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quarta-feira, 13 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20969: Historiografia da presença portuguesa em África (209): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Lê-se e não se acredita como um depoimento deste teor aparece omisso na chamada bibliografia fundamental da Guiné. O autor é médico, acompanhou a delimitação de fronteiras depois da Convenção Luso-Francesa de 1886, tem comentários cheios de vitríolo, como aquele de na sua visita a Bolama ter encontrado o edifício mais sumptuoso, "pertencente a esse nomeado Gouveia, que veio para aqui há nove anos como Guarda Fiscal e que hoje representa o Rotschild da terra, à custa do trabalho".
Visitou a região sul ao pormenor, empolga-se com a beleza feminina, desvela o estado lastimável em que se encontrava a vila de Bissau e profere alguns dos mais amargos comentários que alguém escreveu sobre o desprezo em que era tida aquela colónia de belezas admiráveis e de recursos inexplorados. Absurdo não incluir este testemunho de João Augusto Martins entre o que de mais significativo se escreveu quando a colónia da Guiné se autonomizou de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


“Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (2)

Beja Santos

No descritor reservado à Guiné-Bissau, na Biblioteca Nacional (com centenas de obras consultáveis), dá-se nota de uma publicação que nunca se vira referenciada em nenhuma bibliografia. Trata-se de uma edição da Parceira António Maria Pereira, a data é 1891, tem ilustrações primorosas para os três territórios visitados, acicata-se a nossa curiosidade, a Guiné autonomizara-se recentemente de Cabo Verde, que surpresas nos reserva este autor, que se descobrirá, mais adiante, que colaborou no levantamento das fronteiras da Guiné Portuguesa?

Pauta-se por uma escrita cuidada, novecentista e sem travessuras, não esconde João Augusto Martins que está rendido às belezas naturais. Ficou em suspenso, no texto anterior, o que ele nos diz sobre a vila de Bissau, que ele caracteriza por “pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, imunda de todo o indiferentismo das municipalidades de África, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma”.
Dá-nos um quadro movimentado da vida comercial:
“Existem aí casas francesas, alemãs, americanas e inglesas, além de muitos pequenos negociantes, na maior parte de Cabo Verde, e concorrem à praça todos os dias, não só os povos que a avizinham, mas muitas das tribos afastadas que a abordam em grandes canoas sui generis pela construção, os quais vindo permutar por tabaco, aguardente, fazendas, etc., os produtos de agricultura e objectos originais da indústria indígena, dão um cambiante nitidamente selvagem a esse limitado quadro da vida africana, curiosíssimo pela variedade de penteados e costumes de seus personagens, interessante pela tatuagem com que se enfeita o preto, pitoresco pela diversidade dos tipos, dos penachos, das gesticulações e das vestimentas, profundamente impressionista no género grutesco, e constituindo no todo um espectáculo original.
Para todo esse importante comércio de permutações que se avalia em centenas de contos de réis, tem apenas como meio de acesso as duas portas de Pidjiquiti e Puana, abertas na face oeste e este da muralha, e uma raquítica ponte de cibes pertencente à casa Buttman, que, sendo pouco extensa, apenas pode ser utilizada na praia-mar, o que obrigou a mim e aos meus companheiros de viagem a sermos desembarcados às costas de um preto”.
E tece ainda o seguinte comentário, falando da fortaleza de S. José da Amura:
“É nesta superfície de algumas centenas de metros quadrados, roubada toda ela sem método e sem plano à vegetação pujante que a povoava outrora, que reside hoje mais ou menos desconfortavelmente instalados, desde o Governador até esse formigueiro de empregados subalternos que a padrinhagem e o critério de anichamento nacional sabe acomodar em todas as nossas províncias ultramarinas, sem escolha de aptidões nem escrúpulo de competências, e que constituem o motivo preponderante do relaxamento no serviço e a principal causa do depauperamento dos cofres públicos”.

Sublinha-se a vermelho a Paliçada da Puana, no lado oposto ao Pidjiquiti.

Não deixa de comentar a farsa da vida administrativa, o quadro de dissolução e rebaixamento moral em que ninguém confia nos direitos que são conferidos pela lei. Lembra figuras patrióticas como Honório Pereira Barreto, lamenta o ostracismo a que está votada a Guiné, o desprezo com que Lisboa trata os médicos, os farmacêuticos e o pessoal dos hospitais que procuram defender a saúde em climas tão inóspitos como o da Guiné. Descobrimos que João Augusto Martins é médico, foi a Bolama para socorrer as vítimas da epidemia de varíola que tantos danos acarretou à Guiné, mostra-se tocado pelo acolhimento que obteve e formula nova crítica:  

“Esta província tida e mantida na nossa elaboração nacional como um depósito para onde despreocupadamente se esvazia desde muito o lodo e as imundícies colhidas nas dragagens da nossa rotina legislativa, sob a forma militar de incorrigíveis e de devassos deportados civis, a Guiné, constituindo-se em província independente, plagiou desde logo a toilette pretensiosa da sua vizinha, enfeitando-se de todas as complicações burocráticas possíveis e fazendo construir na sua capital desde a igreja onde exibe o seu Deus ao som dos clarins e das músicas marciais até ao hospital onde agasalha os seus doentes à luz de uma parca economia, tíbia de conforto e de consolações. Edificou a ferro e tijolo um edifício pesado, desprotegido de sombras, sem quarto de banhos, sem casa de autópsias, sem casa mortuária, sem meios de esgotos, nem canalização de águas, e continuou a sustentar ao mesmo título esse pardieiro a derrocar-se, onde se agasalham em Bissau os desgraçados doentes que preferem morrer à sombra, mesmo em risco de desabamentos prováveis. É ali, nesse pavilhão e nesse estábulo da patologia, que se acotovelam indistintamente à temperatura média de trinta graus…”.

Não esconde o seu pesar pelo facto de a Convenção Luso-Francesa de 1886 nos ter subtraído a parte da Senegâmbia chamada Casamansa, considera que a delimitação da Guiné foi um ato de leviandade política, confessa que chorou amargamente quando arreou a bandeira portuguesa em Zinguinchor e fala da outra fronteira:
“Ao sul e a leste ficámos cercados pelo território de Ia-Ia e Almami e pelos franceses na zona do litoral onde têm um posto em Kaki, ponto onde começa a linha de delimitação sul. Isto segundo o Tratado de Paris, sem sabermos, nem podermos asseverar, por não estar isto deliberado, se os franceses conseguiram ou não ficar senhores do rio Secujak, afluente sul da Casamansa. Tendo, pois, os franceses, o rio Casamansa ao norte, o rio Nunes ao sul, e as facilidades que lhe conferem as influências sabiamente exercidas sobre Almami, rei do grande território dos Futa-Djalon, é claríssimo que devia suceder, como efectivamente está sucedendo, que as nossas pautas, os nossos impostos, deixassem de ter uma aplicação prática pela larga franquia que dão ao comércio as extensas fronteiras indefesas e que derivar-se toda a concorrência dos indígenas, dos nossos mercados para outros pontos onde as mercadorias de principal consumo (tabaco e álcool) não estão sujeitas aos exorbitantes impostos diferenciais e onde a catequese de uma sábia diplomacia os sabe angariar.

Daqui o facto reconhecido e provado da decadência última a que chegou a Guiné; daí o terem desaparecido subitamente um grande número de casas estrangeiras estabelecidas em Bolama; daí o ter-se anulado quase o seu comércio; daí finalmente a morte irremediável de uma província com tantos elementos de riqueza e que trazendo à metrópole um encargo anual de 128.500$000 réis, continua com um estadão de secretarias e funcionalismo ocioso, mas que não tem uma orientação nem vida própria e que ninguém trata de fazer viver.
Ora quando um país sem condições de garantia nem de interesse, pouco a pouco se desmembra em benefício de outras nações, dá lugar a que todos tenham o direito de supor que desmoralizado e enfraquecido não pode mais utilizar com seus esforços de colonização a parte territorial de que se sequestra. Dá lugar, indiscutivelmente, a que todo o português de hombridade e de carácter tenha o direito de pedir a venda das colónias improdutivas, como todo o médico tem o dever de pedir a amputação de um membro esfacelado quando todo o organismo enfraquecido já o não pode galvanizar de vida”.

E não deixa de comentar o cinismo daqueles que gritavam contra o Ultimato Inglês e protestam contra as espoliações a que Portugal fora submetido.
A despeito de se tratar de um comentário pessoal, é de uma enorme riqueza de observação e fica-se com o quadro claríssimo do estado crítico da Guiné no arranque da sua autonomização de Cabo Verde.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20948: Historiografia da presença portuguesa em África (208): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20471: Tabanca Grande (489): Alexandre Margarido, ex-cap mil grad inf, op esp / ranger, último cmdt da CCAÇ 3520 (Cacine, Cameconde, Quinhamel, 1972/74)...Senta-se à sombra do nosso poilão sob o nº 801


Guiné > região de Tombali > Cacine > CCAÇ 3520 > 1973 > Uma pausa no rio Cacine, nos "turbulentos acontecimentos" de Guileje / Gadamael, em maio e junho de 1973. Alexandre Margarido CCAÇ 3520

O Alexandre Margarido, novo membro da Tabanca Grande, com o nº 801

Fotos (e legendas): © Alexandre Margarido (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Setor de Cacine > Cameconde > 1968 > Disparo noturno do obus 8.8 > Foto do álbum do António J. Pereira da Costa, que era na altura alferes QP da CART 1692/BART 1914 (Cacine, Cameconde, Sangonhá e Cacoca, 1967/69).

Foto (e legenda): © António J. Pereira da Costa (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Alexandre Margarifo, ex-cap mil op esp / ranger, último comandante da CCAÇb 3520 (Cacine, Cameconde, Guileje, Gadamael e Quinhamel, dez 1971-mai 1974).

Data - terça feira, 17/12/2019, 21h17
Assunto -  Adesão à Tabanca Grande

Caro Luis Graça,

Tenho acompanhado este Blog, com regularidade e considero do máximo interesse todo o trabalho, até aqui desenvolvido, para que não se percam, nos meandros dos interesses, que jogam com os ex-combatentes, as suas memórias e as experiências de vidas, aqui tão bem representadas.

O meu nome Alexandre Augusto Martins Margarido, fui o último Capitão Miliciano, da Companhia Independente de Caçadores nº 3520, com a Especialidade de Operações Especiais.

Estive na Guiné desde Dezembro de 1971 a Maio de 1974, tendo a minha Companhia, passado por Cacine, Cameconde, Guileje, Gadamel e finalmente Quinhamel, até ao seu regresso ao Funchal, onde se tinha formado.

Conforme as normas da Tabanca, envio duas fotos, uma actual, a outra tirada no Rio Cacine, numa pausa dos acontecimentos turbulentos de 1973, solicitando a entrada, e prometendo o envio de uma das muitas histórias, que fizeram parte dessa minha estadia, por terras da Guiné.

Forte abraço,

Alexandre Margarido
Ex-Capitão Miliciano Ranger

2. Resposta do editor Luís Graça:

Alexandre, és recebido de braços abertos, e muito provavelmente serás o último (**)  a franquear, este ano  o "hall" de entrada da Tabanca Grande (, digo "hall", porque não temos portas, nem janelas, nem porta de armas, nem  cavalos de frisa, nem fiadas de arame farpado, nem valas, nem abrigos, nem espaldões...).

Como sabes, somos uma "comunidade virtual" de antigos camaradas de armas, que passaram pelo TO da Guiné, de 1961 a 1974, fazendo a guerra e a paz...Costumamos dizer que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... O que é verdade, temos gente, amigos e camaradas da Guiné, um pouco por toda a parte, dos Estados Unidos à Austrália, de Ponte de Lima ao Funchal, de Faro a Bissau, passando por Macau, Cabo Verde, França, Brasil, Alemanha, e por aí fora...

Da tua companhia, a CCAÇ 3520, "Estrelas do Sul" (que nome poético!), tu passarás a ser, se não me engano, o terceiro representante, depois do José Vermelho, nosso grã-tabanaqueiro nº 471, fur mil (CCAÇ 3520 - Cacine, e CCAÇ 6 - Bedanda, CIM - Bolama, 1972/74) e depois do Juvenal Candeias, alf mil at inf, que entrou para a Tabanca Grande  em 6 de maio de 2009

Mas, deixa-me lembrar-te, tu já nos tinhas feito uma "visita" em 2013 (*), comentando esse "resort" turístico que era Cameconde no teu/nosso tempo... Na altura, a Tabanca Grande "partiu mantenhas" contigo e convidou-te  para te sentares "aqui, debaixo do nosso mágico e fraterno poilão"... Não entraste em 2013, entras agora no final de 2019.  E o lugar que te calha é já o 801.. (Já podes ver o tem nome, na lista alfabética, de A a Z, que consta na coluna do lado esquerdo do nosso blogue.)

E vais concerteza ajudar-nos a manter viva e sempre fresca esta "fonte de memórias" onde vem beber a rapaziada que esteve na Guiné, em "comissão de serviço", uns no "back office", outros no "front office"... Partilhamos memórias (e afetos), contamos as nossas histórias... sem censura, sem juízos de valor, sem picardias, sem ressentimentos, procurando contar a verdade e só a verdade.

Senta-te, desfruta a nossa companhia, vai dando notícias, vai participando (com textos, comentários, fotos...) e, entretanto, faz o favor de ser feliz e tem um bom e santo Natal.


Guiné > Mapa geral da província ( 1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Cameconde, a guarnição militar portuguesa mais a sul, na região de Quitafine, na estrada fronteiriça Quebo-Cacine... Em 1968 era o batalhão que estava em Buba (BART 1896, 1966/68) quem defendia esta importante linha de fronteira...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


3. Sobre a CCAÇ 3520, eis aqui a  ficha da unidade, segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 7º vol - Fichas das Unidades, Tomo II (Guiné), Lisboa, EME/CECA, 2002:

 (i) Mobilizada pelo BII 19 (Funchal);

(ii) Parte para o TO da Guiné em 20/12/1971 e regressa a 37/3/1974;

(iii) Passou por Cacine (mas também Cameconde) e Quinhamel;

(iv) teve quatro comandantes: cap inf Herberto Amaro Vieira Nascimento; cap mil Jaime Cipriano da Costa Rocha Quaresma; cap mil inf Armando Pimenta Cristóvão; e cap mil grad inf Alexandre Augusto Martins Margarido.
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Notas do editor_

(*) Vd. poste de 21 de fevereiro de  2013 > Guiné 63/74 - P11129: (Ex)citações (213): Cameconde, hoje seria um lugar de absurdo, de pesadelo e de loucura... (Alexandre Margarido, ex-cap mil, CCAÇ 3520, Cacine e Cameconde, 1972/74)

(...) Cameconde era um daqueles locais onde apenas os combatentes portugueses conseguiam manter-se durante anos, sem enlouquecerem, face à falta de condições mínimas de subsistência. Inclusive a água e os mantimentos tinham que ser transportados, numa coluna diária por um trilho rasgado na selva.

As altas temperaturas dentro dos abrigos, os insectos, as cobras que deslizavam da selva durante a noite, procurando o calor dessas fortificações, autênticos fornos, a exposição a atiradores e às flagelações por RPG, tudo isso, recuando 40 anos nas minhas memórias, era impensável ser suportado nos dias de hoje.

Obrigado por manterem vivas essas memórias.(...)


(**)  Último poste da série > 21 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20369: Tabanca Grande (488): Miguel José Ribeiro da Rocha, ex-Alf Mil Inf.ª da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70), tertuliano com o número 800 da nossa Tabanca

domingo, 17 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20359: Tabanca Grande (487): Leonel Teixeira, natural da Madeira, luso-americano, Vice-Cônsul, Vice-Consulado de Portugal em Providence, Conselheiro da Diáspora Madeirense para os EUA, ex-alf mil, CCAV 3364 (Ingoré e Cumeré, 1971/73)... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 799.




Guiné > Região de Cacheu > Sedengal > CCAV 3364 > Na foto, a partir da esquerda: capitão Saraiva, comandante da CCAV 3364 (, a companhia do Carlos Nóvoa) e presente no almoço [1]; major Sampaio, oficial de operações [2] ; major (tenente-coronel?) Mateus [3]; com barba, alf il Ribeiro,  da CCAV 3364 [4]; de frente, alf mil trms  Almeida 5]; com o copo na mão, alf mil Agostinho Miranda [6]; o oficial de óculos não foi identificado [entre o 6 e o 7];  alf mil art Vasco Pires [7]; o último à direita é o tenente Nobre da CCS [8]; de costas, alf mil Teixeira (?),  da CCAV 3364 [9].


1. Mensagem do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), nosso camarada da diáspora, a viver desde 1975 em Nova Iorque, conhecido ativista social (de causas como as Gravuras de Foz Coa, Timor Leste ou Aristides Sousa Mendes), recentemente promovido a régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona (que é tão grande como o mundo):

Data - domingo, 10/11, 10:28

Assunto -  Camarada Leonel Teixeira



Caro Luis Graça, e demais camaradas, 

É com muito orgulho que vos apresento um novo camarada, Leonel Teixeira, um amigo que tenho o privilégio de conhecer há muitos anos, mas que em algumas coisas apenas "vim a conhecer melhor” há dias, quando me disse ser madeirense e ter estado na Guiné. 

 Imediatamente o convidei para membro da nova "Tabanca da Diáspora Lusófona ”e da Tabanca Grande (, com o nº 799),  o que, para grande satisfação minha e de todos nós evidentemente, aceitou.
É uma grande honra para nós, ( entre outras coisa já foi agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique!) como podem ver por algumas palavras de apresentação que recebi há momentos. (São agora 04.27 da manhã… e eu tenho a infeliz mania de dormir muito pouco.). Como faço frequentemente a primeira coisa que fiz foi consultar o computador para ver os emails. E deparei com uma mensagem do Leonel Teixeira que com a devida vénia copio:



José Leonel Rodrigues Teixeira,  conselheiro da Diáspora Madeirense para os EUA. Nomeado em 2016, conforme resolução, de 4 de agosto, do Governo Regional da Madeira.  


Caro João Crisostomo,

Já conhecia o blog em boa hora criado pelo Luís Graça. Duas surpresas que vieram logo que comecei a ler:


Na foto, a partir da esquerda: Capitão Saraiva, Comandante da CCAV 3364 (a Companhia do Carlos Nóvoa) e presente no almoço; Major Sampaio, Oficial de Operações; Major (Tenente-Coronel?) Mateus; com barba, Alf Mil Ribeiro da CCAV 3364; de frente, Alf Mil de Transmissões Almeida; com o copo na mão, Alf Mil Agostinho Miranda; o Oficial de óculos não foi identificado; Alf Mil Vasco Pires; o último à direita é o Tenente Nobre da CCS; de costas, Alf Mil Teixeira (?) da CCAV 3364.

É verdade, 
sou eu. Leonel Teixeira,  que estou de costas. Era no aquartelamento do Sedengal onde a CCAV 3364 tinha 2 pelotões e os outros dois estavam na sede em Ingoré. O Capitão Saraiva foi o segundo comandante da companhia,  depois do primeiro (esqueço o nome) ter sido punido e foi transferido para algures na Guiné. 

O Capitão Saraiva depois de alguns meses, creio que foram 6, foi também transferido e fiquei o resto da comissão, cerca de 7 meses, a comandar a companhia em Ingoré. 

Antes de vir para os EUA, em 1980, participei em 3 jantares do Batalhão que eram organizados pelo capelão. Uma vez nos EUA,  nunca tive oportunidade de conviver com os camaradas,  acrescido que de Lisboa seguia quase de imediato para a Madeira donde sou natural e tenho família. 

Na semana passada estive em Lisboa alguns dias,  participando num convívio com os meus colegas do 7º ano (o ano passado celebramos os 50 anos) e consegui, graças a camaradas que vivem em Lisboa, reunir num almoço. Foram 11 e quem organizou foi o Carlos Nóvoa (Xina). A minha mulher também esteve presente. No final, de um longo e saudável almoço, concordamos que possivelmente já nos havíamos cruzado mas nem eu nem eles nos reconheciamo-nos.

Desde 1980 que exerço funções no Consulado de Portugal em Providence e, quando foi transformado em Vice-Consulado,  fui nomeado titular do Posto, em 2009, cargo que deixei quando decidi passar à aposentação em 2014. 

Ainda nesse ano, por ocasião do Dia de Portugal, no 10 de Junho de 2014, fui agraciado pelo Sr. Presidente da República com o grau Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.  Em jeito de brincadeira entre amigos, costumo dizer que jogo na mesma equipa do meu conterrâneo Cristiano Ronaldo, porquanto ele foi também agraciado com a Ordem do Infante, gau Grande Oficial. Presentemente, e já há alguns anos, sou o Conselheiro da Diáspora Madeirense para os EUA

Um muito obrigado e um grande abraço desde o mais pequeno Estado dos EUA.

Leonel Teixeira


__________________

Não preciso de dizer mais. Peço-vos o favor do "trabalho da papelada”, que sei vai ser um prazer para vocês.
Como ele me mencionou já ter conhecimento do nosso blogue,  fui logo procurar essa foto e a mencionada info que encontrei num post de 23 de Março de 2013, ( que junto a seguir só para vos poupar tempo, aliás seria mesmo "estar ensinar o padre nosso ao vigário”) (*)

Agradeço me incluam em cc , está bem?

João Crisóstomo

2. Comentário do editor LG:

Meu caro João: mais uma vez podemos repetir o aforismo: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!"... Em boa hora, trouxeste.nos o Leonel Teixeira, que se reconheceu numa foto, tirada m Ingoré ou Sedengal... Enfim, estás a fazer o teu trabalho como régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona (e não apenas lusitana, já que temos camaradas, que estiveram connosco no TO da Guiné, e que têm hoje outras nacionalidades: guineenses, cabo-verdianos, angolanos, moçambicanos, são tomenses, timorenses, chineses de Macau, luso-americanos, etc.). 

Meu caro Leonel Teixeira: tratamo-nos por tu, sem cerimónias, independentemente dos antigos e atuais títulos... A Guiné é  nosso traço de união. E este blogue foi criado, em 2004, justamente para a gente se ir reunindo debaixo de um simbólico poilão de uma Tabanca Grande virtual onde todos cabemos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar... As nossas regras de convívio são simples e estão aqui disponiveis "on line".

Passas a sentar-te no lugar nº 799. à sombra do nosso poilão. Há mais de um mês que não entrava "sangue novo" (**)... Bem hajas!... E ficas desde já convidado para para nos mandares, por email, para efeitos de publicação (, tarefa que cabe aos editores,) memórias, histórias e fotos da tua comissão de serviço na Guiné.

Infelizmente temos poucos representantes do teu batalhão. E da tua companhia, és o primeiro a dar a cara... Vejo que conheceste o Vasco Pires, infelizmente já falecido no Brasil, em 2016.... Da tua companhia, só temos até agora 4 referências no nosso blogue... Do batalhão temos mais, cercade 3 dezenas.

Para tua / nossa informação, o BCAV 3846,  além da  CCAV 3364 (Ingoré, Cumeré), era composto pela CCAV 3365 (S. Domingos, Cumeré) e CCAC 3366 (Susana, Cumeré). A unidade mobilizadora foi o RC 3. O Comando e a CCS ficaram em Ingoré, o cmdt do batalhão era o ten cor cav António Lobato de Oliveira Guimarães. O pessoal do teu batalhão partiu para o TO da Guiné em 8/4/1971, no T/T Angra do Heroísmo, regressou a casa em 8/3/1973, exceto o da CCAV 3365 que embarcou mais tarde (17/3/1973). Tens aqui fotos dessa viagem para o CTIG.

CCAV 3364 teve, de facto,  3 comandantes, como tu dizes: (i) cap mil cav Rodrigo José Afreixo Ferreira; (ii) cap  cav José Rafael Lopes Saraiva; e (iii) tu próprio, alf mil inf José Leonel Rodrigues Teixeira, novo membro,  nº 799, da Tabanca Grande.

Fico duplamente feliz por já conheceres o nosso blogue e agora poderes passar a partilhar também, através dele, as tuas memórias, e, por outro lado,  por seres um madeirense e um português do mundo, com um bela força de serviços prestados à Pátria... Deixa-me dizer-te que tenho lá, na região autónoma da Madeira, alguns bons amigos (e também alguns camaradas), e acabo de ter uma neta, de mãe madeirense...

Quando puderes, arranjas-nos uma foto do teu tempo da Guiné, de preferência tipo passe. A foto atual que publico acima, fui pedi-la emprestada ao sítio do Centro das Comunidades Madeirenses e Migrações. Não hesites em escrever-nos e em "recrutar" para a Tabanca Grande mais camaradas da diáspora lusófona, a viver nos EUA, em particular madeirenses e açorianos, que estão aqui subrerrepresentados.

 Boa sorte para as tuas novas funções como conselheiro da Diáspora Madeirense nos EUA.
____________

Notas do editor:
(...) Em mensagem do dia 20 de Março de 2013, o nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), dá-nos conta dos resultados da investigação que lhe deu a certeza de não ter passado os seus últimos tempo de comissão em S. Domingos, como pensava, mas em Ingoré.

Colaboraram nesta pesquisa os camaradas Delfim Rodrigues e Carlos Nóvoa.

Caro Carlos,


Encerrando o assunto "São Domingos ?"... Em primeiro lugar quero agradecer a tua ajuda nesta busca, para encontrar o local dos últimos meses da minha comissão.

No P10525, fiz um resumo desses três meses, e sempre que via as os fotos desse tempo, o nome que vinha à minha memória era São Domingos, contudo, li mais tarde neste blogue, que São Dominngos não era sede de Batalhão.

No P11262 coloquei a dúvida, apesar de ser São Domingos o nome que assomava à minha memória. No dia em que publicaste a minha dúvida, coincidentemente, foi publicado o Convívio do BCAV 3846; o camarada Delfim Rodrigues, organizador do Convívio a quem recorreste, não pôde ajudar na confirmação de que os oficiais da foto eram desse BCAV, pois a sua CCAV esteve estacionada em Suzana e Varela. Forneceu o e-mail do Carlos Nóvoa, que tinha servido na sede do BCAV, e que levou a foto para o almoço em Estremoz.

E realmente o Mundo é Pequeno ...e a nossa Tabanca é Grande. O Major Sampaio, presente no almoço, se identificou e a quase todos os Oficiais da foto [, vd. foto acima, e respetiva legenda].
(...) Sim, os últimos meses da minha comissão foram em Ingoré, todavia, essa palavra continua "adormecida' no meu inconsciente... Vai saber...!!! (...)

(**) Último poste da serie > 8 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20216: Tabanca Grande (486): Manuel Viegas, algarvio de Faro, ex-fur mil, CCAÇ 1587 (Cachil, Empada, Bolama e Bissau, 1966/68)... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 798. Padrinho: José António Viegas, régulo da Tabanca do Algarve.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19939: Efemérides (307): 0s 600 anos da Madeira e Porto Santo


Região Autónoma da Madeira > Funchal > Lido > Baía e ilhéu do Gorgulho > 2019


Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Ontem, 1 de julho de 2019, foi o Dia da Região Autónoma da Madeira e das Comunidades Madeirenses, pelo que nos cabe saudar todos os nosos amigos e camaradas da Guiné que nos acompamham, neste blogue, quer vivam na região autónonma ou na diáspora madeirense.

Este ano celebram-se também os 600 anos da chegada dos primeiros portugueses aquele arquipélago.  Lê-se na página oficial dos 600 Anos da Madeira Porto Santo


(..) "1418, é o ano apontado como o ano da descoberta da Ilha do Porto Santo, circunstância ocorrida após uma tempestade em alto mar que desviou da rota uma embarcação que seguia pela costa africana. Gonçalves Zarco e a sua tripulação foram salvos por este pequeno bocado de terra ao qual batizaram de Porto Santo.

Um ano mais tarde, em 1419, avistou-se outro bocado de terra, o qual foi designado por Madeira, devido à abundância desta matéria-prima.

Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo são os três navegadores que aqui chegaram e aqui ficaram, cada um com a sua capitania. Porto Santo a Bartolomeu Perestrelo, Machico a Tristão Vaz Teixeira e, Funchal a Gonçalves Zarco, isto, alguns anos mais tarde, em 1440, após se ter dado início ao Ciclo do Povoamento, em 1425, por ordem do D. João I."


Descoberta, achamento, (re)descoberta,  chegada oficial,  ocupação, povoamento, colonização...Os termos não querem dizer exatamente o mesmo.  Há controvérsia, entre os historiadores, sobre quem foram os "primeiros" a chegar ao arquipélago da Madeira (sete ilhas e cerca de 3 dezenas de  ilhéus...). Nem isso é relevante. Estas ilhas atlânticas já eram referidas na Antiguidade Clássica. A história não pode nem dever ser "glorificadora",  comoo foi claramente durante o Estado Novo e a guerra colonial. Essa função pode competir à arte, à poesia, à literatura... Como foi o caso de "Os Lusíadas" (, canto V, 5/00):

"Passamos a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assim se chama,
Das que nós povoamos, a primeira,
Mais célebre por nome que por fama:
Mas nem por ser do mundo a derradeira
Se lhe aventajam quantas Vênus ama,
Antes, sendo esta sua, se esquecera
De Cipro, Gnido, Pafos e Citera."


Interpretação: as lhas gregas, no Mediterrâeno,  como  Cipro (Chipre), Gnido, Pafos e Citera, estavam para os poetas clássicos como as ilhas atlânticas, com a Madeira em destaque, passam a estar para a poesia europeia, renascentista. E  amor de Vénus era a medida de todas as coisas...E não é pro acaso que nós a chamamos "Pérola do Atlântico".

Do ponto de vista geológico. a ilha da Madeira é mais nova (c. 7 milhões de anos, da idade miocéncia a holocénica) do que a ilha do Porto Santos (é do Miocénico Inferior, c. 18  milhões de anos)... Umas "criancinhas", quando comparadas com a "minha terra": a formação Lourinhã é do Jurássico Superior (c. 150 milhões de anos).

A portugalidade e a madeirensidade dos madeirenses, essas, têm 600 anos. E a efeméride precisa de ser comemorada (*). Neste(s) dia(s) não esqueçamos que os nossos camaradas madeirenses e porto-santenses que morreram pela Pátria, entre 1961 e 1974, na(s) guerra(s) colonial(ais). Cerca de duas centenas.




Região Autónoma da Madeira > Funchal > Sé do Funchal. >  Detalhes do Políptico da Capela-mor da Sé do Funchal (1512-1517), do Mestre da Lourinhã e ajudantes, composto por doze painéis, e que faz parte do retábulo do altar-mor...

É considerada uma das raras obras retabulares da primeira metade do século XVI, no nosso país, que permaneceu intacta até aos nossos dias. 

Dos doze panéis, há pelo menos 4 que, pelas suas caterísticas técnicas, temáticas e estilísticas, são atribuídas especificamente ao Mestre da Lourinhã,  sendo as restantes pintadas pelos seus ajudantes. Este pintor,  cuja ainda identidade se desconhece,  tem no núcleo museológico da Misericórdia da Lourinhã, duas  das suas obras-primas, o São João  em Patmos (c. 1510)  e o São João Baptista no Deserto (c. 1515... 

Tive o privilégio de há um mês, no Funchal,  observar, "in loco", este esplendoroso conjunto de trabalhos da pintura portuguesa do séc. XVI, uma provável encomenda régia, resultado da riqueza criada pelo ciclo do açúcar, o "ouro branco"...

O cultivo da cana-de-açúcar foi introduzido no arquipélago da Madeira, por finais da primeira metade do século XV. A produção de açúcar em larga escala permitiu  a sua exportação para portos da Flandres, através de Lisboa,  numa primeira fase e depois diretamente.  O consumo de açucar  começou a vulgarizar-se na Europa quinhentista, com implicações  na alimentação humana, na gastronomia, na medicina e na farmácia.  Em consequência do comércio do "ouro branco", aumentou  a importação também,  para o arquipélago, de bens "sumptuários" (, obras de pintura, escultura, ourivesaria, etc.),  satisfazendo as necessidades e exigências de "status" da elite local que enriqueceu  com a economia açucareira.

De novembro de 2017 a março de 2018, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, a exposição "As Ilhas do Ouro Branco" permitiu conhecer melhor "as elites comitentes locais através das suas encomendas – obras de pintura, escultura ou ourivesaria – provenientes da Flandres, do continente e até do Oriente. Numa última sala, expõem-se as mais destacadas obras-primas encomendadas, sintetizando, com particular brilho, a riqueza do património madeirense dos séculos XV e XVI, resultante do esplendor cultural proporcionado pelo ciclo económico do 'ouro branco'. Marcando o arranque das Comemorações dos 600 Anos do Descobrimento da Madeira e Porto Santo, esta embaixada cultural do arquipélago em Lisboa é constituída por 86 obras de arte."


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Por outro lado, alguns camaradas da Guiné, da nossa Tabanca Grande, a começar pelos nossos editores Luís Graça e Carlos Vinhal,  têm uma "relação especial" com a Madeira,  tendo formado companhia ou batalhão no Funchal (Carlos Vinhal) ou tendo combatido, no teatro de operações da Guiné, com camaradas oriundos do arquipélago da Madeira (Luís Graça).

No meu cso, recordo-me de, no regresso a casa, em março de 1971, o T/T Uíge ter parado no Funchal o tempo suficiente para nós irmos, em grupo (em bando!), cantar e dançar o bailinho da Madeira na famosa Rua do Comboio, em casa do Sousa, a mesa farta, e à volta uma alegre e numerosa família madeirense, jovial, simpatiquíssima, alegre, de que guardei para sempre a melhor memória...



Região Autónoma da Madeira > Funchal > 2 de Janeiro de 2008 > A Rua do Comboio (também conhecida por Caminho de Ferro: Vd. fotos antigas do Funchal)...onde morava, em 1971, a família do José Luís de Sousa. Por aqui passava até aos anos 40 do séc. XX o Caminho de Ferro do Monte (vulgarmente conhecido como Comboio do Monte ou Elevador do Monte), uma ferrovia de via única em cremalheira que ligava o Pombal, no Funchal, ao Terreiro da Luta, no Monte  numa extensão de quase 4 km.

A família do Sousa, o nosso Zé da Ila - era assim que o tratavamos, afectuosamente - , os seus numerosos manos e manas, ainda hoje os associo, a todos, por um qualquer automatismo da memória, ao filme Música no Coração...

Foi um momento único e mágico na viagem do nosso regresso a Lisboa...Vocês, amigos e camaradas da Guiné, não imaginam a alegria que foi, naquela casa, o regresso do mano Sousa, vivinho da costa, devolvido aos pais e irmãos, rodeado por todos os cacimbados dos seus camaradas, os furriéis e alferes da CCAÇ 12 (**).




Região Autónoma da Madeira > Funchal > Rua do Bispo > 31 de Dezembro de 2008 > O ex-fur mil at inf José Luís Sousa, da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), mais conhecido entre os seus camaradas da Guiné pelo petit nom de Zé da Ila, mediador de seguros com escritório na centralíssima Rua do Bispo... Tropecei literalmente com ele, nas minhas férias madeirenses de fim de ano de 2008...

Na altura fiquei  com o contacto da sua empresa: José Luís Sousa - Mediação de Seguros, Lda, R. Bispo 36, 1º - B, Funchal, Madeira 9000-073, Tel: 291200410... Presuno  que ele já deve estar reformado...

Ele mudou de mail, mas eu registei o endereço numa folha de jornal... que foi parar ao cesto dos papéis... O José Luís era/é  um profissional competentíssimo na área dos seguros. Tive o prazer de conhecer o filho, com quem trabalhava. Era/é, além disso, um homem de muitas contactos: num ápice arranjou-me um transitário e um sucateiro de automóveis, dois contactos precisosos para o meu sobrinho, médico, que estava a mudar-se para o Porto, depois de um ano de trabalho no Serviço Regional de Saúde.

O Sousa foi meu duplo camarada, além de ter sido e continuar a ser um querido amigo: formámos companhia em Santa Margarida (CCAÇ 2590/CCAÇ 12), fizémos a guerra juntos, dormimos no mesmo quarto (eu, ele, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Marques, o Joaquim Fernandes) em Bambadinca, de julho de 1969 a março de 1971...

Ele era o mais educado, o mais afável, o mais calmo, o mais polido, o mais correcto, de todos nós: um verdadeiro gentleman funchalense... possivelmente com costela britânica... A preocupação em afirmar-se como funchalense, levava-o a falar sem dizer os lhês... para evitar a armadilha do cerrado sotaque madeirense... Daí ter ficado conhecido como Zé da Ila... Era além disso um dos nossos tocadores de viola e baladeiros, ajudando a tornar menos penosas as nossas noites entre duas saídas para o mato.

Pertencia a uma numerosa e simpática família que morava na Rua do... Comboio. Uma família encantadora e prendada onde, rapazes e raparigas, tocavam e cantavam... É essa imagem que eu ainda guardo, da primeira vez que pisei a terra madeirense, no regresso da Guiné. O Uíge, em Março de 1971, parou umas horas no porto do Funchal, o que nos permitiu participar na festa de recepção que a família e os amigos do José Luís de Sousa lhe quiseram oferecer, a ele e aos demais camaradas metropolitanos da CCAÇ 12 que regressavam a casa, em rendição individual... 

Nunca mais esqueci o insólito nome da rua... que me pareceu mais íngreme e mais estreita na altura do que agora... (e seguramente com menos casas). Do comboio já não havia vestígios... Tratava-se de um elevador que ligava a baixa do Funchal ao Monte, começando na Rua das Dificuldades e escalando a Rua do Comboio... A linha foi extinta em 1943, se não me engano.

Recordei esta história na visita ao valiosíssimo e belíssimo Photografia - Museu 'Vicentes', instalado no antigo estúdio fotográfico de Vicente Gomes da Silva (1827 – 1906)...

Por outro lado, ligam-me à Madeira outros laços,  afetivos e profissionais... Tenho lá ido em trabalho e em lazer, desde o início dos anos 90 do sécuo passado, e feito bons amigos: por exzemplo, o Rui, a Cristina, a Sara, a Teresa, o Francisco, a Catarina...  Sem esquecer o meu cirurgião ortopedista, e camarada da Guiné,o Francisco Silva, que já me operou a um joanete e me fez uma artroplastia total da anca...

Last but the least, vou ter, vamos ter, eu e a Alice, uma neta madeirense, uma Clarinha...

Por estas muitas e boas razões brindo um Madeira à Madeira e a Porto Santo!...Ao passado, ao presente e sobretudo ao futuro!


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:


domingo, 19 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19802: Álbum fotográfico de João Crisóstomo, ex-alf mil inf, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) - Parte I: Madeira, embarque para o CTIG em 2/8/1965


Foto nº A1


Foto nº A2


Foto nº A3


Foto nº A4


Foto nº A5

Madeira > Funchal > 1965 > CCAÇ 1439 > Dia do embarque para a Guiné  [Fotos A1, A2, A3], depois da IAO [fotos nºs A4 e A5]

A madeirense CCAÇ 1439 teve como unidade mobilizadora o BII 19, partiu para o CTIG em 2/8/1965 e regressou a 18/4/1967, tendo passado por Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole, Missirá, Fá Mandinga. O comandante era o cap mil inf Amândio Manuel Pires, já falecido. Alferes (milicianos): Freitas, Crisóstomo, Sousa,  Zagalo (, este último já também falecido)

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


I. Mensagem de João Crisóstomo, com dat de 30 de abril último: 

[Camarada da diáspora, a viver nos EUA desde 1975, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), casado com a a eslovena Vilma; destacado ativista social luso-americano (de causas célebres como As Gravuras de Foz Coa, Memória de Aristides Sousa Mendes, e Timor Leste); tem cerca de 80 referências no nosso blogue; o casal veio expressaente, de Nova Iorque,  ao XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande, que se vai realizar em Monte Real, em 25 de maio; veio também ao encontro da CCAÇ 1439, e subunidades adidas, que passaram pelo Enxalé:  Pel Mort 1928, Pel Caç Nat 52, Pela Caç Nat 54]

Caro Luís Graça,

Este primeiro parágrafo é um PS - Post Scriptum….Espero que não leves a mal este "longo arrazoado”. Nem tinha intenção de escrever nada, mas tinha de dar uma explicação para as fotos que seguem. E comecei a falar e … olha o que aqui vai…

Pelo que compreendo é provável que este convívio [,na   Ericeira, Mafra, no dia 18 de maio de 2019,] seja para a CCAÇ 1439 o último encontro de "formatura geral/completa”. Vamos-nos continuar a encontrar com certeza, mas dificilmente conseguiremos encontros de "formatura completa”. 

Estive a imprimir tudo o que de mais perto diz respeito à CCAÇ  1439 ( e associados, Pel Mort 1028, CCAÇ 52, CCAÇ 54...), desde que tive conhecimento destes encontros em 2009. Evidentemente que continuarei a seguir e ler o nosso querido blogue, mas vai-me custar não estar à espera de saber quando é próximo encontro da CCAÇ 1439 , mesmo que nem sempre me tenha sido possível estar presente. 

 Fi-lo para ficar com tudo mesmo em papel, um dossiê que eu possa desfolhar com calma sempre que bem me apetecer. Tabancas, grandes e pequenas... “Encontros", convívios, tantas vivências extraordinárias que tenho experimentado e vivido. Nao foi uma nem duas vezes que tive de limpar os olhos em momentos revividos num misto de saudade, alegria e dor tudo à mistura, pela memória de momentos que me dizem/diziam pessoalmente respeito e pelo relatos de outros camaradas,   a maioria dos quais nem conheço pessoalmente, mas cujos momentos foram iguais ou parecidos aos que eu vivi, porque ao fim e ao cabo, mesmo sem nos conhecermos,  a Guiné fez de nós todos irmãos. 

Tem sido uma grande experiência desde então: não só reatei com os que comigo passaram as ruas da amargura (e bons tempos também) na Guiné, como vim a conhecer tanta gente boa de outras unidades que compartilham da mesma experiência. E com isto acabei por fazer grandes amizades. Até de indivíduos que, me parece, "nunca chegaram a fazer a tropa” mas que o destino,  servindo-se deste blogue, me proporcionou conhecer e a quem hoje eu tenho o privilégio e alegria de incluir agora entre os meus irmãos.

Se “reconhecimentos” dependessem de mim— e não digo isto levianamente ou com alguma intenção estupidamente idiota só para elogiar ou para ficar bem visto na opinião de quem quer que seja—,  eu daria de coração meia dúzia de medalhas… especialmente aos criadores/fundadores deste blogue que ao longo de vários anos nele têm andado envolvidos. Acredito que , embora conscientes de que estavam a fazer algo bom para muita gente, estes não imaginam o que fizeram e o bem,— o muito muito de bom,—que a tantos proporcionaram. 

 Foi através deste blogue, logo no início, que vim a encontrar de novo o Zagalo, a quem tive ainda a possibilidade de abraçar antes que ele nos deixasse. Depois encontrei os meus camaradas próximos ( da minha companhia, a  CCAÇ 1439, e alguns outros) de quem há dezenas de anos —literalmente— não sabia nada… E, meu Deus, que jorrada de emoções sempre que eu podia abraçar de novo estes meus irmãos! 

O mesmo que eu senti um dia, há muitos anos atrás com um amigo— e depois tornei-o a perder e nem sei onde se encontra. De nome Luís Filipe, do Algarve; Tavira?   Alguém sabe dele? Se alguém souber algo dele... PLEASE! Digam-me ! Foi alferes miliciano; esteve em Mafra comigo como cadete e depois, cada um para seu lado, nunca mais soube dele, como de tantos outros em casos semelhantes. 

Um dia, estava eu então na Inglaterra, vim de férias a Portugal - foi mais ou menos há cinquenta anos -, e apanhei o combóio do Porto para Lisboa . Nao me recordo já das circunstancias, mas sei que estava a a passar perto de Vila franca de Xira ; estava no corredor e de repente vejo o Luís Filipe , muito alto, à minha frente... e ao ver-me ele de repente agarra-se a mim e começa a chorar…apertando-me como um louco…. 
- Eh pá, disseram-me que tu tinhas morrido!… Sei que foste para a Guiné; e disseram-me que o Capitão Cera (que tinha sido um dos nossos alferes “treinadores/professores" em Mafra...) tinha perdido as pernas esmagadas e que tu tinhas morrido!…

Desculpem mencionar aqui este relembrar, que pouco tem a ver com a Guiné… excepto que me faz vir as lágrimas sempre que o lembro. Mas estava a falar de memórias e de emoções e foi este o que me veio de repente. Podiam ter sido outros, como o momento em que em Enxalé fizémos um caixão de tamanho normal para levar os restos mortais do Manuel Acoreano, ( que foi pulverizado numa mina quando fomos socorrer a coluna do Zagalo em que — ainda não sabíamos  —  o furriel Mano tinha falecido.)... Nas palavras do nosso camarada Henrique Matos; "quando digo pulverizado é o termo que melhor descreve a situação, pois sou um dos que andou à procura de restos do corpo e apenas encontrámos pequenos fragmentos de ossos com que fizemos um embrulho que pesava poucos quilos…. Tem a sua campa em Bambadinca"...

São momentos difíceis , mas que por razões muitas, quanto mais não seja como maneira de na nossa mente honrar estes nossos irmãos, não devemos nunca esquecer. E para que estas estas vivências , más ou boas , difíceis ou gradáveis, não passem ao esquecimento… abençoada a hora em que este blogue apareceu.

Bom, eu por mim falo, mas creio não estar só quando digo: Obrigado,  meus caros!. Muito muito obrigado!

E agora vamos às fotos que seguem...  Lembrei-me que, sendo este o último encontro/assembleia geral da CCAÇ  1439, era o momento de partilhar mais algumas velhas fotos/memos que tenho comigo.

E começo com a página A:

Legendas:

Fotos na Madeira, no dia da partida para Guiné [2 de agosto de 1965]: Na A1,   e fáceis de discernir, o Sargento Bicho, já falecido, eu e o furriel António Lopes no momento em que o governador [da Madeira] passava a sua revista.

Na segunda foto, A2,  o alferes Freitas [, madeirense,]  à frente do destacamento a desfilar directo ao barco. Com uma simple lupa podem-se reconhecer alguns outros rostos…

Foto A3: por razões burocráticas fui eu que assumi o comando da companhia durante e até chegarmos à Guiné, onde o capitão  miliciano Armando Pires nos esperava. O Governador [da Madeira], na presença do comandante [do navio]  foi  desejar à Companhia, na minha pessoa, boa viagem. 

Fotos  A4 e A5: nas montanhas onde estávamos a fazer a preparação final [, IAO,]  estava quase na hora de cada um dos "aspirantes a alferes” assumir o comando do seu pelotão; o Zagalo  [, Luís Zagallo,] porém não tinha pressas e mostrava a sua independência mantendo o pijama até ao último minuto [A4]...

(Continua)
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quinta-feira, 4 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19647: A galeria dos meus heróis (26): Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (Luís Graça)




Luís Graça, Guiné, Região de Bafatá, Centro de Instrução Militar de Contuboel, junho de 1969,
CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)




A galeria dos meus heróis: Aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre (*)



por Luís Graça (**)



1. Nascido no ano zero, 1945... Lembro-me de tu, Luís, teres escrito isso, muitos anos depois, no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... Lembras-te do SNI,o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, nos Restauradores ?

Lembras-te, dessa história, em 1965 ?!... Ainda pensámos em "dar o salto" até Paris, éramos vagamente existencialistas, e ainda mais vagamente anticolonialistas e anti-imperialistas, eu sonhava com Montmartre, a boémia e as copines das belas artes (o meu lado mulherengo!),enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre e querias estudar filosofia, jornalismo ou sociologia, ou coisa parecida,  na Sorbonne!...

Estava quase a completar os meus vinte anos, com a tropa à perna, sem o saber. E tu ligeiramente mais novo, um ano e picos, mas com a mania da filosofia, da crítica literária e do jornalismo, acho que eram esses os teus interesses na época.  Convidei-te para passares uns dias comigo, em Lisboa, por ocasião da montagem da minha primeira exposição de pintura. E, claro, escreveres o texto para o catálogo.


Não conseguimos convencer o nosso "gestor de conta" a financiar os nossos inconsistentes projetos de aventura. Ou melhor, só queríamos chegar a Paris, de comboio, à boleia, ou "a salto", o que desse mais jeito. Contámos os tostões. Quanto é que tu tinhas no bolso e no mealheiro ? Se calhar, menos do que eu...E, quando descobriram a marosca, os meus "padrinhos" de Lisboa, expulsaram-te de casa e, a mim, cortaram-me a "mesada"... Foi nessa altura que eu te pus a dormir  na casa que a Flora partilhava com mais duas amigas, estudantes, no Campo Grande. A Flora, a minha namorada, madeirense, estás recordado ?!

Eu era mais corajoso do que tu. Tu eras mais politizado e, sobretudo, mais pragmático do que eu:
– E os nossos pais ? – interrogavas-te tu. – E a PIDE à perna ? E a Guardia Civil espanhola antes de chegares aos Pirinéus?

E não te calavas, chamando-me à razão:
E os dez contos de réis para dares ao passador ? E vais fazer o quê, em Paris? Trabalhar como maçon ? E dormir no bidonville? E comer baguettes com marmelada ?


2. Ano zero da idade atómica. 1945… Hiroshima. O cogumelo. O horror. Mas também o fim da guerra. Libération, diziam os parisienses, ainda em 1944. Para eles, era o fim do pesadelo da ocupação nazi e o início de uma nova era. O direito à esperança, ao sonho, incluindo na nossa terra, o recomeço da história da humanidade... Blá-blá, blá-blá... 

Mas ainda não foi dessa que o Salazar caiu da cadeira...

As palavras eram tuas, escritas  no meu catálogo (exceto a referência ao Salazar, claro!)...   Até estava bonito e original, o catálogo ... não estava ?! ...Original,  "subversivo", no mínimo, provocador... Com o  teu treino de jornalista, aprendeste a  escrever nas entrelinhas, e a cultivar o sarcasmo, a ironia, o humor negro, para iludir a vigilância dos censores da nossa praça...

Uma exposição no SNI em 1965!... Que privilégio!... Lembras-te do SNI, o Secretariado Nacional de Informação, no Palácio Foz, nos Restauradores ?!...Criado pelo António Ferro,  tu até tinhas relutância em lá entrar,,,

Não havia artista que não quisesse expor no SNI naquela época!... Ora, um merdas como eu a expôr no SNI!... Um casapiano, serigrafista, sócio de uma cooperativa de artes gráficas, estudante de Belas-Artes, afilhado de um gajo do regime, aprendiz de pintor que sonhava ir para as belas-artes em Paris e pintar, ao ar livre, nas ruas de Montmartre, de boina preta, lenço de seda vermelho ao pescoço, e uma rosa na lapela... Sempre adorei o preto e o vermelho.

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, o fim de uma época, o início de outra… Que ilusão, meu amigo, tu que me chamavas o Renoir de Montemuro, só por que eu já frequentava o 3ºano das Belas Artes, e tinha um "padrinho", em Lisboa, que terá metido uma cunha, ao César Moreira Baptista, para eu poder fazer a minha primeira exposição no SNI, ali nos Restauradores…

Só por que eu fazia umas coisas démodées, vagamente impressionistas, com mais de meio século de atraso... Vagamente impressionistas, mas já a caminho do abstracionismo... Enfim, aprendiz de Renoir, talvez imitador da Vieira da Silva, de que só conhecia umas reproduções de má qualidade. Alguns amigos, como tu, faziam-me o favor de me incentivar, mostrando que eu tinha talento!... Sim, ao nível da gravura, acho que podia ter ido mais longe!...

Ainda ganhei, confesso, uns tostões com as serigrafias, havia gentinha com dinheiro fresco que comprava tudo que fosse obra de arte, naquela ... A começar pelos amigos do meu "padrinho" de Lisboa... 

Enfim, aprendiz de Renoir, aprendiz de pintor, que o sonho naquele tempo não pagava imposto!...


3. Na minha cédula pessoal, um nota a lápis já meio sumida. Letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre ou de conservador do registo civil. Qualquer coisa como "mais uma boca com direito a senha de racionamento". Milho, açúcar, farinha, azeite, café, etc., que tinha que se ir à vila de Cinfães buscar, serra abaixo, serra acima… Uma porrada de quilómetros a pé ou de burro... Ou então na loja do "Francês", na minha aldeia, tudo mais caro, porque aqui não havia concorrência...

Havia racionamento de géneros por causa da guerra, a II Guerra Mundial. Lembras-te ? Talvez não te lembres, nasceste já depois, em 47, não apanhaste esses tempos que foram duros para a minha mãe e os meus avós, e para todos os demais pobres da minha aldeia. Tu estavas muito mais perto da capital, no Oeste Estremenho, imagino que lá se vivia melhor, à beira-mar.

Nesse mesmo ano em que nasci, filho de mãe solteira e de pai incógnito ( um estigma que me perseguiu até ir para a tropa, ou me persegue ainda hoje!), acabava de regressar da Índia (da Índia portuguesa, como então se dizia, englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) o filho do "Francês", o cabo chefe da aldeia e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 

Seria depois o primeiro filho da terra a estudar na Universidade. Casou-se no Porto, teve um primeiro filho em 1947, o Gustavo.  E no Porto arranjou um tacho como advogado de uma conhecida empresa. 

O "Francês" tinha uma pensão do ministério da guerra. Fora gaseado na Flandres. Regressara herói medalhado de La Lys. Admirava Pétain, Sidónio Pais, Gomes da Costa, Salazar e Franco. Vociferava contra "a corja dos republicanos e dos 'rojos' que tinham destruído a Espanha". Berrava, igualmente, contra a malta do "reviralho", os que eram contra a "situação", como então se dizia. Mas não havia malta do "contra", na minha aldeia, a não ser um pobre diabo, sem eira nem beira, que ficava na corte dos animais, e que era meio atolambado, sobrevivendo à custa de pequenos fretes que ia fazendo, a este ou aquele.

O regedor era o meu... padrinho de batismo! Por favores que lhe deviam (e deferências que lhe prestavam) os meus avós e a minha pobre mãe!... Nunca soube quais. Nunca quis saber. Ou melhor, acabei por saber, ainda muito novo: havia quem na aldeia insinuasse que ele era o meu pai biológico... Na escola, chamavam-me "o filho do Francês", o "zorro", o filho bastardo... Nas aldeias, toda gente sabe tudo (ou quase tudo) da vida da gente. Mas eu ia aos arames, cheguei a andar à porrada na defesa do bom nome da minha mãe e dos meus avós, mal vistos na aldeia.

A minha mãe tinha sido criada de lavoura na casa do "Francês", desde muita nova, ao longo dos anos da guerra... Solteira, menor, com 18 anos, apareceu grávida, teve-me a mim em agosto de 1945...Uma mulher, muito bonita, e sobretudo de enorme coragem, como muito poucas que conheci na vida: recusou casar à pressa, só para salvar as aparências, não acatando o conselho do padre de Cinfães ou de Resende (já não me lembro), que ainda era aparentado com os meus avós... Casaria, sim, mais tarde, "de livre vontade",  com um rapaz bastante mais novo, pastor de cabras, o "cabreiro", de quem teve mais filhos, meus meios-irmãos, com quem, de resto, pouco convivi. E de quem perdi praticamente o rasto, lamento dizê-lo.


4. Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, passei a detestar as relações de clientelismo, dependência e nepotismo que vigoravam na aldeia. A minha aldeia da serra de Montemuro, a meia encosta, uma aldeia de pastores e de rendeiros que não era muito diferente de tantas tabancas fulas por eu onde passaria, depois, na Guiné…


Gostava que ainda chegasses a conhecer a minha aldeia. Não sei se terei coragem para lá levar-te. Disseste-me que de Candoz, a que chamas a "tua tabanca", se via Cinfães, do outro lado do rio Douro, com a serra de Montemuro à tua frente... Em agosto, no teu querido mês de agosto, bem podíamos lá dar um salto!…

Eu, confesso, que ainda gostaria de regressar, pela última vez antes de morrer, às minhas raízes telúricas, mas tenho uma relação de amor-ódio com a terra que me viu nascer. Voltei lá uma meia-dúzia de vezes, se tanto, depois de regressar da Guiné, a última das quais, para enterrar a minha pobre mãe, nos anos 90... Morreu cedo, a pobre, de doença oncológica, com sessenta e poucos anos. E os seus filhos, meus meios-irmãos, são-me completamente estranhos, conheci alguns de vista, no enterro da nossa mãe, mas já não seria capaz de os reconhecer se os encontrasse. Foram à vida, espalharam-se pelo mundo. Tal como eu, a partir dos 10 anos.

5. Havia sempre festa na aldeia quando um filho regressava das colónias. Mais tarde, Ultramar. No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. O filho mais velho e herdeiro do "Francês", estava a chegar em meados de 1945, no final da guerra, tinha eu uns escassos meses, e uma ama de leite, a minha mãe ficara sem peito, talvez devido a depressão pós-parto...Os meus avós maternos, com quem fui criado, é que me contaram, mais tarde, quando eu já tinha entendimento para as coisas da vida e do mundo...

Quando puto, ainda sonhei ser missionário, e ajudar a converter os pretinhos lá nas missões do Ultramar. Problemas de pulmões impediram-me de seguir essa vocação precoce. Estás-me a imaginar de sotaina branca e longas barbas pretas, não estás ?! E acabar, mártir e santo, frito no caldeirão de uma tribo de canibais! Ah!, como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!... 


Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça, por certo o padre, a catequista ou a professora, o pregador da quaresma que vinha de fora... Ou o próprio regedor... Mas a serra de Montemuro, que abarca Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire e Lamego, deu muita gente para as colónias e depois para a guerra, mas também para a emigração. Eu próprio estava longe de imaginar, no verão de 1965, que três anos depois estaria a desembarcar em Bissau!


6. No início de 45, quando nasci, os tempos ainda eram bem duros. Escondia-se, na serra, nas minas de água, o milho, o centeio, os cabritos e os anhos, dos fiscais do Governo. Como sempre se escondera o pão (e o gado), da vista de todos os invasores e usurpadores. Contavam os meus avós, maternos, esses com quem vivi até ir para a Casa Pia, em 1955. Mesmo assim fazia-se festa rija quando os nossos rapazes regressavam das guerras do Ultramar, ou alguém, mais raramente, voltava do Brasil... para casar!...

O foguetório não era como hoje, em que se gastam rios de dinheiro... Nesse tempo era um luxo. Lançavam-se uns petardos. Pólvora seca. Não havia dinheiro para nada. Só no São João, que era a festa anual do concelho. Era a altura em que se fazia algum graveto. Os cabritos e os anhos do São João ajudavam a compor o magro orçamento das gentes da minha aldeia. Não havia dinheiro, pura e simplesmente. Não me recordo até aos dez anos de ver uma nota de 20, 50, muito menos de 100 escudos. Só tostões, pretos, encardidos como as mãos, sebentas e rugosas, daquela gente.

Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro. Os cabritos e os anhos. Ou até nos barcos rabelos, embarcados no ancoradouro de Porto Antigo. À boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido. Ainda não havia as barragens, e o Douro era belo, puro, duro e selvagem, com um percurso cheio de cachões… Hoje está completamente amansado, e já aqui não chegam a lampreia e o sável.


7. O "Francês", meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. O homem mais rico da aldeia. Negociante de gado arouquês, com clientes no Porto e até em Lisboa. Antes disso, ganhara muito dinheiro no garimpo e no contrabando do volfrâmio, com um sócio de Moncorvo, seu antigo camarada de armas, a quem também chamavam "Francês", por ter andado na guerra. 


Tinha fama de ser violento e andava sempre armado, o meu padrinho. Percorria os concelhos à volta da serra, de Resende a Castro Daire, numa velha camioneta Ford. Foi o primeiro a ter transporte automóvel. Além disso, era o dono da única mercearia da aldeia, com um anexo, misto de café e tasco, onde se podia ouvir a Emissora Nacional, através do único rádio existente ali nas redondezas… Vendia a fiado. Não havia luz elétrica, nem sequer a barragem do Carrapatelo, mas ele já tinha gerador... 

Ia lá a casa o povoléu para ver (e, de olhos arregalados,  benzer-se!...) aquela máquina que "parecia coisa do demo", que transformava a noite em dia...E tinha também o único telefone da aldeia... Por todas estas razões, mais o rol dos fiados, era o homem mais importante, mais poderoso e sobretudo temido e venerado da aldeia... Todos, de uma maneira ou doutra, lhe deviam favores...

Ainda por cima, dava-se bem com a gente graúda de fora: por exemplo, o major de Porto Antigo, que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto, e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época, a nível do distrito de Viseu. Não sei, nunca o conheci, nem posso confirmar.

Ao que parece, a esposa do major, a "Fidalga", mandava cartas diretamente ao Salazar, contava a minha mãe, a pobre da minha mãe, sempre atenta a (e não menos temerosa de) os fios com que se costurava o poder.

Nem por isso o meu padrinho, que era militante da União Nacional e amigo dos presidentes das câmaras da região e do governador civil do Porto, metera uma cunha para livrar o filho da tropa, durante a II Guerra Mundial. O rapaz esteve em Goa, como expedicionário, com muito orgulho do pai e maior mágoa da mãe (a quem chamávamos a "Madama").

Ele, o meu padrinho, sempre teve um grande carinho por mim. Ou, talvez melhor,  algum discreto  carinho por mim: chegava a beijar-me na testa, mas nunca em público. Aos 10 anos deixei de o ver... Ele, o padre, a professora da escola primária e os meus avós arranjaram maneira de me mandar para a Casa Pia em Lisboa, para "aprender um ofício"...

E foi em Lisboa que arranjei (ou me arranjaram) uns novos "padrinhos", um casal sem filhos, que me "adotou" e me "protegeu" até à minha ida para a tropa...Ao fim de semana, saía da Casa Pia, em Belém, apanhava o elétrico,  e ia ficar na casa deles, em Benfica. Depois de fazer o 5º ano, passei a viver com eles, fiz o liceu e matriculei-me nas Belas Artes. Ele era um quadro superior do Ministério das Corporações e Previdência Social. Sempre o tratei cerimoniosamente como "padrinho". Nunca houve adoção legal, porque eu já não tinha idade para isso.

Já doente, com setenta e tal anos, o meu outro padrinho, o da terra natal,o de batismo (meu hipotético pai biológico!),  soube da minha partida para África em 1968, depois de eu ter chumbado em Belas Artes, por ser cábula. Eu nunca lhe pedira nada, nem ele nunca me dera nada, sequer o tradicional folar da Páscoa. E muito menos lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. Inclusive proibi a minha mãe e os meus avós, ainda vivos, de o fazerem por mim. Nem ele era homem para aceitar um pedido desses,  mais do que humilhante, inconcebível, para ambos. Nem sequer ao "padrinho" de Lisboa eu meti qualquer cunha ( a não ser a entrada no SNI, mas isso foi até iniciativa dele).

Tal como o "Francês" (nunca o tratei pela alcunha!, era "sua benção, padrinho" e pouco mais, sentia-me inibido na sua presença), eu tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada, enfim, da coerência. Coisas que hoje não vejo ser valorizadas pelos mais novos, por exemplo os meus filhos e sobrinhos.


8. Quando voltei da Guiné, em 1970, ele já tinha morrido, de um AVC isquémico. Ele e o Salazar ( que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente, mas de quem era um admirador acérrimo e acrítico).

O seu maior desgosto era um dos netos que devia seguir as peugadas do pai, advogado no Porto (e meu presumível irmão, mais velho). Numas férias de verão, em meados dos anos 60, ficou em Londres a lavar pratos. Em setembro desse ano já estava na Suécia, em Lund, aclamado como "herói", por ter fugido à guerra colonial... Fazia 18 anos,  era dois anos mais novo do que eu. Foi dado como refratário.  Como estava a estudar na Faculdade de Direito de Coimbra, já no 2º ano,  beneficiava do adiamento da data de incorporação, tal como eu, de resto. Aproveitou para dar o "salto", numa viagem de intercâmbio universitário, segundo me constou. 


Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, até filho de general era mobilizado. Nunca conheci nenhum general,  mas imagino que, na pior das hipóteses, os filhos dos generais ficavam na guerra do ar condicionado: em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

Nunca conheci nenhum, minto: conheci o Schulz e o Spínola, mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa. O avô, o "Francês", pelo menos publicamente, viu na traição do neto uma desonra para a família (e para a terra, que considerava, abusivamente, uma extensão da família). 
– Coimbra, a república dos estudantes jacobinos, dera-lhe a volta à cabeça  lamentava-se ele.

 Para mais era o seu neto querido, o mais ladino, o mais  vivaço, o mais parecido com ele.
– Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça –  concluía o meu padrinho, quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
 Sua bênção, padrinho   foram as primeiras palavras que lhe disse, desde há anos…
– Já o pai não prestava, era um fraco – arrematava  ele, entre dois ataques de tosse. 
– As melhoras, padrinho !– foram as últimas palavras que eu lhe dirigi… 

Julgo que eram sinceras, que nada tinham de cínico. (Mas como eu tanto gostaria de lhe poder chamar pai, se ele tivesse tido a coragem, nessa ocasião única, de me chamar filho!...)

Puxou então de uma nota de 100 paus, e disse-me que era "para a viagem de regresso à Guiné, meu rapaz". Fiquei banzado, nunca me tinha dado nada, nem um rebuçado ou um pirolito... Quis recusar, mas ele sentiu-se ofendido...

Impressionou-me a sua decadência, a sua descida do pedestal, acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… A saúde a falhar, a família a desmoronar-se, a Pátria a esvanecer-se, o Império a ruir, a aldeia a minguar com a emigração… Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, que era para ele o coveiro do Estado Novo e do Império. 

Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois, respeitado, por certo,  mas não amado. Durante décadas fora pai, padrinho, cacique e patrão, um verdadeiro "capo", um "padre padrone", um cabo chefe de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal… que pouco mudara com as mudanças de regime.


9. Gustavo, o neto do meu padrinho da aldeia, ainda me escrevera um dia para o meu SPM, já no final da minha comissão. Éramos amigos (e, provavelmente parentes: eu podia ser tio dele, mas tinha desistido há muito da ação de impugnação da paternidade!). 

Ou melhor, éramos mais conterrâneos do que amigos , tínhamos brincado juntos até aos 10 anos, quando garotos, nas férias de verão. Ele estudara em colégio particular, e vivia em zona fina no Porto. Só quando entrou para a Universidade, é que se mudou para Coimbra. Não gostava da aldeia do avô e do pai, que achava terra de gente "parola". Mas ia lá algumas vezes, com os pais, nas férias grandes, no Natal e na Páscoa. Nessa altura, brincávamos por entre as fragas que cercavam a aldeia. Havia aquela cumplicidade de putos, pesem embora as diferenças sociais. Ele era o "menino", que comia ovos estrelados, e eu o "catraio", alimentado a caldo e a broa... Nós, os putos da aldeia éramos a "canalha".

Agora, em Estocolmo, na Suécia, militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer e angariava dinheiro para o PAIGC e para apoio aos "exilados políticos". Dinheiro que, no caso do PAIGC, tanto servia para comprar livros e medicamentos como armas e munições, questionava-me eu. Irritou-me a sua missiva, cheia de metáforas, clichés, prosápia, slogans, frases pomposas, retiradas do livrinho vermelho do execrável camarada Mao. (Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo.)


10. As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC, algo quixotescas, guevaristas, românticas, desvaneceram-se com os imperativos da camaradagem na caserna e com a prova de fogo na frente de batalha, quando cheguei à Guiné. Não se podia objectivamente estar "do lado de cá", fardado de camuflado, e equipado com a G3, e ser-se um simpatizante, vagamente romântico, dos gajos do "outro lado de lá", daqueles que nos combatiam (e nós combatíamos)… E que feriam e matavam os nossos camaradas e a população que estava do "nosso lado".

Além disso, devo dizer-te, chocavam-me os métodos de terror usados pelo PAIGC contra os fulas, quer na zona leste quer no sul (que também conheci)… Tinha alguns amigos guineenses, entre eles, fulas, guias, picadores e milícias, desde Pirada até Piche, e depois em Cacine…

Nunca lhe respondi, ao Gustavo. Achava-o um puto mimado, egoísta e provocador. Em suma, um cabrãozeco. Não me admirei de o vir a encontrar, depois do 25 de Abril, num dos partidos do poder. Andará hoje por Bruxelas, segundo me disseram, assessor de um qualquer merda de político da nossa praça, com assento no Parlamento Europeu ou na Comissão Europeia. Tinha-se casado com uma sueca. Mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 

Confesso-te que, secretamente, ainda lhe cheguei a invejar a sorte, ele ali no bem bom da Suécia e das suecas louras, de olhos azuis, que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos…... E eu a gramar a pastilha de uma comissão de serviço militar na Guiné!

Achei que o mundo não era justo. Mas mesmo assim não me podia queixar. Estava vivo. E os primeiros tempos, passados entre Nova Lamego e Bafatá, até nem foram maus. Ainda fiz o gosto ao dedo e pintei alguns quadros,em acrílico, que até tiveram um ou outro comprador, a preço simbólico. Outros ofereci a gente conhecida e amiga, incluindo uma família de comerciantes libaneses cuja casa costumava frequentar, e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar.

Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta, isto é, da aldeia de Montemuro. da Casa Pia e depois do bairro de Benfica… Uma deceção!... Nunca me perdoei, de resto, ter estupidamente chumbado nas Belas Artes e de ter sido chamado, prematuramente, para tropa...


11. Nunca falei disto a ninguém, passei por uma grave crise existencial nos últimos meses da comissão, ainda tive, uma vez, uma única vez, depois de ter despejado uma garrafa de uísque, a pistola Walther apontada ao céu da boca. Senti a atração da morte, a vertigem do nada, a comiseração da autodestruição,
a autopiedade, a autocompaixão...Mas, mesmo anestesiado, era demasiado cobardolas para resolver, com um tiro mortal, as minhas contradições pequeno-burguesas, agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, que tu ainda conheceste, no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, em 1965, a bela menina-família do Funchal, que estava a estudar serviço social, ali no Campo de Santana, em Lisboa, tinha-me trocado por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… Ainda trabalhara uns tempos na Misericórdia de Lisboa, num dos projectos de realojamento de população de um bairro de lata, antes de regressar à Madeira. 


Não esqueço a última carta que ela me mandou, de despedida, em 1970, a dizer que ia para a Venezuela, para casar. Era um encanto de miúda, delicadíssima como uma orquídea, linda de morrer, com pele de veludo e blusinhas de renda, que mal tapavam os seus deliciosos marmelos, mas com pouca ou nenhuma margem de decisão em relação à sua vida pessoal e sentimental.

O clã é sempre quem mais ordena. O pai, tanto quanto percebi, era um homem do regime, da média ou média-alta burguesia funchalense, mas com problemas financeiras, por negócios, mal sucedidos, na área do import-export, bananas, frutas tropicais, flores, eletrodomésticos e coisas assim do género. Família numerosa, muitos manos. 

Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora. Nunca pensei, de resto, em pedir-lhe a mão. Muito menos depois de conhecer o paraíso da Guiné. Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão. Namorávamos apenas... Ou trocávamos cartas e aerogramas. E ela fora inclusive ao meu embarque, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Fiquei surpreendido quando um furriel de uma companhia madeirense, por sinal do Funchal e conhecido da família da Flora, e que sabia da nossa história, veio-me lembrar que seria bom decidir-me e pedir-lhe a mão em casamento, de acordo com os usos e costumes da terra... 
Porque  havia mais pretendentes na fila, à porta de casa!...  

Estávamos a comer umas ostras e a beber umas cerveja, numa esplanada em Bissau, talvez no "Pelicano", já não me lembro. Foi um choque. Fiquei engasgado. Não estava preparado para tomar nenhuma decisão, e muito menos naquela parte do mundo, no cu de Judas. Muito menos para decidir quem deveria ser a mãe dos meus filhos. Estava na Guiné, estava na guerra, sem saber o que fazer da minha vida, sem saber sequer se iria chegar à meta, que era cumprir a minha pena de 21/22 meses, de “perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”, a que fora condenado pelo único crime de ser português, natural de Cinfães, filho de mãe solteira, e de pai incógnito, o filho da puta que a violara… e que, cinicamente, se oferecera para ser o meu padrinho de batismo. 

No mínimo, a minha pequena grande ambição, e a única,  era chegar inteiro à meta, de novo ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, donde havia partido... Inteiro, de cabeça, tronco e membros, e com os tomates no sítio. Ainda tentei telefonar-lhe, à Flora, de  Bissau (e depois de Nova Lamego). Em vão. As ligações com a Madeira não eram fáceis. Desisti. Sempre fui, afinal, um merdas, um fraco, um falhado. Nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido com a minha encantadora namorada madeirense que, cansada de esperar, acabou por me trocar... por um padeiro venezuelano rico!


12. Já agora, e se ainda tiveres pachorra para me ouvir, conto-me o resto da história, já que me apanhas em maré-alta de confidências...

Acabei, já em Lisboa, bancário, por casar com uma galega de Orense, que nunca chegarás a conhecer, por que já fomos cada um à sua vida… É apenas a mãe dos meus dois filhos, um deles a viver em Vigo, e cada vez mais galego como a mãe.

Depois, meu amigo, veio o rol de desgraças que me aconteceram. A descida aos infernos. A cafrealização, à maneira do Rimbaud. A porrada do segundo comandante no Gabu. A ida, por castigo, para o sul, para Cacine, em rendição individual. O tiro de Kalash que me mandou quase um ano para o Hospital Militar da Estrela. Enfim, poupo-te os pormenores, um dia contar-tos-ei, se ambos tivermos tempo e pachorra, eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos guardados no armário da minha memória…

Esqueci a Guiné durante décadas. Ou tentei esquecer a Guiné (o que é difícil quando te vês ao espelho e tens uma bruta cicatriz no peito). Até ao dia em que, não sei como nem porquê, vi na Net o teu nome, a tua cara, os teus óculos, associado a Bambadinca, um dos poucos sítios de que eu até guardava boas memórias, da minha breve passagem por lá, em trânsito para Bissau… Toda a malta do leste tinha que passar por Bambadinca... Eu sei que fiquei lá umas noites, à espera do "barco turra", para Bissau.


13. É verdade, desencontrámo-nos na Guiné. Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado, podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro, entre 1969 e 1970, nomeadamemnte em Bafatá, onde devemos ter estado alguma vez, no mesmo dia e na mesma hora, embora eventualmente em sítios diferentes, mas muito perto um do outro. 

Achei piada ao teu jogo de palavras, quando, ao telefone, me respondeste ao meu olá: “o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te para marcarmos um encontro e matar saudades. Com mais tempo e vagar. Se ainda formos a tempo... É coisa que, de resto, me vai faltando, o tempo. Cada vez mais. Ando agora com o frenesim das viagens, por terra, mar e ar: só para saberes, já visitei mais de cem países dos cinco continentes... E ainda me faltam outros tantos...Tenho pressa de viver, à medida que eu vejo os meus parentes, amigos e conhecidos lerparem, naquela idade em que ainda há a ilusão de que temos o resto da vida toda à nossa frente. Eu já não tenho essa ilusão:  vivo o dia a dia!"Carpe diem", é o meu lema.

Preciso de ganhar coragem. Confesso que tenho medo de revisitar o passado. Tenho medo das armadilhas do passado. E, por agora, ando a recuperar o tempo perdido, depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco, a lidar com o dinheiro dos outros. Aceitei vir-me embora, com uma indemnização. Ou mandaram-me embora, para ser mais correto.

Até lá, ao nosso próximo encontro, se formos vivos, um abraço, como vocês dizem, do tamanho do nosso Rio Geba.

Assina este relambório o teu falhado amigo pintor, e, pior do que isso, frustrado companheiro da viagem "a salto", até Paris, viagem que nunca passou de um devaneio de umas tantas tardes de verão em que estivemos, juntos, em 1965, na casa dos meus "padrinhos" em Benfica e no SNI, o Secretariado Nacional de Informação, ali no Palácio Foz, a preparar a exposição que foi a minha "vernissage", entre copos de ginjinha nos Restauradores. Recordo esse tempo com muita saudade, muito mais do que a Guiné.


Até sempre, amigo e camarada!


Teu F...

o Renoir de Montemuro.


PS1 - Parabéns pelo teu blogue de que fui apenas um fortuito visitante. Mas não me peças para lá voltar.

E já que falei o meu "padrinho" de Lisboa, que tu conheceste (e bem, por ser um homem irascível e autoritário), tenho a dizer-te que ele foi, pobre diabo, uma das vítimas do 25 de Abril: trabalhava na Praça de Londres, no Ministério das Corporações e Previdência Social, foi saneado, pela Comissão de Trabalhadores, por ser assessor de um "fascista", entrou em depressão, cometeu suicídio... 

 Confesso que fiquei desolado: nunca foi o substituto do pai que eu nunca tive,  mas foi, para mim, um bom homem... À maneira dele, quis sempre o melhor para mim. Estou-lhe grato por me ter ido "buscar" à Casa Pia, e me ter dado uma "família normal", entre os 10 e os 20 anos... Foi graças a ele que continuei a estudar e entrei em Belas Artes. A minha "madrinha", essa, ainda aguentou uns anos, morreu de abandono e demência...Era professora de liceu...


PS2 – Nunca mais voltei aos Restauradores para beber uma ginjinha… E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para o seu lado... Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto, quando voltar a Lisboa. Afinal fiquei com uma pensãozeca de DFA, a par da reforma do banco. Vivo sozinho, e com poucos luxos, tirando as viagens.


________


Duas notas do autor:


(i) Ainda estou para beber a tal ginjinha, prometida pelo meu amigo F..., "aquele rapaz de Montemuro que queria ser pintor em Montmartre"... Nunca mais deu sinal de vida, depois que falámos longamente ao telefone, há uns anos atrás. Deve ter mudado de mail e de telemóvel. Sei que adora(va) viajar. E que tem(tinha) um filho, casado, arquiteto, a viver nos arredores de Paris. Enfim, deve andar por aí a dar o resto da volta ao mundo...Ou a descobrir novos mundos...

Mas perguntar-me-á o leitor mais atento ou curioso: "como é que, afinal, o conheceu e onde, a esse tal rapaz de Montemuro"? A resposta é simples: no Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã, no verão de 1964.. Tinha eu 17 anos. Os "padrinhos de Lisboa" costumavam lá alugar uma casa de verão e adoravam a lagosta suada do Zé Felipe... Foi lá que eu descobri o seu talento artístico.  Passámos a corresponder-nos. Até que veio o inesperado convite para lhe escrever o catálogo, um ano e tal depois.


(ii) Um bilhetinho para o F...

Meu caro F...

Não tenho a certeza se alguma vez vais ler este texto, que resume o essencial que eu sabia de ti mais o que passei a saber,  na nossa última (e única) conversa ao telefone, em 2008.

Mas sempre te direi que ninguém é feito de uma só peça, nem muito menos a nossa história (individual e coletiva) é escrita a preto e branco.

Foi o nosso autorretrato possível (ou a "selfie", como se diz agora) para este blogue que tu não segues, porque és daqueles que pôs (ou gostava de pôr) uma pedra (tumular) sobre o passado...

"O passado (e nomeadamente, o meu tempo na Guiné) está morto e enterrado", acho que foi a tua resposta ao meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande.

Respeito a tua decisão, esperando que não seja definitiva... Por isso também não te identifiquei... Mas, como eu costumo dizer,  a nossa Tabanca Grande não tem portas, nem cavalos de frisa, nem arame farpado... Podes entrar em qualquer hora do dia ou da noite...

Se (ou quando) passares por aqui perto, faz-nos uma visita... Eu, pessoalmente, ficarei radiante. Por mim, por ti, pela nossa velha amizade de juventude.

Como a vida é feita de surpresas, talvez a gente ainda se encontre, em agosto, nas Portas de Montemuro... E a propósito, nunca me chegaste a dizer qual é a tua aldeia. Da minha tabanca de Candoz até à tua tabanca de Montemuro, do outro lado do rio Douro, vai apenas um tiro de obus 14...

Um abraço fraterno... Luís Graça