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segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20534: Notas de leitura (1253): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
A narrativa do Major Lobato melhora de edição para edição, estou consciente que este aprimoramento vem da reflexão a que ele tem procedido, o que dá um caráter mais intimista à história do seu cativeiro. E, no entanto, somos agarrados sem qualquer possibilidade de despegar a nossa atenção tão avassaladora, veja-se logo aquela aterragem que lhe salva a vida em condições excecionais:  

"O ponto de contacto com o solo confirma-me a justeza do planeamento, mas surge um imprevisto que do ar foi impossível de detectar - o terreno não é totalmente liso; sulcos profundos, espaçados metro a metro, cortam-no de lés a lés. É uma bolanha, terreno preparado para a cultura do arroz. Ao intradorso das asas do T-6 estão suspensas duas metralhadoras Browning, saliências que, ao entrar nos sulcos da bolanha, oferecem uma forte resistência ao deslizar do avião no solo. Atendendo a que este tipo de aterragem é feito com o trem recolhido, o entrar das metralhadoras num dos sulcos teve o efeito de arrancar instantaneamente as asas à aeronave. Fico sentado dentro de um charuto que rebola agora dentro de si mesmo, ao longo do terreno".

E assim vai começar o cativeiro, o mais longo cativeiro da guerra. Um relato superior, de um homem que soube superar a adversidade, que procurou fugir, mas que teve que esperar pela Operação Mar Verde para ser restituída a liberdade.

Um abraço do
Mário


Um relato que se vai aprimorando de edição para edição:
Liberdade ou Evasão, por António Lobato (1)


Beja Santos

António Lobato foi o mais longo cativeiro da guerra colonial. No prólogo das diferentes edições do seu livro, dá-nos uma síntese dos acontecimentos e da situação que viveu, nestes termos precisos:

“Em 1963, no céu português da Guiné, dois aviões da Força Aérea colidem na sequência de uma missão de ataque ao solo e após um deles ter sido atingido por projécteis inimigos.

Um dos aparelhos despenha-se em plena selva e o piloto morre; o outro, aterra de emergência numa bolanha e o piloto, depois de agredido à catanada pela população local é capturado por guerrilheiros do PAIGC e conduzido à vizinha República da Guiné Conacri. Aí, é-lhe facultado optar entre e deserção e a cadeia.

Optando pela fidelidade aos princípios do seu povo, é encarcerado na temível Maison de Force de Kindia, com o rótulo de criminoso de guerra.

Durante sete anos e meio é submetido a maus-tratos, subnutrição, isolamento e contínuas ameaças de morte pelos agentes de um governo pró-soviético chefiado por um dos maiores tiranos da África Ocidental – Sékou Touré.

Tenta três vezes a evasão, mas só na última consegue respirar, durante uma semana, o ar fresco da liberdade. Percorre cerca de noventa quilómetros em plena selva, atravessando a cadeia montanhosa do Futa Djalon em direção à Guiné Portuguesa. Ao sexto dia, é recapturado e reconduzido à prisão de onde partira.

Ao cabo de mês e meio de total isolamento, é transferido de prisão e libertado, tempos depois, durante a Operação Mar Verde, chefiada pelo Comandante Alpoim Calvão.

É por instâncias de familiares e amigos, por dever de cidadania e para comemorar os vinte e cinco anos do regresso à liberdade que hoje se propõe condensar em curtas páginas, não apenas os horrores, mas sobretudo algumas das vias possíveis de sobrevivência no meio hostil e o consequente enriquecimento da pessoa humana, quando, perante situações-limite, consegue vencer-se a si próprio”.

Não se irá aqui cotejar as inúmeras alterações introduzidas de edição para edição. O que se pretende relevar é a melhoria substancial da qualidade literária e a introdução de um processo intimista, em edição recente, António Lobato revela as estratégias de que se socorreu para que a tremenda solidão da clausura não o destruísse, pelo menos moral e psicologicamente.

Fala-nos da sua juventude transmontana em Paderne, como se alistou jovem na Força Aérea, depois temos o curso de pilotagem em S. Jacinto, a fase básica na Base Aérea n.º 1 em Sintra, em 22 de maio de 1958, um acidente quase que o ia matando, após dois meses de imobilização, e ao fim de cerca de oito meses de treino intensivo, ei-lo pronto para voar mais alto. Tem 21 anos e é-lhe confiada a tarefa e a responsabilidade de ensinar outros a voar. E, como ele escreve, em 1960 rebenta a guerra colonial.

 A Força Aérea não possui na Guiné qualquer tipo de estrutura. Em julho de 1961, em companhia de um outro camarada, seguirá para a Guiné em missão de soberania. Em 19 de setembro de 1961 descola pela primeira vez da pista de Bissalanca aos comandos de um T-6. Descreve com incisão e economia todos estes acontecimentos, casa-se, regressa à Guiné com a mulher e em 21 de maio de 1963 parte em missão para a Ilha do Como, um acidente obriga-o a uma aterragem de emergência, aterra no Tombali, é ferido e levado por guerrilheiros do PAIGC para território da Guiné Conacri.

Não é despiciendo observar como naquela região do Tombali há população afeta ao PAIGC e os guerrilheiros movimentam-se com certo à-vontade. A guerrilha tinha capturado um barco da Sociedade Comercial Ultramarina, de nome Bandim, transportará Lobato para o cativeiro. É bem tratado em Sansalé, tem feridas graves na cabeça e num braço. Seguem no Bandim até Boké. Segue-se um prolongado interrogatório. É interrogado, pretendem saber qual o regime político em Portugal, o que ele sabe da situação colonial, Lobato remete-se ao silêncio, depois de ter dado os seus dados militares, depois de uma longa viagem entra na Maison de Force de Kindia.  

“Entramos num hexágono aberto para o céu, com duas portas em cada um dos seis lados. Encaminham-me para a direita e indicam-me uma dessas portas, em ferro maciço, com o número 7 ao centro, encimada por uma grelha, feita em varão de diâmetro não inferior a 3 centímetros. Entro e a pesada porta fecha-se atrás de mim com aquele ruído sinistro das portas de todas as prisões do mundo. Dou quatro passos e chego ao fim do espaço de que posso dispor. Do lado direito, fazendo corpo com a parede e até dois terços de comprimento, ergue-se, até à altura de sessenta centímetros, um bloco maciço de cimento armado sobre o qual assenta um velho colchão de pano cheio de palha. Depreendo que é a minha cama. Não sei bem porquê, mas sinto um forte cansaço. Sinto-me deprimido como antes nunca me tinha sentido. Apetece-me chorar. Atiro-me para cima da palhaça e não consigo conter os soluços que me sufocam. Choro tudo o que tenho a chorar e adormeço no cume da infelicidade”.


Major António Lobato no programa Prós e Contras, em 2007, com a devida vénia

Segue-se a descrição do dia-a-dia, ele é o prisioneiro da cela n.º 7, falam-nos do currículo de Sékou Touré e como ele mantém o seu regime de terror; vamos saber como é a sua cela, a degradação a que vai ser sujeito, o início da sua luta para se manter corajoso. A condição física começa a dar sinais de ruína, como ele próprio comenta:  

“Porque não como uma boa parte das magras refeições, sinto que vou perdendo, lenta mas seguramente, toda a pujança da juventude; porque não me é fornecido qualquer tipo de medicamento, começa a ter fortes ataques de paludismo; porque a alimentação é pobre demais, a cárie dentária torna-se num flagelo; porque permaneço imóvel horas sem fim, começo a ter problemas de bexiga, a urinar pus e a sentir dores de barriga e cólicas insuportáveis. Os ataques de paludismo surgem a uma cadência semanal e manifestam-se por acessos de frio, que me obrigam a bater os dentes durante horas, seguidos de vagas de calor, que me deixam exausto e banhado em suor. As dores de dentes, por vezes são tão intensas que me perturbam a visão e provocam vómitos e tonturas próximas do desmaio. A degradação do meu estado físico, se, por um lado, é dolorosa e me perturba a mente, por outro, prende-me o pensamento ao corpo e não me deixa grandes hipóteses de fuga em busca de recordações bem mais amargas que as dores da carne”.


A última edição que conheço desta obra data de 2014, DG Edições, Linda-a-Velha.

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20523: Notas de leitura (1252): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (39) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20364: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - IX (e última) Parte: Nunca mais esquecerei aquele abraço, num lojeca em Bissau, antes do meu regresso a casa, daquele negro de Fulacunda, o Eusébio, suspeito de colaborar com o IN, e a quem poderei ter salvo a vida...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda >  22º Pel Art (Fulacunda, 1969/71) > "Eu e o Eusébio" [, um antigo milícia, suspeito de colaborar com o IN)

Foto (e legenda): © Domingos Robalo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >   "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Montagem de segurança > Um obus 14, rebocado por uma Berliet. Para i o desse e viesse...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1/ CAC 7, 1969/71) > IX (e última) parte 

[ Foto à esquerda: 
Domingos Robalo, 
ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda; vive em Almada]


Está esta prosa mais longa do que eu imaginaria que fosse. Não termino sem antes referir o seguinte: em visita ao aquartelamento, o Comandante Chefe, General Spínola, é recebido com a formatura em parada. Repara que na parada estão alguns militares aprumados, mas sem a “boina negra” na cabeça, pergunta:

- Quem são aqueles que não têm boina negra?  [,os "boinas negras" era a malta da CCAV 2482]


- São o pessoal da Artilharia! [, 22º Pel Art, comandado pelo fur mil art Domingos Robalo]

Mudou o olhar, aconchegando o seu monóculo, concentrou-se nas tropas e população que o “adorava”, e é bom não esquecer estas palavras nem ter medo de as pronunciar. Falou de uma “Guiné Melhor”, a ser construída pelos Guineenses e seriam eles a decidir o seu futuro….

Estou a escrever estes factos, muito resumidamente, 50 anos depois de eles terem acontecido. Só agora dou o verdadeiro valor à memória. Coisas que aparentemente estavam escondidas ou apagadas, aparecem como se ontem tivessem sido vividas.

Mas, o deslizar a pena é como se estivesse a mexer um caldeirão onde as letras aparecem já escritas e a memória as traga à tona. Ideias que já estavam esquecidas, ultrapassadas e limpas aparecem agora em turbilhão.

Quase quatro anos de vida militar, por muito sacrifício que se tenha passado, não tem sido maior do que passar 40 anos com memórias que não tivemos oportunidade de contar ou “carpir”, como contributo de um desabafo coletivo que todos os jovens adultos do meu tempo deveriam ter feito. 


Ter-se-iam, porventura, poupado muitos dos traumas que vamos tendo conhecimento. O 25 de abril de 1974 trouxe-nos uma mudança radical de vida e de pensamento, com a esperança de uma vida em paz e de convivência com os povos que foram por nós colonizados. Com o golpe de Estado deu-se a “independência” aos povos das Colónias (então Províncias Ultramarinas), mas aprisionando-se memórias com uma barreira imposta, e auto-imposta como capa de proteção por um período da vida de quase todos os jovens adultos daquele tempo.

Conforme estou escrevendo, vou avivando essa vivência, mas também não posso nem devo calar o afronto que se fez aos militares portugueses de origem africana que, após a independência, foram assassinados por grupos que se diziam de libertadores. Libertadores de quê? 


Mais grave considero ainda que as autoridades portuguesas tenham tido conhecimento da situação e à época fez-se um silêncio total.

Através de um tripulante do navio Rita Maria ou Alfredo da Silva [, já não recordo ao certo,] fui sabendo de situações que ocorriam na Guiné. Segredo, pedia-me ele; as informações eram muito confidenciais.

Na minha Unidade, em Bissau, foram-me atribuídas várias funções:

-Participar na instrução básica e de cabos na especialidade de artilharia a militares naturais da Província da Guiné;

-Participar nas principais ações do TO, sempre que a artilharia era requisitada;

-Participar nas regulações de tiro de artilharia e elaboração das respetivas “cartas de tiro”, nos vários pelotões espalhados pelo TO;

-Participar, junto do Comando da Unidade, na então designada “sala de informações e operações”...





Infografia da emboscada de 22/2/1971,no decurso da Acção Mabecos, que envolveu forças do BCAV 2922, numa operação de escolta e segurança a forças de artilharia no trajecto Amedalai - Sagoiá - Rio Sagoiá - Rio Cimangru [... e não Camongrou] - Piche 4E545 - Rio Nhamprubana. As baixas das NT foram todas da CART 3332 (**).


Participei na Acção “Mabecos”, na terça-feira de carnaval no ano de 1971 [, em 22 de fevereiro de 1971, três meses depois da Op Mar Verde,invasão de Conacri]. 

Operação complicada, malo rganizada / planeada, com três mortos  e um soldado apanhado à mão que apenas foi libertado no pós-25 de abril de 1974 [, º 1º cabo Duarte Dias Fortunato, foto à direita]: nesta operação, debaixo de fogo na emboscada que sofremos [, no subsetor de Piche, perto da fronteira,quando íamos flagelar Foulamory, na região de Boké] eu próprio tomei a iniciativa de “ordenar”, ao pelotão [, Pel Art,]  de Sare Bacar, para desengatar um obus 14,0 cm e responder ao fogo IN, que estava a ser intenso.



Guiné > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > 1/50 mil > Detalhes > Percurso Piche > Amedalai > Sagoia > R Sagoia > R Cimongru > R Nhamprubana. A sudeste dwe Piche ficava a base do PAIGC, Foulamory,na região de Boké, ao alcance, a partir da fronteira, da artilharia portuguesa (peça 11.4 e obus 14).

Infografia: Blogue Luís Graça % Camaradas da Guiné (2019)



Eu estava sob as ordens do Capitão Osório, homem da artilharia, já falecido. No relatório desta operação está referido a forma elevada como o pessoal da Artilharia participou na resposta ao fogo IN.

O tempo vai correndo inexoravelmente. Estamos em abril de 1971, já com a comissão quase a chegar ao fim. Por vezes vagueei por Bissau na compra de alguns objetos para fazer embarcar num navio com destino a Lisboa.

Num desses dias, acompanhado pelo Furriel Franco, vagueávamos pelas ruelas transversais à avenida onde se situava o hospital civil [, hoje Hospital Nacional Simão Mendes]. Entrámos numa pequena loja, com uma montra muito pequena, onde estavam expostas uma camisas azuis com um monograma interessante.

Entro na loja,  secundado pelo Furriel Franco, e dirijo-me ao balcão onde estão dois “negros”.  De repente sinto-me abraçado por um deles e o peito a apertar. Não percebia o que se passava, mas a primeira impressão era o de estar a ser alvo de agressão.

Passado o sufoco e o outro negro olhando impávido e sereno para mim, recupero o fôlego e sinto que o abraço forte afinal tinha aspeto fraternal. Mas se aquilo é um abraço...

Olho para a cara do “negro” e não podia acreditar... Quem era aquele negro que assim me abraçava? Nem mais: 


- O Eusébio de Fulacunda!!!... (*)

Aquele “negro” reconhecendo-me, estava com aquele abraço a agradecer o pouco que eu, uns meses antes, lhe tinha feito naquele final do mês de setembro de 1969.

Para mim, tinha sido pouco o que lhe fizera. Mas para ele terá representado o reconhecimento de que era um ser humano como qualquer outro. Daí, aquele abraço que eu senti ter a força do Universo. Não é a cor da pele que diferencia os homens.

Onde quer que estejas, Eusébio, nunca me esquecerei de ti nem daquele abraço.

Para finalizar o meu texto. Não posso nem devo esquecer os mortos e os estropiados que as guerras sempre provocam. Elas podem ter um início, mas nunca sabemos quando terminam. Será que a nossa já terminou?

Domingos Robalo

Furriel de Artilharia, 

nº 192618/68

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de novembro de 2019 
Guiné 61/74 - P20313: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VIII: Fulacunda, usos e costumes... Lembro-me pelo menos de uma menina que foi a Bissau ao "fanado", e não voltou... Não havia, na época, preocupação de maior com a Mutilação Genital Feminina, por parte das autoridades. civis e militares


Vd. postes anteriores:

25 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20274: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VII: Em Fulacunda, também havia milagres...

20 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20260: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte VI: Eusébio, um preso que eu mandei tratar com dignidade e que me vai ficar reconhecido

12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20232: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte V: Rumo a Fulacunda, com o 22º Pel Art, passando por Bolama, e com batismo de fogo

9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20222: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte IV: Depois de 4 meses a dar formação de artilharia de campanha, a graduados de pelotões de morteiro, sou colocado em Fulacunda, a comandar o 22º Pel Art

5 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20206: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte III: recebido em Bissau, pelos camaradas do BAC 1, de braços abertos, na noite de 12/5/1969

3 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1

26 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20178: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 /GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte I: Apurado para todo o serviço militar


(**) Vd.poste de  23 de fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3926: Efemérides (17): Piche, 22 de Fevereiro de 1971 ou... Carnaval, nunca mais! (Helder Sousa)

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20030: (In)citações (138): A minha Guerra da Guiné: a Leste, algo de novo... (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) datada de 31 de Julho de 2019:

A propósito

A minha Guerra da Guiné: a Leste, algo de novo… 

Ambos objectivados para nos matarmos uns aos outros, o canhão russo s/r 82B-10 e a sua granada, do PAIGC, eram uma espécie de trambolhos, sem estética, ao passo que o nosso canhão s/r NATO M40 era elegante e a sua granada a beldade do nosso paiol. O deles era de tracção humana e matava-nos, porque o alombavam para qualquer sítio; o nosso, era de tracção automotora, e não matava, porque “era malandro, não ia para o mato”.

Em Buruntuma tivemos por companhia um canhão s/r M40-10,6, a mãe das Armas Pesadas da nossa Infantaria, a mais viril das armas de todos os exércitos, antes e depois da “igualdade do género”, montado na longitudinal à carroçaria dum jipe Willis, que nos exigiu 4 espaldões elevados, um em cada ponto cardeal daquela tabanca, construções de alvenaria granítica, projectadas e dirigidas pelo Furriel Manuel Simas, material raro na Guiné Portuguesa, cuja maior parte ousamos “expropriar” à Guiné-Conacri, com o camião Renault requisitado à Casa Pinheiro, com a matrícula GN sobreposta à matrícula G, circulando impunemente pela estrada asfaltada da Guiné-Conacri, a transportá-la duma pedreira abandonada por colonos franceses.

O CSR M40 10,6 cm colocado num Jipe. Buruntuma 1973
 Foto: Com a devida vénia ao camarada Luís Dias - HISTÓRIAS DA GUINÉ 71-74 - A C.CAC 3491-DULOMBI

A sua dotação orgânica era apenas de 2 granadas, uma economia impositiva, não pela beleza estética do seu conjunto, mas porque custava 8.000$00 cada, preço FOB e pagos em dólares, – o soldo mensal de 1 capitão ou de 2 alferes, ou o vencimento de 3 furriéis ou o pré de 80 soldados. O montante da “Folha de férias” dos 150 militares da nossa Companhia equivalia ao custo das 2 granadas!

Pelas suas 4 “casas rústicas”, pelo custo das suas granadas, pela independência do seu paiol e pela sua exclusividade ao nosso capitão, quando ele passeava o canhão pela tabanca (a treinar e a impressionar a população), comentava-se na gíria de caserna “o nosso comandante anda a passear as duas “p… caras”.
O canhão nunca foi disparado, as 2 granadas eram reservadas às duas Panhard dos nossos vizinhos guineanos. No inventário da rendição, o seu “mapa de carga” registava a existência de 2, mas deixamos 18 de herança à CCaç 1418, que nos foi render em Maio de 1966! O milagre da multiplicação foi assim. O SINTREP ou lá o que era que relatava os ataques, requisitava a sua reposição, tudo nos conformes, – e lá vinham mais 2 granadas…

A fronteira internacional de Buruntuma tinha sinalética, uma placa de betão do legado do nosso “antepassado” Jorge Ferreira (e virtuoso fotógrafo de “bajudas”), e, do lado de lá, em Kandica, bem pertinho, à distância de apenas de 1,5km, estava aquartelada uma unidade de pára-quedistas da Rep. da Guiné-Conacri, comandava-a um jovem e comunicativo tenente. As patrulhas cruzaram-se por duas ou três vezes, com o pequeno rio Piai em separador, trocávamos continências vistosas, uns amistosos e uníssomos “bonjour!”, dávamos-lhes cigarros “Português Suave” e cerveja Sagres, que eles retribuíam com abacaxis, evidenciando privações.
As patrulhas e o seu tenente deixaram de ser vistas, constava que, por denúncia do PAIGC, o tenebroso Skou Touré mandara-o prender e fuzilar, notícia coincidente com o seu decreto dele a criar uma faixa com o fundo de 15Km, em terra de ninguém, para a maior manobra do PAIGC, o nosso Estado-Maior deu-nos o alerta e fez chegar à Companhia fotos do tal canhão s/r russo 82B-10, rodeado de guerrilheiros, que não chegamos nem a ver nem a experimentar, um prenúncio do seu uso de armamento pesado, o fluxo de cidadãos guineanos entrou em decadência e Buruntuma ficou isolada – uma ilha rodeada de IN por todos os lados. Evidências da parceria dos dois líderes e da sua determinação em nos infernizar a vida à mão armada. E nós não deixamos de proceder em conformidade…

Canhão s/r russo 82B-10
 Foto: Carlos Vinhal

No quadro das minhas funções de instrução e comando de milícias e de Apsico (Acção Psicossocial) junto da população, coube-me fazer o levantamento e a estatística do gado vacum, roubado pelo PAIGC às tabancas da quadrícula de Buruntuma, e, baseando-me nas quantidades reclamadas nas queixas das populações, refugiadas desde Cundagá, a Ajango e até Catabá, o roubo de gado na área da nossa quadrícula aproximava-se das 10 000 cabeças! Naquele tempo, na sua Frente Leste, o PAIGC era bem-sucedido como ladrão de gado e mal sucedido na subversão e pior como “libertador”, o que provocou a perda da vida a dois dos seus comandantes – primeiro Vitorino Costa e, depois, Domingos Ramos.
Então foi organizado e treinado à moda dos “comandos” um pequeno grupo de voluntários, que passou à acção do outro lado com a táctica do olho por olho e dente por dente, sob o disfarce de “bandido”, munido de armamento capturado, com os brancos a enfarruscar o rosto com fuligem dos caldeirões do rancho.

Na “operação vaca” não se recapturava manadas, apenas 1 ou 2 cabeças, menos por razões de manobra e logísticas, mas para encobrir outra: a quantidade implicava a restituição aos lesados, que, depois, não as vendiam – por serem o símbolo da importância social de cada um, em relação aos “homens grandes”, e a moeda para a “compra de bajuda” (moça), em relação aos “djubis” (os moços). A malta da “patrulha da vaca” amealhava bons “pesos”, mas, enquanto não foi extinta (o seu efectivo ameaçado com uma “porrada”), a carne de “vaca de bandido” não faltou ao passadio da tropa, nem à “vianda” das milícias e das mais de 5 000 almas residentes, naturais e refugiados, nessa grande tabanca de fulas e mandingas, um triângulo incrustado e linha da fronteira com a Guiné-Conacri.
No contexto da sua perseguição ao fulas guineanos, prolongamento dos da Guiné Portuguesa e seus oposicionistas, a “germanderie” de Skou Touré matava, mas, havia sempre alguns que corriam os riscos, circulando nessa terra de ninguém para aceder às lojas e ao serviço de saúde da tropa portuguesa, em socorro da sua penúria, enquanto a acção da nossa “patrulha das vacas” criava a conjuntura do açular dos cães da animosidade entre guinéus e os “bandido” bissau-guineenses. Nunca vi gente tão miserável e esfarrapada como esses cidadãos guineanos, que arriscavam a vida para chegar a Buruntuma, em demanda dos bens de primeira necessidade.
A “patrulha da vaca” manteve-se activa, até ao dia em que, já próximo da nossa rendição, se deixou seduzir pela mais formosa e melhor nutrida vitela, jamais vista nos nossos encontros com manadas de vacas a pastar em território inimigo, - uma cilada para os apanhar à mão; safaram-se todos e incólumes, graças ao “calo” de combatentes e, sobretudo, ao desembaraço do nosso cabo da milícia Mamadu Jaló, aliviando-se do incómodo da pesada fita de munições com rajadas da sua MG 42, rompeu o cerco e cortou ao meio os dois primeiros pára-quedistas IN que surgira na “exploração do sucesso”.
Em quase 2 anos da vida de combates pelos quatro quadrantes da Guiné, nunca tínhamos feito uma retirada tão acelerada, esta também com a cobertura da sorte: reencontramos a vitela da nossa desgraça no nosso caminho, escoltámo-la até Buruntuma, como troféu do nosso contentamento, mas o vagomestre só pagou “um preço justo”, depois de ameaçarmos a sua libertação… Mas a coisa ficou preta!

Os dois grupos de milícias, de 30 elementos cada, eram comandados por mim e pelo saudoso camarada e amigo Manuel Simas – deixou-nos há pouco, que Deus o tenha –, continuamos a “frequentar” o outro lado em reconhecimentos e, pela detecção de alterações das rotinas, no quartel de Kandica, recebemos a incumbência, a minha da segurança e apoio, a dele, de medir distâncias, de o mapear e de mapear suas acessibilidades.
Éramos apenas 4, iniciamos a nossa missão ao início da tarde, progredindo pelo lado da tabanca queimada e desabitada de Catabá, pela calmaria, em que toda a gente se recolhia, o calor a rondar os 50 graus e a humidade do ar os 98%, passo a passo, ou melhor: a rastejar. Enquanto evoco esta memória, sinto os mesmos calafrios, já velhos de mais de 50 anos, dos minutos que pareceram eternidade, em que estive colado ao chão, escondido na grande plantação de abacaxis, do outro lado da estrada que servia a sua porta de armas, a uns 30 metros das duas corpulentas sentinelas, a ver-lhes as botas de cano alto até ao joelho, a boina vermelha no “catulo” e a pistola-metralhadora a tiracolo.
Emitido pelo nosso rádio o sinal convencionado, a malta dum dos nossos morteiros de 81 mandou uma morteirada de reconhecimento, a granada explodiu longe e muito ao largo, soou a cornetada do “à rasca”, aquele quartel entrou em desassossego, as sentinelas desapareceram e a porta de armas fechou-se.

No dia seguinte, o Manuel Simas, que virá a notabilizar-se nos Estados Unidos, nas esculturas de ossos de baleias e de cachalotes e, depois, como docente na Escola Secundária de Ponta Delgada, entregou ao capitão a planta das acessibilidades e do aquartelamento, devidamente assinados o posto de transmissões, a caserna, o paiol, o parque das 2 Panhard, etc. e os azimutes e as estimativas da distância de tiro, pelos quais ele determinou as coordenadas de tiro dos 3 morteiros de 81 e desse canhão s/r M40.

Ao corrente da iminência da nossa rendição, os IN´s da outra banda tornaram-se recorrentes em nos fazer chegar as ameaças que nem todos estaríamos vivos à data da partida para Lisboa, pela sua vingança do combate e da captura daquela sedutora vitela.
Mas o Capitão Fernando Lacerda, um brioso oficial da Cavalaria clássica e estereótipo da valentia em combate – nunca se lançara ao solo, ironizando que “não queria sujar a farda”, estava à altura das circunstâncias e obviou-nos o problema.
Por analogia com o ardil que o oficial de Cavalaria Marechal Rommel montara no deserto egípcio de Al Amim, e que confundiu o Marechal Montgomery, ele mutilou os camiões, unimogs e jipes das suas panelas e tubos de escape, mandou-os circular em alta aceleração pelo perímetro de Buruntuma, da alvorada à noite, o seu escape livre a roncar em altos decibéis, para IN ouvir, da alvorada à noite, postou exploradores das milícias de vigilância ao troço crítico, na estrada do Gabú, entre Buruntuma e Ajango, que o mantiveram a par das emboscadas montadas pelo IN, e este, de desmobilização em desmobilização, acabou por desistir, com essa roncadura activa, prolongada até ao dia da nossa rendição.

As viaturas da CCav 703 tinham iniciado a sua roncadura pela alvorada, os cães, que, atraídos pelo cheiro do rancho, orbitavam o estacionamento, organizaram-se em matilhas e faziam o seu coro a ladrar, a CCaç 1418 chegou de Nova Lamego em nossa rendição, o pessoal foi rápido na desestiva da deles e na estiva da nossa tralha e a CCav 703 fez-se à estrada do Gabu e foi passar uma curta nomadização em Fá Mandinga, que não foi de estágio, mas problemática, a maior estação agrária da Guiné, ora área em subversão, praticamente ao abandono, que havia sido a menina dos olhos de Amílcar Cabral, enquanto engenheiro agrónomo do governo provincial, cujas instalações virão a ser reconvertidas em aboletamento da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, a menina dos olhos do General António de Spínola e viveiro de alguns heróis nacionais, estou a lembrar-me do João Bacar Jaló e do Marcelino da Mata.
Ao aperceberem-se do logro, os IN´s da outra banda juntaram-se, montaram um cerco em meia-lua a Buruntuma e lançaram um denso ataque, com a base em Kandica, e o seu novo comandante, Capitão Gonçalves (?), na posse dos nossos dados, enquanto se defendia em proximidade, mandou os morteiros de 81 e aquele canhão s/r vomitar granadas e terão sido as nossas 18 “p… caras” que calaram o ataque. O nosso levantamento e a competência do Furriel Manuel Simas tiveram consequências: Kandica ficou arrasada, as suas acessibilidades revolvidas até às entranhas, as baixas humanas terão sido numerosas, e o primeiro momento da internacionalização da Guerra da Guiné havia acontecido.
Então o governo de Conacri e o PAIGC objectivaram todo o seu potencial bélico pela destruição e ocupação de Buruntuma, obrigando o Comando-Chefe General Arnaldo Schulz a investir as suas reservas de Artilharia, de tropa normal, de comandos, fuzileiros, pára-quedistas na defesa dessa quadrícula, a oportunidade para os “guerreiros do ar” de Bissalanca demonstrar a sua perícia no lançamento das suas “bilhas”.

A Guerra da Guiné privou-nos “dos anos o doce fruto” da vida, mas partimos e chegamos a Lisboa, mais mortos que vivos, macilentos, mirrados, só pele e osso e exaustos, e “Buruntuma um dia será grande”, citando o Jorge Ferreira.

Outra conclusão e com penumbras. Se, em 1965, Lisboa nos impusera um apertado racionamento ao gasto das granadas desse nosso canhão s/r, pelo seu elevado custo, quando os capitães da guarnição da Guiné iniciaram a sua reconversão em conjurados, em 1973, com a criação do MOCAP (Movimento dos Capitães), os conselheiros militares da União Soviética junto do PAIGC propuseram a Moscovo que reconsiderasse os fluxos do fornecimento gratuito das granadas do canhão s/r russo e do outro armamento pesado, pela sua alta taxa de desperdícios e por a sua relação custos/benefícios se oferecer muito negativa.

Indício de prova e um recado à nossa História Contemporânea: se, em 1973, a coisa não estava muito branca para os capitães da Guiné, impelindo-os a essa “insubordinação castrense descontrolada”, estava a ficar muito preta para o PAIGC, impelindo-o a criar a crise dos “três G´s” – eram 3 G´s, um P (Pirada) e um B (Buruntuma). Como falhou estes dois, o resultado da primeira ronda foi: PAIGC (Guileje) 1 – FA portuguesas 4, mas o resultado final foi: PAIGC 1, de derrota em derrota - FA portuguesas, 0, pela vitória do MFA.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20003: (In)citações (137): Obrigado, amigos/as e camaradas, pelos votos de parabéns que me deram ao km 73 da minha "picada da vida" (Jaime Silva)

domingo, 25 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19232: PAIGC - Quem foi quem (11): Lourenço Gomes, era uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis ... A seguir à independência era um homem temido, ligado ao aparelho de segurança do Estado (Cherno Baldé, Bissau)


Foto nº 1 > República da Guiné > Conacri > c. 1960  > Dirigentes do PAIGC, junto ao Secretariado Geral: da esquerda para a direita, (i) Osvaldo Vieira, (ii) Constantino Teixeira, (iii) Lourenço Gomes e (iv) Armando Ramos.  

Recorde-se que o "estado-maior" do PAIGC instalara-se em Conacri em maio de 1960. A foto deve ser do ano de 1960, já que em janeiro de 1961 Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira faziam parte do grupo de futuros históricos comandantes, mandados por Amílcar Cabral para a  Academia Militar de Nanquim, na China, para receber treino político-militar. Uns meses antes, em agosto de 1960. Amílcar Cabral em pessoa tinha-se deslocado a Pequim para negociar o treino dos quadros do PAIGC na Academia Militar de Nanquim.  No grupo de quadros do PAIGC que vão nesse ano para a China incluem-se, além dos supracitados Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira, os nome de João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Vitorino Costa ], irmão de Manuel Saturnino],  Domingos Ramos [, irmão de Pedro Ramos e amigo do nosso Mário Dias], Rui Djassi, e Hilário Gomes.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05222.000.084 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)


1. Comentário do nosso editor LG:

Não era um tipo qualquer, este Lourenço Gomes (*)... Escrevia bem português, tinha estudos, devia ser natural de Bissau, talvez papel,  e, no início da guerra, pertencia ao "Comité Executivo da Luta"... Parece ser, pelo que se lê,  algo "enrascado", "queixinhas" e "timorato"... mas sensível aos gravíssimos problemas de assistência médico e hospitalar dos guerrilheiros e população evacuados para os hospitais no exterior (Senegal e Guiné-Conacri)... Quantos, centenas e centenas, não terão morrido por falta de medicamentos e outro material médico-hospitalar básico?...

Vamos encontrá-lo, em escassas fotos do Arquivo Amílcar Cabral, muito jovem (c. 1969) ao lado de outros dirigentes do PAIGC, e mais tarde (entre 1963 e 1973) como membro do "Comité Executivo da Luta" (Foto nº 2).


Foto nº 2 >República da Guiné > Conacri > c. 1963-1973  >  Reunião de responsáveis do PAIGC [Comité Executivo da Luta].  Da esquerda para a direita: (i) Lourenço Gomes, (ii) Honório Chantre, (iii) Victor Saúde Maria, (iv) Abílio Duarte,  (v) Pedro Pires, (vi) Luís Cabral e (vii) Aristides Pereira.


Foto nº 2 A > República da Guiné > Conacri > c. 1963-1973  >  Reunião de responsáveis do PAIGC [Comité Executivo da Luta].  Detalhe: Da esquerda para a direita: (i) Lourenço Gomes, (ii) Honório Chantre, e (iii) Victor Saúde Maria.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05247.000.074 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)

Tivemos, entre as NT,  muitos erros de "casting", muitos dos nossos comandantes (e nomeadamente oficiais superiores, comandantes de batalhão) não tinham mesmo jeito para a guerra... Foram só preparados para a tropa e as suas burocracias... O busílis é que, quando há uma guerra, e é preciso saber liderar (, que não é a mesma coisa que chefiar...). E liderar é literalmente "ir à frente, mostrando o caminho"...

O PAIGC tinha, naturalmente, o mesmo problema. Este desabafo do Lourenço Gomes é mesmo de um homem, vulgar, como qualquer um de nós, à beira de um ataque de nervos... Este Lourenço Gomes não tinha fibra de revolucionário... Até onde é que ele chegou ?... Talvez o Cherno Baldé nos possa dar uma dica...

(...) "Estou sujeito a ser preso dum momento para o outro, pois o proprietário da Farmácia, constantemente me manda cobrar.

"A minha situação é semelhante a de um náufrago, que já cansado de nadar e com as forças esgotadas se deixa morrer. Assim também, não será de admirar e até será muito possível o ter de qualquer dia abandonar o meu lugar, sem esperar ordens superiores, não significando isso falta de respeito ou disciplina, mas sim, só saturação e canseira até ao esgotamento." (...)

Era bom que os nossos médicos e enfermeiros pudessem comentar... Andam muito arredios do nosso blogue...


2. Comentário do Cherno Baldé, nosso colaborador permanente:

Caro amigo Luís,

O Lourenço Gomes (suponho que é o mesmo), não é tão fraquinho como parece nesta imagem de missivas de 1965. Era de muita confiança e devia ser uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis. 

No período pós-independência, o Lourenço foi o primeiro responsável do Partido a trabalhar com as chefias militares do exército português com vista a entrega das instalações e quartéis de Bissau. Deve haver muitas referências sobre ele nos contactos havidos com a parte portuguesa e, sobretudo a resolução da situação dos Comandos e soldados Guineenses que combateram do lado português.

Esteve depois ligado aos serviços da segurança do Estado, mesmo depois do golpe militar de 14 de Novembro de 1980 [, liderado por 'Nino' Vieira contra Luís Cabral]. Deve ter morrido de doença numa idade avançada, em finais dos anos 90 ou inícios de 2000. Era muito temido, como todos os da segurança num país de ditadura pseudo-revolucionária. (**)

Com um abraço amigo,
Cherno AB
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de novembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19224: (D)o outro lado do combate (38): Carta de Lourenço Gomes, datada de Samine, 3 de março de 1965, dirigida a Luís Cabral, expondo a dramática situação da farmácia do PAIGC (Jorge Araújo)

3 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6102: PAIGC - Quem foi quem (10): Abdú Indjai, pai da Cadi, guerrilheiro desde 1963, perdeu uma perna lá para os lados de Quebo, Saltinho e Contabane (Pepito / Luís Graça)


4 de junho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18086: (D)o outro lado do combate (16): razões e circunstâncias da prisão e condenação do arcebispo católico de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), na sequência da Op Mar Verde: de "santo" a "diabo", aos olhos do "guia iluminado", Sékou Touré: o testemunho do mais célebre prisioneiro político do sinistro campo de Boiro (excerto com tradução de Jorge Araújo)


Fotografia prisional: Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011), antigo arcebispo de Conacri (ao tempo da Op Mar Verde, 22/11/1970): o mais célebre prisioneiro do campo de Boiro onde passou 8 anos e meio ... Autor de "Noviciat d'un évêque : huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré". Paris: Fayard, 1987. 332 p. + ill.



Guiné-Conacri > Conacri > A antiga catedral do arcebispo católico Raymond-Marie Tchidimbo: a pedido do Vaticano, este homem, que simpatizava com a "causa nacionalista" do PAIGC, intercedeu, junto de Amílcar Cabral, em 16/9/1970, com vista a obter notícias do nosso camarada Geraldino Marques Contino, aprisionado pelo PAIGC em 3/2/1968.  (*).


O presidente Sékou Touré assiste à consagração de Raymond-Marie Tchidimbo como arcebispo de Conacri, em 31 de março de 1962.

Preso em 24 de dezembro de 1970, torturado, julgado à revelia, condenado a prisão perpétua um mês depois, em 23 de janeiro de 1971, foi libertado do sinistro campo de Boiro em 7 de agosto de 1970, e  expulso do seu país.  Vai para Roma,  em 13 de agosto de 1979 resigna como arcebispo de Conacri. É feito cardeal em 1992, pelo Papa João Paulo II. Quando jovem padre missionário (, ordenado em 1951), chegou a ser  amigo (e até admirador) de Sekou Touré (1920-1984). Nascido em Conacri, morre em França, em 2011.

Fonte: página Campo Boiro > Memorial > Bibliothèque  (com a devida vénia)




1. Comentário do nosso colaborador permanente, Jorge Araújo, ao poste P10076 (*);
Camaradas,

Na sequência dos comentários produzidos no final da Parte I [P18027] (**)  prometi dar-vos conta, após a publicação desta segunda parte, sobre o porquê da prisão do Arcebispo de Conacri, verificada um mês depois da «Operação Mar Verde», facto que consideramos de relevante valor historiográfico no contexto da guerra, pois essa operação  acabou por influenciar as novas formas de acção e o sentido de cada uma delas ao longo dos tempos que se seguiram, traduzido no reforço da aliança entre Sékou Touré e Amílcar Cabral.

Com efeito, a justificação para o seu cativeiro foi retirada [e traduzida] do livro «Noviciat d’un évêque: huit ans et huit mois de captivité sous Sékou Touré» [«Noviciado de um bispo: oito anos e oito meses de cativeiro sob o regime de Sékou Touré»], Paris: Fayard, 1987. 332 p., obra escrita em francês da autoria de Raymond-Marie Tchidimbo [1920-08-15/2011-03-26] – o prisioneiro.

O texto que seguidamente se apresenta, com tradução da nossa responsabilidade, serve apenas para enquadrar a problemática acima.

TRADUÇÃO

Porque fui preso?

Após a minha libertação em [7 de Agosto de] 1979 [uma semana antes de completar cinquenta e nove anos], deram-me a oportunidade de realizar diversas conferências sobre a experiência de cativeiro na presença de audiências interessadas. Em cada uma delas, punham-me a mesma questão: «porque foi preso?».

Mas em cada uma também, perante esses públicos atónitos, eu respondia, em primeiro lugar, que era uma pergunta que nunca formulei em cativeiro. Porquê? Porque, simplesmente, uma resposta – e a única verdadeira – já havia sido dada nos anos 30, por aquele que me escolheu dois mil anos depois para servir na sua presença. […]

O que nos diferenciou então, entre os meus companheiros prisioneiros e eu, era que eu sabia porque me encontrei com eles nas prisões. Eu sabia-o, inicialmente, no dia da minha ordenação sacerdotal. Eu sabia disso mais precisamente após a expulsão de todos os missionários em 1967; um acto injusto que eu não tinha entendido/ligado e que valeu a irritação do «guia iluminado» da Guiné; como os seus “griots” [indivíduos com a responsabilidade de preservar as tradições, transmitindo histórias, factos históricos e conhecimentos do seu povo] e cortesãos gostavam de chamá-lo.

Eu sabia exactamente, desde 2 de Dezembro de 1970, que seria preso no fim do mês, se não deixasse o território da Guiné antes dessa data fixada por Sékou Touré [1922-1984], ele mesmo.

Dois médicos – um amigo, antigo ministro, e um primo – foram informados da minha prisão por pessoas muito próximas de Sékou Touré. Imediatamente, eles fizeram questão de me informar por prevenção, para evitar qualquer risco. Porque todos sabiam em Conacri que, durante vários meses, os arredores da chancelaria e a residência do arcebispo de Conacri estavam sob vigilância monitorada, e ainda mais, depois de 22 de Novembro de 1970, data do desembarque de opositores guineenses residentes no exterior.

Fui informado por um dos meus primos, ao qual, para além disso, lhe digo que informaria imediatamente o Papa Paulo VI; mas que deixaria a Guiné apenas por ordem expressa deste último. Agir de outra forma seria da maior traição: todo o bispo teve que jurar na véspera da sua ordenação episcopal permanecer fiel à sua posição, seja o que for que aconteça. O Papa Paulo VI foi informado por mim em 2 de Dezembro de 1970. E é a alma em paz que aguardava a visita do Senhor.


Em 23 de Dezembro de 1970, ao meio-dia, fui preso em casa, com a dupla acusação de colaboração com a oposição externa e delito de opinião. Fui levado para o campo militar de Alpha Yaya [Diallo], situado [nos arredores do aeroporto internacional] a dez quilómetros de Conacri. E aí, depois de confirmar a minha identidade, fui algemado, e fico trancado num quarto semi-escuro. As «férias grandes» começaram finalmente para mim.

O belo pretexto da minha prisão foi atribuído a Sékou Touré pelo desembarque em Conacri, durante a noite de 21 para 22 de Novembro de 1970 [«Operação Mar Verde»], de militares portugueses que vierem resgatar os seus nacionais detidos numa prisão em Conacri, e que haviam sido presos pelas tropas nacionalistas da Guiné-Bissau. A estes militares portugueses juntaram-se alguns elementos armados da oposição guineense que viviam no exterior.

Este desembarque – bem-sucedido no que diz respeito ao plano dos portugueses, e abortado quanto à acção dos opositores – permitiu que Sékou Touré se livrasse de todas as pessoas que o incomodavam e estabelecer um regime totalitário. […]

Mas, na realidade, Sékou Touré teve razões secretas para me prender: eu o desapontei sobre mais um plano e este «ressentimento» por vocação esperava o momento propício para se vingar.

Desculpo profundamente Sékou Touré! Jovem missionário de regresso à Guiné [-Conacri] em 1952, eu o apoiei e o encorajei na sua acção sindical, para a criação de uma sociedade mais justa e humana, no contexto colonial francês. E, devido a esse apoio de 1952 a 1956, Sékou Touré pensou ter encontrado em mim um aliado incondicional que abraçaria todas as suas ideias, e executaria todos os seus planos e instruções.


Mas eis que: em 1956, as eleições municipais permitiram que o partido de Sékou Touré [RDA - Reunião Democrática Africana] ocupasse todos os lugares dos municípios do território da Guiné Francesa. E esse foi o início da guerra surda contra a Igreja da Guiné. Este deveu-se, neste contexto viciado, para afirmar a sua identidade e a sua autonomia, respeitando as leis mas sem receio, na dignidade superior da sua vocação. Então, Sékou Touré começou a descobrir-me. E aquele que ele pensou ver como um puro revolucionário socialista tornou-se gradualmente aos seus olhos um assustador reaccionário burguês.


Fim.

Para consulta na íntegra ver:

http://www.campboiro.org/bibliotheque/tchidimbo/huit_ans_captivite/tdm.html

Boa semana.

Com um forte abraço,

Jorge Araújo.

[Tradução de JA / Seleção de fotos, legendagem e título do poste: LG]
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18027: (D)o outro lado do combate (14): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - Parte I (Jorge Araújo)

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18020: (Ex)citações (327): MiG russos e pilotos do PAIGC: mitos e realidades (José Matos / C. Martins / Cherno Baldé / Luís Graça)


O MiG 17, de origem russa, que felizmente ninguém viu na Guiné, durante a guerra colonial...

Fonte: Cortesia de Wikipedia  (Foto: copyleft).


Seleção de comentários ao poste P18006 (*)


1. Tabanca Grande / Luís Graça
O mítico e saudoso comandanet Pombo, de seu nome compleeto
José Luís Pomo Rodrigues (1934-2017).
Foto de Álvaro Basto (2008)


A notícia do "Daily Telegraph", de 2 de agosto de 1973, da autoria do correspondente em Lisboa, o jornalista Bruce Loudon (, segundo a qual a guerrilha estava "apenas a seis meses de atingir uma capacidade de ataque aéreo com caças MiG russos”) nunca a vi confirmada...

Pergunta-se: (i) onde é que estavam esses 40 guerrilheiros do PAIGC a receber cursos de pilotagem na Rússia?; (ii)  quem foram eles?; (iii) como se chamavam?; (iv) como é que foram (se é que foram...) aproveitados depois da independência?; (v) por que é que o Luís Cabral foi buscar um camarada nosso, o nosso saudoso José Luís Pombo Rodrigues (1934-2017), para pilotar o seu "jacto" presidencial, o Falcon, oferta dos suecos (salvo erro...)?

Recorde-se o que ele nos confidenciou tempos antes de morrer:

(...) "O comandante Pombo privou com os dois, o Luís Cabral e o 'Nino' Vieira. Dos dois era inclusive 'amigo'. Ao ‘Nino’ Vieira tratava-o mesmo por tu. E o Pombo continuou a ser o comandante Pombo, depois da independência da Guiné-Bissau. Terá havido um acordo entre as novas autoridades de Bissau e o governo português para que ele ficasse na Guiné... O PAIGC não tinha pilotos (muito menos MiG ou outros aviões). O comandante Pombo pilotava o pequeno Falcon que fora oferecido ao Luís Cabral, já não sei por quem. Este gostava muito dele, cmdt Pombo, e sempre que viajava com ele trazia-lhe uma garrafa de... champagne." (...)

O Luís Cabral, se tivesse os tais 40 pilotos, acabados de treinar pelos russos, não precisava de nenhum "tuga" para pilotar o seu Falcon!... A menos que não tivesse confiança nenhuma na competência deles e dos seus instrutores russos...

2. Caria Martins:

Vários mitos sobre os MiG:

(i) o PAIGC não tinha dinheiro para comprar e manter os ditos;

(ii)  a URSS não iria vender porque iria internacionalizar o conflito (não esquecer que a Guiné estava sob administração portuguesa, reconhecida pela ONU);

(iii) o  Sekou Touré não iria permitir que o PAIGC os tivesse, se não confiava no seu próprio exército muito menos confiava no PAIGC;

(iv) não era verdade que o PAIGC tivesse alguém a ter instrução para piloto.

(v) onde ficaria a base aérea para operarem?

3. Cherno Baldé:

Tudo isso que vocês dizem é pura verdade: que o PAIGC não tinha dinheiro para comprar e manter os ditos MiG; que a URSS não os iria vender porque iria internacionalizar o conflito, etc.

Mas, "n'empêche que",

(i) o PAIGC já tinha armas anti-aéreas das mais modernas (Strela) que limitavam seriamente as actividades operacionais dos aviões no CTIG;

(ii) tinham conseguido colocar todas as guarnições (quartéis) situadas ao longo das duas fronteiras em situação de perigo permanente e de quase estado de sítio;

(iii) no campo diplomático, tinham conseguido colocar Portugal numa situação insustentável e de permanente pressão internacional...

E, ainda vocês conseguem manter essa atitude de eterno menosprezo pelas suas capacidades de acção e de adaptação as diferentes situações.

Sobre a operação "Mar-Verde", Amílcar Cabral escreveu na sua mensagem de novo ano de 1971, sobre as causas do falhanço da operação:

(...) Primeiro, devido à pronta resposta do povo irmão da Guiné e das suas forças armadas";  (...)  "mas, também, é preciso descobrir, no próprio seio da mentalidade portuguesa, a causa interna, que motivou a sua ventura e, consequentemente a sua derrota. Ela reside, profundamente, no desprezo secular que sempre manifestaram pelo Homem africano. Esse desprezo, que se traduziu eloquentemente na célebre frase de Salazar - "a África não existe".

(...) Como é de vosso conhecimento, também eu (bem como toda a minha comunidade que se aliou e apostou em Portugal) perdi (perdemos) aquela guerra e não adianta questionar se militar ou politicamente. Desde os meus 14/15 anos que jurei a mim mesmo que, custasse o que custasse, nunca faria parte do PAIGC. Detestei-o pelo que fez e pelo que representava na sua essência.

4. José Matos:

Sobre os pilotos guineenses é óbvio que a preparação deles acabaria por ser semelhante aos da Guiné-Conacri, ou seja, sabiam levantar e aterrar o MiG, pouco mais que isso. Portanto, nunca seriam grande ameaça para as forças portuguesas. Nem se sabe se teriam depois MiG para pilotar, portanto, tudo isso foi inflacionado…

Quando se deu a independência os que estavam na URSS devem ter voltado sem acabar o curso de MiG e portanto não tinham qualquer competência para pilotar um Falcon. Não admira que tenham contratado o Pombo Rodrigues…

Meu caro Cherno, a questão dos pilotos guineenses e mesmo outros africanos, nada tem a ver com ser africano. O problema tem a ver com a formação de pilotagem que era dada a estes candidatos a piloto na URSS e depois com a própria capacidade para sustentar as aeronaves. O caso que conheço bem era o da Guiné-Conacri que era uma desgraça e que eu faço referência neste artigo:
https://www.revistamilitar.pt/artigo/1017 (***)

Portanto, o problema era a curta formação que tinham na URSS que fazia com que as aptidões de pilotagem e a experiência de voo fossem muito baixas e não permitissem tirar grande rendimento das aeronaves. (**)

Além disso, os próprios MiG estavam muitas vezes inoperacionais por deficiências de manutenção e falta de capacidade em sustentar a frota, o que piorava ainda mais as qualificações dos poucos pilotos para pilotar os aviões. Portanto, não vejo que fosse muito viável o PAIGC ter uma força aérea operacional na Guiné-Conacri e acho que toda essa questão foi inflacionada na época como estratégia de propaganda…(***)
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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 23 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18006 José Matos: As negociações secretas do acordo dos Açores em 1974: o caso da central nuclear. "Revista Militar", nºs 2581/2582, fevereiro / março 2017

(**) Último poste da série > 29 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17913: (Ex)citações (326): CCAÇ 17, uma companhia da "nova força africana", baseada em pessoal manjaco


15 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15114: Inquérito online: num total de 86 votos apurados, mais de metade (53,5%) diz que que no seu tempo "já se falava da existência de aviões inimigos nos céus [do CTIG]"... Mário Gaspar, ex-fur mil, da CART 1659, garante que viu 3 MiG no cruzamento de Gadamael/Guileje, no final da comissão, em meados de 1968... Ao Jorge Canhão (3ª C/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74) mostraram-lhe, na secretaria, fotos de MiG 15 e MiG 17 para comparar com os nossos Fiat G-91

11 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15103: FAP (89): Op Mar Verde: e se os MiG, que existiam de facto, mesmo que pouco operacionais, tivessem sido localizados e destruídos ? (José Matos)

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15100: FAP (88): A propósito da Op Mar Verde, dos MiG e do artigo do José Matos: Labé ainda hoje não tem uma pista capaz de receber MiG, se eles existiam mesmo só podiam estar em Conacri...Será que a malta foi mesmo ao aeroporto ? (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

9 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15092: FAP (87): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - IV (e última) parte

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18006 José Matos: As negociações secretas do acordo dos Açores em 1974: o caso da central nuclear. "Revista Militar", nºs 2581/2582, fevereiro / março 2017

I. Mensagem do nosso amigo Jose Matos, com data de ontem:

Olá,  Luís

Pedia-te para divulgares no blogue o artigo que envio em anexo com link para a Revista Militar, pois tem uma parte sobre a Guiné.

https://www.revistamilitar.pt/artigo/1226

Ab

José Matos

[Investigador independente em História Militar. Tem feito investigação sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial, principalmente na Guiné. É colaborador da Revista Mais Alto, da Força Aérea Portuguesa, e tem publicado também o seu trabalho em revistas europeias de aviação militar, em França, Inglaterra e Itália. É membro da nossa Tabanca Grande desde 7 de setembro de 2015. Tem cerca de 25 referências no nosso blogue]


II.  AS NEGOCIAÇÕES SECRETAS DO ACORDO DOS AÇORES EM 1974: O CASO DA CENTRAL NUCLEAR

por José Matos 

Revistas Militar, nºs 2581/2582 - Fevereiro/Março 2017


1. Introdução

Nas vésperas do 25 de Abril de 1974, o ministro português dos Negócios Estrangeiros português, Rui Patrício, estava muito próximo de negociar com o Departamento de Estado norte-americano um programa de cooperação na área da energia nuclear, que levaria no espaço de pouco anos à instalação da primeira central nuclear em território nacional. Dois dias antes da queda do regime, o ministro tinha já em mãos um plano português com uma previsão dos investimentos a realizar, a sua discriminação e o seu escalonamento no tempo. 

Patrício pretendia enviar este plano ao embaixador português nos EUA, João Hall Themido, com a indicação de que, nesta área, Themido devia começar por pedir o máximo possível nas negociações em curso, “isto é, a entrega gratuita de todo o equipamento de engineering e combustível que puder ser fornecido pelos americanos e o financiamento, nas melhores condições possíveis, na parte que puder ser produzida pela indústria portuguesa”  (1).

 O programa de execução apontava para 1981, como o ano previsto para a entrada em funcionamento da primeira central nuclear portuguesa. Porém, com o colapso do regime marcelista, o plano nunca chegaria ao seu destinatário e as negociações do acordo dos Açores tomariam um rumo completamente diferente nos anos seguintes.


2. Um país cada vez mais isolado

Antes de mais nada, importa contextualizar as negociações de 1974, que decorreram num clima difícil para Portugal, que estava principalmente interessado no fornecimento de equipamento militar para usar na Guiné, onde a situação militar era desfavorável para as forças portuguesas. Todavia, no contexto internacional, o regime português estava cada vez mais isolado e enfrentava dois problemas na aquisição de novos armamentos: (i) não tinha dinheiro para grandes aquisições de equipamento militar; (ii)  não tinha muitos aliados que pudessem fornecer o armamento necessário. 

Para resolver o problema do dinheiro, Portugal vai valer-se de Pretória, o seu grande aliado na África Austral, que não hesita em conceder-lhe um avultado empréstimo de 6 milhões de contos (150 milhões de rands) para suportar o esforço de guerra e permitir a aquisição de novas armas (2). 

Quanto ao problema dos fornecedores, vai valer-se principalmente das alianças que tem com os EUA e com a França para obter o que precisa. No caso americano, usa o acordo das Lajes como moeda de troca para obter armamento de forma encoberta. As negociações não são fáceis, mas, como veremos mais à frente, o Governo de Marcello Caetano consegue obter as armas mais desejadas (mísseis terra-ar) e ainda a possibilidade de uma central nuclear de oferta.


3. A ameaça aérea na Guiné

Há vários anos que pairava sobre a Guiné a ameaça de um ataque aéreo proveniente da Guiné-Conakry. O país vizinho, governado por Sékou Touré, tinha caças MiG no seu inventário e podia facilmente apoiar com meios aéreos acções da guerrilha contra as forças portuguesas (3). 

Na fase final da guerra, começam também a surgir rumores de que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) está a treinar pilotos na União Soviética para usar aviões MiG a partir de Conakry. Um jornal que publica esta informação é o inglês Daily Telegraph que, a 2 de Agosto de 1973, traz um artigo da autoria do correspondente em Lisboa, o jornalista Bruce Loudon, em que diz que a guerrilha “está apenas a seis meses de atingir uma capacidade de ataque aéreo com caças MiG russos”. O jornalista escreve ainda que cerca de 40 guerrilheiros estão a receber cursos de pilotagem na Rússia (4). 

Começam, assim, a circular notícias sobre o possível uso de meios aéreos por parte da guerrilha ou do envolvimento da própria Força Aérea da Guiné-Conakry (FAG) em acções contra as tropas portuguesas. Do outro lado da fronteira, os MiG-17F da FAG estão praticamente inoperacionais, mas, com ajuda de militares cubanos, começam a aumentar o seu grau de operacionalidade. Pilotos e técnicos cubanos chegam a Conakry nos primeiros meses de 1973 e incrementam os voos de patrulha na zona de fronteira, de forma a precaver incursões portuguesas em território guineano, embora os caças da FAG nunca constituam qualquer ameaça para as forças portuguesas (5).

No entanto, preocupado com a situação militar na Guiné, Marcello Caetano dá ordens para que a pequena colónia seja dotada de novos meios de defesa aérea (6), usando para esse efeito o empréstimo sul-africano. 

Por essa altura, os militares portugueses já sabiam que o único país ocidental que tinha mísseis terra-ar portáteis à venda era os EUA. De facto, os americanos fabricavam um pequeno míssil portátil, o famoso FIM-43A Redeye, que podia ser disparado a partir do ombro, tal e qual como o Strela-2 (SA-7) soviético, que tinha aparecido, na Guiné, nas mãos dos guerrilheiros. 

Se o Exército Português nas colónias tivesse acesso ao míssil americano podia fazer face a qualquer ameaça aérea vinda dos países vizinhos. Só que, devido ao embargo de armas, Washington não podia vender o míssil directamente a Portugal, sendo preciso encontrar uma solução que contornasse o embargo, algo que o governo americano não mostrava grande interesse em fazer. É aqui que o regime de Caetano joga o seu maior trunfo: a base das Lajes.


4. As Lajes como moeda de troca

Durante a guerra do Yom Kippur, em Outubro de 1973, entre Israel e os seus vizinhos árabes, Portugal tinha sido o único país europeu a conceder facilidades a Washington no apoio a Telavive. Embora sob coacção americana, Lisboa tinha permitido que a base das Lajes, nos Açores, fosse utilizada intensamente pelos aviões americanos no apoio a Israel e Marcello Caetano esperava agora obter dividendos de tal cedência (7). 

O Governo Português tenta assim que a posição americana seja mais flexível em relação à política colonial portuguesa e que Washington autorize a venda de algum armamento a Portugal (8). A intenção portuguesa era comprar os famosos mísseis portáteis Redeye e também mísseis terra-ar Hawk, montando desta forma um sistema de defesa antiaérea na Guiné (9). 

O próprio Henry Kissinger, que estava à frente do Departamento de Estado, acompanha esta questão de perto e, a 9 de Dezembro de 1973, encontra-se com o ministro português dos Estrangeiros, Rui Patrício, em Bruxelas, à margem de uma reunião da OTAN. Kissinger agradece a ajuda portuguesa durante o conflito no Médio Oriente e refere também que os EUA continuam a precisar da base das Lajes e mostra-se compreensivo em relação às necessidades portuguesas de adquirir mísseis terra-ar para a defesa das colónias, mas salienta que o Congresso americano jamais aprovaria uma venda directa a Portugal, sendo necessário encontrar uma forma encoberta para fornecer os mísseis. 

Do lado português, Patrício declara que a situação militar na Guiné podia tornar-se crítica com a utilização de aviação por parte do inimigo e que poderia mesmo evoluir para ataques aéreos contra Bissau, não tendo as forças portuguesas meios eficazes para se defenderem deste tipo de ataques, daí a necessidade dos mísseis. Patrício explicou ainda que “um eventual desastre na Guiné poderia ter no plano interno consequências imprevisíveis”, podendo levar, inclusivamente, à queda do império colonial português e à substituição do Governo de Caetano por um governo esquerdista defensor de uma outra política ultramarina e da saída de Portugal da OTAN. 

Na opinião do governante português, uma derrota militar na Guiné não significaria apenas a perda para o Ocidente da Guiné e de Cabo Verde com o respectivo valor estratégico associado, “mas também dos próprios Açores” e da contribuição do continente português para a OTAN, o que seria negativo para os interesses americanos. Kissinger aludiu então a um encontro recente do embaixador português nos EUA, João Hall Themido, com o Presidente Nixon e às dificuldades em procurar encontrar-se uma fórmula de auxílio por intermédio de países terceiros, para evitar a oposição do Congresso.

A ideia de Kissinger era a de que os mísseis fossem fornecidos por um outro país de forma indirecta, sem envolver os EUA. Israel era uma possibilidade e o governante americano mostra estar a par dos contactos que o Departamento de Estado tinha feito em Washington, para o embaixador português João Hall Themido se encontrar com o seu homólogo israelita, daí a pouco tempo, de forma a discutir o assunto (10). Patrício termina a conversa dizendo que para Portugal “se tratava de uma questão de vida ou de morte e da maior urgência”, enquanto Kissinger replica “insistindo que o problema estava em como fazer os fornecimentos, pois havia a certeza de os fornecimentos directos serem proibidos”. 

Dois dias depois desta reunião, Themido encontra-se com o seu colega israelita na capital americana, seguindo uma indicação dada, alguns dias antes, por William Porter, subsecretário de Estado para Assuntos Políticos (11). O embaixador israelita, Simcha Dinitz, agradece a Themido a ajuda portuguesa prestada durante a guerra contra os árabes, mas é pouco esclarecedor quanto ao fornecimento de mísseis dizendo ao diplomata português que lhe parece que os únicos mísseis que Israel dispõe são os Hawk e que não sabe se Telavive os pode vender a Portugal, pois trata-se de material militar fornecido pelos americanos, mas que vai procurar saber junto do seu Governo (12). 

Pouco tempo depois deste encontro, Themido fala com o encarregado de negócios da embaixada israelita, que lhe confirma que Israel tem mísseis Redeye e Hawk, mas que os mesmos não podem ser fornecidos sem o consentimento americano e que a única coisa que Telavive pode fazer é vender material de origem israelita, caso isso seja considerado útil (13). Themido fica desapontado com a resposta israelita e da capital portuguesa recebe instruções para esclarecer o assunto junto de William Porter, que tinha sugerido o encontro (14).

 A 15 de Dezembro, o diplomata português dirige-se então ao Departamento de Estado para falar com Porter, que lhe diz que tinha apenas sugerido ao embaixador israelita que, em contacto com Themido, averiguasse da disponibilidade de material de guerra e da possibilidade de fornecimento, mas nada mais do que isso. Mais tarde, num telefonema para a embaixada portuguesa, Porter chega mesmo a dizer que nos contactos que tinha tido com Dinitz apenas lhe tinha dito que Portugal estava interessado em adquirir mísseis terra-ar, não admitindo que tivesse sugerido a entrega a Portugal de mísseis americanos, o que deixa Themido decepcionado com a atitude de Porter (15). A diplomacia portuguesa começa então a perceber o desinteresse americano em fornecer os mísseis.


5. A ameaça de ruptura da parte portuguesa

Este desinteresse vai atingir o seu ponto culminante a 8 de Fevereiro de 1974, quando o secretário de Estado Adjunto, Kenneth Rush, chama o embaixador português para lhe comunicar que os EUA não podiam fornecer os mísseis Redeye, por duas ordens de razão: em primeiro lugar, eram contra a proliferação desse tipo de armamento, estando mesmo em conversações com Moscovo para limitar a difusão de armas MANPADS (“Man-Portable Air Defense Systems”) e, em segundo lugar, os mísseis “seriam usados no plano interno na luta contra as guerrilhas, o que era inaceitável”. Em relação aos Hawk teriam de consultar o Congresso, caso Portugal concordasse com essa consulta (16). 

A posição de Rush leva o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa a tomar uma medida drástica: Portugal rompe as negociações com os EUA para a renovação do acordo das Lajes, deixando Washington de usar a base açoriana. Esta tomada de posição é comunicada por Themido a Rush, a 18 de Março, deixando o governante americano estupefacto com tal intento! Apanhado de surpresa, Rush considera a decisão portuguesa extemporânea e promete ajudar Portugal fora do campo militar, pois se, “na parte militar, os auxílios dos Estados Unidos eram necessariamente limitados, na parte económica e técnica certamente haveria possibilidades ainda não exploradas” (17).

É neste encontro com Themido que surge a oferta de cooperação no domínio das centrais nucleares. Esta informação é transmitida a Lisboa, que rapidamente elabora um plano para a instalação de uma central nuclear em Portugal. O plano português previa uma central nuclear com uma potência na casa dos 2100-2300 Mwe brutos e com um valor de custo estimado em 6,75 milhões de contos (270 milhões de dólares) (18). O plano previa ainda a participação da indústria portuguesa na fabricação de uma “parte do equipamento do primeiro grupo nuclear e igualmente uma intervenção de gabinetes nacionais de engenharia no respectivo projecto executivo” (19). O combustível nuclear para os reactores seria enriquecido nos EUA e fornecido depois a Portugal.


6. As vias tortuosas de Kissinger

Como já foi dito, Rui Patrício deu grande prioridade a este projecto, embora não se tenha esquecido da questão dos mísseis, porém, a estratégia portuguesa de romper as negociações surte o seu efeito. A 11 de Abril, o próprio Kissinger escreve ao ministro português reforçando as palavras de Rush quanto a uma cooperação em áreas não militares e pedindo a Patrício sugestões a esse nível e mantendo o interesse americano em continuar a usar as Lajes, o que terá motivado certamente Patrício a dar primazia ao projecto da central nuclear (20).

Embora não faça qualquer referência na carta à questão dos mísseis Redeye, a verdade é que o Secretário de Estado americano cumpre o que prometeu e encontra uma forma de fornecer os mísseis por canais tortuosos. Em finais de Abril, um lote de 500 mísseis Redeye chega à Alemanha Ocidental com destino a Portugal (21).  Os mísseis são fornecidos por Israel através de um intermediário alemão e com a anuência americana (22).  O número de mísseis encomendado mostra que os Redeye não se destinavam apenas à Guiné, onde as forças portuguesas necessitavam de cerca de 200 mísseis, mas também a outros pontos das colónias portuguesas. 

Os mísseis custam 209 mil contos, mas não há qualquer informação de que este valor seja coberto pelo empréstimo sul-africano (23). Rui Patrício tem conhecimento deste desfecho, pois na carta que escreve a João Hall Themido, a 23 de Abril, dá conta dos contactos estabelecidos “por uma entidade privada com o Departamento de Defesa Nacional que se revestem da maior importância”, embora admita que “não temos ainda elementos suficientes para avaliar a origem verdadeira desta iniciativa e a sua efectiva possibilidade de concretização.”

Ainda que seja omisso quanto ao verdadeiro teor da dita iniciativa, tudo indica que se tratam dos mísseis, dado que o ministro dá instruções ao diplomata português para que retome as negociações do acordo das Lajes com o Departamento de Estado, um sinal de que as discordâncias que levaram à suspensão das negociações foram ultrapassadas, embora aconselhe Themido a não fazer qualquer referência aos mísseis nos contactos que venha a fazer. 

Para Patrício, o elemento fulcral das negociações deverá ser a central nuclear e o respectivo plano de investimento, dado não ser possível obter formalmente dos EUA equipamento militar que possa ser usado em África. Mesmo assim, o ministro português considera que Themido deve insistir no fornecimento de quatro aviões de transporte C-130, que devido ao seu raio de alcance podiam facilmente ser usados para transportar tropas e carga para África, embora nada garanta que os EUA concordem com tal pedido. 

Além dos C-130, é também referido o interesse português em quatro aviões de patrulhamento marítimo P-3 Orion, ainda que Patrício considere que os mesmos não são uma prioridade no contexto da guerra colonial (24). 

Dois dias depois desta carta, o regime marcelista desaparecia com a Revolução de Abril e a oferta da central nuclear não voltaria a ser mencionada em futuras negociações do acordo das Lajes.

José Matos

[Revisão / fixação de texto para edição no blogue: LG]
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Notas do autor:

(1) Carta do Ministério dos Negócios Estrangeiros para o Embaixador de Portugal em Washington, Lisboa, 23 de Abril de 1974, ADN/F3/14/29/4.

(2) Memorial sobre o acordo do empréstimo de 150 milhões de rands firmado com a República da África do Sul. Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), 18 de Setembro de 1975, ADN/F3/20/48/64.

(3) MATOS, José – “La Psychose des MiG dans la Guerre de Guinée”, in Airmagazine. Bagnolet. N.º 61, 2014, pp. 58-74.

(4) LOUDON, Bruce – “Portuguese rebels to get Russian MiGs”, in Daily Telegraph. Londres, 2 de Agosto de 1973, ADN, SGDN Cx. 3500.

(5) HERNÁNDEZ, Humberto Trujillo – El Grito del Baobab. 1ª Edição. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 2008, pp. 110-111.

(6) CAETANO, Marcello – Depoimento. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 1974, p. 180.

(7) THEMIDO, João Hall – “Dez anos em Washington 1971-1981”. 1ª Edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995, pp. 100-102.

(8) THEMIDO, op. cit., pp. 128-129.

(9) Telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Embaixada de Portugal em Washington, Secção de Cifra, 13 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(10) Apontamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a conversa do Ministro com o Secretário de Estado Americano, Dr. Kissinger, em 9 de Dezembro de 1973, Lisboa, 10 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(11) Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 4 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(12) Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 11 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(13) Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 13 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(14) Telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Embaixada de Portugal em Washington, Secção de Cifra do MNE, 14 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(15) Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 15 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

(16) Telegrama nº 95 da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 8 de Fevereiro de 1974, ADN/F3/14/29/4.

(17) Nota secreta da Embaixada de Portugal em Washington sobre as negociações para a renovação do Acordo dos Açores, Sessão de 18 de Março de 1974, ADN/F3/14/29/4.

(18) Anexo à carta do Ministério dos Negócios Estrangeiros para o Embaixador de Portugal em Washington, Lisboa, 23 de Abril de 1974, ADN/F3/14/29/4.

(19) Ibidem.

(20) Carta de Henry Kissinger para o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, 11 de Abril de 1974, ADN/F3/14/29/4.

(21) THEMIDO, op. cit., p. 164.

(22) THEMIDO, op. cit., p. 146.

(23) Nota nº 1229/AF/74 do Estado-Maior General das Forças Armadas para o Director-Geral da Contabilidade Pública, Assunto: Aquisição de conjuntos míssil-lançador “REDEYE”, 31 de Julho de 1974, ADN Fundo Geral Cx. 833/9.

(24) Carta do Ministério dos Negócios Estrangeiros para o Embaixador de Portugal em Washington, Lisboa, 23 de Abril de 1974, ADN/F3/14/29/4.