos poucos produtos importados que chegavam ao campo. O poder de compra dos camponeses em 1983 era menor do que na altura da independência. Uma barra de sabão importado custava cerca de um dólar no mercado oficial. Isto significava que o seu preço para os camponeses era 3,5 kg de arroz ou 5 kg de amendoim. Para um camponês, três quilos de arroz equivaliam à alimentação de uma semana. Uma lata de leite em pó de 2,5 kg custava cerca de 10 dólares ou quase 37 kg de arroz e/ou 49 kg de amendoim.

Para a investigadora, a política agrícola seguida na Guiné-Bissau a seguir à independência revelou a continuação de muitas das políticas do Estado Novo e fundamentalmente pelas mesmas razões: aumentar as receitas para pagar à administração estatal e para investir na indústria. O malogro foi de tal ordem que foram destruídas as oportunidades a longo-prazo para o desenvolvimento agrícola, os produtores exportavam à candonga, levaram os seus produtos para fora do país. O golpe militar de novembro de 1980 prometia alterar todo este estado de coisas, o Conselho da Revolução que tomou o poder pediu ao Governo uma retificação da sua política. A reestruturação que se pretendeu imprimir em 1982 assentava em que as importações ficariam sob o controlo do Estado através da Companhia de Comércio Externo, seguir-se-ia uma política de importações em que 80% das divisas iriam para itens de subsistência básica e seriam geridas pelo monopólio estatal; os Armazéns do Povo e o SOCOMIN conheceriam restruturação, um para tomar conta do comércio externo e a outra o comércio interno, ficando o comércio a retalho completamente nas mãos de comerciantes privados.

A conclusão da investigadora é implacável: o que veio a acontecer foi o afastamento dos administradores estatais, perderam o contato direto com os produtores; o novo Governo fez muitas mudanças de pessoal nos anos de 1980 para combater a corrupção, mas era evidente que a estrutura do poder não tinha mudado e o mesmo se pode igualmente verificar na política de câmbios, tudo falhou com as sucessivas desvalorizações da moeda. “Investigações realizadas pela autora sobre os dois principais projetos de desenvolvimento orizícola revelaram que parte do equipamento e parte do arroz dos projetos já tinham sido trocados pelos bens básicos que faltavam na área. A investigação sobre o principal projeto de desenvolvimento do amendoim mostrou que a introdução da tração animal não produziu o crescimento das culturas esperado. Pelo contrário, permitiu que os jovens partissem mais cedo do que o habitual para irem participar na colheita de amendoim no Senegal. A emigração, quer temporária quer permanente, e o contrabando, constituem os sinais de uma luta passiva contra as políticas de acumulação primitiva que prometiam tanto mas deram tão pouco”.

Enfim, conclusões bem tristes para um país a quem fora prometido uma libertação com melhores condições de vida.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22967: Notas de leitura (1416): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22967: Notas de leitura (1416): “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona”, por Rosemary E. Galli, artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, Janeiro/Dezembro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro 2019:

Queridos amigos,
É uma tremenda injustiça não se dar o devido relevo aos trabalhos desta investigadora norte-americana. Este artigo é comprovativo de alguém que investiga e que sabe arrumar o pensamento. Rosemary Galli irritou muito as elites do PAIGC entre os anos 1970 e 1990, pôs a nu muita ingenuidade e desconhecimento: estavam a repetir de portas e travessas uma estratégia que já tinha sido elaborada no Estado Novo. Ainda hoje continuam no limbo as denúncias de René Dumont que deitou abaixo a euforia do modelo industrial que se pretendia instituir na Guiné-Bissau, um sorvedouro de divisas que arrasaria o sistema financeiro, como arrasou.

Um abraço do
Mário



A economia guineense: Do desenvolvimento colonial a Nino Vieira (1)

Beja Santos

O artigo “A crise alimentar e o estado socialista na África Lusófona” por Rosemary E. Galli, publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6 e 7, janeiro/dezembro de 1987, oferece-nos uma extraordinária síntese do que aproxima a perspetiva colonial para o desenvolvimento agrícola e como este mesmo desenvolvimento foi encarado pelos dirigentes do PAIGC de Luís Cabral a Nino Vieira. Rosemary Galli é um nome importantíssimo na investigação da Guiné-Bissau, é coautora de uma obra incontornável “Guinea-Bissau: Politics, Economics and Society” (1987) e autora de “The Political Economy of Rural Development” (1981), ao tempo era professora universitária em Iowa, no Wartburg College.

Na introdução, a autora justifica-se: “Este ensaio sustenta que as fontes da política governamental na África Lusófona seriam tanto históricas como contemporâneas, e que foram legitimadas por um modelo de acumulação derivado simultaneamente da tradição socialista e da prática do Governo colonial. De facto, em pouco se diferenciavam”.

A lógica do Estado Novo é bem conhecida: uma política de extração de excedentes agrícolas e minerais das colónias destinadas a fornecer matérias-primas para as indústrias portuguesas; esses produtos eram vendidos nos mercados mundiais em troca de divisas que ajudassem a equilibrar a balança comercial portuguesa. Com o objetivo de estimular o comércio com Portugal, Salazar elevou os preços da importação do algodão, do açúcar e dos óleos vegetais ligeiramente acima dos níveis do mercado mundial. Os camponeses foram obrigados a cultivar produtos tais como o algodão em Angola e Moçambique e amendoim na Guiné. Outra das políticas utilizadas foi a de encorajar a produção em grande escala de colheiras. Esperava-se que os camponeses fornecessem a mão-de-obra nestas plantações, e o regime estabeleceu uma legislação laboral que, para muitos, era uma forma moderna de escravatura. Tratava-se de acumulação primitiva na sua forma mais crua.

Vale a pena tomar à letra o essencial da argumentação de Rosemary Galli. O desenvolvimento da agricultura da Guiné teve sempre lugar no contexto de uma economia regional integrada na economia mundial. Floresceu sem qualquer intervenção direta por parte do Estado. A partir do século XIII, os guineenses constituíam parte da economia e da sociedade da Senegâmbia dominada pelo Império Mandinga do Mali. Os principais povos do litoral da Guiné – Balantas, Manjacos, Papéis, Brames – foram empurrados ao longo da costa pelos súbitos de um império que estava em plena expansão – os Mandingas. O Mali controlava o comércio internacional da África Ocidental. O comércio atlântico começou quase os portugueses transformaram as áreas costeiras em animados centros de comércio. Estabeleceram-se em claves com autorização dos governantes locais, forneciam-se produtos manufaturados em troca de ouro, marfim e, sobretudo, escravos. Os comerciantes Mandingas e mais tarde Fulas deslocaram-se para as zonas costeiras para estar perto dos entrepostos europeus.

Com a abolição do tráfico de escravos, os guineenses viraram-se para a produção de mercadorias agrícolas, a principal colheita de exportação era o amendoim. As primeiras plantações situavam-se nas ilhas Bijagós e no continente ao longo do Rio Grande.

Portugal iniciou a sua ocupação da Guiné em finais do século XIX. Em finais da década de 1980, os Balantas iniciaram a primeira de uma série de migrações maciças em direção ao sul da Guiné, para a área de Fulacunda e mais tarde para Catió, tornaram-se preponderantes no Tombali e em Quinara, construíram elaborados arrozais. Embora os portugueses fizessem concessões de terras a comerciantes portugueses, cabo-verdianos e de outras origens, os Balantas eram quem de facto possuía as terras e estabelecia uma relação comercial com os concessionários. Na década de 1920, Catió tornou-se o celeiro da Guiné e por volta de 1930 passou a exportar arroz. A influência do comércio português até ao Estado Novo foi bastante difusa. Os franceses controlavam o comércio do amendoim, os alemães e os belgas tinham desenvolvido o comércio da borracha e de produtos derivados da palmeira até à I Guerra Mundial e o arroz encontrava-se nas mãos de pequenos comerciantes, sendo a produção e a recolha feita por camponeses.

O Estado Novo tentou instituir um monopólio comercial português. Colocou o comércio de importação e exportação nas mãos da Companhia União Fabril, que operava na colónia através da Companhia António Silva Gouveia. Uma vez que as sucursais da Casa Gouveia não conseguiam cobrir todo o país, uma série de outros comerciantes portugueses e sírio-libaneses foram autorizados a funcionar como agentes de recolha, e a administração colonial estabeleceu uma quantidade de centros comerciais tornando obrigatória a entrega de colheitas aos compradores oficiais sediados nesses centros. O comércio obrigatório foi complementado pelo cultivo obrigatório do amendoim. O Estado Novo distribuiu aos produtores variedades de amendoim melhoradas. A partir dos anos 40, os funcionários administrativos locais passaram a ser responsáveis pela demonstração de novas técnicas de produção e novas culturas junto dos produtores rurais. Os Serviços Agrícolas distribuíram variedades de arroz e de amendoim altamente produtivas e procuraram introduzir a tração animal.

Nos anos 50 e 60, uma expansão significativa do número de portugueses residentes em Bissau e outras localidades foi responsável pela alta percentagem de importações de alimentos e vinho. Além disso, o regime colonial recrutou cerca de 5 mil cabo-verdianos e guineenses com instrução para os níveis inferiores da administração e das empresas comerciais. Estes também adotaram padrões portugueses de consumo que, especialmente após a independência, limitaram severamente os recursos nacionais. Os dirigentes do PAIGC que levaram a colónia à independência tiveram origem neste estrato privilegiado mas contaram com o apoio de uma grande parte da população rural. Na altura da independência prometeram apoio governamental ao desenvolvimento rural mas as políticas levadas a cabo tenderam a agravar a frágil situação dos produtores, provocada especialmente pela guerra de libertação nacional.

(continua)

Fotografias e comentários da doutoranda Lúcia Bayan, que amavelmente cedeu este precioso material ao nosso blogue:

A produção e comercialização do vinho de palma ocorrem na época seca. A recolha e produção são feitas pelos homens e a comercialização pelas mulheres.

Para a colheita do vinho de palma, os homens trepam ao cimo das palmeiras, com a ajuda de um cinto, feito essencialmente com o caule de uma folha da palmeira. Chegados ao topo, ferem o tronco da palmeira e recolhem o vinho (a seiva) para garrafas de plástico, através de um funil feito com uma folha, um instrumento que parece uma flor.

O vinho é recolhido uma vez por dia e despejado em bidões de 25 litros, que são guardados em pequenos recintos no mato. Aqui o homem gere o grau de fermentação, de acordo com as necessidades do mercado.

Depois as mulheres levam os bidões até aos mercados e pontos de venda. Nos primeiros, o vinho é trocado por outros produtos, vendido à unidade ou a granel a comerciantes senegaleses, sendo estes os principais compradores. Nos segundos, o vinho é vendido a granel aos senegaleses.

O comércio a granel é muito forte. Na época seca, uma carrinha senegalesa percorre a estrada, entre São Domingos e Varela Iale, uma vez por semana, parando em todos os mercados das tabancas, que ficam junto à estrada, e em pontos de venda, instalados junto à estrada para servir as tabancas mais afastadas, como, por exemplo, Catão. No pico da época, Março e Abril, a carrinha senegalesa faz esta viagem duas vezes por semana. Sendo assim uma importante fonte de rendimento para os Felupe.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22952: Notas de leitura (1415): "Guerra da Guiné", da autoria do Coronel Fernando Policarpo; Quidnovi, 2006 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21315: Historiografia da presença portuguesa em África (229): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
A diferentes títulos, as notas de viagem de João Augusto Martins são incontornáveis. Não é novidade o que nos diz na sua descrição de Bissau nem de Bolama, salvo que aqui António da Silva Gouveia que viera anos antes como Guarda-Fiscal se tornara um potentado económico. Não conheço na literatura colonial nenhum outro deslumbramento pela mulher como o que ele aqui nos deixa, tocado por uma sensualidade pouco usual na época, mesmo se atendermos que ele era um cultor do naturalismo, todo este documento é prova desta corrente literária. E nas conclusões será implacável com a natureza das cedências que fizemos à França, correlacionando estas cedências com o quadro de decadência nacional.
Vale a pena ler este João Augusto Martins na íntegra, ele não era peco em denunciar a lástima a que chegáramos.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (1)

Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. Feito o périplo pela Madeira e Cabo Verde, chega-se a Bissau e o autor dá-nos assim notícia da vila:  
“A cidadela a altos muros e a poilões gigantes, o último reduto da vitalidade da Província, hoje o mais importante centro comercial da Guiné. O cheiro nauseoso e acre das suas praias (lodaçal extenso que se evidencia na baixa-mar por dezenas de metros), vinha, arrastado pela aragem da tarde, envolver-nos numa atmosfera sulfídrica, enquanto bandas de pássaros de múltiplas espécies e variadas cores atravessavam marcialmente para os ilhéus, marcando no horizonte rubro da tarde as curvas ondulosas do seu voo, que as trevas da noite foram a pouco e pouco apagando, até deixar-nos sós, isolados e esquecidos, na contemplação estática de quem espera, divisando na sombra as cumeadas altivas dos baobás, escutando o carpir plangente das corujas e dos jagudis, e sentido aos nossos pés como um vagir de criança, o marulhar hipnótico das águas pantanosas do rio”.
Bem interessante o estilo, ultrapassado que estava o romantismo, a escrita assumia o naturalismo e já parecia acolher os assomos do impressionismo pictórico. Adiante.

Chegaram à capital, o autor vai dizer:  
“Em Bolama fomos acolhidos principescamente por Caetano Macedo, cujo nome se prende à história da Guiné por títulos de valiosos serviços reconhecidos. Aí visitámos tudo: os quartéis, as repartições públicas, o hospital, a igreja, a casa do governador e o mais sumptuoso edifício de Bolama, pertencente a esse nomeado Gouveia, que veio para aí há nove anos como Guarda-Fiscal e que hoje representa o Rotschild da terra, à custa do trabalho, da perseverança e da felicidade, esse orvalho abençoado, capaz de fazer robustecer a planta mais exótica… Na terra ainda mais ingrata”.

O nosso João Augusto Martins vai revelar-se um cultor da mulher, não sei se há retrato mais sensual e venerador da mulher guineense daquele que ele escreveu:
“Foi-nos dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo o que há de mais irresistível nas atrações do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes de África. Tinha apenas treze anos, e a adolescência irrompia das indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica das suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro-azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo, enfim…”.

Mas este esplêndido elogio da mulher Fula não fica por aqui, a exaltação ainda vai subir de tom, num intercalado lírico:
“A sua límpida fronte pendia para o solo, na atitude melancólica de um sonhar de virgem. As suas mãos pequenas uniam-se na postura de uma súplica infantil e a sua inocência evolava-se na expressão do seu olhar como a alma das flores se evola nos aromas que nos inebriam.
Que tons, que formas, que cores e que curvas!
Oh! Mulher casta, pecaminosa na tua nudez virginal, permite que te relembre emoldurada nessa paisagem fulgurante, permite que sonhe ainda, pensando em ti… Perdendo-me em conjecturas”.
Então, leitor, não temos aqui a expressão máxima de um amor cortês e de uma sensibilidade ao feitiço africano em desmesura?

Veremos que ainda há muitas mais anotações de viagens, delas aqui se fará menção.

João Augusto Martins dirá nas conclusões quem é e a importância que teve a sua passagem pela Guiné, ficam aqui uns tópicos:
“Regressados há muito da Guiné, onde estivemos conjuntamente com os comissários de França e Portugal, para a célebre delimitação convencionada em Paris em 1886, esperávamos ver por escrito a história deste acontecimento dolorosamente ridículo e improducente, para apreciarmos sobre bases oficiais este convénio de lesa-nação, esse golpe fatal com que a diplomacia nos deixava então esquartejar saudavelmente pelos franceses, na Senegâmbia, como o nosso histerismo e o nosso idealismo tradicional nos tem deixado torpe e irremediavelmente espoliar pelos ingleses na África Oriental. Esperávamos ver posto a limpo esse facto monstruoso, que não tem decerto uma alta significação económica, atento o desleixo da administração colonial, mas que representa mais uma das muitas extorsões feitas à sombra da nossa imprevidência e das nossas facilidades, dando lugar a que todo o coração português tivesse mais um motivo a confranger-se em África ante o desprestígio da dignidade nacional.
A delimitação da Guiné, traduzindo uma perda enorme de território, uma regulamentação absurda de fronteiras e um verdadeiro bloqueio à nossa administração e ao comércio português nestas regiões, exprime um ato de leviandade política que não pode deixar de fazer corar de pejo todos os filhos da nação desmembrada”.

Prepare-se o leitor, pois iremos retomar esta catilinária, João Augusto Martins participou na operação de delimitação e tem uma ideia muito própria de que esta oferta à França obedecia a um contorcionismo diplomático um tanto parecido com o Tratado de Lourenço Marques, era revelador de uma política de decadência. Estranhamente, vemos esta exortação à dignidade nacional praticamente esquecida.

(continua)



Imagens retiradas do livro "Madeira, Cabo-Verde e Guiné", de João Augusto Martins.

Baobá-africano
Imagem tirada da Wikipedia, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21294: Historiografia da presença portuguesa em África (228): Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21127: Historiografia da presença portuguesa em África (216): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Uma boa surpresa, todo o conteúdo desta tese de doutoramento referente à imprensa na África Portuguesa, entre 1842 e 1974.
Por razões compreensíveis, o foco foi sempre a Guiné, aparecem salientados os aspetos da sua imprensa insignificante e no Estado Novo em nenhuma circunstância molestou o regime. A autora recomenda que não se menorize o papel dos Boletins Oficiais. Como ela escreve, "a partir do século XX e até 1974, o papel primordial dos Boletins Oficiais foi manter a sociedade informada dos atos oficiais dos governos coloniais. Os Boletins foram uma fonte de informação privilegiada para os jornalistas, que através dos conteúdos oficiais denunciavam políticas e práticas governativas ou davam o seu apoio à gestão dos governos coloniais. Estes boletins contribuíram ainda para manter a população letrada das colónias informada".
E lembra ainda que "em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e na Guiné, ao longo do Estado Novo, na maior parte do período, existiu apenas um jornal, quando em Moçambique e Angola existia uma diversidade de títulos".
Nas conclusões, a autora enfatiza os aspetos da semelhança de toda esta imprensa: era de perfil político, dirigido às elites e com a propriedade vinculada às forças sociais e ao Estado; a atividade jornalística estava articulada à militância política, a profissionalização jornalística foi sempre insipiente; no Estado Novo, a intervenção do Estado foi sempre forte.

Um abraço do
Mário


A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento do Instituto de Ciências Sociais (2)

Beja Santos

A tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (acessível pelo link https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/15605/1/ulsd069555_td_Isadora_Fonseca.pdf), é um documento que revela estudo e tratamento seguro de uma temática que tem vindo a ser abordada fragmentariamente. A Guiné e a sua imprensa, pelo rigor de análise da autora, merecem aqui o devido realce.

No texto anterior, deu-se primazia à contextualização histórica proposta pela autora, foi referida a imprensa na Guiné na Monarquia Constitucional, e já na alvorada da República verificou-se que o Boletim Oficial continuava a ser o único canal de informação impressa na Guiné. Só em 1920 apareceu o Ecos da Guiné, Quinzenário Independente Defensor dos Interesses da Província, teve vida efémera; a Voz da Guiné surgiu em 1922, apresentava-se como quinzenário republicano independente. Observa a autora que o periódico vinha regularmente em defesa das medidas políticas do Governador Velez Caroço. Em 17 de agosto de 1924, em Bissau, saiu o número 1 do Pró-Guiné, Órgão do Partido Republicano Democrático, reproduzido na imprensa nacional, editou apenas quatro números, em todos eles usou sempre o tom elogioso com o Governador. Fazendo o ponto da situação da imprensa na Guiné durante a I República, a autora sublinha que a imprensa na colónia não se consolidou, ao contrário do que aconteceu nas demais colónias portuguesas em África, justifica o facto pela fraqueza das elites na Guiné, o incipiente desenvolvimento económico e social da colónia e o prolongamento das guerras de pacificação. E recorda que os três jornais foram iniciativas de funcionários públicos, pequenos comerciantes e políticos locais que dependiam da Imprensa Nacional para reproduzir os periódicos. Nunca apareceu um jornal africano que defendesse os interesses dos povos nativos, como veio a acontecer nas demais colónias portuguesas em África. Foi uma imprensa que nunca possuiu um espaço de expressão, reivindicação e negociação política, dado o facto de a propriedade da imprensa estar ligada apenas às elites portuguesas. É bem notório o controlo dos conteúdos pelo governador. Os jornalistas eram funcionários públicos, políticos e comerciantes, não auferiam rendimentos desta atividade jornalística.

Estamos já noutro patamar, o Estado Novo. Vale a pena ouvir a autora:  
“A partir de 1930, com as políticas centralizadoras do governo autoritário, os portugueses passaram a dominar o comércio, tendo à frente o BNU e a Casa Gouveia, fortemente ligados o primeiro à Sociedade Comercial Ultramarina e a segunda à CUF. No interior do território foram instalados postos estatais dedicados à compra do amendoim, do arroz e do óleo de palma, entre outros, produzidos pelos africanos. As finanças da colónia dependiam dos recursos metropolitanos e dos aumentos dos impostos. Os efetivos militares diminuíram a partir de 1928, correspondeu à necessidade de se limitar os gastos. Em 1930, surgiu em Bissau a primeira tipografia privada e entre 1930-1931 foram publicados vinte números do Comércio da Guiné, o último saiu a 18 de abril e coincide com a inclusão de um movimento insurreto na Guiné, ligado à resistência na Madeira, a designada Revolução Triunfante”.

A capital é transferida para Bissau, em 1941, e dois anos depois apareceu o Arauto, Dilatando a Fé e o Império, jornal mensal, dirigido pelo Padre Afonso Simões, com redação e administração na Residência Missionária de Bolama. Não faltavam conteúdos religiosos e informativos, tudo cuidadosamente elaborado para não haver sanções da censura. Vejamos agora a imprensa que surgiu depois. Entre 1950-1954, a Secção Técnica de Estatística publicou o mensário Ecos da Guiné, periódico oficial de divulgação das atividades do governo, com textos escritos pelos funcionários públicos que exaltavam a ação colonial portuguesa na Guiné. Em 1950, o Arauto tornou-se diário, mudou de diretor, passou a ser o Padre José Maria da Cruz, dava-se destaque às notícias da metrópole, todos os eventos do governo local e nacional eram destacados. A partir de 1958, o jornal passou a designar-se O Arauto. E assim chegámos à década de 1960, quando foi revogado o Estatuto do Indigenato, a atmosfera de descolonização geral em África obrigava o Estado Novo a maquilhar a sua política, O Arauto é um defensor intransigente da política do regime, aparecem comentários como este num número de setembro de 1962: É já conhecido o recente acordo, levado a efeito entre Álvaro Cunhal, Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos e um representante de Humberto Delgado, de que resultou a elaboração de um programa que prevê, praticamente, a entrega das províncias ultramarinas, com total independência, às organizações daqueles elementos comunistas e a criação de metrópole de uma república popular. Eram aproveitadas as opiniões nacionalistas de toda a ordem, caso dos artigos de Dutra Faria que visitara a Guiné e publicara um conjunto de textos no jornal ligado à política de Salazar, o Diário da Manhã. E a autora diz-nos que na sua última fase os conteúdos de O Arauto estiveram centrados no noticiário internacional, com textos de combate ao comunismo e em artigos sobre os países que apoiavam Portugal. Além dos boletins das Forças Armadas, não há mais notícias sobre a Guiné. A última edição conhecida de O Arauto saiu em abril de 1968, dois meses depois Spínola desembarcava em Bissau. Entre 1968-1970 circulou o semanário Notícias da Guiné, Boletim do Centro de Informação e Turismo, o jornal não apresentava ficha técnica a indicar os seus responsáveis e os seus textos não eram assinados. Tema permanente era a publicação do Boletim das Forças Armadas e repetidamente eram anunciadas no jornal as medidas governamentais. Por exemplo, em agosto de 1969, o jornal trazia uma longa reportagem sobre os “terroristas arrependidos”, entre eles Rafael Barbosa. As atividades do governador e comandante-chefe são uma constante informativa. A última edição conhecida do Notícias da Guiné é de 22 de março de 1970.

E a autora recorda o acontecimento cultural de maior significado, entre janeiro de 1946 e abril de 1963, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicou o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, publicação de caráter científico, com estudos de divulgação no campo da História, da Etnografia, das Artes e da Literatura. Ainda hoje é de consulta obrigatória.

Procedendo a uma síntese da imprensa na Guiné durante o Estado Novo, a autora lembra que o regime não precisou de fazer uso da censura e da perseguição contra a imprensa e o jornalismo, pois não existia uma imprensa que questionasse, criticasse ou se opusesse às políticas autoritárias. Os jornais sucumbiam por falta de estrutura empresarial. Lembra que a colónia esteve treze anos sem um jornal até que surgiu o Arauto, que era propriedade da Igreja. “Não se sabe quem foram e quantos eram os jornalistas na Guiné, pois os textos dos jornais não eram assinados e os títulos não tinham fichas técnicas”.

A tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca é uma investigação de grande significado, permite conhecer as dinâmicas da imprensa e do jornalismo nos territórios da África Portuguesa, arriscado era o desafio, o resultado tem o sabor de um bom acontecimento para a historiografia guineense.
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Notas do editor

Vd. poste anterior de 24 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21107: Historiografia da presença portuguesa em África (214): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21123: Historiografia da presença portuguesa em África (215): o jovem Amílcar Cabral, finalista de engenharia agronómica, saudando o regresso das chuvas e da esperança, após quatro anos de seca, fome e tragédia, escreveu: "A bem de Cabo Verde, pelo bom nome e pela glória de Portugal" (sic), a rematar um artigo publicado no nº 1 do Boletim de Informação e Propaganda, outubro de 1949

terça-feira, 30 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21124: Estórias avulsas (99): Histórias de Porto Gole e encontro com um médico guineense no Hospital do Barreiro (Acácio Mares, ex-Fur Mil Inf)

Vista de Bissau - Guiné-Bissau
Com a devida vénia a dnoticias.pt


1. Mensagem do nosso camarada Acácio Mares (ex-Fur Mil Inf da 1.ª Comp/BCAÇ 4612/72, Porto Gole, 1972/74), com data de 27 de Junho de 2020:

Boa tarde camarada Carlos
Recordei mais uma história que passo a contar.

Estava a organizar uma patrulha e disse ao soldado das milícias para ir à frente com o pica. Respondeu que não ia porque não tinha medo de mim, que só ia com outro furriel porque quando não ia ele tirava dente e punha dente e tinha manga de medo eu puxa e não tiro dente.

Estava em Porto Gole e havia um homem que pertencia à Casa Gouveia (CUF) e que recebia produtos para a CUF, amendoim e ráfia. Tinha cinco filhos aos quais eu dava pão com manteiga. Há pouco tempo fui ao Hospital do Barreiro e fui atendido por um médico de cor que em conversa me disse ser natural da Guiné-Bissau,  Porto Gole. Eu disse-lhe que tinha lá estado e  vim a saber que ele era filho do António da Casa Gouveia e que lhe tinham posto o nome Alfredo da Silva em homenagem ao patrão da CUF. Eu tinha uma foto com ele e os irmãos que posteriormente lhe entreguei, ficando ele muito sensibilizado com a situação.

Guiné-Bissau - Exterior do Forte de São José da Amura
Com a devida vénia a Tripadvisor

Camarada, fui à Guiné mais ou menos há 7 anos, que desgraça a avenida que vem do Palácio até ao porto, tudo com grandes buracos, nem um camarão nem ostras havia, tudo desapareceu. O Grande Hotel queimado, Amura igual o Pelicano também. As ruas com sucata.

Eu falei demais, revoltado com o que vi, entretanto estava perto um sujeito de nome António que até me ameaçou.
Fui falar com um português que lá estava há anos que me sugeriu que fosse para Varela. Assim fiz, na volta fui logo direto ao aeroporto pensando que desta já me tinha safado.

Por hoje é só, até que me lembre de outra situação.

Abraço
Acácio Mares
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20961: Estórias avulsas (98): Histórias do vovô Zé (2): História da Carochinha, contada em confinamento, em homenagem à D. Virgínia Teixeira e ao Senhor Jotex (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

sábado, 11 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20843: (Ex)citações (364): o amendoim e o caju, a maldição do colonialismo, em tempo de pandemia de COVID-19 (Manuel Luís Lomba, alcaide de Faria, Barcelos)

I. Comentário(s) de Manuel Luís Lomba ao poste P20829 (*)

Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

(i) nasceu em Faria,  concelho de Barcelos, em 1 de Maio de 1942;

(ii) foi funcionário da construtora Soares da Costa onde alcançou o cargo de Director;

(iii) promoveu o renascimento e é presidente da Direcção do Grupo Alcaides de Faria

(iv) é autor dos dois volumes de Faria: "Terra-mãe da Nacionalidade":

(v) é autor dos livros:  “Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu” (por Manuel Luís Lomba, Terras de Faria, Lda., 2012); "Da Senhora e Da Franqueira: Memórias das nossas Origens" (Barcelos,  edição de autor, 2019); 

(vi) tem cerca de 70 referências no nosso blogue; está na Tabanca Grande desde  17/9/2012 (**)


1. Em tudo o relativo à Guiné, nós, veteranos da sua guerra, não raro evidenciamos o romantismo ou o amor (platónico) àquela terra e gente.

Para introduzir a cultura do amendoim (mancarra, para os guineenses e alcaguita, para os alentejanos) e do caju ou "fruto falso", na economia da Guiné-Bissau, os nossos antepassados, inventores do "colonialismo", tiveram de descobrir o Brasil...

Na réplica do Cherno Baldé ao poste do Patrício Ribeiro está implícito um protesto: antes da chegada dos portugueses, do seu amendoim e do seu caju, já os guineenses eram auto-suficientes - morreriam de vírus, mas não morriam à fome!

A propósito da Guerra da Guiné, a ordem dos factores não é arbitral.

A sua iniciativa será "património imaterial" dos seus naturais e à custa dos "colonialistas portugueses". Consta-nos que Nuno Tristão e a sua malta andavam em turismo aquático (em demanda de "galinha à cafreal"?), os nalus montaram-lhe uma emboscada e ele "lerpou" com uma seta envenenada e sem dar um tiro. Nalús e balantas esperaram 500 anos e, à molhada (e sem fé em Alá, como animistas), atacaram o quartel de Tite - "património material", como o momento do início da Guerra da Libertação, que durou 11 anos para libertar seu território, mas vai para 60 anos que não liberta o seu Povo...

Será que o caju substituiu o amendoim?

A CUF (Casa Gouveia) fora sempre o maior comprador de amendoim e, acontecido o cessar-fogo, foi o primeiro "capitalista-monopolista" português a entender-se com o PAIGC em matérias de negócio. Ambas foram nacionalizadas. Ao desmantelar-se, a CUF generalizou a fome na península de Setúbal, um "bispo vermelho" emergiu à altura da situação (D. Manuel Martins); a Casa Gouveia e a sua organização foi reciclada em Armazéns do Povo e as suas prateleiras e armazéns vazios foram uma das razões para o golpe de Estado de 1980, em Bissau.

O modelo de "economia planificada" foi concebido e materializado pela "inteligência" do PAIGC, obra-prima do desconhecimento do país e povo, reforçada pela "inteligência" de outros de diferentes nacionalidades, entre os quais portugueses, militantes do nosso PREC e da sua falência. A Guiné-Bissau será um caso-vítima do tráfico da "Cooperação".

A dinâmica da fileira do amendoim assentava no micro-produtor e no comércio retalhista, que, pelo novo paradigma, passaram a "funcionários públicos", mas, em vez de o entregar aos Armazéns do Povo e à sua burocracia, passaram a contrabandeá-lo pelas fronteiras da Guiné-Conacri e do Senegal, o que provocará a ruptura dos fornecimentos à indústria portuguesa.

2. O comentário ao tema do Patrício Ribeiro-Cherno Baldé (*)  saiu-me longo, a culpa principal será imputável ao "terrorista" Covid 19 e a secundária ao alvoroço que sinto em comunicar com dois camaradas, com os pés e a vida no chão da minha nostálgica Guiné. Levo 4 semanas de confinamento, e, se escapei ao dito cujo, não escapei aos tormentos do ácido úrico e da tormento - a "gota".

O que acabo de dizer acerca da dinâmica da cultura do amendoim reflecte a auto-crítica do seu primeiro PR Luís Cabral na RTP, que disse também ter fundado uma fábrica de sumos, com a exportação garantida para um supermercado de Cascais (era o Pão de Açúcar) e que morreu sem funcionar (o destino do Complexo do Cumeré e das principais indústrias, que a sua "Economia planificada" instalou).

Quanto ao caju, a Guiné começou a sua exportação em 1966, ano do meu regresso, tendo saboreado o seu "falso fruto" em Buruntuma e em Camajabá, (bem maduro, senão queimava-nos a boca), que parou pós-independência. Foi retomada em 1984 e alcançou elevada massa crítica, como riqueza da Guiné-Bissau.

E, retomando o parágrafo inicial, do feitiço da Guiné aos ex-combatentes, o comandante Alpoim Calvão passou de "terrível", na guerra de libertação, a dedicado amante da Guiné, tendo alcançado o estatuto de maior empreendedor país, criando centenas de postos de trabalho na cultura e fabricas de caju.

Vou aproveitar o espaço para bicar o comentário do Luís Graça  [, que citou  São Jerónimo, padre da Igreja do séc. IV: um cristão, depois de batizado, não precisa de tomar banho] (*).

S. Jerónimo, campeão do assédio e das tentações do sexo oposto, terá razão. Se o baptismo lava a alma para sempre e,  sendo o corpo o invólucro da dita, logo também ficará lavado.

Depois das suas comissões em Jerusalém, em contacto com as civilizações e culturas de judeus e muçulmanos, os cavaleiros medievais regressados criaram grandes choques sociológicos nos seus países - haviam assimilado a higiene deles, aparavam a barba, lavavam-se, tomavam banho e... perfumavam-se!

Os Templários viviam com tal carga de piolhos que o combate era um lenitivo - as estucadas e as lançadas amenizavam-lhes a coceira...

Cuidem-se dos IN - invisíveis mas sentidos. (***)
Ab

Manuel Luís Lomba
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20829: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (11): Viagem a Mansoa e a Bafatá, onde estamos a levar a água potável aos hospitais... Este ano, muita gente vai morrer, não da COVID-19, mas de fome: o caju ninguém o vem cá comprar...


(***) Último poste da série >  30 de março de 2020 > Guiné 61/74 – P20791: (Ex)citações (363): Os conflitos e a dedicação do povo (José Saúde)

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20255: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (5): edição, revista e aumentada, Letra C


Foto nº 1



Foto nº 2

Guiné > Região de Baftá > Bafatá > Vista aérea > Foto nº 1 > Em primeiro plano, o rio Geba e a piscina de Bafatá (que tinha o nome do administrador Guerra Ribeiro e foi inaugurada em 1962). Do lado esquerdo, o cais fluvial, uma zona ajardinada, a estátua do governador Oliveira Muzanty (1906-1909)... Ao centro, a rua principal da cidade. Vê-se, ao fundo, a estrada que conduz à saída para Nova Lamego (Gabu), à direita, e Bambadinca-Xime, à esquerda. 

Do lado direito,  em baixo, pode observar-se a traseira do mercado. Do lado esquerdo, no início da rua, um belo edifício, de arquitetura tipicamente colonial, pertencente à famosa Casa Gouveia, [, assalanado a amarelo, na foto nº 2], que representava os interesses da CUF - Companhia União Fabril, e que, no nosso tempo, era o principal bazar da cidade, tendo florescido com o patacão (dinheiro) da tropa. Por aqui, pela "princesa do Geba", Bafatá,  passaram milhares e milhares de homens ao longo da guerra,. que aqui faziam as suas compras, iam aos restaurantes e se divertiam... com as meninas do Bataclã.



Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. Continuação da publicação do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande (*), de A a Z, em construção, com o contributo de todos os amigos e camaradas da Guiné que se sentam aqui à sombra do nosso poilão. 

Entradas da letra C:


Ca bai - Não vou (crioulo)

Ca misti - Não quero (crioulo)

Ca pudi - Não posso (crioulo)

Cabaceira - Árvore e fruto do embondeiro (não confundir com Poilão) (crioulo)

Cabaço - Hímen, virgindade (crioulo)

Cabeça Grande - Bebedeira (crioulo)

Cabo Aux Enf - 1º Cabo Auxiliar de Enfermeiro

Cabo Enf - 1º Cabo Enfermeiro



Caco / Caco Baldé - Alcunha do Gen Spínola (mas também 'Homem Grande de Bissau', 'O Velho', 'O Bispo'; origem: de caco, monóculo; mais Baldé, apelido frequente entre os fulas); o historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa, com a devida vénia...) 

Cães Grandes - Oficiais superiores (gíria)

Chabéu – Dendê (fruto); prato típico da Guiné-Bissau, de peixe ou carne, feito com óleo de palma (etimologia: do crioulo "tche bém") 

Cal - Calibre 

Camarigo - Camarada e Amigo (por contracção); termo criado na Tabanca Grande 

Cambar - Atravessar um rio (crioulo) 

Candongas - Transporte colectivo privado, usado hoje no interior da Guiné Bissau 

Canhão s/r - Canhão Sem Recuo 

Canhota - A espingarda automática G3 

CAOP - Comando de Agrupamento Operacional 

CAOP1 - Comando de Agrupamento Operacional nº 1 

Cap - Capitão 


Cap Grad - Capitão graduado

Cap Art - Capitão de Artilharia

Cap Cav - Capitão de Cavalaria

Cap Eng - Capitão de Engenharia

Cap Inf - Capitão de Infantaria

Cap Mil - Capitão Miliciano 


Cap QEO - Capitão do Quadro Especial de Oficiais

Cap QP - Capitão do Quadro Permanente 


Cap SAM - Capitão do Serviço de Administração Militar

Capim - (i) Nome comum de planta gramínea, típica da savana arbustiva; (ii) sinónimo de dinheiro ou arame, bago,cacau,carcanhol, caroço, chapa, cheta,graveto, guita, grana, massa, milho, papel, pasta, pilim, prata (gíria)

Capitão-proveta - Cap Mil, oriundo do CPC (gíria) 


CAR - Condutor auto-rodas

Carecada - Castigo disciplinar, imposto pelo superior hierárquico, e que consistia no corte de cabelo à máquina zero (gíria) 

CART - Companhia de Artilharia 


Casa - Estabelecimento comercial; antes da guerra, havia "casas" por todo o território, pertencentes a metropolitanos, cabo-verdianos e sírio-libaneses; dedicava-se ao comércio por grosso (compra de produtos locais, virados para a exportação, nomeadamente oleaginosas)  e ao comércio a retalho.

Casa Gouveia - A principal empresa colonial da Guiné, fundada por António da Silva Gouveia em finais do Séc. XIX; republicano, Silva Gouveia será o representante da colónia na Câmara dos Deputados, na 1ª legislatura (1911-1915; em 1927, a Casa Gouveia é adquirida pela CUF.


Catota - Orgão sexual feminino; partir catota = ter relações sexuais (crioulo, calão) 

Cavalos duros - Feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus, sintomas de doença venérea (calão) 

Cavalos moles - Sintomas de sífilis, doença venérea (fendas no pénis) (calão)

CCAÇ - Companhia de Caçadores 

CCAÇ I - Companhia de Caçadores Indígenas 

CCAV - Companhia de Cavalaria 

CCM - Curso de Capitães Milicianos 

CCmds - Companhia de Comandos 


CCE - Companhia de Caçadores Especiais

CCP - Companhia de Caçadores Paraquedistas 

CCS - Companhia de Comando e Serviços 


CEMA - Chefe do Estado Maior da Armada


CEME - Chefe do Estado Maior do Exército 

CEMFA - Chefe do Estado Maior da Força Aérea

CEMGFA - Chefe do Estado Maior General da Forças Armadas 

Cento e vinte - Morteiro pesado, de 120 mm 

Cesca - Pistola de 7,65 mm, de origem checoslovaca (PAIGC)


CF - Companhia de Fuzileiros 

CFA - Franco da "Communauté Francophone Africaine", moeda actual da Guiné-Bissau (1 Euro = 655,597 CFA) 

CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (Marinha) 

Chão - Território étnico (vg, chão fula) 

CHASE - Em formação, atrás de (FAP) 


Checa - Militar novato, termo usado em Moçambique; equivalente a pira, periquito (Guiné), ou maçarico (Angola) 


Cheret - Chefia de Reconhecimento de Transmissões

Checklist - Livro de notas do piloto (FAP)

Chipmunk - Avião de treino, de dois lugares, monomotor, de origem canadiana (FAP)

Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa, parente ou vizinho (sobretudo entre os animistas) (crioulo)

Cibe - Palmeira; utilizam-se rachas de cibe como barrotes na construção; é resistente à formiga baga-baga (crioulo)



Cilinha - Nome de guerra de Cecília Supico Pinto (1921-2011), a fundador e líder histórica do MNF – Movimento Nacional Feminino 

[Foto à esquerda: Em visita a Nhala, © António Murta, 2015]


CIM - Centro de Instrução Militar

CIM Bolama - Centro de Instrução Militar de Bolama



CIM Contuboel - Centro de Instrução Militar de Contuboel

CIOE - Centro de Instrução de Operações Especiais


Cipaio - Elemento nativo da polícia

Circuncisão - Vd. Fanado. Havia/há a circuncisão masculina e a feminina. Vd. MGF. 

CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria (Tavira)

CM - Cabo de Manobra (Marinha) 

Cmd - Comando 

Cmdt - Comandante 

COE - Curso de Operações Especiais 

COM - Curso de Oficiais Milicianos 

Com-Chefe - Comando-Chefe 

Conversa giro - Fazer amor, ter relações sexuais (crioulo) 

COP - Comando Operacional 

COP7 - Comando Operacional 7 

Cor - Coronel 

Corpinho - Sutiã, soutien (crioulo) 

Corpo di bó - Como estás ? (crioulo)


Corta-capim - Aerograma, carta, bate-estrada (gíria) 

Costureirinha - Pistola metralhadora PPSH (PAIGC) (gíria)

CPC - Curso de Promoção a Capitão do Quadro Complementar 

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa 

CSM - Curso de Sargentos Milicianos 

CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné 

CUF - Companhia União Fabril (representada, na Guiné,  pela Casa Gouveia) 

Cupilão - Pilão, bairro popular de Bissau, atravessado pela estrada para o aeroporto; Cupelon, Cupilom, Cupelão... 


Cussas - Coisas (crioulo)

CVP - Cruz Vermelha Portugal
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sexta-feira, 1 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19543: Notas de leitura (1154): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Caminhamos para o último punhado de documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU.
Hoje passa-se em revista as decisões tomadas quanto às propriedades do BNU na Circunscrição de Fulacunda, mais de 1% do território guineense, todas elas encravadas num Quínara em efervescente guerra, a Casa Gouveia doou o que tinha para uma cooperativa agropecuária, a governação do BNU, no final de 1973, quis fazer uma cessão a 15 anos. A guerra não parecia abrandar o ritmo dos negócios, o Governo criou o Hotel Nuno Tristão em Bissau, constituíra-se a CICER - Companhia Industrial de Cervejas e Refrigerantes da Guiné e a Companhia de Pesca e Conservas da Guiné em fevereiro de 1974 já estava completamente paralisada, apareceu e desapareceu.
Veremos seguidamente um pouco da história da Sociedade Comercial Ultramarina, constituída em 19 de fevereiro de 1923 e que paulatinamente se transformara numa das jóias da coroa do Banco.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (75)

Beja Santos

Desde muito cedo que o BNU na Guiné passou a ser detentor de dezenas de milhares de hectares, tornou-se um banqueiro com assinaláveis propriedades rústicas, centradas na região de S. João, Tite, Fulacunda e Buba, mais de 1% do território. Num documento de indiscutível importância histórica, os apontamentos de António Júlio de Castro Fernandes, administrador do BNU e um dos próceres do Estado Novo, elaborados depois da viagem que fez à Guiné de março a abril de 1957, é levantada a questão e preconizada uma gama de soluções para a rentabilização destas propriedades, refere Castro Fernandes nas suas notas a natureza dos solos, fala na organização de seis blocos de propriedades, invoca mesmo um estudo elaborado pelo engenheiro José Teles Ribeiro.
Este, a propósito da valorização das propriedades do BNU, escreveu o seguinte:
“Os terrenos do BNU integram-se na designação de ‘Propriedades Perfeitas’ o que, segundo os termos do regulamento de concessões, garante ao proprietário o domínio directo, o domínio útil e a faculdade de venda; em contraste com a concessão por aforamento em que o foreiro tem exclusivo direito ao domínio útil, pertencendo o directo ao Estado e revertendo o terreno a este desde que não esteja devidamente aproveitado no prazo de tempo para tal afixado. Daqui resulta o alto interesse e valor das propriedades do BNU e a necessidade de os valorizar ao longo dos anos, mediante uma ocupação agrícola gradual em vez de a deixar ir desvalorizando pelo abandono das mesmas à acção devastadora do indígena.
Essa desvalorização terá de assentar necessariamente na ocupação das melhores parcelas dos terrenos por culturas de carácter arbóreo, não só por serem as que permitem uma maior extensão ocupada com o mínimo de investimentos, mas também porque, ao contrário das culturas arvenses de cultura anual, se traduzem por uma ocupação quase definitiva.

Com base no conhecimento das condições ecológicas locais, consideramos preferenciais as seguintes culturas:
Caju – árvore bastante rústica, podendo ser semeada directamente no terreno definitivo, é a que se traduz numa ocupação mais económica, dada a inexistência de granjeios.
Coleira – Com elevados rendimentos por árvore, poderia ser usada na ocupação dos terrenos mais ao Sul.
Coqueiro e palmeira – Viável nos terrenos baixos e húmidos, onde seja possível a obtenção de água superficial ou subterrânea.
Cafeeiro – Embora ainda não definitivamente estudado, parece admitir-se como provável uma boa adaptação da variedade ‘robusta’.”

Anteriormente, o BNU encarregara um perito alemão, E. W. Boesser, a quem Castro Fernandes também alude, a fazer um estudo sobre as possibilidades económicas destes terrenos, mormente na região de Quínara. O seu relatório debruça-se sobre a natureza dos terrenos e o que eles podem produzir.
O que escreve tem bom recorte literário, ele procura enquadrar e pôr em consonância os dados naturais de solo, clima e planta:
“A ciência que se ocupa com estes factores, com as suas interdependências e influências mútuas é a fitogeografia, no seu ramo da ecologia vegetal; e quando se respeitam propositadamente as condições especiais que se constituem e põem, quando as actividades e finalidades económicas do Homem terão de ser relacionadas com aqueles factores básicos da vida vegetal, com os quais querem ser postas em harmonia e produtiva efectuação recíproca, é de falar em fitogeografia aplicada.”

É muito expressivo em tudo quanto escreve, está muito atento aos “rios” e à sua importância nas explorações, pensa logo na cultura do arroz e nas formas de mangal de alto fuste e equaciona as quatro entidades naturais da paisagem, falando das áreas marinas dos rios comenta os solos lodosos que podem ser transformados em terras de arroz.

É técnico, e tudo quanto redige tem essa matriz, mas a sua escrita é muito elegante, falando de rios, mangais, lalas, população vegetal, a organização da selva, solo dos matos secundários, linhosas secundárias, rematando: “Um facto muito remarcável é que em todas essas variantes de vegetação, desde a espessa floresta secundária, de aspecto quase virgem, até à mais clara savana arborizada, se encontram sempre ora numerosamente ora de modo mais disperso, em todo o caso porém em aparente prosperidade, palmeiras de óleo”.

E tece um enquadramento entre essa paisagem e o habitat:
“Embutidas naquela paisagem, variada em si, de floresta, bosque e parque, acham-se as pequenas roças dos indígenas de data recente que no decurso de poucos anos já serão reconquistadas pela savana e pelo mato. Somente nas proximidades das aldeias ou tabancas e especialmente nas penínsulas dos arredores de S. João de Bolama observam-se extensas áreas de cultura, continuadamente exploradas e por isso quase completamente desnudadas”. E em jeito de conclusão dirá que aqueles terrenos colinosos oferecem condições para a vida vegetal, não haverá qualquer impedimento essencial à concentração desejável das produções.

Atenda-se que nas reuniões do Conselho Geral do BNU ocorridas em 10 e 16 de maio de 1957, Castro Fernandes lembrou estes terrenos, que em conversações havidas com a Sociedade Nacional de Sabões, esta chegara à conclusão não estar interessada em tal compra, comentou detalhadamente o documento elaborado em 1954 pelo fitogeógrafo E. W. Boesserg, referiu que a Casa Gouveia estava a fazer em Bolama uma exploração agrícola e que o próprio Governador fazia constantemente apelos ao desenvolvimento. Fez comentários ao punhado de notas que enviara a todos os membros do Conselho, enfatizou a situação cambial da Província, manteve a sua enorme expetativa no florescimento da Sociedade Comercial Ultramarina e por fim versou assuntos sociais do BNU na Guiné como as moradias para os empregados, beneficiações no edifício da sede e a compra de dois bungalows destinados aos empregados do Banco na Praia de Varela.

A agricultura associada ao comércio passou a ser uma tónica dominante da presença do BNU na Guiné, em qualquer relatório ela virá a ser tratada com realço.
Veja-se o relatório da visita de inspeção à Filial de Bissau em 13 de dezembro de 1968, estamos no auge da luta armada:
“A agricultura, outrora a base da economia da Guiné, não pode hoje ser considerada como elemento efectivo do desenvolvimento desta Província. A situação criada à região levou o agricultor a concentrar-se nos grandes centros comerciais ou em tabancas onde efectivamente encontra a protecção das Forças Armadas mas, em contrapartida, depara com solos fracos, sem grandes possibilidades.
E ao natural afrouxamento das culturas tradicionais – milho, mandioca, sorgo e arroz – também não será completamente alheio o facto de, por razões de defesa, haverem sido chamadas largas centenas de homens para as milícias e que deixaram assim de prestar o seu contributo braçal à agricultura.
Não se torna por isso difícil explicar a necessidade em que se viu nos últimos anos a Província de, tradicionalmente exportadora de arroz, embora de quantidades reduzidas, passar a importar grandes quantidades deste cereal para sustento das populações.
As indústrias existentes, reflexamente, têm também na actual conjuntura uma muito menor influência na economia da região se atendermos a que a matéria-prima – a mancarra, o coconote e o próprio arroz – escasseou pelos mesmos motivos apontados.
Se dantes dizíamos que a economia assentava basicamente na agricultura, hoje podemos afirmar que a Guiné encontra relativo equilíbrio orçamental no comércio importador, que passou a desfrutar de grande prosperidade – melhor diríamos, a viver uma fase de autêntica euforia – na medida em que se lhe proporciona um maior poder de compra trazido pela presença dos grandes efectivos militares, de 1963 a esta parte. Esta situação, como não podia deixar de ser, provoca um desnível muito acentuado na sua balança comercial”.

O BNU, tal como a Casa Gouveia, vão gradualmente perdendo esperanças de pôr a agricultura dos seus terrenos a funcionar. E tomar-se-ão decisões drásticas, em 1973, ambos os empórios oferecem aqueles prédios rústicos para cooperativas.

No Arquivo Histórico do BNU encontra-se uma informação que tem a data de 9 de julho de 1973 em que toda a questão é repertoriada: a posse daqueles cerca de 44 mil hectares na Circunscrição de Fulacunda, propriedade do BNU desde 1927, por efeito de execução hipotecária; a tentativa de criar uma sociedade em Bissau, à qual seriam vendidas as propriedades, para devida exploração agropecuária, que, afinal, não chegou a constituir-se; a ocupação e controlo das propriedades por parte dos terroristas; em situação análoga se encontravam na Guiné cerca de 15 mil hectares de terrenos pertencentes ao grupo CUF que vieram a ser doados à Província em abril de 1973, para serem explorados pelas populações, em regime comunitário; o General Spínola conversara com a administração do BNU tendo ficado verbalmente assente que o Banco faria a doação dos terrenos; o General Spínola enviara agora uma minuta de escritura onde se sugeria uma doação ao Governo da Província com uma importância destinada à instalação da cooperativa agropecuária, que teria a designação de Cooperativa do Quínara; quem assinava a informação dava o parecer que apenas se deveria doar os terrenos e não conceder qualquer subsídio ou, quando muito, conceder um subsídio simbólico de 100 ou 200 contos e se a Cooperativa precisasse de auxílio do Banco, estabelecer-se-ia um crédito.

Em 8 de fevereiro de 1974 temos uma última referência a estas propriedades, numa documentação avulsa onde também se fala da CICER, da Companhia de Pesca e Conservas da Guiné e do Hotel Nuno Tristão em Bissau. Quanto às propriedades de Fulacunda, escrevia-se que o Conselho do Banco considerara, em 10 de outubro de 1973, ser preferível fazer uma cedência gratuita do direito de uso pelo prazo de 15 anos, atribuindo um subsídio de 10 mil contos. Quanto à CICER, aqui temos a primeira referência a esta sociedade fundada em 21 de dezembro de 1971, tendo como principais acionistas a Sociedade Central de Cerveja, a Companhia União Fabril Portuense, a Cuca de Angola e a Fábrica de Cervejas Reunidas de Moçambique, Lda. Para satisfazer diversos encargos com a construção da sua fábrica em Bandim, a CICER solicitou, em julho de 1973, créditos, o apoio do BNU no final desse ano de 1973 somava 54 mil contos. A Companhia de Pesca e Conservas da Guiné, dizia-se já em fevereiro de 1974, era um empreendimento que não ultrapassara a fase de arranque, a sociedade estava paralisada e sem meios para funcionar, o crédito concedido pelo BNU era de cerca de 8 mil contos. Quanto ao Hotel Nuno Tristão, era um empreendimento que o Governo da Província chamara a si, o previsto hotel constaria de um edifício de três andares, com 53 quartos e 7 suites, cujo custo estava orçado em 26 mil contos. Para cobertura da parte financeira, o Governo solicitara ao BNU um empréstimo de 20 mil contos a liquidar em 15 anuidades. O BNU concedia o empréstimo a liquidar em 24 semestralidades.

Caminhamos para o final da documentação avulsa, temos ainda pela frente o grande dossiê da Sociedade Comercial Ultramarina, dela se falará já a seguir.

(Continua)

Navegação à vela nos rios. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Tocadores de “Mutaro”. Imagem extraída do livro Guiné – Alvorada do Império, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.

Farol do canal de Pedro Álvares, Bijagós. Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Notas do editor

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Último poste da série de 25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)