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segunda-feira, 26 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22141: Notas de leitura (1353): "Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso; Caleidoscópio, 2020 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2021:

Queridos amigos,

Um grande ensaio historiográfico, amassado com factos documentais que estavam encerrados nos arquivos, parecia que ninguém dava por eles. O Exercício ALCORA estendeu-se à Guiné, inopinadamente, Pretória conhecedora do que se estava a passar na Guiné emprestou ao governo português cerca de 6 milhões de contos. É um tempo de contradições e paradoxos. Há conversações secretas para cessar-fogo e autodeterminação da Guiné, e para independências dirigidas por brancos em Angola e Moçambique, diligências de que existem provas irrefutáveis; em simultâneo, anda-se numa correria para reapetrechar a Guiné com equipamento anti-míssel, aviões que pudessem enfrentar os MIG, compras de morteiros 120 mm, uma enormidade de minas anticarro, e muito mais.
 
Faltam investigações para saber da genuinidade de todos estes contactos secretos ou se de facto o regime atingira o mais alto grau de esquizofrenia. O trabalho de José Matos e Luís Barroso responde cabalmente à satisfação de quem procura compreender o frenesim deste fim de Regime, se se tratava exclusivamente de um compasso de espera a supor que o poder negocial aumentava e que os movimentos de libertação viriam sujeitos a cedências para haver negociações que salvassem a face a Marcello Caetano, isto no exato momento em que Spínola escrevera um livro que dera propulsão ao movimento dos capitães. O mínimo que se pode dizer é que a História por vezes se faz de derrisão.

Um abraço do
Mário



O Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné (1)

Mário Beja Santos

José Matos

"Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso, Caleidoscópio, 2020, é uma das obras historiográficas mais importantes para a compreensão da guerra da Guiné de publicação recente, diria mesmo de leitura obrigatória. Basta atender ao que os autores propõem na contracapa: 

“O objetivo deste livro é estabelecer a ligação entre o esforço de guerra de Portugal na Guiné e o apoio financeiro que a África do Sul disponibilizou a Portugal no início de 1974, no âmbito do estabelecimento de uma aliança militar entre Portugal, Rodésia e África do Sul, com o nome de código ‘Exercício ALCORA’. O apoio da África do Sul no esforço militar português em Angola inicia-se em meados de 1967, através da execução da Operação Bombaím para garantir apoio aéreo às operações conduzidas no leste e sudeste de Angola. O resultado da Operação foi mais modesto do que o esperado, originando a apresentação do plano de defesa para a África Austral, sob a direção estratégica de Pretória, viria a originar o Exercício ALCORA, em outubro de 1970. O objetivo de Pretória era garantir a sua primazia na condução da estratégia de contrassubversão na África Austral, em que Angola, Rodésia e Moçambique desempenhavam a sua defesa avançada. Embora estabelecido para a manutenção do ‘reduto Branco’, na África Austral, o apoio financeiro resultante do Exercício ALCORA e acordado no início de 1974 entre os governos de Portugal e da África do Sul, seria principalmente para reforçar a capacidade militar das forças portuguesas na Guiné”.

Luís Barroso

Trata-se de uma investigação que traz dados novos, praticamente desconhecidos nos trabalhos de investigação sobre a guerra da Guiné: as incidências do Exercício ALCORA para adquirir armamento e equipamento suscetível de reequilibrar o que se estava a passar no teatro de operações guineense. Obra bem enquadrada, passando em revista: o contexto internacional, caraterização da guerra da Guiné, o imperativo da modernização da nossa Força Aérea, a problemática dos aviões soviéticos MIG, o reequilíbrio que exigia o míssil Crotale, radares de defesa antiaérea, mísseis terra-ar portáteis e novas armas para o Exército, as cedências da administração Nixon e, por fim, os contatos secretos no fim do Estado Novo.

Uma das aparentes contradições neste fim do Estado Novo é em simultâneo o estabelecimento de contatos conducentes ao fim da guerra da Guiné e a processos de autodeterminação em Angola e Moçambique e a febril e secretíssima operação de rearmar a Guiné com armas antimíssil e morteiros 120 mm. Rui Patrício, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, enviara o cônsul português em Milão, em março de 1974, a Londres, para contatos preliminares com uma delegação do PAIGC, pretendia-se o cessar-fogo e abrir caminho para a independência; enquanto decorre este contato secreto, o mesmo Rui Patrício está envolvido nas negociações para a compra de Caças Mirage, dados como fundamentais para a defesa da Guiné, Washington também estava a ser pressionada para vender mísseis terra-ar portáteis, os Redeye. 

Como lembram os autores, todas estas compras seriam financiadas por um avultado empréstimo concedido pela África do Sul em março de 1964, 6 milhões de contos. As fontes documentais usadas pelos investigadores foram sobretudo o Arquivo de Defesa Nacional, o Arquivo Histórico da Presidência da República e o National Archives of South Africa.

Representação de um Mirage IIIEPL, com uma camuflagem especial contra mísseis guiados por calor
F-86 Sabre

Enceta-se a obra com o enquadramento da ideologia imperial portuguesa e a evolução dos modelos coloniais finda a II Guerra Mundial. Até meados da década de 1950, Salazar estava confiante que o Regime não seria estilhaçado pela emergente vaga anticolonial, quando esta se manifestou, a diplomacia portuguesa teve que rever a estratégia de alianças e assim se chega à aproximação à África do Sul. 

“O ano de 1961 marca uma mudança clara na predisposição do governo português em encarar a África do Sul como um apoio de futuro importante para a manutenção do esforço de guerra. É uma mudança substantiva em relação às desconfianças dos anos 1950, em parte devido aos receios de subalternização da importância do país na defesa de África. Mas também em relação à recusa de Salazar em enveredar por uma aliança militar formal, abordada em 1960 pelo comandante das Forças Armadas sul-africanas, general Stephen Melville, depois dos acontecimentos do Congo”

E assim se vai gradualmente encenando uma aproximação, Salazar mantinha reservas em estabelecer uma aliança formal com os sul-africanos, o Estado Novo irá apoiar a independência da Rodésia e os autores desvelam como passo a passo se caminhou para o Exercício ALCORA. A guerra de guerrilhas alastrara para outras colónias, não se podia manter uma guerra barata, as despesas militares incrementavam-se e no final da década de 1960, na maior das confidencialidades, já se pediam empréstimos à África do Sul, de quem se aceitou diverso material de guerra. E os autores também revelam os dados essenciais da mudança na política externa norte-americana em que as bases das Lajes tiveram um papel fulcral. Houve também aliados europeus, notoriamente Bona e Paris, com altos e baixos, mas sempre com vendas de armas e apoios diferenciados.

Como a situação na Guiné se alterara radicalmente em 1973, enquanto o discurso de Spínola roça o catastrofismo na documentação enviada para Lisboa e nas suas declarações no Conselho Superior de Defesa Nacional, em junho, durante a visita de Costa Gomes, chega-se a um consenso quanto às medidas a adotar. 

“Os militares defendem que é necessária uma alteração no dispositivo militar para uma linha que evite a aniquilação de guarnições de fronteira, o que implicava uma contração do dispositivo com a concentração de meios na zona mais interior da Guiné de forma a ganhar tempo e consolidar um reduto final que in extremis ainda possa permitir uma solução política do conflito. A manobra pretendia também dar tempo a Lisboa para futuras negociações com o PAIGC. Spínola concorda com a remodelação do dispositivo militar visando a economia de forças e salienta a carência de meios no teatro de operações, o que exige a atribuição urgente de novos meios de combate, apresentando uma lista de equipamento militar que pretende para a Guiné. Costa Gomes concorda com a manobra delineada, mas refere que não é possível a breve prazo reforçar o teatro de operações com os meios pedidos por Spínola”.

Ciente da gravidade da situação, chega-se ao empréstimo de cerca de 6 milhões de contos, está confirmada a vontade de Caetano em reforçar o poder militar português para evitar o colapso na Guiné com a aquisição de novos equipamentos militares. Spínola dá por finda a sua comissão na Guiné, é nomeado novo governador e comandante-chefe, Bettencourt Rodrigues, chega a Bissau dias depois de ter sido proclamada unilateralmente a independência da Guiné-Bissau. 

Os autores também trazem um dado novo acerca de operações encobertas e de contatos com o PAIGC ou com as autoridades senegalesas. No final do capítulo, faz uma chamada de atenção para o uso de viaturas blindadas pelos guerrilheiros e a evolução do potencial de combate do PAIGC. O próprio Costa Gomes contatara o Chefe do Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro. Bettencourt Rodrigues reúne em março de 1974 com o ministro Silva Cunha, é por este informado que se anda à procura de compras urgentes para o fornecimento de meios de defesa antiaérea às tropas na Guiné e também em Cabinda, mais fica a saber sobre o reapetrechamento da Força Aérea, fala-se igualmente em compra de morteiros 120 mm. 

“O financiamento seria garantido por Pretória e o material seria fornecido pelos EUA, França, Espanha e Israel, embora as negociações com os americanos fossem as mais difíceis e obrigassem Kissinger a fornecer de forma encoberta os mísseis que Portugal queria”

Enquanto tudo isto se está a passar, a 22 de fevereiro Spínola publica "Portugal e o Futuro", obra que terá um enorme impacto junto dos militares que conspiravam contra o Regime. Em Pretória ninguém previa que o Estado Novo fosse derrubado sem resistência e que se caminhava a passos largos para o fim do império colonial português.

(continua)
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Notas do editor

Vd. poste de 1 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21310: Agenda cultural (751): "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné", de José Matos e Luís Barroso, Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020, 146 pp.

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22117: Notas de leitura (1352): Uma importante carta enviada ao General Schulz em agosto de 1966 (Mário Beja Santos / José Matos)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21834: Notas de leitura (1338): "Voando sobre um ninho de STRELAS", por António Martins de Matos; Edições Ex Libris, 2020 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
 
Na escassa bibliografia emanada de Oficiais da Força Aérea que combateram na Guiné, este depoimento de um então Tenente Piloto-Aviador permaneceu em atividade de 1972 a 1974, conseguintemente pôde assistir à evolução da guerra, à chegada dos mísseis terra-ar, fez parte das missões de grande delicadeza como bombardeamentos nalgumas das mais significativas bases de abastecimento do PAIGC, que presenciou os terríveis acontecimentos de maio de 1973 e a mudança dos Comandantes-Chefes, é de uma grande importância, que se saiba, não há outro de igual dimensão. 

Cinjo-me à narrativa dessas atividades, o agora Tenente-General postula considerações que merecem amplo debate e fazer uma recensão não passa por debater conjeturas ou especulações, como ele faz com o projeto de Sékou Touré em manipular o PAIGC para depois se apossar do território.
 
Nenhuma documentação valida estas especulações, elas seriam mesmo inviáveis por falta de apoio dos combatentes guineenses de Bissau, das populações em geral da Guiné-Bissau (recorde-se a trepa que deram aos invasores a guerra civil de 1998-1999), a Guiné-Bissau era então um rasto de luz para os movimentos revolucionários, não havia qualquer apoio internacional para um golpe sórdido de Sékou Touré para asfixiar um povo que se libertara pelas suas próprias mãos.

Um abraço do
Mário



A Guiné de 1972 a 1974 vista por um tenente da Força Aérea ao tempo (2)

Mário Beja Santos

O livro "Voando sobre um ninho de Strelas", redigido pelo Tenente-General António Martins de Matos, 2.ª edição, Sítio do Livro, 2020, é uma narrativa da sua caminhada para a Força Aérea e uma descrição exaustiva da sua comissão na Guiné de 1972 a 1974. Esmiúça ao pormenor a chegada do míssil Strela e como se processou a adaptação para contrariar os seus tão nefastos danos. 

O moral das Forças Armadas na Guiné já conhecera melhores tempos, Spínola aceitou um bombardeamento em território na Guiné Conacri, em Kambera, na zona Sul. 

“Tinha apenas uma vaga ideia do nome, base de apoio do PAIGC, recebendo o material de guerra de Kandiafara e posteriormente fazendo de entreposto para o Leste e Norte”

A missão foi à hora do almoço, o alvo rapidamente identificado, largaram as bombas e tudo ficou coberto por nuvens de pó. 

“Só muito mais tarde soubemos que os resultados tinham sido devastadores, de tal modo que o PAIGC resolveu abandonar definitivamente aquele local”.

E assim chegamos à reunião de 15 de maio de 1973, Spínola convocara uma reunião de Altos Comandos, estas altas patentes apresentaram-lhe os seus pontos de vista e enumeraram os requisitos operacionais necessários para se continuar a manter a superioridade militar na guerra contra o PAIGC, houvera discussão na Base Aérea n.º 12 e identificaram-se necessidades urgentes, a saber substituição das metralhadoras 12,7 milímetros do Fiat G-91 por canhões 20 ou 30 milímetros; em alternativa, a instalação de dois PODs com canhões nas estações interiores das asas. Tece uma reflexão: 

“Aqui que ninguém nos ouve, o armamento que a Força Aérea usava na altura para combater o PAIGC estava completamente em desacordo com o tipo de guerra que estávamos a travar. A ideia de andar a caçar guerrilheiros usando bombas variadas era um pouco como matar formigas com um martelo. A missão do Fiat G-91 nunca deveria ser essa, a sua especialidade era a destruição de objetivos com algum significado. Mas os erros em relação ao armamento utilizado até ao momento não se ficavam apenas nos Fiat G-91. Na área dos helicópteros as coisas não estavam melhores. O transporte de tropas com cinco helicópteros AL-III em coluna logo alertavam o inimigo. A arma mais indicada para combater aquela guerra de guerrilha contra o PAIGC não era o Fiat G-91 mas sim o helicanhão. Nunca soube quantos equipamentos de helicanhão existiam, suspeito que seriam poucos já que nunca vi mais de dois em simultâneo.”

Na reunião de Altos Comandos, o Coronel da Força Aérea salientou a total inexistência de meios de deteção e interceção e a limitada eficácia de defesa com armas antiaéreas, havia necessidade de um radar unidirecional e uma força suficientemente dimensionada de aviões com grande capacidade de retaliação. 

A Força Aérea na Guiné apresentou um documento enumerando os pedidos: 8 aviões SKYVAN para substituírem os DO-27; 5 helicópteros com armamento axial para substituírem os AL-III; 12 aviões MIRAGE para substituírem os Fiat G-91; radar de longo alcance. Todas as outras armas fizeram inúmeros pedidos, a Acta de 15 de maio anda publicada por toda a parte, é uma questão de conferir. Tece depois considerações sobre o radar e segue para o cerco de Guidaje, iniciado em 8 de maio, dá conta das atribulações sofridas pela tropa apeada, para aliviar a pressão realizou-se um ataque a Kumbamori, a Operação Ametista Real: as nossas forças contabilizaram 10 mortos e 22 feridos, o PAIGC teve mais de 60 mortos e a destruição do seu armamento foi uma cifra impressionante. Lamenta que a Força Aérea não tenha sido lembrada ao tempo em que se condecorara o Comandante da Operação Ametista Real. 

Segue-se Guileje, Martins Matos revela-se profundamente crítico da estratégia adotada, inclusive a escolha de Guileje para sede do COP-5. O episódio seguinte está relacionado com o anterior, é aquela cena quase apocalítica de Gadamael. E Costa Gomes volta à Guiné, de 6 a 9 de junho, pelo que propõe não há muitos mais meios a oferecer àquele teatro de operações, fala-se então em retração, o Comandante Militar apoia, Spínola é relutante, é bem provável que esteja aqui o motivo fundamental para ter pedido a demissão. 

O autor interroga o que levou a ofensiva do PAIGC no Sul a deter-se depois de Gadamael e faz a sua reflexão: 

“Por um lado a presença do Batalhão de Paraquedistas condicionou de imediato os movimentos dos guerrilheiros na zona; por outro lado a Força Aérea Portuguesa começou por bombardear as matas à volta de Gadamael, silenciando várias bases de fogo". Mais tarde entrou pelo território da República da Guiné-Conacri, destruindo a maior base de apoio do PAIGC (situada perto da localidade de Kandiafara, e descreve pormenorizadamente a Operação, que constituiu um sucesso. “A capacidade de abastecimento do PAIGC na região Sul ficou seriamente abalada e o grande esforço que vinha realizando nesta área diminuiu-se de imediato”.

Mantinha-se ainda intacta uma base de abastecimentos do PAIGC, em Koundara, a cerca de 50 quilómetros a leste de Buruntuma, o novo Governador, Bettencourt Rodrigues, não autorizou. O autor não esconde o descontentamento com o estilo do novo Comandante-Chefe. Em 31 de janeiro do ano seguinte novo avião abatido por um míssil Strela. Entra depois na questão polémica se havia ou não havia MIG-17 e MIG-19 do PAIGC na Guiné Conacri. Tece também conjeturas quanto à estratégia de Sékou Touré para conduzir o PAIGC à independência. E assim chegamos ao 25 de abril e Martins Matos não esconde uma relativa acrimónia sobre comportamentos e aspetos da descolonização.

O contributo do autor para o conhecimento das atividades da Força Aérea neste período crucial é do maior mérito. Quanto ao mais, como tenho vindo a insistir, há um conjunto de nebulosas sobre os acontecimentos militares na Guiné de 1973 e 1974 que requerem uma investigação dos arquivos dos Ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, pela simples razão que competia ao decisor político a última palavra. Quando o Comandante Militar alvitra na sequência da reunião de 15 de maio, 

“Se não forem concedidos os reforços solicitados e as armas que permitam às NF enfrentar o IN atual, para lhe evitar, a breve prazo, a obtenção de êxitos de fácil exploração psicológica e graves efeitos estáticos da maior influência na moral das NT, julga-se será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais (…) Mas neste caso, as missões atualmente dadas às NF, em termos de proteção das populações e apoio ao esforço principal da manobra de contrassubversão centrado na manobra socioeconómica, teriam de ser revistas…”

Costa Gomes irá perfilhar este ponto de vista, não havia possibilidade de reforço do teatro de operações. Iria ser adotada a manobra do retraimento do dispositivo para aquém da linha geral: rio Cacheu-Farim-Fajonquito-Paunca-Nova Lamego-Aldeia Formosa-Catió. Era reconhecido na retração que o PAIGC iria ocupar uma fatia considerável das áreas das fronteiras Norte e Leste, e no Interior, no Nordeste e Boé. T

udo se tinha complicado, como aliás consta do volume da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 6.º volume, tomo II, livro III, 2015, página 428, quando Bettencourt Rodrigues enviou em 20 de abril uma nota que confessava: “[…] são motivo de grande preocupação para este Comando-Chefe, cumprindo-lhe assinalara as consequências que podem resultar da possível evolução do potencial de combate do PAIGC ou do seu eventual reforço com novos meios das FA da Guiné, quer quanto à capacidade de resistência das guarnições militares que porventura sejam atacadas, quer quanto às limitações de intervenção com meios à disposição do Comandante-Chefe, em especial meios aéreos”

Enfim, o decisor político não tinha mais nada para dar, prenunciava-se um qualquer tipo de holocausto, antevisto numa linguagem elegante e formal de Bettencourt Rodrigues.

O passo decisivo para acabar com estas lendas negras é ir à profundeza dos arquivos, eles estão à nossa espera, com as revelações que permitirão esclarecer as responsabilidades dos últimos avatares do Estado Novo.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21806: Notas de leitura (1337): "Voando sobre um ninho de STRELAS", por António Martins de Matos; Edições Ex Libris, 2020 (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 31 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21832: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (24): O gen Costa Gomes, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, em visita ao CTIG, em 8/1/1973, cumprimenta oficiais e população, em Teixeira Pinto, segundo vídeo da RTP Arquivos


Fotograma nº 1  > Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 8 de janeiro de 1973 > Costa Gomes, ao centro, entre o cor pqdt, comandante do CAOP1. 


Fotograma nº 2


Fotograma nº 3


RTP Arquivos >  1973-01-13 > Vídeo (2' 17 ''> General Costa Gomes,  Chefe do Estado Maior das Forças Armadas,  visita aquartelamentos militares na Guiné Bissau, primeiro Teixeira Pinto e depois o Pelundo.

Sinopse: "General Costa Gomes e General António Spínola, Governador Geral da Guiné, a sair de helicóptero no aquartelamento de Teixeira Pinto; cumprimentam individualidades militares e locais; comitiva automóvel a partir de carro em movimento; em Pelundo o General Costa Gomes e o General António Spínola cumprimentam militares e populares; milícias em parada; a marcar passo; vacas e bezerros a pastar."

Reprodução de fotogramas, através da função "print screen", com a devida vénia à RTP Arquivos. 

O vídeo (2' 17''), completo, mas sem som, pode ser visto aqui. A visita foi a 8 de janeiro de 1973, mas o vídeo só passou no telejornal [, na altura, "noticiário nacional"], em 13/1/1973. Ainda não havia internet, e a bobine com o filme tinha que ir no avião da TAP... Hoje é tudo instantâneo, como o pudim...


1. Ao visionar o  vídeo.  fomos descobrir dois  dos nossos grã-tabanqueiros, o Mário Bravo, ex-alf mil médico, e o António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1 (Mansoa, Teixeira Pinto e Cufar,  1972/74).
 

No seu 
Diário da Guiné - Lama Sangue e Água Pura (Lisboa, Guerra e Paz, 2007, 220 pp),  o António Graça de Abreu dedicou três linhas a esta visita (p. 68)....


Canchungo, 8 de janeiro de 1973 


O general Spínola e o general Costa Gomes estão na sala ao lado,  com o coronel [Durão, comandante do CAOP1,], o tenente-coronel do Batalhão e os majores todos. 

Vieram arejar as cabeças ou polui os ares ?  Que congeminam  estes crâneos  iluminados pelos clarões da guerra ?  (*)


2. Na altura, ainda estava lá, em Teixeira Pinto, o Mário [Silva] Bravo, [ex-Alf Mil Médico, que passou por Bedanda, neste caso pela CCAÇ 6, entre dezembro de 1971 e março de 1972; trabalhou depois como cirurgião  no HM 241, em Bissau, acabando a comissão em Teixeira Pinto, e não em BIssau, no HM 241, como já escrevemos noutro poste] (**)

E a propósito ele fez o seguinte comentário, há pouco:

"Caro Luis Graça, um grande abraço e parabéns pela publicação do vídeo. Encontrei este mesmo vídeo no Facebook e até partilhei, para que não se perdesse. 

No blogue dizes que eu fui terminar a comissão em Bissau, como cirurgião, mas não foi assim. Como já tinha terminado a comissão, e não me "tiravam" de Teixeira Pinto, o cor Durão passou-me ele próprio uma guia de marcha sem local militar de destino, dizendo só Bissau. E que eu me desenrascasse.!!!... E lá tratei da vidinha, com a ajuda do meu comandante de Bedanda, passei à disponibilidade em Bissau, mas não no Hospital. Está feita a correcção.

Lembro bem desta visita do gen Costa Gomes".



Guiné > Região do Cacheu > CAOP 1 > Teixeira Pinto > 1972 > O Alf Mil Médico Mário Bravo,  o quarto a contar da esquerda, de óculos. Está  no meio de um grupo de oficiais, entre eles o António Graça de Abreu,  alferes miliciano (CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), o primeiro da esquerda. 

O António Graça de Abreu veio depois  agora completar a legenda: 

"O Mário Bravo lembrou-se de mim em Teixeira Pinto e mandou essa fotografia onde apareço jovem, quase menino, na ponta esquerda da foto. Na ponta direita está, de camuflado, o meu amigo capitão miliciano António Andrade, comandante da 35ª Companhia de Comandos, também amplamente referido no meu livro. 

"Entre mim e o Bravo estão o alferes [Franciso] Gamelas, da Companhia 3863 [, mais exatamenet, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, Teixeira Pinto,  1971/73 ], e o alferes Cravinho (de calções), do nosso CAOP 1 e meu companheiro de quarto".

Foto (e legenda): © Mário Bravo (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 20 de outubro de  2013 > Guiné 63/74 - P12179: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (23): Duas referências ao Marcelino da Mata

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Guiné 671/74 - P21445: Notas de leitura (1314): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Não podemos ignorar que o tema da guerra colonial continua a suscitar, sobretudo na classe sénior, uma controvérsia maniqueísta, há permanentemente um dedo acusador de que o rumo da guerra podia ter sido outro, diferente do que sucedeu ao 25 de Abril. Estes dois investigadores manifestam-se arredados de prós e contras, consultaram fontes documentais, e acima de tudo dão no seu manual um pano de fundo como mais ninguém até hoje ensaiou na literatura destinada ao grande público, é uma narrativa onde não se foge ao essencial do que é a guerra subversiva, guerrilha e contra-guerrilha, qual o ideal imperial do Estado Novo personificado em Salazar, o deflagrar da guerra e o seu alastramento, os homens e os dispositivos, as populações envolvidas, escolhem-se três generais distintos para relevar o comportamento pragmático, passando pelo destemor pessoal até à motivação ideológica de desejar uma vitória impossível. Os autores não fogem a esta discussão acirrada entre aqueles, em diferentes quadrantes ideológicos, associados à nostalgia e ao saudosismo, responsabilizam o 25 de Abril por se ter conduzido o desfecho da guerra para o caos e para a vergonha da retirada, mostrando, com a evidência dos documentos, a situação crítica que se estava a viver em Angola, na Guiné e em Moçambique, nas vésperas do 25 de Abril.

Um abraço do
Mário


O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (2)

Mário Beja Santos

"Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Porto Editora, 2020, só de longe é uma reedição, ganhou a forma de livro de consulta, transformado numa grande angular onde os dois investigadores, seguramente os mais habilitados nesta vertente historiográfica, deram uma arrumação muito mais ventilada para políticas, doutrinas, territórios, organização das Forças Armadas, movimentos de libertação, populações envolvidas, ritos do quotidiano, balanço, o pós-guerra, elenco de figuras cimeiras intervenientes nos três teatros de operações. É timbre dos autores o rigor, a comunicação acessível só possível de quem muito sabe, o desnudar mitos diáfanos da fantasia de quem ainda hoje propala toda aquela guerra era por natureza sustentável e um ato patriótico. O texto de Adriano Moreira, em que este académico esculpe Salazar, o seu regime e o seu pensamento sobre o ideal imperial, é uma peça de indiscutível importância. Luís Salgado de Matos regista igualmente o relacionamento entre a Igreja e o regime face aos conflitos coloniais e averba com oportunidade que as independências de Angola e de Moçambique vieram mostrar que a Igreja Católica nestes territórios tinha uma implantação suficientemente forte para poder sustentar-se sozinha, o que é facto indesmentível. O mesmo investigador aborda a economia e a guerra, esta era paga pela metrópole, como ele escreve: “Em 1971, as colónias contribuíam com apenas 18% dos 12 milhões de contos de despesas operacionais de defesa, uma proporção que ficava permutada da sua participação na receita total do Estado. A metrópole gastava com a guerra cerca de 40% da despesa pública. Em 1974, aos custos morais e humanos da guerra – que eram os mais decisivos – acrescentava-se o prejuízo económico. À vontade da independência africana ameaçava sobrepor-se a da independência branca”.

Três generais são analisados, pela forma como fizeram a guerra: Costa Gomes, Spínola e Kaúlza de Arriaga. Costa Gomes chega a Angola em 1970, fora aberta a Frente Leste, ali se movem os três movimentos independentistas. E delineou uma estratégia de reorientação do esforço para as imensas planícies do Leste em detrimento das florestas dos Dembos e das margens do rio Zaire. Aumentou o número de distritos dentro da zona militar Leste, convocou múltiplas forças auxiliares. Consegue pôr a UNITA a combater o MPLA, lançou no terreno unidades táticas de contra-infiltração. “Um aspeto caraterístico da sua manobra foi o modo de emprego das forças africanas. Costa Gomes, ao contrário de Spínola na Guiné, não as integrou em qualquer projeto político destinado a alterar o status quo existente”. Os autores alongam-se na figura de Spínola, na análise das suas primeiras Diretivas, a sua enorme preocupação em pôr os guineenses do seu lado. Mexe no dispositivo criando Comandos de Agrupamento Operacional e os Comandos Operacionais, irá utilizar as forças africanas na contra-guerrilha e as milícias na proteção e enquadramento da autodefesa das populações. Consegue manter a situação equilibrada até 1972, será depois ultrapassado por uma nova estratégia e pelo uso de armamento mais sofisticado. Promoveu os Congressos do Povo, envolveu-se em operações que desencadearam fiascos diplomáticos, apercebeu-se que toda a sua orientação depois dos acontecimentos de Maio de 1973 era posta em causa, todo aquele plano de retração que inicialmente aceitou e que Costa Gomes assinou era o princípio do fim, nada do que ele sonhara para uma Guiné inteiramente dos guineenses.

Kaúlza de Arriaga terá uma ação de comando assumida e radicalmente ideológica, não podia admitir outro resultado que não fosse a vitória sem compromissos. Quando ele chega a Moçambique, a FRELIMO já está a esboçar um plano para avançar até ao Tete. Kaúlza lança em força a Operação Nó Górdio, vão encontrar as bases da FRELIMO abandonadas. Cahora Bassa, como se veio a demonstrar, não era um empreendimento primacial, exigiu a mobilização de um volume de meios cada vez maior para a defender, acabou por ser o Nó Górdio de Kaúlza, acrescido da denúncia dos massacres de Wiriamu, tal como Marcello Caetano já estava desavençado com Spínola acabou igualmente o relacionamento de confiança com Kaúlza e Arriaga. Ele regressa e vem para conspirar.

Este importante roteiro mostra como se desenvolveu o esforço de guerra, como foi evoluindo o comportamento da ONU dos anos 1960 para 1970, como nasceu o Movimento dos Capitães. E temos as feridas, a mais óbvia e visível foram os deficientes, escreve o presidente da ADFA que durante a guerra terão sido evacuados da frente de combate cerca de 25 mil militares afetados por deficiências motoras, sensoriais, orgânicas e motoras.

E chegou a hora da polémica interminável, se a guerra estava ou não perdida. As investigações têm progredido e os autores revelam o que se estava a passar sobretudo em 1974 em Angola, Moçambique e Guiné. Resumindo, em Angola não se estava a caminho de nenhuma vitória militar nem política: existia uma séria e assumida ameaça colonial sobre Cabinda e o Norte, a situação no Leste não inspirava confiança ao nosso aliado sul-africano, considerava-se que o programa de aldeamentos era desastroso; em Moçambique a situação era crítica, para além da continuação das ações nas zonas tradicionais de guerrilha, a FRELIMO estava a infiltrar grupos cada vez mais para Sul, abatera três aviões rodesianos que apoiavam as operações de contraguerrilha, o grosso dos meios estava empenhado na defesa de Cahora Bassa e nas linhas de reabastecimento à barragem, nas zonas restantes as forças portuguesas corriam atrás dos acontecimentos. Na Guiné, é onde tudo ia pior, primeiro com a chegada dos mísseis terra-ar e depois com os acontecimentos de Maio de 1973. Põem-se em cima da mesa o plano de retração. “Para a constituição deste reduto eram considerados os seguintes ponto-chave, a manter a todo o custo: Aldeia Formosa, Cufar, Catió, Farim, Nova Lamego e Bafatá, a Ilha de Bissau associada às regiões de Bula e de Mansoa. Isto é, reduzir a soberania a um reduto central. Esta solução é a clara admissão de que as forças portuguesas abdicavam da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central”. Enquanto tudo isto se passa, Marcello Caetano tentou várias saídas para o problema colonial e a guerra, pensa-se numa independência branca para Moçambique e Angola, há conversações em enviados secretos do Governo Português com o PAIGC e o MPLA, por três vezes Caetano procura a admissão junto do Almirante Tomás, este respondeu: “Já é tarde para qualquer um de nós abandonar o cargo”.

As investigações evoluíram muito e os saudosistas da sustentabilidade da guerra colonial veem cair por terra toda a sua carga emocional. Um só exemplo, referente à Guiné. Em 27 de novembro de 1973, o Comandante da Zona Aérea, Coronel Lemos Ferreira, enviou uma carta a Costa Gomes a explicar o que se passara na Guiné. Refere as possibilidades militares do PAIGC, que incluíam o patrulhamento aéreo feito por aviões MiG-15 e MiG-17 da República da Guiné Conacri, a eliminação de duas guarnições portuguesas junto da fronteira, a existência de blindados e armas anti-aéreas e anti-carro. E escreve textualmente: “Sabendo-se que a sobrevivência militar desta Província Ultramarina assenta quase exclusivamente no pessoal e nos meios da Força Aérea, por ser patente que as forças terrestres não parecem capazes de suportar e reagir a uma safanão forte por razões conhecidas, nomeadamente a sua reduzida motivação, deduz-se o risco de, apesar de sermos aqueles que mais intensamente procuramos remar contra a maré, acabarmos por ser o pião das nicas, por não termos realizado o milagre integral, ou seja, impedir todo e qualquer ataque inimigo!”.

Manual de referência, roteiro, obra-prima de divulgação, nada supera no panorama editorial português esta guerra colonial, totalmente indicada para antigos combatentes, investigadores e curiosos das novas gerações, manifestamente indiferentes às apoplexias do saudosismo.
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Notas do editor:

Poste anterior de 5 de outubro de 2020 > Guiné 671/74 - P21419: Notas de leitura (1312): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21426: Notas de leitura (1313): "O Cântico das Costureiras", de Gonçalo Inocentes (Matheos) - Parte IV (Luís Graça): as primeiras minas e fornilhos A/C

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 13 de Maio de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto alusivo ao 25 de Abril em Lisboa e ao dia 26 em Bissau, de que se publica hoje a segunda e última parte.


Excursão à revolta do 25 de Abril: 
Cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné. 


Parte II

Gen Carlos Azeredo
No Porto, o Tenente-Coronel Carlos Azeredo e a sua malta do MFA gastaram apenas 8 minutos a consumar o êxito do 25 de Abril em todo o Entre Minho e Douro - até o Covid-19 acha que o Norte é uma nação -, fizeram apenas duas prisões, o 2.º Comandante e o Comandante da Região Militar, e por menos de 24 horas, e decidiram não prender o seu General Comandante, sem dúvida pessoa importante, considerando que aquele Quartel General era a sua residência familiar, a sua filha estar de casamento marcado para o dia 27 e serviço da boda contratado para ser servido seu Salão Nobre.

Em Lisboa, o 25 de Abril foi feito à grande e à escala de Clausewitz; no Porto foi feito à “Português Suave” e à moda de D. Afonso Henriques, em Guimarães!

O “vírus” do MFA surgiu na Guiné, em 1972, o General Spínola o seu profeta e os capitães “seus rapazes” da Spinolândia os seus apóstolos, no contexto da sua ambição de substituir o Almirante Américo Tomás no cargo de Presidente da República, para o que contava com a cumplicidade de Marcello Caetano; tendo-lhe este roído a corda, ao saber que diligenciava apoios políticos de Sá Carneiro, de Pinto Balsemão e da Ala Liberal e de Mário Soares, Salgado Zenha, da Acção Socialista Portuguesa, mantendo a cumplicidade com os seus capitães, como “barriga de aluguer” para a mudança. A influência do feitiço da Guiné e da dinâmica do pensamento e acção de Amílcar Cabral a contaminar militares e políticos portugueses, e, plausivelmente, a grande oportunidade perdida de dar um fim decente e justo às guerras ultramarinas.

Em 1972, o PAIGC estava na mó de baixo e o seu “balneário” de guineenses e cabo-verdianos era um saco de gatos. Foi quando Amílcar Cabral foi à Rússia implorar armamento da última geração. Ouvi Nino Vieira dizer na RTP que ele agitava o catálogo do míssil Strela enquanto implorava aos seus interlocutores: - A nossa luta está a morrer de sede; a União Soviética tem nesta arma a nossa salvação. Não nos deixem morrer de sede.

A União Soviética não se fez rogada e veio em seu socorro, redimensionou o armamento do PAIGC e, em Março de 1973, o seu semi-secreto míssil Strela chegava à Guiné e os seus operadores prontos para retirar a supremacia do seu céu aos pássaros metálicos de Base Aérea n.º 12, em Bissalanca.

Sendo a espinha dorsal do Exército, a classe dos Capitães é tradicionalmente refilona, qual espinha na garganta das hierarquias. No meu tempo já reclamavam contra as “violências do Ministério do Exército”. A revolta antecedente, o 28 de Maio de 1926, havia sido detonada por capitães (mas com hierarquia, o General Gomes da Costa o seu chefe) e foi a guerra do Ultramar que fez esgotar o prazo de validade dos quase 50 anos de centuriões e de convívio da classe com o regime do Estado Novo.

O 25 de Abril de 1974 foi detonado pela mesma classe dos Capitães, “rapazes da Guiné” na sua maioria, improvável, por ser um colectivo, e horizontal, sem chefe nem hierarquias. Uma revolta acéfala, quase perfeita, mas com consequências.

 Junta de Salvação Nacional

A operação “Viragem Histórica” não deixou cair o poder na rua, o MFA não quis o poder formal e personificou-o de imediato nos seus “padrinhos” Generais António de Spínola, Costa Gomes e na Junta de Salvação Nacional. Os seus actores regressaram aos seus quartéis, o Major Otelo, seu comandante operacional em Lisboa, voltou a instrutor na Academia Militar, o Tenente-Coronel Azeredo, seu comandante operacional no Porto, manteve-se sem comando nem comandados, a aguardar a Junta Médica do Hospital Militar, para o passar à reserva como “deficiente mental” e o Capitão Vasco Lourenço, o seu enfant terrible e locomotiva da revolta, protagonizou-o no seu desterro nos Açores.

A par da vitória do movimento em todo o universo português, da efectivação em Lisboa do poder político e da cadeia de comando militar, do Minho a Timor, na manhã do dia 26, o MFA de Bissau detonou a sua própria revolta, desnatou o Comando Militar na Guiné da sua cúpula, alardeando que o PAIGC e a Guiné eram a mesma coisa, os seus factores não eram arbitrários e começou a fazer o seu caminho, mais para se libertar e libertar Portugal da Guiné que libertar do seu povo. Com tão insano proceder num estado de guerra, o MFA da Guiné tornou-se em potencial vitorioso do PAIGC, e, sem ter legitimidade, subtraiu a Portugal o seu peso negocial.

Acontecera a primeira deriva do MFA. Não é preciso galões para saber que a melhor negociação é sempre conseguida a partir de posição de força e não com piedosas declarações de intenção da capitulação.

O MFA abriu avenidas a movimentos de opinião, legalizou 13 partidos políticos, 10 revolucionários de esquerda, apenas 3 moderados, decretou a proscrição dos movimentos da Direita e ele mesmo se dividiu em duas 2 facções político-militares: os spinolistas, representando cerca de 20%, tendenciais a um certo cesarismo, personificado pelo General Spínola e os “puros”, representando 80%., mais ou menos afectos à personalidade do General Costa Gomes.

Com o PREC (Processo Revolucionário em Curso), o MFA “empalmou” os spinolistas, passou a dividir o poder com a rua e a sua massa dos “puros” dividir-se-á em 3 facções: os moderados, da democracia por eleições justas e livres, respaldados no General Costa Gomes; os gonçalvistas, filo-comunistas ou engrenados nas suas estruturas partidárias, afectos ao General Vasco Gonçalves; e copconistas, os esquerdistas contestatários da democracia formal e os revolucionários da democracia directa, que converteram e alçaram a seu profeta Otelo Saraiva de Carvalho, ora graduado em Oficial-General.

As consequências da acefalia hierárquica do MFA começavam a vir ao de cima: o divisionismo resultou no PREC, no abandalhamento dos quartéis, que espantou o mundo e tanto maculou a honra castrense das FA Portuguesas, a tragédia da descolonização do Ultramar e a acelerada instalação do caos na organização económica da Sociedade portuguesa. O MFA que se portara à altura de todas as solicitações militares, parecia desconhecedor do seu próprio povo e da sua história.

Cap Salgueiro Maia
Os efeitos da sua acefalia e do seu colectivismo tiveram a sua evidência logo no seu primeiro momento vitorioso: aceitaram que Marcello Caetano, já rendido ao MFA e prisioneiro do Capitão Salgueiro Maia, lhes escolhesse o General Spínola para Presidente da Junta de Salvação Nacional/ Presidente da República de Portugal e, por inerência, Supremo Comandante das Forças Armadas!...

O MFA começou o seu desvario menos de 2 meses após o sucesso da sua revolta, ao tirar o tapete ao Prof. Palma Carlos e ao seu Governo, na sua falta de análise da discrepância da lógica civilista e de “estado de direito” do Governo com a lógica militar e voluntarista do seu Programa, e, enquanto noviços da democracia, sobrepuseram-se a democratas militantes, ajuizaram o valor da sua proposta ao Conselho de Estado, órgão composto por 12 militares e 7 civis, com poderes constituintes, escolhidos pelo MFA, como golpe conspirativo. Em última análise, propunha-se a busca de um “quadro jurídico”, pela troca da prioridade de Descolonizar, Democratizar e Desenvolver, pela de Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, com começo na rápida eleição do Presidente da República e por um governo legítimo, empossado por ele.

Republicano e civilista, para o I Governo Provisório só o Povo legitimava o poder, uma cabeça um voto era urgente, um direito inalienável, daí a prioridade atribuída à democratização; para os “Capitães de Abril”, o poder residia no Programa do MFA, a sua legitimação residia no seu colectivo e no poder das suas armas, o controle político do Governo era uma prerrogativa revolucionária da Comissão Coordenadora, a descolonização tinha prioridade sobre a democracia formal.

E, enquanto considerou que, com a transferência da ditadura portuguesa para a ditadura dos seus partidos únicos e armados, sem permissão de outros partidos políticos nem quaisquer eleições, os povos do Ultramar ficariam automaticamente “livres”, o MFA procrastinou durante mais de 2 anos a democracia a Portugal, impôs-nos eleições constituintes, legislativas e presidenciais, e, após a instituição da nossa democracia pluralista, ainda a tutelou durante 7 anos com um Conselho da Revolução.

Gen Vasco Gonçalves
O MFA dos Capitães abrira-se às hierarquias, a Comissão Coordenadora alçou o seu presidente, Coronel Vasco Gonçalves à chefia do II Governo Provisório e começou a fazer o seu caminho para retirar o General Spínola de inquilino do Palácio de Belém, tecendo uma “teoria da conspiração”, ao embargar a manifestação em seu apoio, a ”Maioria Silenciosa”, segundo os seus promotores, coordenada pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, que havia comandado a “Operação Tridente” e derrotado o PAIGC nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, ou a conspiração do “28 de Setembro”, segundo o MFA e políticos apoiantes, que o COPCON desmantelou, a prender organizadores e manifestantes, a dinamizar cortes das estradas, barricadas e a permitir que milícias populares molestassem e prendessem pessoas a eito, por impulsão do fogoso Capitão Vasco Lourenço, o que o popularizará como o Capitão “Melena e Pá”. Vasco Lourenço aqueceu o forno e Otelo Saraiva de Carvalho coseu o pão. Como esse poder na rua foi concessão do COPCON, o evento serviu para germinar a facção político-militar copconista ou revolucionária, a que ele dará o seu patrocínio.

O Primeiro-ministro Vasco Gonçalves ascendeu ao generalato, formou e chefiou mais 3 governos provisórios mas populistas, o germe da facção político-militar gonçalvista, e, sem mandato do povo e na ausência de qualquer quadro político democrático, mudou profunda, embora provisoriamente, a nossa organização económica, com não raros atropelos à nossa realidade de 3.º país mais antigo do mundo, o respeito merecido pelos 900 anos de independência, de instituições governamentais e de história e, no referido à descolonização, os deveres e responsabilidades contraídos por Portugal para com os seus povos, ao longo de 500 anos da sua soberania ultramarina.

Em 11 de Março de 1975, eclodiu em Lisboa uma esquisita tentativa de golpe de Estado, anti-MFA, por terra e pelo ar, com o pretexto de prevenir o massacre de largas dezenas de militares e civis sob o nome código de “Matança da Páscoa”, a perpetrar por revolucionários naturais e internacionais (até constava haver tupamaros aboletados no Ralis!…), segundo informações do governo franquista de Madrid. O MFA superou-o e aproveitou para retirou a facção spinolista da circulação, catrafilando-a e a muitos civis na cadeia; os escapados à captura foram conspirar para a Espanha, organizaram-se no MDLP, e, por ironia do destino, constituirão o potencial estratégico dos moderados do 25 de Novembro, que meter na cadeia os gonçalvistas e os copconistas

11 de Março de 1975

Senti revolta, quando proeminentes Capitães de Abril não tiveram pejo em ir a Cuba pavonear-se de revolucionários e reverenciar Fidel Castro, apenas um ano era passado sobre a crise dos 3 G´s, planeada e comandada por oficiais do exército regular cubano, destacados para o PAIGC, que ajudaram a matar 63 e a ferir gravemente em combate 269 seus e nossos camaradas de armas, o preço do nosso sangue desses eventos bélicos; e o MFA não teve pejo em disponibilizar o aeroporto da ilha de Santa Maria, Açores, a Cuba, para escala técnica do trânsito do exército cubano, a substituir-se a Portugal em Angola, a ajudar o MPLA a espoliar os bens e na expulsão de centenas de milhares de portugueses, muitos com apenas a roupa do corpo (os Retornados).

É a memória que faz a História e não o contrário. Um facto não comentado e quase desconhecido: em 1973, a agenda de Marcello Caetano passara a inscrever a autodeterminação do Ultramar africano. Os Estados Unidos e a União Soviética “estiveram” na operação “viragem Histórica”?

Em 25 de Abril de 1974, a esquadra da NATO da operação “Daw Patrol” estava fundeada no Tejo e o MFA sabia - o então Comandante Rosa Coutinho estava de serviço ao “quarto da noite” no Comiberlant, em Oeiras, - que não dispararia sobre os revoltosos, não obstante a fragata canadiana Huran apontar os seus canhões ao Terreiro do Paço. Quando do 11 de Março de 1975, a informação da “Matança da Páscoa” teve origem em Moscovo e o evento coincidiu com a operação “Intex 75” da NATO, com passagem por Lisboa.

A prioridade civilista “democratização” não vingou sobre a prioridade militar “descolonização”. Na afirmativa, será plausível os contactos preliminares bilaterais terem passado a negociações sérias, prevenidos o êxodo ou o milhão de retornados do Ultramar, os mais de dois milhões de mortos das guerras civis subsequentes e o empobrecimento de colonizador e de colonizados e até os legítimos interesses dos 500 anos de soberania portuguesa salvaguardados.

A FNLA e o MPLA tinham perdido a guerra de Angola por falta de comparência, as negociações da sua autodeterminação estavam praticamente concluídas com Jonas Savimbi e a UNITA, a conceder em 1975, trabalho começado pelos Generais Costa Gomes e Bettencourt Rodrigues e levado a bom porto pelo Eng.º Santos e Castro e os Generais Soares Carneiro e Passos Ramos (irmão do major homónimo assassinado no Pelundo-Guiné). No respeitante a Moçambique, havia negociações conduzidas pelo Eng.º Jorge Jardim. A Guiné era o nosso calcanhar de Aquiles, mas havia contactos com o PAIGC, do Comandante Alpoim Calvão e Luís Cabral.

Começar a descolonização pela Guiné e não por Angola terá sido o maior erro estratégico do MFA ou da descolonização portuguesa. O Programa do MFA inscrevia-a, mas nem a discutira nem a planeara, houve navegação à bolina, não se olhou para as origens das ondas e foi liquidada com a acelerada retracção militar, sem equidade, pelo abandono, para espanto do mundo - e Portugal ficará sob o protectorado do FMI, Fundo Monetário Internacional.

Portugal foi a única potência que fez a descolonização, a empobrecer colonizador e descolonizados.

Eleições Legislativas de 1975

Na sua curta era, o MFA garantiu-nos as eleições constituintes e legislativas e fez outras coisas notáveis, como o Recenseamento Eleitoral, a organização do regresso de centena de milhares de refugiados e a instituição do IARN, que realizou a sua integração plena.

A coragem e a generosidade são fontes do erro e foram apanágio dos “Capitães de Abril”. Mas o seu maior legado é a nossa Democracia.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20984: 16 anos a blogar (12): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

segunda-feira, 30 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20793: Notas de leitura (1277): O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2017:

Queridos amigos,

Se vos trago à reflexão o artigo saído do punho do Coronel Vaz Antunes sobre conversações que teve no último dia de Junho de 1973 com alegados negociadores da fação guineense do PAIGC, que terão entusiasmado Spínola, há que ter em conta todas as alterações do xadrez político-militar daquele tempo: os mísseis Strela, o endurecimento das relações entre Marcelo Caetano e Spínola, a visita de Costa Gomes em Junho, no rescaldo dos acontecimento de Guileje, Gadameal-Porto e Guidage, e em que se definiu a retração do dispositivo em termos tais que Spínola se apercebeu que era o princípio do fim; a nível do PAIGC, caminhava-se para novo Congresso que preparava a radicalização política, com consequências desastrosíssimas para a diplomacia portuguesa, e muito mais. Spínola perdera o é dos acontecimentos, a fação guineense ficou entregue a si própria.

É convergência de todos estes fatores que preludiam o 25 de Abril, o encontro em território senegalês, no último dia de Junho de 1973 é demonstrativo de que os combatentes guineenses caminham para a sua própria independência, o tempo político em Portugal já não permitia consolidar a tal Guiné melhor.

Um abraço do
Mário


O Coronel Vaz Antunes e as conversações com o PAIGC em Junho de 1973: muitas questões em aberto

Beja Santos

Cor António Vaz Antunes
O Coronel António Vaz Antunes elaborou um documento, datado de 1987, intitulado “Guiné: Uma diligência interrompida. Porquê?”. O documento é público, o leitor interessado tem dele acesso através do link indicado em rodapé.[1]

Encontrei-o na Biblioteca da Liga dos Combatentes, em dia sim, pois emprestaram-me a importante história dos Paraquedistas na Guiné e a Engenharia Militar na Guiné, de que já se fez as competentes recensões.

A diligência que o General Spínola pediu ao Coronel António Vaz Antunes, de acordo com esta versão, poderia ter tido o condão de mudar o curso da guerra travada na Guiné. Mas vamos aos factos, tome-se o que escreveu o Coronel Vaz Antunes.

Este militar estava ligado à Operação Guidage, naturalmente desgastante, naquele terrível Maio de 1973. Recebeu a ordem do Comando-Chefe para montar um Comando avançado em Cuntima. O oficial chega à Companhia e o Comandante da mesma não escondeu a sua surpresa, terá suposto que a sua capacidade para enfrentar a situação não era suficiente. No dia 29 de Junho três helicópteros aproximam-se da pista, coisa que não acontecia há meses. Numa conversa a sós, Spínola explica-lhe o que o levou ali:

“No tom mais cordial que imaginar-se se possa, contou-me o que tinha sido a sua acção desde que chegara à Guiné, nos contactos com o Presidente Senghor, com os comandos do PAIGC nos tempos de Amílcar Cabral e as suas diligências na interferência da escolha do próximo secretário-geral do PAIGC, cuja eleição iria ocorrer dentro de dias”.

O Coronel Vaz Antunes ouvia tudo com muita atenção mas não compreendia a natureza desta abertura, esta abordagem de temas tão secretos. Sempre bem-humorado, e sem nunca lhe explicar a natureza dos aspetos tão confidenciais, Spínola regressou a Bissau.

A 30 de Junho, tudo se precipita, Vaz Antunes é procurado por um Fula que era um agente de informações com o nome de código Padre, algo se sabia pertencente ao Front da Guiné Conacri. Conheciam-se, Padre era um elemento de peso, chegara a ir com um agente da DGS de Farim até Bissau de avião. Padre surpreendeu completamente Vaz Antunes: “pediu que fizesse uma mensagem relâmpago para Bissau solicitando a presença do General Spínola nesse dia, ali em Cuntima, para um contacto com alguns dirigentes do PAIGC”.

Vaz Antunes entendia agora a visita da véspera. Começa a troca de mensagens, Bissau responde que não é possível a deslocação àquela hora, 16 horas. Padre mostrou-se angustiado, pediu então a Vaz Antunes para comparecer na referida reunião. Depois de algumas peripécias, Vaz Antunes atravessa a fronteira no marco n.º 104. Na noite cerrada, chegou um automóvel que parou a duas centenas de metros do qual saíram dois indivíduos que se dirigiram para Vaz Antunes e Padre. “Tratava-se do representante pessoal do comandante-geral das forças do PAIGC”.

O interlocutor foi direto:

“Andamos há já 10 anos nesta luta. Somos agora menos do que quando começámos. Actualmente não nos entendemos com o escalão político: eles são cabo-verdianos e comunistas e nós somos guinéus, combatentes e não comunistas. Desejamos apenas uma Guiné melhor. Já chegámos à conclusão de que, sozinhos, não somos capazes de a fazer, mas sê-lo-emos convosco. A nossa proposta é muito simples: em dia e hora que se combine acaba a guerra, nós seremos integrados nas forças da Guiné, sem recriminação nem vingança”.

Vaz Antunes promete rapidamente comunicar o teor desta mensagem a Spínola. A 1 de Julho apresenta-se no Palácio do Governo em Bissau. Será recebido ao fim da tarde. Ouvida a mensagem, Spínola liga para Lisboa, telefona para António Fragoso Allas, o chefe da DGS em Bissau, pede-lhe para regressar urgentemente à Guiné.

Em Agosto Vaz Antunes entrou de licença. Aqui soube da substituição de Spínola por Bettencourt Rodrigues, foi à tomada de posse deste, pareceu-lhe que o discurso do novo Governador e Comandante-Chefe não estava em sintonia com tudo o que se passara anteriormente. Padre, manifestou-se em Farim, mais tarde, desgostoso por se aperceber de que tudo voltara ao princípio, não se entendia o porquê do retrocesso.

E chegamos ao final da história:

  “Um dia, no bar do Estado-Maior do Exército, já em 1976, contava o caso a uns camaradas, dado que a manutenção do segredo já não tinha razão de ser. O então Major Monge estava ao lado interrompeu-o e disse: 'Afinal foi o meu Coronel quem provocou o 25 de Abril' . Fiquei atónito. Mas imediatamente me veio à memória que tinha lido dias antes uma informação do General Costa Gomes para o governo de Marcelo Caetano segundo a qual para Portugal era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada… Porquê?”.

A narrativa do Coronel Vaz Antunes levanta inúmeras questões. É facto historicamente comprovado que naquele mês de Junho, antecedendo o Congresso do PAIGC, que ratificou Aristides Pereira como dirigente máximo do PAIGC, a linha guineense, com todas as cautelas, procurava uma posição de força para evitar um controlo maioritário de líderes cabo-verdianos. Nino sabia-se vigiado, Osvaldo Vieira já não contava, o rumo de ofensiva militar alterara completamente os acontecimentos, era certo e seguro avançar-se para uma declaração unilateral da independência, criando um ainda mais serrado cerco à diplomacia portuguesa. Padre não estaria na posse de informações quanto ao confronto já instalado entre Marcelo Caetano e Spínola, hoje bem conhecido através da epistolografia trocada, o Primeiro-Ministro proibira Spínola de negociar com o PAIGC o quer que fosse.

Seguramente que Fragoso Allas conseguira chegar até ao núcleo dos combatentes guineenses que não se conformavam com a liderança cabo-verdiana em perspetiva. Recorde-se que Aristides Pereira foi hábil, no mando supremo ficou ele, Luís Cabral e Nino Vieira. Mas de Junho para Julho, acontecera algo de decisivo para a desmotivação de Spínola: era fundamental retrair o dispositivo militar, com sacrifício de populações e quartéis nas fronteiras, Lisboa não tinha dinheiro para acompanhar a escalada armamentista do PAIGC, a partir daquele momento era o PAIGC quem estabelecia as regras do jogo, atacando e flagelando onde lhe apetecia e numa posição muitíssimo forte, sabendo que os mísseis Strela impediam a presença da Força Aérea.

Inconformado com a situação, prenúncio de perigos maiores e sabendo já que se caminhava para a declaração unilateral de independência, o que acarretaria a possibilidade da presença de exércitos amigos do PAIGC, Spínola afasta-se de tudo, vem para Lisboa preparar a sua resposta política, o livro Portugal e o Futuro. Não se entende o final do artigo do Coronel Vaz Antunes exatamente por que foi Marcello Caetano e não Costa Gomes quem disse que era preferível na Guiné um desastre militar a uma solução negociada.

Ainda pouco se sabe sobre os primeiros meses tresloucados de 1974, quando Marcello Caetano decidiu por sua conta e risco abrir negociações secretas com os movimentos de libertação. O que hoje é seguro é que a Guiné já estava fora dos seus planos, congeminou um cessar-fogo antes que fosse demasiado tarde.

[1] - Aceder ao documento em:
http://ultramar.terraweb.biz/06livros_antoniovazantunes_Guine_uma_diligencia_interrompida.htm
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20781: Notas de leitura (1276): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (51) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19447: Recortes de inprensa (100): para a história da luta dos deficientes das Forças Armadas: a manifestação em Lisboa, de 20 de setembro de 1975 (Diário de Lisboa, 22/9/1975)




Fonte: Diário de Lisboa, 22 de setembro de 1975, p. 8.


Citação:
(1975), "Diário de Lisboa", nº 18873, Ano 55, Segunda, 22 de Setembro de 1975, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_4410 (2019-1-27) (com a devida vénia...).


Casa Comum
Título: Diário de Lisboa
Número: 18873
Ano: 55
Data: Segunda, 22 de Setembro de 1975
Directores: Director: António Ruella Ramos; Director Adjunto: José Cardoso Pires
Fundo: DRR - Documentos Ruella Ramos
Tipo Documental: IMPRENSA
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19254: Recortes de imprensa (99) O capitão José Manuel Carreto Curto, dado como morto pela propaganda do PAIGC, em entrevista à ANI, Bissau, 20 de março de 1963 (Diário de Lisboa, edição de 20/3/1963, pp. 1 e 9)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16351: Álbum fotográfico de Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089, ao tempo do BCAÇ 3863 (Teixeira Pinto, 1971/73) - Parte VIII: Visita do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Portuguesas (CEMGFA) , gen Costa Gomes, a Teixeira Pinto, em junho de 1973


Foto nº 35


Foto nº 34


Foto nº 36


Foto nº 37

Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS/BCAÇ 3863  (1971/73) Foto nº 32 >  Junho de  de 1973 >  Fotos nºs 34 a 37 >   Imagens da visita do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Portuguesas (CEMGFA) , gen Costa Gomes, a Teixeira Pinto .

Fotos (e legenda): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Francisco Gamelas, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73), adido ao BCAÇ 3863 (1971/73) (*).

Francisco Gamelas, que é engenheiro eletrotécnico de formação, quadro superior da PT Inovação reformado, vive em Aveiro, e publicou recentemente "Outro olhar - Guiné 1971-1973" (Aveiro, 2016, ed. de autor, 127 pp. + ilust; preço de capa 12,50 €). Os interessados podem encomendá-lo ao autor através do seu email pessoal franciscogamelas@sapo.pt. O design é da arquiteta Beatriz Ribau Pimenta, a partir da foto. nº 29. Tiragem: 150 exemplares. Impressão e acabamento: Grafigamelas, Lda, Esgueira, Aveiro.
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sexta-feira, 15 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16308: Notas de leitura (859): “Costa Gomes Sobre Portugal, Diálogos com Alexandre Manuel”, editado por A Regra do Jogo, 1979 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Este foi o primeiro livro em que o marechal Costa Gomes deu a cara a um entrevistador, falando da génese do MFA, da evolução da guerra colonial, dos acontecimentos da descolonização e de todas as vicissitudes maiores à volta dos 21 meses em que permaneceu em Belém. Continua por merecer um cabal esclarecimento quais as consequências que as instâncias superiores da hierarquia militar previam para a retração da manobra na Guiné, no fundo estava-se a aprovar uma retração também com consequências bem dramáticas para todas as populações que viviam na orla das duas fronteiras. Mas o que fica bem claro nesta documentação é que se diz sem ambiguidades que se vivia já numa completa exaustão de meios e recursos, não era possível, no curto prazo, responder à superioridade em armamento do PAIGC. Trata-se de um episódio que acompanha a agonia do regime e é explorado pelo descontentamento militar. Por isso mesmo, merecia ser estudado por peritos competentes sobre o que era a Guiné em 1973 perante o poder ofensivo do PAIGC.

Um abraço do
Mário


O Marechal Costa Gomes, a Guiné e a descolonização

Beja Santos

O livro “Costa Gomes Sobre Portugal, Diálogos com Alexandre Manuel”, A Regra do Jogo, 1979, foi a primeira obra que o ex-Presidente da República decidiu dar a cara para falar da criação do MFA, do colonialismo e da descolonização e dos seus 21 meses em Belém. A obra anexa, entre outros documentos, o texto sobre a situação militar na Guiné em 1973 e a tomada de posição de Costa Gomes no Conselho Nacional de Defesa.

Não vendo razão para se voltar aos dados biográficos do Marechal, vale a pena entrar diretamente nas questões coloniais e ouvi-lo falar dos acontecimentos associados à guerra da Guiné.

Começa o jornalista por perguntar-lhe se tentou negociar com Amílcar Cabral uma solução de compromisso, ao que ele responde: “Não tentei qualquer espécie de negociação com Amílcar Cabral. Fiz apenas alguns esforços para entrar em diálogo com ele, depois que, após uma visita à Guiné, tomei consciência da efervescência existente entre a população local. Avisei, então, o Governador de que algo de grave poderia acontecer de um momento para o outro, caso não fossem tomadas medidas apropriadas. Só posteriormente tentei entrar em contacto com o Engenheiro Amílcar Cabral". Questionado sobre a quem recorrer, também informou: “Amílcar Cabral tinha a mãe em Bissau. Foi através da mãe e do então encarregado do plano de construção de casas na periferia da Guiné com o Senegal que entrou em contacto com ele”. E confessa que as diligências não surtiram efeito.

Os acontecimentos de 1973 na Guiné foram diretamente acompanhados por Costa Gomes e transmitidos ao decisor político, em sede própria.

Em 22 de Maio, Spínola escreve a Silva Cunha uma carta alarmante: “Aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar”. No seu todo, a carta tem um teor lancinante. Depois de referir o “súbito agravamento da situação militar” e a sua “constante deterioração” a um ritmo de consequências muito graves, Spínola não deixa de aludir que a solução do problema estava de longe de situar no campo militar, “onde o In manterá sempre a supremacia em potencial de guerra”, mostrava-se também altamente preocupado “pelo rumo que o problema vai tomando”.

Poucos dias depois (26 de Maio), “face ao momento muito crítico”, perante a ofensiva geral em que o PAIGC se apresentava “forte em todas as frentes”, Spínola considerava indispensável que os chefes militares evitassem, por todas as formas, “segundas Índias e consequente desprestígio das Forças Armadas”.

A correspondência entre Spínola e Costa Gomes assume também tons patéticos. O Governador e Comandante-Chefe regressado de uma visita a Gadamael-Porto e Cacine, insistia, uma vez mais, no estado “confrangedor” de “desmoralização da parte dos quadros e tropa de linha”.

Na véspera, Lisboa tinha sido informada do “bombardeamento maciço” de que havia sido alvo Gadamael-Porto, designadamente o quartel.

Costa Gomes desloca-se à Guiné e confirma a opinião do Comandante-Chefe. Regressa a Lisboa e convoca de urgência uma reunião do denominado Conselho Nacional de Defesa e sobre a situação da Guiné faz com que fique exarado em ata:
“O desenvolvimento da manobra em curso com base na manutenção do atual dispositivo só seria possível mediante a disponibilidade de volumosos meios adicionais que permitissem o reforço adequado das guarnições de fronteira e o oportuno empenhamento e recuperação de reservas em ordem a equilibrar o potencial nos pontos sobre maior pressão do In. Todavia, o teatro de operações não poderá contar com reforços adequados de meios, por absoluta impossibilidade de os fornecer atualmente; e em tais condições, a conservação da iniciativa e da liberdade de ação indispensáveis à defesa da soberania nacional no teatro de operações só é possível à custa de uma conversão da manobra, modificando o dispositivo em ordem à economia de meios por concentração de forças, a que por tal forma seria conferido um maior dinamismo e mais ampla capacidade de reação”.
Continuando, Costa Gomes acentuou a importância, em qualquer situação, da liberdade de ação e da iniciativa, salientando que na perda da iniciativa está sempre a origem do insucesso militar, pelo que não poderão ser dadas interpretações menos corretas nem pessimistas a qualquer manobra que, adotada de plena consciência e decidida com oportunidade, antes constitui uma manifestação de iniciativa tendente a conservá-la.

Obviamente que Costa Gomes discutira detalhadamente esta retração em Bissau com Spínola, que inicialmente a aprovou e mais tarde a contestou, e com tal pretexto pediu a sua substituição a Marcello Caetano. Nesta reunião magna de militares e de políticos, Costa Gomes valorizou esta manobra como a única consistente para resistir ao crescente ritmo do aumento de potencial do In. E ficou igualmente exarado em ata:
“A redução do número de guarnições do dispositivo, dando-lhe dimensão adequada em termos de potencial, apresenta-se como imperativo da economia de meios não só terrestres como navais e aéreo. Por tudo isto não vê outra alternativa se não a adoção de uma manobra visando o encurtamento da área efetivamente ocupada com vista ao aumento da capacidade defensiva das Nossas Forças pela dinamização daí resultante para as posições do novo dispositivo, evitando deste modo a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira que se impõe a todo o transe evita, atentas as suas repercussões militares e políticas, externas e internas”.

Tirando um documento subscrito por Carlos de Matos Gomes acerca desta retração, não conheço quaisquer outros comentários sobre os efeitos de tal retração que nos afastaria ao longo das centenas de quilómetros das fronteiras da Guiné-Conacri e do Senegal, com o corolário de migrações maciças de todas as populações para longe do alcance dos morteiros 120. Mas seria bom conhecer as conjeturas dos peritos em estratégia para os efeitos que teria igualmente tanto território abandonado para que o In explorasse novas formas de guerra semi-convencional, trazendo os seus cargos para lançar mísseis sobre os aquartelamentos e reordenamentos. A par deste problema tínhamos um outro, que não pode sair do domínio da especulação: a Organização da Unidade Africana preparava um chamamento para se criar um exército que expulsasse o “invasor” de um país independente e reconhecido pela generalidade das Nações Unidas.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16304: Notas de leitura (857): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte IV: depois de 3 meses em tratamento do paludismo, em Conacri, o médico vai para a frente leste, em junho de 1967, regressando a casa em janeiro de 1968