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sábado, 2 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Estas romagens de saudade têm os seus preceitos. Não há aspetos enfadonhos por retornar aos lugares conhecidos, vem-se em alforria, escolhe-se à carta, só há dias marcados para o Vale das Furnas, até lá tocam as campainhas. É a primeira manhã em Ponta Delgada, e logo assoma à memória a fase de adaptação à vida da cidade, de modo geral todos os outros tinham vida familiar organizada, eram muito poucos os que andavam a amanhar com recursos próprios. Tinha mapas das ruas, havia já os rigores outonais, quando ao fim da tarde descia da Rua de Lisboa em diferentes direções. Primeiro foi a descoberta do desenho da cidade, aquelas ruas quilométricas que pareciam vir lá do fundo da costa sul e se embrenhavam de São Pedro a São Roque; e no casco histórico de Ponta Delgada dei comigo a subir e a descer dentro daquele plano ortogonal que ainda hoje me surpreende. Mas por ali andei a mirar monumentos do meu culto, como o Convento de Santo André ou a Igreja do Colégio, de olhos postos no chão a contemplar os enleios geométricos da calçada portuguesa, a passar pelos jardins e a cogitar o que fazer durante a tarde, recordei João Bom, sabe-se lá porquê, talvez pela proximidade à Bretanha, não havia chuva à vista, passeou-se a manhã toda, amesendar-se era outro propósito e a seguir tomou-se a camioneta da carreira. Como nos velhos tempos, tinha que ser.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2


Mário Beja Santos

Começo a manhã na vadiagem, há objetivos definidos, mas não quero furtar as surpresas, é para isso que serve a memória e meio século de afetos perduráveis, inquebrantáveis. Desço a Rua do Contador, aqui está à minha espera o Convento de Santo André, uma das maiores formosuras da arquitetura religiosa, data do século XVI e escusado é dizer que andou ao sabor das remodelações. Num dos primeiros fins de semana disponíveis, em outubro de 1967, vim visitar o Museu Carlos Machado, criado em 1930, entrava-se pelo lado oposto desta primeira imagem, subia-se uma escadaria, havia a graciosidade de um pequeno jardim, e assim se entrava no que fora um convento de religiosas clarissas, impressionara-me muito a igreja, de uma só nave, com a sua cobertura de pinturas e as impressionantes grades de ferro forjado, e fora um prazer aquela área de História Natural. Limito-me agora a mirar o convento por fora, toca-me esta harmonia, a moldura dos janelões, a austeridade das grelhas para quem está dentro ver e não ser visto, e depois, como é impressiva a imagem do rendilhado dos janelões. Não quero empanzinadelas de arte, sei que no Núcleo de Santa Bárbara, em edifício próximo, um espaço de recolhimento recuperado, estão as exposições dos dois artistas plásticos, Domingos Rebelo e Canto da Maia, hoje de manhã visito o primeiro, a ambos conheço bem, quero revê-los cuidadosamente para melhor os conservar.

A caminho do Núcleo de Santa Bárbara, quedo-me diante deste pormenor de calçada portuguesa que logo me assombrou quando aqui cheguei, a quantidade imensa de desenhos geométricos, veja-se a profundidade desta rua que muitas outras, também em profundidade atravessam, é certo que há momentos em que se caminha a medo, tal e tanto é o tráfego rodoviário, mas os passeios estreitam-se, é a contingência do desenvolvimento, guardo as saudades daquele tempo em que caminhava tão gostosamente a pé, para saborear a ortogénese, a perpendicularidade destas ruas estreitas, parece que vieram do campo para a cidade, guardando este casario baixo compactado, o que dá um encanto por aqui vaguear na dimensão da escala humana.
O que mais gosto em Domingos Rebelo é a sua narrativa em prol da açorianidade, mesmo sendo ele dotado de uma paleta suave, vem da escola realista, naquele turbilhão de Paris, caldeiro de movimentos estéticos, foi ali que firmou o seu pincel figurativo, com ressaibos naturalistas, e daí esta plasticidade onde cabe retrato, neste caso e elegia dos trabalhos agrícolas, onde não faltam nuvens tormentosas, e daqui se salta para um tema icónico, os imigrantes, ele regista o que é fundamental levar dos parcos bens, bem visível o registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres, e há a dor da partida e também aquela figura enigmática da senhora da cidade, bem enchapelada, que tudo olha sem interferir, e o pano de fundo aquelas Portas da Cidade, hoje profundamente alteradas.
Vamos agora aos retratos, primeiro um artista dos tempos de Paris, atenda-se à pose, à meditação, ao sossego das mãos, não é artista em transe, poderá ser poeta ou músico. A obra seguinte toca-me muito, dentro da linhagem do Orpheu, ele foi o último, aí talvez por fevereiro de 1968, o grande etnógrafo e poeta quis conhecer-me e convidou-me para jantar na Rua do Frias, bem perto deste Núcleo de Santa Bárbara onde o estou a recordar, no retrato ele está no vigor da idade, recebeu-me no alto das escadas, com uma estranhíssima indumentária que parecia ter uns guizos, ainda pensei que era traje gaúcho, a um jovem sem obra que se limitara a cumprir um programa de conferências proposto por amigos, era deferência demasiada. Contemplo o retrato, recordo o jantar e os dois livros que me ofereceu, ganhei forças para ir ver mais tarde a exposição que está na Biblioteca Municipal.
Sob a forma de um tríptico, Domingos Rebelo faz desfilar gente piedosa que vem beijar o pezinho do Menino Jesus, todos os olhares se encaminham nessa direção, a exceção está no primeiro plano, aquela mãe ajoelhada fará certamente um comentário à menina de pé descalço, seguramente sob o olhar do sacristão, e curiosamente o menino que balança o ostensório é figura única que domina a cena, e o que podia ser um desequilíbrio na figuração acaba por organizar toda a sinceridade e ingenuidade da tensão religiosa.
É a oração de romeiro, e duas recordações me assaltam. A primeira, e a de carro, algures na costa norte, e avançava em marcha cadenciada um grupo de romeiros, conforme me alertaram. Saímos da viatura, como prova de respeito. Nada me fora dado ver tão intenso sinal de piedade, o coro da reza, o caminhar sem distrações, a austeridade da indumentária, os velhos e as crianças, provando que o amor a Deus não divide as idades. A segunda, foi uma brejeirice, convidado a fazer uma conferência no Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, na autarquia de Ponta Delgada, fui recebido à porta pelo seu presidente, o Dr. Machado. Vendo-me a contemplar um quadro que logo identifiquei como saído da paleta de Domingos Rebelo, uma família orando com um pão em primeiro plano, logo comentou: “Este quadro estava no meu gabinete, confesso que a certa altura em já não podia ver aquele pão a toda a hora, mandei-o pôr aqui à entrada, e olhe que está muito bem, não lhe parece?”.
Domingos Rebelo não precisou de copiar ninguém, mas devo dizer que desconhecia esta obra que até me recordou o espanhol Joaquín Sorolla, pelas cores vivas, pela movimentação na orla da praia, pela ondulação e imponência da figura principal, aquele equilíbrio ao ombro de quem sabe como e o que transporta. Como fiquei a gostar desta embriaguez de luz!
Despeço-me de Domingos Rebelo revendo o seu autorretrato, ele em pose de desfastio, como se simulasse que estava a ser fotografado em momento de pausa, e temos a sua mulher, a sua musa, de olhar vagante, meticulosamente inserida num meio florido, ressaltando o acetinado do vestido daquele esverdeado neutro, que, sabe-se lá porquê, me lembrou Cézanne, passe a autenticidade deste mestre açoriano.
Outro local de memória, um daqueles jardinzinhos que pululam dentro da cidade, decidira fazer uma pausa, não havendo hoje o meu saudoso Café Gil, o nosso ponto de encontro noturno, estando fechada a livraria também, fui matar saudades à Tabacaria Açoriana, guarda formato antigo, tem hoje outra substância, mas os livros lá estão, a preços económicos, e as pessoas ali se reúnem em tertúlia, como nos velhos tempos. Parei e meditei. Quero ver se organizo o programa da cidade da tarde, há autocarros, está decidido, se tiver a sorte de comer uma boa sopa de peixe na Central, vou até João Bom. O que veio a acontecer.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Era fatal como o destino, a primeira ancoragem depois do confinamento tinha de ser aqui, por razões do coração, pela aprendizagem recebida, há bem mais de meio séculos atrás. Em qualquer um destes lugares desta ilha, digo-o sem fanfarra, devo ter posto os pés. Logo à chegada à Lagoa, é assim que esvoaçam as lembranças, me recordei daquele Natal de 1967, que foi preparatório do milagre que se deu no Natal de Missirá, no ano seguinte, graças a mãos amigas, andei a saudar quem tinha feito a recruta comigo, andei pela Ribeira das Tainhas, Remédios, Lomba da Maia, Ribeirinha, e muitíssimo mais, as viagens multiplicaram-se, entranhou-se o gosto por este mundo ilhéu, o seu falar doce, com um picante um tanto francês, um certo espavento quando os familiares e os amigos se encontram, a gostosa comida e doçaria, tudo somado e multiplicado em trouxe a São Miguel, e já no rescaldo anda por aqui uma moinha a pedir para voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1


Mário Beja Santos

Aqui arribei no início da segunda semana de outubro de 1967, promovido a aspirante fui recambiado para dar recrutas no Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, sito nos Arrifes, a cerca de 7km de Ponta Delgada, aqui tinha quarto, janta, alguns fins de semana por minha conta, o entardecer, o anoitecer, era a descoberta de me ter por conta e risco, e sem nenhuma ilusão de que em breve seria convocado para uma área de combate nas Áfricas. Ainda não contei tudo sobre este período de felicidade, as amizades feitas e duradouras, a descoberta desta ilha esplendente, o prazer de conversar e ouvir o acento tão melódico do ilhéu, uma linguagem ímpar. Fizera a jura ser aqui a primeira deslocação depois do período do confinamento, vim em romagem de saudade, mesmo de gratidão, pois foi aqui que pude sentir, naquela convivência das recrutas, que possuía algum dom para a liderança, muito jeito me deu para a vida que levei até agosto de 1970, depois mudei de agulha, até na vida profissional fugi do comando, adquiri outros interesses. Guardo ainda a imagem daquele meio da tarde em que o Carvalho Araújo sulcava em direção a Ponta Delgada, sempre em paralelo com aquelas reentrâncias, falésias a pique, rochedos de negrume, a bruteza das águas a espumar sobre as penedias, a alvura das casas, um belo contraste, as grotas a verter caudais de água, como toda aquela massa vulcânica expelisse em permanência todo aquele líquido, por desnecessário. Aqui cheguei, era o fim do inverno, mão amiga me acompanhou até à Lagoa, havia que amesendar, foi um luxo, não pelo queijo fresco com pimenta da terra ou as lapas com molho Afonso, o banquete foi um peixe porco bem grelhado, inhames, legumes saborosos, e vinho do Pico para apaladar. Pois a primeira imagem era para homenagear quem preparou o banquete, aqui se mostra uma área portuária da Lagoa, tudo me remeteu para aquela segunda semana de outubro de 1967, a era do meu descobrimento.
Depois da Lagoa, pedi ao meu anfitrião que me deixasse ver as praias, muito antes do Pópulo temos a praia das Milícias, que tanto aprecio, sempre me deslumbrou esta articulação entre a rocha verdejante, a areia e a ondulação. Melhor receção eu não podia ter. Arrumada a tralha na cidade, houve o gosto de ir até aos jardins, todos eles são assombrosos.
Ponta Delgada tem alguns dos jardins mais aprazíveis que eu conheço, o Jácome Correia, foi palácio de marqueses, hoje é residência oficial do presidente do Governo Regional; o de José do Canto, outra formosura, tal como o jardim botânico António Borges, também cheio de plantas exóticas, é delicioso estar sentado num banco de jardim a contemplar o monumento a Antero de Quental, bem perto da biblioteca municipal da Igreja do Colégio, hoje núcleo de arte sacra do museu Carlos Machado. Mas tive saudades do jardim da Universidade dos Açores, aqui me receberam para palestrar, aqui entrevistei para um programa de televisão o professor Vasco Garcia, aqui vim visitar um querido professor, Machado Pires, que foi reitor desta casa. É um jardim modesto, mas tem o quanto basta para me lavar a alma, os metrosideros, as araucárias, as estrelícias, a terbentina, as obrigatórias azálias, a fiteira, a sumaúma, o dragoeiro. Entro no jardim e demoro a ver estas raízes que lutam contra o asfalto, bem podemos molestar a natureza, no fim ela é sempre imperativa e possidente.
Está no ADN do ilhéu a convivência floral, os primitivos povoadores, os que desembarcaram no que hoje se chama a Povoação devem ter ficado estarrecidos com tanto matagal, houve que o desbastar para produzir comida e habitação, tudo sempre cheio de temores, segundo o grande cronista Gaspar Frutuoso, viviam aterrados com os roncos que vinham do Vale das Furnas, houve quem pensasse que para lá daquela imensidão verde havia um inferno. A jardinagem e o gosto pelas flores faz parte do direito costumeiro, mesmo aqui, que não é um ambiente luxuriante como no jardim António Borges, onde não há nem estufas nem pavimentos em bagacina vermelha, apetece contemplar estes troncos rugosos, talvez fibras para têxteis ou cordas de ancoragem, ou cestas, esta palmeiras que lembram coqueiros, o dragoeiro com a sua seiva vermelha, lá fora, isso sim, proliferam os plátanos, permanentes sentinelas nas estradas.
E não falta uma gruta, já vi arcos armados em rocha vulcânica, aqui é tudo singelo, tudo rocha vulcânica, não há chamamento ao mistério ou caminhos sinuosos, ela lá se impõe e nos chama à atenção no meio de intensa vegetação.
Anoiteceu e ando em busca do meu passado, ali mais ou menos em frente à torre da Câmara Municipal e não longe da estátua dedicada ao Arcanjo havia um café-restaurante onde eu era comensal. Estou no Largo da Matriz, em frente de uma porta lateral ao sabor manuelino, mais tarde aqui irei entrar, sempre deambulei por estas Portas da Cidade, e percorria a avenida Infante D. Henrique, e lá longe me era dado avistar, entre as brumas, todas aquelas penedias em direção ao Salto do Cavalo, se não era bem assim eu imaginava. Pois aqui me detive para recordar doces lembranças de há 55 anos atrás.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

IN MEMORIAM

Luís Cristóvão Dias de Aguiar (Ilha de S. Miguel, 1940 -  Coimbra, 2021)
Ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67)


Faleceu ontem, dia 5 de Outubro, em Coimbra, o nosso camarada Cristóvão de Aguiar, nascido em 8 de Setembro de 1940, no Pico da Pedra, Ilha de S. Miguel.

Autor de referência (, possivelmente o maior escritor açoriano do séc.XX, depois de Vitorino Nemésio), deixa uma vasta obra literária, de que se destaca a trilogia romanesca Raiz Comovida, O Braço Tatuado (onde relata a sua experiência como combatente na Guiné durante a Guerra Colonial, de 1965 a1967) e Relação de Bordo, conjunto de diários que abrange os anos de 1965 a 2015
.[*]

Tem no nosso Blogue 27 referências.

Os editores e demais membros desta tertúlia de amigos e camaradas da Guiné expressam  à família os seus mais sentidos votos de pesar.
Cristóvão de Aguiar, em 27 de Novembro de 2008, na Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".
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Notas do editor:

[*] Vd. recensões de Mário Beja Santos à obra de Cristóvão de Aguiar nos postes de:

5 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

de abril de2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

14 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

16 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6162: Notas de leitura (93): Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)
e
17 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)

Vd. postes com o "Diário de Guerra de Cristóvão de Aguiar", textos cedidos pelo autor ao nosso camarada José Martins:

31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3823: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (I): Mafra, Janeiro de 1964

3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (II): Mafra, Fevereiro/Março de 1964

5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3843: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (III): Mafra, Maio/Junho de 1964

26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3944: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IV): Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)

11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27Mai65 a 29Set65)

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (Out-Dez 1965)

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (Jan-Ago 1966)

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4893: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IX): Nascimento do primeiro filho (Set - Dez 1966)

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (Jan - Jun 1967)
e
10 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (Mai68-Jan70)

Vd. último poste da série de 4 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22598: In Memoriam (409): Lissy Jarvik (née Feingold) (1924-2021): teve no seu funeral a presença do nosso cônsul honorário em Los Angeles e o senhor Presidente da República emitiu uma mensagem de condolências (João Crisóstomo, Nova Iorque, de passagem por Portugal, adviser da Sousa Mendes Foundation, com sede nos EUA)

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20897: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Vou a caminho dos 23 anos, saí definitivamente de casa, ganho consciência de que posso comandar homens sem voz do trovão nem requintes de militarão. É a primeira vez na vida que tenho que gerir os meus tostões, sem pedir nada a ninguém. E em menos de seis meses sou alvo de um acolhimento excecional, faço amizades inquebrantáveis, senti-me confortado por trabalhar e viver num local paradisíaco.
Terei ainda o privilégio, nos 50 anos subsequentes, de ir acompanhando as transformações que se irão operar nesta região atlântica, um dos pontos do meu país que mais progrediu.
Aquele dia de outubro de 1967, a minha mãe agarrou-se dizendo que pedia a Deus que eu regressasse são e salvo, parecia que eu ia fazer uma expedição para o Ártico, era a separação, agarrar-se-á com a mesma fortaleza um ano depois, em 24 de julho de 1968, com o mesmo apelo ao divino. Tudo correu de feição, e quer os Açores quer a Guiné marcaram-me indelevelmente, tal como o amor que a minha mãe me deu.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

Mário Beja Santos

Estou a pagar o preço de remexer em papéis que tinham ficado intocados durante décadas. E de uma gaveta há muito fechada à chave a minha filha entrega-me uma bandejinha de prata, que na época recebi com tanta emoção, recordação do 5.º Pelotão, tem no verso o nome da ourivesaria, Martins do Vale & Irmão, LDA., Rua Machado dos Santos, 89-91, Ponta Delgada, posso imaginar o que significou esta prova de gratidão para quem a deu e a recebeu. Não merecia ter ficado tanto tempo escondida, tratada como peça de sótão, fui buscar um limpa-metais, removeu-se a injusta negridão, um tanto às três pancadas, ainda há marcas de cré, limpar-se-á melhor depois, para pôr em lugar de destaque, era imperioso aqui se expor e agradecer, com eterna lembrança aos autores da dádiva.


Falei dos primeiros passeios, daquele deslumbramento progressivo, a descoberta da costa norte, o ficar especado num miradouro tendo como anfiteatro um casario disperso até ao longe, onde se avistavam as canadas, e depois o abismo sobre o mar, como se caminhasse para o infinito ouvindo o bramido das ondas enfurecidas. A estranheza que me causou aquela areia preta, mas tudo se superava com o fragor de toda aquela massa líquida com espuma alvíssima, o sibilar dos ventos, fazendo dançar as criptomérias e araucárias. E as pastagens, sempre verdejantes, o prazer de iniciar a instrução nos Arrifes tendo como pano de fundo aqueles montes, ouvindo o chocalhar das vacas, em busca de melhor ração. Descobrir a Lagoa das Sete Cidades, passear a toda a volta, foi acontecimento. Mas um dia, esta generosa amiga, Cremilde Tapia, fez questão de me mostrar uma outra feição do mundo genesíaco, a Lagoa do Fogo. Ainda hoje o meu coração balança, porque a memória não me atraiçoa, era um silêncio obsidiante, um ar fresco que me tomava os pulmões e só de quando em quando se ouvia aquele choro convulso dos cagarros, imagine-se, e isto não é pura fantasia, que mais tarde, nas noites expetantes de Missirá, andando a fazer a ronda junto dos postos de vigilância, conversando baixinho para quem policiava a mata em derredor, o choro das hienas, lembram crianças perdidas na floresta, pois nesses instantes, associava aquele choro aos cagarros, que descobrira na Ilha de São Miguel, um piar tétrico, felizmente, de curta duração.

Lagoa do Fogo

Para onde quer que me voltasse, quando regressava da instrução nos Arrifes, era quase inevitável passar pelo Coliseu, na altura decadente por fora e decadente por dentro. Conversando com os meus instruendos, descobri que uma boa parte deles jamais em tempo algum se tinha sentado numa sala de cinema. Andei às voltas, à espera de uma programação aliciante. E publicitou-se para a semana seguinte Lord Jim, pedi autorização para um transporte militar levar o pelotão dos Arrifes a Ponta Delgada e retorno, jantar cedo para chegar ao cinema um pouco antes das nove horas. Foi um êxito. Os mancebos ali estiveram de olho arregalado até assistir ao sacrifício de Lord Jim, mais de duas horas a fio. Abrira uma boceta de Pandora, outros aspirantes sentiram-se impelidos a repetir o evento com os seus instruendos. Pois sempre que passo por aqui, esta sala lindamente restaurada, lembro-me dessa noite e de gente feliz para quem se rasgara uma nova janela sobre o universo.

Coliseu Micaelense

Retorno à vida extremamente difícil destas famílias dos Arrifes, doía-me as carências alimentares, ver a avidez com que levavam a colher à boca, primeiro a sopa, depois as batatas com atum ou cavala, a satisfação com que partiam com a malga vazia, até à próxima, amanhã queremos saber quando é que volta a ser oficial de dia. Espero que estejam todos vivos, andarão pela casa dos sessenta anos, que a vida não lhes tenha sido madrasta, em S. Miguel, nos States ou no Canadá.


Quando saí de casa, em outubro de 1967, lembrei à minha mãe que quando regressasse iria tratar de mim, queria ser independente. Fiz um longo discurso em que lembrei a dívida impagável pelo amor, pela solicitude, pelo modo como me inculcara valores, merecia uma reforma descansada, sem mais filhos para tratar. Tudo correu às avessas. Não morrera de dois cancros, aquelas pernas começaram a encurvar, sofria horrores, com injeções a frio nos joelhos, o coração não resistiu, cedeu em 20 de janeiro de 1982, tinha 67 anos, vivera em Angola até aos 16, frequentou o curso de Canto no Conservatório, tirou o diploma de Magistério Primário, fez a campanha nacional de educação de adultos, era bibliotecária na Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Graças aos amigos açorianos, veio conhecer S. Miguel e eu fiquei imensamente feliz, nessa altura já chegara a notícia de que ia regressar em breve, para formar batalhão, na Amadora.


Eis a minha gente, terá sido a derradeira fotografia de família. Foram mais de cinco meses e meio, duas recrutas em série, conheci alguma da gente mais amável do mundo, recebido com primores de hospitalidade, pela primeira vez na vida geria inteiramente o meu destino, suspirava para que o tempo de guerra passasse depressa, assentara ideias sobre o meu curso universitário. A roda da fortuna balançou em rodopio. Tempos depois de chegar à Amadora, serei dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Estava selado o meu destino. Disse-me o major, com sorriso escarninho e o desprezo na beiça, “agora vá infetar os pretos com as suas ideias…”. Aprendera nos Arrifes a ter confiança em mim próprio para aquelas lides militares, o que se seguiu não foi jugo leve, foi só a experiência que me burilou o caráter e me preparou para as tempestades e bonanças com que a vida nos compraz. Agora só me resta um relato, para pôr termo a estas elucubrações de saudade, fazer um curto périplo pelos últimos 50 anos de arrebatada paixão açoriana.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20864: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20864: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
São reminiscências que vêm a propósito do reencontro com velhas imagens, jacentes num álbum esquecido, não foi felizmente para a Guiné, teria acabado em cinzas. E assim me vieram à mente os primeiros tempos que vivia por conta e risco, sem qualquer vínculo familiar, numa atmosfera de rocha vulcânica e com gente com apelidos para mim pouco frequentes ou completamente novos, como Arruda, Carreiro, Medeiros, Bettencourt, Ávila, Brum, ou Velho Cabral.
Na primeira recruta dada, tinha um intérprete para falar com a gente de Rabo de Peixe, era um falatório que não se entendia. Chegavam circunspectos e intimidados, estes mancebos, conversavam abertamente que se sentiam felizes, havia carne e peixe duas vezes por dia, agradaram-se do banho diário, cabelo cortado e barba a preceito. À noite, rezavam coletivamente o terço na Caserna.
Fiz amizades inquebrantáveis, dolorosamente, vão partindo, um grande amigo, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, que me consertou a vista depois de uma mina anticarro, está no ocaso da vida, depois de um grave acidente cardiovascular.
E a Maria Cremilde Tapia, uma autêntica missionária leiga, partiu recentemente para o lado direito de Deus.
Assim se lançou a semente à terra deste meu amor inconfundível por São Miguel.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

Mário Beja Santos

Um tanto familiarizado com a cidade de Ponta Delgada, e enquanto não recebo o acolhimento da família Teves Lemos, por conta própria procuro transportes rodoviários ao fim de semana, quero começar pela Lagoa das Sete Cidades. O autocarro (“a carreira”) sai ao amanhecer de sábado, mal chega à povoação, pouco mais de uma hora depois, descubro que só tenho transporte de regresso ao fim da tarde, e comer nicles, restaurantes ou casas de pasto já no pico do outono é coisa que não existia, lá se negociou com uma particular um pastelão de chouriço com arroz branco e uma sopa de grão com macarronete, almoço inesquecível, a low cost. O dia estava um tanto chocho, o céu com capacete (“forrado”), mas deu perfeitamente para ver na longa deambulação que era local edénico. O tempo passou, e mesmo quando esfriou, alguém nos acolheu até chegar o autocarro, bendita viagem por conta própria. À noite, no café Gil, indaguei junto dos aspirantes micaelenses qual o recanto mais formoso, aventaram-se múltiplas hipóteses, alguém advertiu que nada há de mais celestial que ver nascer o dia na Ponta da Madrugada. Será local que só visitarei décadas depois, confirmando que deve ter sido ali o local genesíaco aonde Deus desenhou a criação do mundo.

Miradouro da Ponta da Madrugada, São Miguel

Percorro nos fins de tarde os locais de devoção. O ponto culminante está no Convento do Campo de São Francisco, onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, o Padroeiro supremo na crença açoriana, um busto que nos deixa especados, há naquela escultura e nos traços fisionómicos do Filho de Deus um sofrimento inescapável mas algo nos seus olhos nos transmite a sua capacidade de amor pelos homens, é um sofrimento perpassado pela misericórdia do perdão. E bate à porta das igrejas nesses fins de tarde ventosos ou esfriados, há interiores de templo de opulência discreta e com profundo recolhimento, como esta Igreja de São Pedro, ao tempo já muito perto do fim da marginal, ali havia uma piscina frequentada por gente afoita que víamos nadar em dias ensolarados ou enevoados, nadadores intrépidos.

Interior da Igreja de São Pedro, Ponta Delgada

Momento inesquecível foi a visita que pude organizar para a minha mãe, em casa da família Tapia, deram-lhe cama e mesa e um apetecível itinerário turístico por alguns dos pontos mais retumbantes. A minha mãe aterrou no aerovacas, os mais novos devem pensar tratar-se de uma lenda, era um campo onde as vacas pastoreavam, a torre de controlo informava a hora de aterragem, as vacas eram acolhidas e o avião descia do campo de pastagem, isto num ponto relativamente central, em São Miguel. Eu continuava a dar recruta, estava com a minha mãe ao fim da tarde e fizemos um fim de semana em que se andou pela Bretanha, Mosteiros, Capelas, Lagoa das Furnas, onde não faltou o cozido. Muitos anos depois, a minha mãe ainda falava do passeio à Povoação, ao Faial da Terra, Nordeste e Nordestinho.

Com Cremilde Tapia e a minha mãe

Digo e repito que o mais importante que me aconteceu na mente e no físico graças às duas recrutas dadas nos Arrifes foi descobrir esse dado insólito que era a liderança, tudo genuíno e sem pavoneio, o que era necessário comunicar aos mancebos, desde a simples informação das horas de atividades até às corridas a corta-mato, a carreira de tiro, tudo deslizou sem gritaria nem palavrão, relações sempre aproximadas e festivas, assim emergia um nível de autoridade que foi decisivo em território guineense. Logo a preocupação com o bem-estar desses mancebos que gostavam da comida e das novas práticas de higiene, a afeição das crianças, a procura de atividades lúdicas para o pelotão e houve aquele ponto elevadíssimo que foi o Natal de 1969, em que os marienses ficaram retidos, com lágrima no olho, pois fez-se festa rija, houve missa cantada nos Arrifes e consoada que muitas famílias propiciaram e jamais esqueci essa bondade em hora tão delicada.

Uma nova amizade, o Gabriel calçado e o irmão descalço

Coube-me na rifa o discurso do Juramento de Bandeira, guardei esse papelucho que tanto me deu que fazer, o Comandante do Batalhão, Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, de quem corria o rumor de ter estado associado ao golpe de Beja, leu-o previamente, era o que faltava que perante aquelas altas e baixas patentes houvesse o devaneio de dizer uma bojarda contra o regime, pois bem, leu e nada emendou desse meu discurso onde não se falava do regime, nem da guerra, nem do dever pátrio, falava-se do civismo republicano e de ser militar dentro dessa longa tradição de valores de civismo e da proteção da soberania. Aqui fica o registo desse dia e dessa hora, atrás de um megafone com tripé.

Juramento de Bandeira, Arrifes, dezembro de 1967

Tinha perdido o fio a esta imagem, no reverso está a dedicatória para a dama dos meus cuidados, e tem a data de 30 de julho de 1968, primeiro dia em Bissau, seguramente que fui aos CTT com a foto oferecida, e assim a expedi para Lisboa. Ainda estou bem descontraído, só chegarei ao palco da guerra, cinco dias depois, viajarei num barco da mancarra, passarei, já noitinha, e na escuridão total, por Mato de Cão, levo comigo todo o meu enxoval que se irá incendiar em 19 de março de 1969, um garrafão de água e uma ração de combate. Tudo quanto aprendera em Mafra, tudo quanto se exercitara nos Arrifes, tudo quanto fora a minha formação por três mulheres de eleição na formação da minha personalidade, ia ser posto à prova. Mas voltemos a São Miguel, aos amigos e às lides da tropa.

No Uíge, julho de 1968, a Guiné está à vista, e eu ponho o futuro nas mãos de Deus

(continua)
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Nota do editor

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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20838: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Trata-se de uma revisitação, no meu livro A Viagem do Tangomau, editado pelo Círculo de Leitores em 2012, falo da minha experiência na terra da bagacina, a terrível experiência de ter sido gerente de messe e a indignar desde o primeiro dia os senhores oficiais dando-lhes a comida mais barata, andava por ali o espetro de um anterior gerente de messe que pagava às prestações centenas de contos de prejuízo, felizmente que o Comandante do Batalhão, ele próprio amesendado com a família, me pôs rapidamente na rua.
Tive, nessas recordações do livro, circunstância para falar da descoberta da cidade e de quase toda a ilha, das amizades firmadas, sobretudo com o José Medeiros Ferreira, o casal que me recebeu e onde passava os fins de semana, a fabulosa festa de Natal, expediente encontrado para receber carinhosamente os instruendos marienses, as condições atmosféricas não tinham permitido que fossem passar o Natal à sua ilha, fez-se festa da rija nos Arrifes, com consoada organizada por muitas boas vontades.
O que aqui se conta tem laivos de revisitação, obedece a dois propósitos, homenagear uma amiga recentemente falecida, Cremilde Tapia e saborear uma porção de fotografias recentemente descobertas. Foram tempos que ficaram gravados no meu coração, guardo-lhes devoção e saudade.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

Mário Beja Santos

Adaptei-me facilmente à cidade de Ponta Delgada, uma escala perfeitamente humana, ganhei apreço ao basalto e às tonalidades cinza, como se fosse o espetro da lava, as belíssimas calçadas, empedrados perfeitos, passeios muitas vezes estreitos, mas na época o trânsito era reduzido. Regressávamos da instrução, e depois da higiene doméstica, cada um partia para o seu destino, só os continentais é que tinham que tratar de si, os oficiais micaelenses tinham as suas casas. Aluguei quarto na Rua de Lisboa, n.º 31, e era comensal junto do município, um café com porta giratória Arte Deco, o Nacional. Comensal significava que tinha direito a sopa, um prato de peixe ou carne, uma peça de fruta da região (eu pelava-me pelo ananás), havia por vezes uma entrada de queijo fresco com pimenta da terra. As contas bem controladas, um aspirante auferia cerca de 1100 escudos, havia que pagar o quarto, com tratamento de roupas, e as despesas de comensal. Não dava para uma vida estouvada. O Teatro Micaelense oferecia regularmente cinema e concertos com um ou dois solistas, regra-geral artistas em fase de arranque oriundos dos EUA e Canadá. Com bom tempo, ia para o Largo de São Francisco e lia até à hora de jantar. Com mau tempo, ia para o Café Gil onde à noite aparecia o José Medeiros Ferreira, tínhamos estado juntos na recruta e especialidade em Mafra, partiremos de Ponta Delgada para a Amadora, foi nos Açores que firmámos uma gratíssima amizade.

Largo do Município com a estátua de São Miguel Arcanjo, Ponta Delgada

Portas da cidade, Ponta Delgada

Esquina do Largo 2 de Março com vista do Palácio da Conceição, Ponta Delgada

José Medeiros Ferreira

A Avenida Marginal era muitíssimo mais reduzida do que é hoje, agora está totalmente rasgada pela nascente. Os primeiros passeios eram de pura exploração, contemplar a Matriz, manuelina de branca, barroca de negridão basáltica. Barroco é o que não falta em Ponta Delgada. Os antigos conventos do Campo de S. Francisco, o edifício do Museu Carlos Machado (antigo Convento de Santo André), a fachada jesuíta da Igreja do Colégio, ao tempo indisponível ao público, mas só a fachada dava para se ficar um bom tempo a saborear aquela composição paradoxalmente austera e voluptuosa. O século XIX deixou marcas indeléveis na arquitetura, basta pensar no Palácio de Santana.

Teatro Micaelense, Ponta Delgada

Largo de São Francisco, Ponta Delgada

O capelão dos Arrifes era o Padre Couto Tavares, que vivia no seminário. Intrigou-se por eu não ter ali nem família nem amigos, fez questão de me apresentar a um casal que habitava numa moradia na Rua Segunda de Santa Clara, n.º 2, ele, de nome Marino Teves Lemos, ela, Maria, a quem passarei a chamar a “mãe do oceano”. Impuseram que eu ali me fosse amesendar aos sábados e domingos, acedi inicialmente, até porque o Marino se ocupava de uma correspondência colossal com uma obra qualquer relacionada com cursos de cristandade, pôs-me o gira-discos à disposição, um cadeirão confortável, lia e ouvia música. É num desses sábados ou domingos que irrompe pela sala um vozeirão, uma mulher alta com um fato roxo, ia conhecer Maria Cremilde Morgado Tapia, será a madrinha da minha filha Glória, em sua casa, na Rua da Alegria 6A, bem perto da casa de Maria e Marino, elas passarão as férias de Verão, inesquecíveis.

Em casa de Maria e Marino Teves Lemos, na companhia da Maria Cremilde Tapia e José Braga Chaves

Dei duas recrutas no BII N.º18, a primeira com mancebos fundamentalmente de Santa Maria (mas havia gente da Graciosa e do Faial, pasme-se), começou em outubro e findou em cima do Natal, um dos mais belos natais da minha vida, voltarei a esse evento; a segunda, era exclusivamente composta por micaelenses. Ora um dos meus instruendos de Santa Maria, José Braga Chaves, de Vila do Porto, chamou-me rapidamente a atenção porque tinha o indicador da mão direita imobilizado, ou quase, fazia movimentos muito lentos, ele referiu-me ter tido um acidente em pequeno, ficara assim. Não me conformei. Pedi uma entrevista a uma das sumidades da terra, o Dr. Furtado Lima, se o podia operar, era inconcebível um homem ir para a guerra com tal limitação. Propôs-se fazer operação, coisa de somenos importância, havia que lancetar e corrigir, talvez um nervo ou um tendão, para o caso pouco importa, pediu-me uma importância, respondi-lhe que lhe pagaria todos os meses em prestações, aceitou. O Zé fez a convalescença em casa da Maria e do Marino, nessa altura também ali se aboletava uma professora do Liceu Antero de Quental, Isabel Bracourt.

Imagine-se a comoção que senti quando dei por este pequeno conjunto de fotografias dos três e os dois em casa dos nossos generosos anfitriões. O Zé foi para Moçambique, trocámos correspondência. Veio e ficou a viver em São Miguel, trabalhando na meteorologia do aeroporto, casou com a Fátima, já falecida. A vida separou-nos temporariamente, a ternura é intemporal. Perdi o rasto à Isabel Bracourt. A Maria e o Marino já partiram deste mundo, não me ocorre nenhum adjetivo satisfatório que expresse a minha gratidão pelo bem que me (e nos) fizeram. Quando regressava a Ponta Delgada ia visitar a neta, então a trabalhar na biblioteca da universidade. Um dos filhos do casal, Álvaro Teves Lemos, estava na Guiné na altura em que eu dava ali recrutas. Não descansámos enquanto não chegámos à fala, aqueles pais, o Álvaro compreendeu imediatamente, tinham tido um papel tão construtivo naqueles meses micaelenses que era impossível que ele não quisesse saber as histórias de todos aqueles tempos. Cremilde Tapia fazia questão de me ir mostrando os belos rincões da ilha. O primeiro passeio teve como itinerário S. Roque, a Praia do Pópulo, a Lagoa, a Serra da Água de Pau, e chegados aos Remédios fui confrontado com um testemunho único da natureza, a Lagoa do Fogo e depois o Pico da Barrosa, daqui tem-se uma vista simultânea das costas Norte e Sul, avista-se até à Ribeira Grande. Foi um passeio de estalo. A sedução pela ilha assentara raízes.

(continua)
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Nota do editor

Primeiro poste de 3 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)