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terça-feira, 20 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15271: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (25): De 6 a 26 de Janeiro de 1974

1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 25.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

25 - De 6 a 26 de Janeiro de 1974


Janeiro de 1974

Inicia-se um novo ano. O tipo de actividade operacional não sofreu grandes alterações, mas intensifica-se bastante com o avançar da época seca, que facilita a incursão em regiões até há pouco inacessíveis. Mas essas facilidades no terreno também estão em linha com o incremento da actividade da guerrilha, que já começou a dar sinais com a montagem de uma emboscada, implante de minas e um ataque a Cumbijã.

Os esforços do Batalhão continuaram a ser dirigidos para a protecção às duas frentes de trabalho da Engenharia na estrada A. Formosa-Buba, nos patrulhamentos e contra-penetrações para as regiões da fronteira, Rio Corubal, Rio Buba, Nhacobá e nos corredores de passagem da guerrilha de todo o Sector e, ainda, para acções extraordinárias desencadeadas pelas informações que iam chegando sobre as movimentações da guerrilha.

Novidade são as detecções em radar (presumo que localizado em A. Formosa) de “alvos aéreos não identificados”. Pelo que teve de inédito, transcreverei seguidamente da História da minha Unidade os registos dessas detecções, (como valor documental, e não para reabrir o polémico “dossier” ou, menos ainda, para entrar em polémica). Transcrevo também outros registos relevantes.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

JAN74/06
- (...) – Comandante, Califa, Cherno Secuna, os Chefes de Tabanca e muitos elementos da população inauguraram o troço de estrada alcatroada A. FORMOSA-MAMPATÁ.

JAN74/08
- Realizou-se uma coluna inopinada a BUBA para transporte de víveres e material para o reordenamento de COLIBUIA. (...).


Das minhas memórias: 

 8 de Janeiro de 1974 – (terça-feira): Dia do meu aniversário

A coluna inopinada referida atrás, tinha mesmo de se realizar... Estava com o meu grupo em Buba e o Cap. Braga da Cruz mandou-me uma mensagem de Nhala para que regressasse nessa coluna, a fim de comemorar o meu aniversário. 

Foi uma grande gentileza da sua parte e eu devo ter ficado muito sensibilizado e reconhecido. Sei-o por um aerograma com data de 13-01-74 enviado para a Metrópole dando conta do meu contentamento e agradecendo o telegrama de felicitações que recebera no dia 8. Esse telegrama foi a surpresa que me havia reservado o capitão à minha chegada a Nhala nesse dia. Fazia 23 anos.

Talvez porque o meu grupo estivesse com o regresso para breve, eu já não saí de Nhala. Nos primeiros dias parece que foi bom, mas logo me comecei a aborrecer e a fechar-me no mutismo. Faltava-me a excitação da actividade operacional e a adrenalina que tantas vezes isso trazia. Coisa que não havia em frasquinhos. Comecei a deixar de dormir embora tomasse comprimidos, mas o efeito começou a ser de placebo: efeito zero. 

Hoje levanto o sobrolho interrogando-me: como é que um tipo com vinte e três anos acabados de fazer, se vai assim a baixo sem reagir às contrariedades? Como é que noutras ocasiões me queixava dos excessos da actividade? E como seria quando tudo acabasse? Como regressaria a casa? Claro que obtive algumas respostas na altura certa e talvez volte ao tema. 

Em carta de 15-01-74 queixo-me: “ (...). Ando aborrecido e não me apetece ver nem falar com ninguém. Talvez por não ter nada para fazer nestes dias. Todas as tardes saio sozinho para caçar e me distrair um pouco, apesar de estar um calor imenso. À noite tomo comprimidos para dormir, mas isso já não me faz nada”.

No dia seguinte a esta carta sairia de Nhala para gozo de férias o Cap. Braga da Cruz e, em termos de ambiente, tudo se tornaria mais fastidioso. Então porque não terei regressado a Buba, onde se encontrava o meu grupo para fazer protecção às obras da estrada? 

Talvez porque se avizinhasse o regresso do grupo, pois em carta de 21-01-74, já é referida actividade normal. “ (...). À noite continua a fazer bastante frio. E de manhã cedo sou obrigado a sair de luvas para o mato, como tem acontecido ultimamente. Mas é horrível a sensação de vestir a roupa fria e começar a caminhar debaixo de grande humidade, sempre contraído. Pelo que vejo nas caras dos outros, é a mesma coisa”.

Julgo ser daquele período de ócio forçado que tive em mãos um Auto de Averiguações relativo a um soldado guineense que tinha sido “desterrado” para Nhala, para aguardar as conclusões de um processo que já vinha de Bissau. Era indiciado de ter provocado desacatos e perturbação da ordem pública em Bissau. Para mim, podia ter sido uma boa ocupação, não fora o carácter ad aeternum da empreitada... É que o referido soldado não levava a sério as averiguações em curso nem estava preocupado com as consequências. Tanto que, numa ida autorizada a Bissau para tratar de assuntos, voltou a prevaricar na modalidade da sua preferência: desacatos e perturbação da ordem. 

Antes do seu regresso a Nhala, já eu tinha recebido mais uma nota de quesitos para lhe serem colocados logo que chegasse. No final, que sanção disciplinar poderia eu propor para um indivíduo que era tão maluco mas, ao mesmo tempo, um “gajo porreiro”? Não recordo se cheguei a concluir o Auto de Averiguações mas ele, aos costumes disse nada...


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: Alvos aéreos não identificados:

(...)

JAN74/10
- Como já vem sucedendo há três dias, são detectados pelo radar, entre as 18,30 horas e 22,00 horas, alvos não identificados. Tem-se tentado entrar em contacto com os meios aéreos sem resposta. Hoje o DAKOTA, neste período sobrevoou A. FORMOSA, verificando-se que os meios aéreos, até agora detectados começaram a operar mais longe e com menos frequência. (...).

JAN74/11
- Continuam-se a detectar alvos não identificados no radar e durante o mesmo período do dia anterior. Estiveram em A. FORMOSA o Exmo. TEN-COR PIL AV VASQUEZ e o Sr. CAP ROLA PATA, Cmdt da BAA/7040, a fim de se reunirem com este Comando, para tratar do assunto relacionado com o aparecimento dos alvos não identificados. (...).

JAN74/13
- Pelas 18,40 foram avistados sobre A. FORMOSA alvos aéreos suspeitos, pelo foi executado fogo contra-aeronaves, sem resultado. (...).

JAN74/15
- Esteve em A. FORMOSA um DO com técnico de radar da Aeronáutica, a fim de verificar o aparecimento dos alvos que ultimamente o radar tem acusado. Depois de várias verificações, ainda não se chegou a nenhuma conclusão. (...).

JAN74/16
- Ao fim da tarde A. FORMOSA foi sobrevoada por dois FIAT’s, com a finalidade de pesquisar os alvos indicados pelo radar. Apesar dos aviões terem sido dirigidos sobre os mesmos, nada encontraram. [No dia 27 estiveram de novo em A. Formosa os senhores Ten-Cor PILAV Vasquez e Cap de Artª Rola Pata, para tratarem destes assuntos].

***********

[O PAIGC recomeçou a actividade no Sector. Por reflexo, a nossa actividade operacional recrudesce]

JAN74/20
- Pelas 18,00 horas GR IN não estimado flagelou Destacamento do CUMBIJÃ com 30 granadas de Canhão S/R, durante 20 minutos, com bases de fogos na direcção de BRICAMA, sem consequências. As NT reagiram com fogo de Artª.
- Pelas 19,30 foram avistados do Destacamento de CUMBIJÃ na direcção de CHIN-CHIN DARI vários VERY-LIGHTS.

JAN74/21
- Realizou-se coluna de reabastecimentos a BUBA. Esta coluna transportou 2 GR COMB das CCAV 8350 e 8351, que substituiriam na protecção dos trabalhos de Engenharia os GR COMB da 1ª CCAÇ/4513, que iriam ser empenhados na acção "OBSTRUÇÃO" a Sul do R. BUBA. (...).

JAN74/26
- Pelas 06h40, quando forças da 1.ª CCAÇ/4513 se deslocavam [em coluna auto, acrescento eu] para a protecção dos trabalhos de Engenharia, foram emboscados por GR IN estimado em 50 elementos com RPG, PPSH, KALASHNIKOV durante cinco minutos, na região de XITOLE 2 F 4-39 [no troço da estrada nova entre Buba e Nhala, acrescento eu], causando 1 morto, 1 ferido grave, 4 feridos ligeiros às NT, e 3 feridos ao pessoal de Brigada de Estradas. O IN sofreu 3 mortos confirmados e vários feridos prováveis. Executou-se fogo de artilharia para o itinerário de retirada do IN em direcção ao INJASSANE. Em reconhecimento posterior encontraram-se vestígios de terem sido causados ao IN mais feridos e mortos prováveis. Foram capturados 6 granadas de RPG, 2 carregadores de KALASHNIKOV e 2 Pás-picaretas.


Das minhas memórias:

26 de Janeiro de 1974 – (sábado) – Emboscada na estrada nova: um fiasco da guerrilha

Recordo muito bem esta emboscada. Em Nhala ouviu-se o ataque e rapidamente se aprontaram viaturas para irmos em socorro dos camaradas de Buba. Quando chegámos ao local já tudo tinha terminado porque fora um ataque relâmpago, mas reinava ainda alguma confusão entre a nossa tropa, natural nestas situações. Depois de observar a situação na estrada enquanto o pessoal se recompunha, e de me inteirar do modo como fora desencadeado o ataque e como decorrera, fui à vala de onde ele partira, – melhor diria, fui à “trincheira”. Fiquei incrédulo. Se não tivessem havido mortos de parte a parte, tudo ali parecia indicar que se tratara de uma brincadeira ou de que estariam a gozar com as nossas tropas. Abriram uma vala enorme e deram-se ao luxo de talhar nas paredes, em vários pontos, bases para assentar metralhadoras (não referidas na HU) e, defronte, o assento do atirador. Aquilo não se fazia num dia nem em dois.

As notas que tenho sobre esta emboscada não coincidem totalmente com os dados que agora leio na História da Unidade. É referido que tivemos 1 morto e um ferido grave mas, é possível que esse ferido tivesse morrido pouco depois porque eu tenho anotado 2 mortos. Eram os picadores que vinham apeados à frente da coluna (?), alvejados por um único atirador que saiu da vala e ficou de pé a disparar. Tenho anotado 11 feridos ligeiros, a maioria ocupantes de uma Berliet que, por precipitação do condutor que saltou da viatura sem premir o botão que a faria parar, fez com que ela batesse com violência contra uma árvore fora da estrada. Quando lá cheguei ainda assim estava. Houve um outro ferido que foi vítima da “explosão” da própria G-3: tinha disparado todos os seus carregadores e depois sacou os carregadores de um soldado que tinha ficado “bloqueado” e em pânico ao seu lado. Como a G-3 não era preparada para tantos disparos, começou por ficar quase ao rubro e depois, simplesmente, torceu a extremidade do cano e bloqueou a saída das munições.

O que mais me espantou no cenário que encontrei, foi que, numa vala que calculámos na altura seria para mais de 100 homens, (a História da Unidade refere apenas 50), e estando a cerca de 150 metros da estrada, não terem feito mais vítimas numa coluna em marcha lenta (?) e com apenas algumas árvores a interporem-se. 

Comentei na altura e posso reafirmar: o meu grupo naquela vala, devidamente organizado para a função de cada um, e poucos sobreviventes deixaria na coluna. Eles, ao contrário, deixaram muitos rastos de sangue entre a vala e a mata, a 50 metros, por onde retiraram. Passados 5 dias, em 31-01-74, foram lá colocar na estrada e no mesmo sítio, duas minas anticarro (que o nosso pessoal levantou), tentando compensar o autêntico malogro que fora aquela emboscada. (A História da Unidade refere o dia 30 como sendo a data da detecção e levantamento das duas minas TMD-44). Alguns dias depois, de passagem, fotografei o local da emboscada.


Foto 1: Janeiro de 1974, estrada Buba-Nhala. Fotografia tirada da berma da estrada no sítio onde ocorreu a emboscada. À esquerda e à direita da imagem, não visíveis, existiam árvores espaçadas mas de grande porte, numa das quais embateu com violência, uma das Berliet carregada de pessoal. Assinalei a tracejado a localização aproximada da vala de onde partiu o ataque. No chão podem ver-se em primeiro plano algumas das embalagens das nossas munições.



As frentes de trabalho da estrada nova

No final de Janeiro de 1974, as frentes de trabalho da Engenharia avançavam a um ritmo impressionante, com a frente de Buba quase às portas de Nhala (8 km de desmatação e 7 km de alcatroamento) e com a frente de A. Formosa (9 km de desmatação e 7,7 km de alcatroamento), já com o troço A. Formosa-Mampatá inaugurado. Nesta fase, a minha Companhia estava empenhada na protecção às obras na frente de trabalhos de Buba por razões lógicas. São desse período as fotografias que mostrarei a seguir.


Foto 2: O meu grupo de combate numa manhã magnífica a caminho da frente de trabalhos da estrada A. Formosa-Buba, na frente de Buba.



Foto 3: Chegada dos capinadores. Acabados de apear das viaturas, irão começar uma jornada dura sob o sol escaldante que não tardaria.



Foto 4: Quase em simultâneo chegam as máquinas da Engenharia. À direita reconheço o Manuel Esteves do meu grupo com a G-3 ao ombro e à frente da viatura o Custódio, maqueiro (ou ajudante de enfermeiro).



Foto 5: Ainda não nos instalámos, mas a confusão já começou. A atravessar vê-se um GC que deve ser da 1ª CCAÇ de Buba. O meu grupo está a aguardar à direita.



Foto 6: Uma viatura da Engenharia corre levantando pó no troço já pronto. Pronto, mas não concluído, porque durante um longo período faltou o alcatrão.



Foto 7: Descarga de terra para a sub-base da estrada.


Foto 8: O meu grupo na “pedreira” e, ao fundo, a estrada nova. É na mata ao cimo da “pedreira” que iremos passar todo o dia emboscados.



Foto 9: À frente dos soldados o “PIFAS”. Era um cão criado por mim e que depois passou para a propriedade do grupo, acompanhando-nos sempre com muita disciplina. Até ao dia em passou a ser inconveniente pondo-nos em risco. Doente, esquelético e provocador dos macacos-cães, foi sujeito à “solução final”.



Foto 10: Furriel Domingos Oliveira, envolto num enxame daquela mosquinha chata que nos entrava no nariz e nos ouvidos. Na imagem, a maioria ficou fora de foco.



Foto 11: Furriel José Maria Pastor.


Foto 12: Um abrigo de circunstância junto ao morteiro 60. De costas, o 1.º Cabo Maqueiro lê, para passar o tempo.



Foto 13: O morteiro de 60mm e o respectivo arsenal, num local que era suposto ser seguro.


Foto 14: Elementos assalariados da desmatação.


Das minhas memórias: Um incidente quase perfeito

O grupo civil de capinadores e da desmatação, largas dezenas e, muitos deles, quase crianças, chegavam todos os dias à frente de trabalho sorumbáticos mas muito disciplinados. Nunca soube nada a respeito deles: quantos eram, de onde vinham, de que etnias eram, quanto ganhavam, enfim. Sempre me pareceu que nos ignoravam ostensivamente ou, até, com hostilidade. Esses que mostro na fotografia 14, deixaram-se fotografar sem nunca se virarem ou darem um sinal de que me pressentiram. 

Pouco depois, com outros que ficaram fora do enquadramento, protagonizaram um incidente, em que eu tive também responsabilidades, e que podia ter originado consequências graves. Estava todo o grupo em grande sossego quando fomos surpreendidos por um fogo que caminhava rápido para o local onde tínhamos empilhadas as granadas do morteiro e, próximo, também as da bazuca. Saio a correr e percebo logo que aquilo tinha sido incendiado muito próximo de nós. Só podia ser intencional. 

Depois de fazer retirar todo o equipamento do alcance das labaredas, gritei para o grupo que trabalhava com a moto-serra, relativamente próximo, e que fingia não se aperceber de nada, assim como fingiram não me ouvir. Furioso e num impulso, disparei uma rajada longa por cima das suas cabeças para que reagissem, virando-se para mim. Fizeram de conta que não ouviram nada. Decidi ir lá ao pé deles enfrentá-los mas, antes, tive que ajudar a mudar o grupo para um sítio seguro com todo o material. 

Entretanto começo a ouvir uma viatura da Engenharia lá em baixo na estrada, que se aproximava a buzinar continuamente. Ao aproximar-me da borda da “pedreira”, vejo o condutor saltar para o chão e correr para mim aos berros, de braços abertos, a dizer “Parem, parem!...” Sem entender, vou ao seu encontro e diz-me ele, então, que íamos provocando uma catástrofe, pois o grupo de combate de Buba, que estava ali na mata a menos de um quilómetro, ouviu as rajadas e já estava a preparar o morteiro quando ele, que passava com viatura, se apercebeu da intenção e do equívoco, já que também tinha ouvido a rajada mas reconhecendo-a como sendo de G-3. Parou a viatura e alertou-os para o disparate que se preparavam para cometer. Eles acederam mas pareceu-lhe que estavam muito excitados. Pouco depois liguei por rádio para o alferes desse grupo para lhe pedir desculpa, mas ele estava furioso e não me recebeu bem. Desligámos a comunicação com maus modos de parte a parte. Até disto a guerra era feita...

(continua)

Texto, fotos e legendas: © António Murta
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 13 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15244: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (24): De 14 de Novembro a 22 de Dezembro de 1973

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15174: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (22): De 09 a 23 de Outubro de 1973

1. Em mensagem do dia 26 de Setembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 22.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

22 - De 09 a 23 de Outubro de 1973

Das minhas memórias:

O mês de Outubro de 1973 iniciou-se com a melhoria do tempo e a perspectiva de diversificação da nossa actividade operacional, devido à abertura da nova estrada Aldeia Formosa – Buba. Isso deu-nos, naquela altura, algum ânimo, mesmo sabendo que essa construção implicaria um redobrar de esforços para todos. Mas era o efeito “novidade” que nos animava por certo, esperando que esta estrada não desse as amarguras sentidas na de Mampatá – Cumbijã, que fora traçada para entrar pelos terrenos do inimigo adentro.

Outubro ficaria ainda marcado pelo incontável número de colunas de A. Formosa a Buba com os inevitáveis patrulhamentos e picagens, seguidos da instalação nas matas o dia todo: foram os reabastecimentos do costume, foram os equipamentos e o pessoal da Engenharia, foi a deslocação para Buba do pessoal do BCAÇ 4516 e foram as várias que se fizeram para transportar a população para a festa do Ramadão e para a eleição do sucessor do Cherno Rachid. Se atendermos a que a picada estava muito danificada, nalguns pontos quase intransitável, dá para perceber o esforço exigido a quem fazia a protecção e a quem, de viatura, aos balanços e aos saltos, “navegava” naquele pesadelo. Os troços aproveitáveis da picada, menos sujeitos às correntes diluvianas, ficaram agora devastados pela passagem das máquinas pesadas e de lagarta da Engenharia.

Acrescia ainda a actividade dos patrulhamentos cada vez para mais longe. Como nota positiva, o facto de não termos sido incomodados pelo inimigo, mais preocupado em continuar a flagelar Cumbijã. “A actividade do IN continuou a ser fraca, sendo de salientar a flagelação a CUMBIJÃ, não só pelo grande número de granadas utilizadas, como pela precisão do seu fogo”. (da “Situação Geral” da H. U. do BCAÇ 4513, 01 a 31 Out73)


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

OUT73/09Pelas 1730 GR IN não estimado flagelou o Destacamento de CUMBIJÃ durante 45 minutos, com 100 granadas de CAN S/R e 5 granadas de MORT 82, sem consequências. As NT reagiram com fogo de ART e MORT. [Sublinhados meus a negrito]

- Esteve presente no Comando do Batalhão, a apresentar os seus cumprimentos de despedida, o CHERNO ALIU CHAM da REP SENEGAL, e que agradeceu todo o apoio prestado quando do falecimento do CHERNO RACHID e todo o apoio sanitário que se continua a ser dado em todos os pontos da fronteiriça da REP SENEGAL.~

- Chegaram a BUBA os Dest. ENG N.º 1 e 2 e a Brigada de Estudos e Construção de Estradas.

OUT73/10 – Realizou-se uma coluna de reabastecimento a BUBA a fim de transportar p/ A. FORMOSA os elementos do DEST ENG N.º 1, assim como algumas máquinas e materiais do mesmo.


Foto 1: Nhala, 1973 – Coluna de viaturas e máquinas da Engenharia rumo a Buba, numa pausa em Nhala. Se estavam a caminho de Buba estavam de saída: calculo que sejam as máquinas que construíram a estrada Mampatá-Nhacobá. Revelo-as só pelo aparato semelhante e sempre “festivo” que originavam e porque não tenho imagens da coluna com a Eng.ª N.º1 que por aqui passou rumo a A. Formosa. 


Foto 2: Nhala, 1973 – Saudosa, esta imagem de Nhala com a mata ao fundo ainda integral. Não faltaria muito tempo para que fosse dilacerada para fazer o troço que ligaria, lá muito por trás dela, à estrada nova A. Formosa – Buba. 

OUT73/11 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 durante a acção “OSÍRIS” executam patrulhamento na região do R. UUGUIUOL sem contacto. [relacionado com histórias marginais (3)].
- Forças da 3.ª CCAÇ/4516, accionaram na região de NHACOBÁ uma MAPESS (mina antipessoal) IN, sofrendo dois feridos graves.

[Em carta de 19-10-73 para a Metrópole refiro mais esta flagelação a Cumbijã (dia 9), e o caso do soldado do novo Batalhão (BCAÇ 4516) que ficou sem uma perna ao pisar uma mina entre Cumbijã e Nhacobá. Depois interrogo-me: seria este o soldado que veio a falecer por falta de evacuação atempada? Nunca soube. Mas era a informação que corria.

Outras notas dessa carta: Um pelotão de Buba teve (em 17-10-73) um contacto no mato sem baixas, mas parece que causaram mortos e feridos. Pela rádio pediram tiros de obus a Buba e durante toda a tarde ouviram-se aqui em Nhala tremendos rebentamentos das granadas a baterem a zona; Continuam a chegar as máquinas para a construção da nova estrada. Supõe-se que o PAIGC esteja ao corrente e comece a concentrar as suas forças na área. Pela nossa parte estamo-nos também a preparar].


Histórias marginais (3) – Inimigos poderosos: formigas e mosquitos... 


Foi mais um patrulhamento para a região do Rio Uuguiuol mas, desta vez, com o meu grupo a solo. Ia o grupo em passo lesto e com muito ânimo a atravessar uma zona de savana ensolarada, depois da longa e monótona mata. Pára o grupo e chego-me à frente para ver o que se passava, mas não foi preciso andar muito para ver os três ou quatro homens da frente aos saltos, cinturões e armas para o chão, calças para baixo, palavrões, de repente em cuecas e a esfregarem as pernas, esgares de dor, enfim, parecia uma macacada mas percebi logo que era sério: pisaram formigas. Tenho a ideia vaga de que eram as temíveis formigas vermelhas [1], mas também podiam ser as formigas pretas de grandes mandíbulas [2] que eu cheguei a ver, noutra ocasião, a irem agarradas aos pneus das viaturas que tinham pisado um largo carreiro delas na picada. A verdade é que a ignorância sobre a enorme diversidade animal, que se nos deparava no dia-a-dia, era quase total.

Depois de socorridos os homens, cheios de vermelhões e ainda a arrancar cabeças de formiga cravadas nas pernas, tentei no local avaliar a extensão da área coberta pelas formigas, em total desordem, e concluí que o resto do grupo não podia passar por ali. Tinha que encontrar uma zona em que as formigas ainda estivessem a passar de forma organizada, e tínhamos que sair dali rapidamente. A dez ou vinte metros do local do incidente elas continuavam a sua marcha ordeiramente, sempre no mesmo sentido e alheias ao que se passara lá à frente. Mas não era um carreiro de formigas, era uma torrente delas com, talvez, meio metro de largura. Um pequeno salto era o suficiente para ultrapassá-las. Se não as calcássemos. Para não correr riscos, cortámos duas estacas que eu cravei no solo, sinalizando as “margens” daquele caudal ameaçador e todos passámos sem problemas, com uma pequena corrida e um salto na primeira estaca, até os pés baterem para além da segunda estaca.

Pode parecer caricato um grupo de combate ser travado assim, por uma espécie que mal se vê nas ervas do chão, e caricato também tanto empenho na prevenção de novo incidente e, até, esta relevância que agora dou ao assunto. Mas quem passou por algo semelhante, não vai achar nada de brejeiro neste relato. Muito menos os meus soldados, que diziam que aquelas picadas eram piores que as das abelhas, e que saíram dali com marcas que não esqueceriam tão depressa, sem saberem, ainda, as consequências delas e, muito menos, o que os esperava ainda antes de acabar o dia.

Cumprida a missão do patrulhamento, no regresso já pelo fim da tarde, lá estavam as estacas mas nem sinal das formigas. Só que, como se não tivesse bastado, mais adiante e antes de penetrarmos na mata, durante uma pequena pausa para descanso, fomos atacados por mosquitos. Não daqueles mosquitos que em massa nos atacavam à noite na mata e nos deixavam ardor e comichão, mas cujo incómodo maior era o seu enervante zumbido. Estes eram mosquitos grandes [3] e com um aspecto que eu desconhecia ou de que nunca tinha dado conta: as suas longas pernas eram manchadas de preto e branco. Recordo que, o que primeiro me ocorreu foram as antigas bengalas dos cegos e nunca mais esqueci esta alusão. Tinham também uma fúria a atacar que me pareceu superior aos restantes mosquitos, indiferentes ao espanejar de camisas e quicos. 

Mas o pior era que a sua picada, logo aos primeiros instantes, deixava marcas nos mais sensíveis que inspirava apreensão e requeria cuidados imediatos. Recordo bem as costas de alguns com autênticos caroços tumefactos logo após a picada e, não muito mais tarde, viam-se erupções purulentas. Fiquei impressionado e preocupado mas não por mim, pois as picadelas que sofri, para além da dor e do incómodo, não provocaram efeito nenhum. Só muitos anos depois associei este mosquito à malária, lendo artigos sobre o assunto. A verdade é que recentemente, creio que em 2013 ou 2014, por duas vezes, identifiquei esse mosquito junto da minha casa.

Tudo isto se passou em curto espaço de tempo, pois urgia sair dali rapidamente para evitar consequências mais graves, e foi o que fizemos, em correria, alguns ainda em troco nu e a sacudirem-se mutuamente. Nos dias seguintes acompanhei os casos mais graves e verifiquei como era demorada a cicatrização daqueles autênticos furúnculos purulentos. Mas já estava habituado a que um ou outro não comparecesse à chamada por estar com paludismo. Por tudo isto e por muitas outras ocorrências, embora seja quase imune à picada dos mosquitos, ainda hoje, se descubro um único mosquito no quarto, só adormeço quando estou certo de o matei.

[1]Marabunta (Cheliomyrmex andicola): é uma formiga-correição que vive principalmente debaixo da terra nas selvas tropicais da América. (Outras fontes referem América e África), são de cor avermelhada, tamanho médio.

As suas mandíbulas são em forma de garra e armadas com grandes espinhos, semelhantes a dentes, que permitem que elas se prendam às suas presas durante o ataque. As suas picadas são extremamente dolorosas, irritantes e paralisantes. A dor que provocam assemelha-se com a da picada das "formigas de fogo".

São a única espécie que remove e consome carne de vertebrados, como lagartos, serpentes e pássaros, inclusive de animais de maior porte, bem como do homem. (Todos os dados parecem corresponder às formigas que referi. A recolha é da Wikipédia com a devida vénia).

[2]Formiga legionária: é uma formiga semelhante à marabunta mas capaz de matar até galinhas e outros animais maiores devido ao seu ferrão muito venenoso. Matam e comem qualquer coisa que encontrem pela frente. O que principalmente a distingue da marabunta, é que não constroem ninhos permanentes e estão quase sempre em movimento. (Julgava ser esta a formiga que refiro no texto, mas agora tenho dúvidas, pois não encontrei informação desta espécie com a cor negra. A recolha é do site “comotudofunciona” com a devida vénia). 
Nota: Em África, todos os que encontraram estas espécies pela frente, ainda assim, podem-se considerar sortudos, pois aí não existe a formiga-bala que, como o nome indica, a sua picada é semelhante ao impacto duma bala. E o pior vem depois: é frequente as suas vítimas, ao fim de um dia ou dois, apelarem para que lhes amputem o membro picado por já não suportarem mais a dor. Só existe na América do sul).

[3] - Anopheles, mosquito transmissor da malária: A doença é transmitida pela fêmea do mosquito do género Anopheles. No Brasil, o principal parasita que causa a malária é o Plasmodium vivax. Ele é menos perigoso do que o Plasmodium falciparum, por exemplo, o mais predominante na África. (Recolha do site “VEJA”).


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:


(...)

OUT73/11 – Forças da 3.ª CCAÇ/4516, accionaram na região de Nhacobá uma MAPESS (mina antipessoal) IN, sofrendo dois feridos graves. [Relacionado com a minha nota anterior, com data de 19-10-73].

(...)

OUT73/16 – O Cmdt do Batalhão deslocou-se a Nhala e Buba.
- Por determinação superior o BCAÇ 4516 passa a ser força de intervenção do Comando-Chefe. [Ficou apenas a 3.ª CCAÇ em Colibuia].

OUT73/17 – Pelas 1530 forças da 1.ª CCAÇ/4513 interceptaram em Xitole (2 E 7-17) grupo inimigo de 120 elementos armados, deslocando-se no sentido S-N. NT sem consequências, o IN com prováveis feridos e mortos. Capturado 1 granada de RPG-7.

(...)

OUT73/23 – Durante a picagem do itinerário MAMPATÁ-UANE foi detectada uma mina A/P IN por forças da CART 6250.
- Seguiu para BUBA, com destino a BISSAU a 1.ª CCAÇ 4516.


Das minhas memórias:


23 de Outubro de 1973 – (terça-feira) – Carreiro de Uane.

Estive com o meu grupo, mais uma vez, na protecção à coluna para Buba – e retorno -, junto ao “carreiro” de Uane. Este “carreiro” era um corredor de passagem e reabastecimento da guerrilha que se cruzava com a nossa picada, mais ou menos a meio caminho entre Nhala e Mampatá. Daí que, para a protecção às colunas, saísse um grupo de Nhala e outro de Mampatá fazendo a picagem até ao “carreiro” onde nos encontrávamos e trocávamos informações sobre alguma anormalidade. Depois cada grupo se afastava umas centenas de metros na direcção dos respectivos aquartelamentos e instalava-se na mata junto à picada onde se passava o dia quase todo, até ao regresso da coluna a A. Formosa. Uma vez ou outra, instalávamos na zona de Samba Sabali. Se não tivesse ordens em contrário, eu preferia ficar com o grupo quase em cima do “carreiro”, onde emboscava para evitar surpresas vindas dali.

Neste dia (23), já no “carreiro” há algum tempo, estranhei a demora do alferes de Mampatá (CART 6250). Instalei logo ali o grupo na mata e fiquei na picada a aguardar. Por fim lá apareceu ele ao fundo na curva, sozinho por também já ter instalado o seu pessoal, (os grupos quase nunca se chegavam a ver), e com uma pequena caixa de madeira na mão. (Foi nesta ocasião que me avisou de que em Mampatá um milícia me tinha procurado para me matar... Seria só da bebedeira? Um dia talvez conte). Vinha então o alferes com uma caixa na mão. Era uma mina antipessoal artesanal que ele tinha levado tempo a levantar. Ainda nos rimos da mina quando a examinei e vi que estava quase podre. Parecia inofensiva, mas nunca fiando!...

Julgo ter sido neste dia que, enquanto esperava, penetrei no “carreiro” numa certa extensão a tentar descodificar sinais que me dessem uma ideia do número de elementos que ali passaram e em que direcção porque, à chegada, tínhamos visto o óbvio, mesmo no ponto onde o “carreiro” cruzava a picada: tinham ali passado muitas botas e muito recentemente. Não recordo a direcção. Passei essa informação ao camarada de Mampatá e, mais tarde, ao meu comandante em Nhala.

Era sobre este “carreiro” mas a muitos quilómetros dali na direcção do Rio Corubal, que tínhamos em permanência um pequeno campo de minas. Mesmo a partir de Nhala a corta-mato, para se interceptar o “carreiro” no sítio minado, caminhavam-se várias horas, já não recordo ao certo, e sempre com um guia à frente porque, sem a sua ajuda, ainda que chegasse perto, podia nunca localizar o campo de minas. Bastava que fosse lá, por exemplo, após a época das chuvas para as levantar, quando elas haviam sido implantadas em plena época seca. Foi o que me aconteceu num dia complicado e que mais tarde relatarei.

Seguem-se algumas imagens de um dos inúmeros patrulhamentos até ao “carreiro” de Uane, com o objectivo de fazer a picagem e depois montar segurança para a passagem de uma coluna auto de A. Formosa a Buba e regresso. Podem parecer monótonas estas imagens da picada Nhala-Mampatá, mas muitos reconhecerão com saudade alguns destes trechos. Até já davam saudades naqueles tempos, quando a deixámos de usar para passar a utilizar a estrada nova...


Imagens da picada Nhala - Mampatá 



Foto 3: À saída de Nhala rumo ao “carreiro” de Uane. A seguir ao denso nevoeiro, viria o braseiro do costume. De calções, vai o Abel cheio de micose, mas não pôde ser dispensado.



Foto 4: O homem da bazuca. Lá à frente vai uma parte do grupo e a equipa da picagem.


Foto 5: Não fora o motivo da caminhada, e quanto prazer nos daria passar aqui nesta paz, sem receio do que estivesse para além daquela curva...



Foto 6: O homem dos dilagramas.


Foto 7: Passagem na zona do palmeiral. Caminhamos em silêncio total. Estamos a passar num dos pontos mais bonitos do percurso, mas também dos que requeriam maior vigilância. Agora já está seca a picada mas, ali junto às palmeiras, na época das chuvas passava-se com água pelos joelhos.



Foto 8: Estou junto ao “carreiro” de Uane no ponto em que ele cruza a nossa picada. É evidente o vestígio de uma passagem recente. 


Fotografia (slide) tirada da borda da picada. Nas minhas costas o “carreiro” corre para Norte, para os lados do Corubal.


Foto 9: O Fur. Mil. José Maria Pastor e o Fur. Mil. Domingos Oliveira nas imediações do “carreiro”. O resto do grupo está instalado na mata do lado direito.



Foto 10: Estamos de regresso após as passagens da coluna. À direita o que resta do que foi a tabanca e destacamento das NT, Samba-Sabali.



Foto 11: Quase a chegar a casa. À direita fica o aquartelamento de Nhala.

Foto 12: Nhala à vista. A tabanca, mais à esquerda quase não é visível.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior de 22 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15139: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (21): De 2 a 25 de Setembro de 1973

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15139: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (21): De 2 a 25 de Setembro de 1973

1. Em mensagem do dia 19 de Setembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 21.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

21 - De 02-09 a 25-09-1973

Das minhas memórias:

2 de Setembro de 1973 – (domingo) – Notas de Nhala; Nova incursão ao Unal; Estou “apanhado”

“Ontem à noite, desde as 22h30 e até hoje às 7 da manhã, ouviram-se ao longe rebentamentos poderosos de que não conseguimos saber a origem”.

Pelo leio agora na História da Unidade do BCAÇ 4513, calculo que esses rebentamentos fossem provenientes dos nossos obuses a partir de Buba ou Cumbijã ou de ambos, a bater a zona da nova operação para o Unal. A História da Unidade não refere batimentos de zona, mas refere o movimento de tropas para Buba no dia 1, à semelhança dos preparativos da operação falhada “Ousadia Satânica”. Esta chamar-se-ia “Lance Pertinente” e tinha o mesmo objectivo: chegar ao Unal, (e dar treino operacional às tropas do BCAÇ 4516). Tal como a operação anterior, envolveu grande número de tropas, quer do BCAÇ 4516, 4513, CART 6250, CCAV 8351, enfim, tal como a anterior fracassou pelos mesmos motivos: tudo inundado, rios intransponíveis, chuvas constantes e intensas, falta de trilhos e de guias, fora a grande distância a percorrer, como refere a H. da U.

Desta vez não fui chamado a participar e, ainda que fosse, certamente não estaria em condições. A verdade é que o aconchego do “lar” só por si não resolve tudo e, ainda não refeito de toda a actividade anterior ao regresso a Nhala, e eis que nos defrontámos com patrulhamentos, contra penetrações, protecção a uma infinidade de colunas auto – com as cansativas picagens – e, ainda, desfalcados de um grupo de combate da nossa Companhia envolvido na referida operação.

*** 

Estava a ficar “apanhado”. Numa nota de 05-09-73, dou conta de situações anormais no meu comportamento, fruto de grande abatimento e tensão nervosa que, parece, não afectava só a mim: deu-me para matar macacos-cães. A primeira vez, no regresso apeado de um patrulhamento na picada de Mampatá-Nhala imitei os macacos, chamando um grande grupo que se ouvia à distância, até os ter na mira. Depois matei um casal de adultos. Como se não bastasse, serviram para, como se fossem vivos, fazer de manequins com armas, rádios, etc., para depois fotografar. Todos acharam muita graça e participaram. De outra vez, em andamento e de pé no Unimog da frente como era meu hábito, disparei uma rajada para uma família inteira que apareceu ao longe numa recta. Felizmente não matei nenhum. Só mais tarde me dei conta da estupidez e, hoje, à luz da razão e da cultura que tanto prezo de preservação das espécies e da natureza em geral, acho quase inacreditável que tenha sido eu a fazer aquilo. Eu, que até sou contra as touradas...

Contudo, acho que o fazia para descarregar tensões que, no limite, podiam propiciar consequências piores. Foi por isso também que, por duas vezes pelo menos, pedi autorização ao Comandante de Companhia para rebentar uns petardos de trotil, de maneira a aliviar essa tensão. Habituado que estava a rebentamentos, desde o curso de minas e armadilhas, passando pelo aperfeiçoamento em Bolama (onde abundava o material que nos faltou no curso em Tancos e em que, no final, tivemos de rebentar grande quantidade de material sobrante), e passando pelos episódios dos últimos meses nas regiões de Cumbijã e Nhacobá, sempre que faltavam rebentamentos começava a acumular tensão, como os drogados privados de droga: ninguém me aturava. Então, autorizado, ia ao paiol e colhia a dose conforme o estado de ansiedade. Ia à tardinha para o lado da fonte de Nhala, já deserta, e colocava um petardo de trotil atrás de uma grande árvore. Lançava fogo ao rastilho do detonador, passava para o outro lado da árvore e, de frente para ela e de costas para o aquartelamento, começava a recuar enquanto aguardava a explosão. Uma vez a pancada de ar no peito foi tão violenta que recuei, talvez três metros, sem pôr os pés no chão. Depois regressava como se não fosse nada. Era de malucos..., mas também já ninguém ligava. O que podia significar estarem tão malucos como eu.

Tenho a noção do ridículo e acho que não devia contar isto. Mas passou-se assim e, se não contasse, pareceriam sempre exageradas as alusões aos estados de espírito depressivos, de ansiedade e tensão.

Seguem-se duas fotografias comigo e com os meus camaradas de Nhala.

Foto 1: Nhala, fins de 1973 ou 74 - Alferes Tibério Barros (com a minha bengala); Alferes Carlos Lopes; Capitão Braga da Cruz e eu. 

Foto 2: Nhala, 23 de Abril de 1974, dia da visita do General Bettencourt Rodrigues a Nhala. Eu com a minha bengala; Capitão Braga da Cruz e Alferes Campos Pereira. (Atente-se na data).


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

SET73/07 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 durante a acção “OGIVAL” entraram em contacto com um GR IN ESTM em 20/50 elementos. O IN reagiu com RPG e armas automáticas retirando-se de seguida. No reconhecimento efectuado capturou-se uma granada de RPG-2 e verificou-se a existência de extensas manchas de sangue. As NT sofreram um ferido ligeiro. Forças da 3.ª CCAÇ/4513 e CCAÇ 18 patrulharam a região do R. BALANA.

SET73/08 – Forças da 1.ª CCAÇ/4513 detectaram em região XITOLE 2 F 0-30 passagem de um GR IN estimado em 40/50 elementos no sentido N/S na madrugada deste dia.

(...)

SET73/11 – Morreu em BISSAU o CHERNO RACHID, homem de uma influência enorme sobre todo o povo FULA. Religioso e poeta gozando de enorme prestígio, mesmo para além fronteiras. (dos Factos e Feitos do BCAÇ 4513). [Sublinhado meu a negrito]

[CHERNO RACHID: Fez há dias 42 anos que morreu essa figura eminente do Povo Fula. HOMEM GRANDE entre os maiores, era uma sumidade e uma autoridade em várias áreas do conhecimento e da sensibilidade humana. Tudo acolhido na sua grande humildade. Não preciso de mais laudatórios porque, com mais conhecimento de causa, o fizeram já aqui no nosso Blogue, camaradas como o Vasco da Gama, Arménio Estorninho, Luís Graça, o saudoso Pepito e o Beja Santos, entre outros por certo. São quase uma dezena de “postes”. Mas não quis deixar passar em claro esta data, talvez pela mágoa de nunca ter tido oportunidade de o conhecer pessoalmente. Ao menos, mesmo sem ser crente, direi hoje: Alláhu Akbar - 18 de Setembro de 2015].

SET73/13 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 executam patrulhamento conjugado com C/PEN (contra penetração) na região de PONTE R. CORUBAL sem contacto.

- Forças da 3.ª CCAÇ/4513 executam patrulhamento conjugado com C/PEN na região do R. BALANA sem contacto.

- Forças da CART 6250 executam C/PEN na região de MISSIRÁ sem contacto.

(...)

SET73/22 – O Comandante do Batalhão acompanhou uma patrulha à região de CHICAMBILO. - Forças da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 durante a acção “ORTIGA” excutam patrulhamento conjugado com C/PEN na região da confluências do R. CORUBAL-R. UUGUIUOL sem contacto.

 - Forças da CART 6250 durante a acção “OÁSIS” executam patrulhamento conjugado com C/PEN na região de BOLOLA sem contacto.

(...)

SET73/25 – Forças da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 durante a acção “OUSADIA” executam patrulhamento e C/PEN no R. UUGUIUOL sem contacto.

 - Forças da CART 6250 durante a acção “ORIENTE” executam patrulhamento e C/PEN em MISSIRÃ sem contacto.

(...)

Das minhas memórias: 

25 de Setembro de 1973 – (terça-feira) 

Histórias marginais (2) – A acústica da mata. 

A acústica da mata, e não os sons da floresta que nos encantavam mas faziam estremecer e ficar de alerta quando, subitamente, se suspendiam.

Por diversas vezes fiquei surpreendido e confuso, quando no interior da mata ouvi tiros ou outros sons não naturais, que eu sabia – ou vinha a saber -, haviam sido produzidos exactamente na direcção oposta. Mas havia outros, para os quais não encontrava explicação. Se o fenómeno não fosse testemunhado por todos os que me acompanhavam, caso andasse sozinho à caça, por exemplo, ficaria com dúvidas sobre a minha sanidade mental. Ou se não teria problemas de orientação e percepção. Acontece que, os dois casos mais flagrantes e problemáticos, ocorreram quando saímos para o mato em bigrupo, portanto, com cerca de quarenta homens a reconhecer o mesmo fenómeno.

Nesta data, num patrulhamento conjunto do meu grupo com o 1.º GComb do Alf. Campos Pereira para a região do Rio Uuguiuol, fomos surpreendidos por uma situação insólita: em plena mata começámos a ouvir bater chapa. Sons muito fortes e nítidos, que nos indicavam um sítio a não mais de cem metros à nossa frente. A primeira reacção foi mandar parar todo o pessoal e depois dialogarmos, eu e o outro alferes, tentando encontrar uma explicação lógica para a origem dos sons, face à nossa posição no terreno. Mas não encontrámos explicação nenhuma: estávamos de frente para o Rio Corubal mas a muitos, muitos quilómetros dele e tínhamos caminhado, de certo modo, paralelamente ao Rio Uuguiuol, mas também muito afastados. À nossa frente não havia nada a não ser mata. Então, admitimos que ao fundo da rampa que a mata ali fazia, coisa rara na região, estivessem elementos da guerrilha a montar - ou desmontar -, qualquer coisa em chapa. Decidimos fazer uma batida.

Rapidamente dispusemos os dois grupos, que até ali tinham caminhado em fila indiana, numa frente linear com mais de quarenta homens. Ocupámos os nossos lugares nos grupos e avançámos como para um golpe de mão, com as cautelas que a situação impunha. A mata era propícia, quase limpa como num eucaliptal, e as árvores intervaladas mas com bom porte para nos proteger. Como disse, o terreno tinha uma inclinação acentuada e a visibilidade era para vinte ou trinta metros.

Quando julgámos ter já ultrapassado em muito a distância que apontávamos como o local dos batimentos, parámos para avaliar a situação. É que, à medida que avançávamos, parecia sempre que era já ali adiante, sempre mais adiante. Por vezes cessavam os sons, mas logo recomeçavam com uma nitidez incrível. Vozes não se ouviam, mas jurávamos que estava ali gente. Como não havia sequer uma aragem, excluímos a hipótese de sons trazidos de longe, algures. Mas se fossem, de onde poderia ser? Resolvemos flectir para um dos lados a descida da mata e continuámos, sempre em linha, por mais umas centenas de metros. Parámos de novo e mandámos uma mensagem para Nhala para que chamassem o capitão ao rádio. Expusemos a situação e demos as coordenadas da nossa localização aproximada. Queríamos indicações do que estava à nossa frente, já que a carta que levávamos era curta. “Pelas vossas indicações, podem ser os sons da oficina auto do Xitole”, “Qual Xitole?! O Xitole é quase do outro lado do Mundo!”, “Não há mais nada na vossa frente”. Ponto final.

Ainda meio incrédulos, desistimos da batida e encetámos o regresso a Nhala. Mas com a certeza de estarmos muito longe do Corubal. Não havia o risco de cairmos ao rio inadvertidamente. E os sons ficaram lá.

*** 

Um outro caso, mais sério, e que podia ter acabado em tragédia

Destacados ainda em Cumbijã, saímos um dia com o grupo do Alf. Campos Pereira - por mero acaso outra vez com ele -, para os lados de Lenguel (ou Sabasó?). Fizemos um longo patrulhamento para a região que nos fora indicada, sem nenhuma anormalidade. Isto teria ocorrido antes de se iniciarem as chuvas, já que, no regresso e muito exaustos, resolvemos descansar ao longo do leito de um rio seco, por onde esticámos os dois grupos. A tarde já caminhava para o fim e preparávamo-nos para abandonar o local, de regresso a Cumbijã quando, inesperadamente, se deu um potente rebentamento numa das extremidades do longo cordão de homens. Surgiram dois ou três a correr em pânico, sem arma nem equipamentos, direitos a mim e ao outro alferes e, quase sem fala, apontavam para lá tentando explicar que fora quase em cima deles. Tudo se passou num ápice: como nos tinha parecido o rebentamento de uma granada de obus 14, mesmo se, a escassos quilómetros de Cumbijã não tivéssemos ouvido a “saída”, logo contactámos via rádio o Comando, não fosse a próxima cair em cima de nós. Se ainda fôssemos a tempo. Dissemos para suspenderem imediatamente os tiros de obus para a zona e demos a nossa posição. Para nossa estupefacção disseram-nos que se estavam a defender de um ataque turra com canhão S/R que, estava precisamente nas nossas costas...

Virámo-nos para trás, ainda no leito do rio e, sem querer acreditar, percebemos que eles estavam mesmo ali a disparar o canhão a não mais de duzentos ou trezentos metros, numa zona mais aberta e com uma estreita faixa de mata a separar-nos. Há quanto tempo estariam ali sem que nos ouvíssemos mutuamente? Como foi possível não ouvir os disparos do canhão mesmo ali? Parece inverosímil mas foi assim. Felizmente que éramos muitos a testemunhar, caso contrário pensaríamos que estávamos malucos. Felizmente também o obus 14 parou para evitar uma tragédia. Por pouquíssimo tempo, diga-se, pois assim que lhes demos a posição correcta do canhão S/R, com uns poucos disparos calaram-no definitivamente, enquanto nós, em passo de corrida, já fazíamos o caminho para o Cumbijã.

Penso agora, e todos podem pensar: então, estando ali, não aproveitaram para atacar o grupo dos guerrilheiros? Não. Decerto porque ignorávamos quantos eram, que armas tinham para além do canhão e também porque começava a fazer-se noite e ainda tínhamos muito para andar e, se até ali tínhamos passado despercebidos, não era a melhor altura para nos denunciarmos.

*** 

Seguem-se duas fotografias com as minhas queridas lavadeiras.

Foto 3: Nhala, 1973 – Rosa, a minha primeira lavadeira. Gostava dela porque era uma mulher serena e simpática. Excepto a lavar roupa: despedi-a com justa causa quando percebi que quase já não tinha botões na roupa.

Foto 4: Nhala, 1973 – Fátima com a sua bajudinha. Foi a lavadeira seguinte e até ao fim da minha comissão. Era uma doçura de mulher, sempre com um sorriso, afável e delicada. O seu marido era o meu guia preferido nas saídas mais complicadas: soldado milícia, guia competente, homem de muito aprumo e poucas falas, talvez porque não falasse quase nada de português. Na foto, sentado no chão, está o Brás, soldado do meu pelotão.

(continua)

Texto, fotos e legendas: © António Murta
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Nota do editor

Últimos dez postes da série de:

14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14877: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (11): 23 e 24 de Maio de 1973

21 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14910: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (12): 26 de Maio a 8 de Junho de 1973

28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14940: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (13): 9 a 14 de Junho de 1973, com baptismo de fogo a 13

4 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14971: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (14): 15 a 18 de Junho de 1973

11 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14993: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (15): 19 a 22 de Junho de 1973

18 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15016: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (16): De 23 de Junho a 6 de Julho de 1973

28 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15050: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (17): De 8 a 21 de Julho de 1973

1 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15062: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (18): De 8 a 21 de Julho de 1973

8 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15087: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (19): De 26 de Julho a 4 de Agosto de 1973
e
15 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15116: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (20): De 5 a 21 de Agosto de 1973

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15062: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (18): De 8 a 21 de Julho de 1973

1. Em mensagem do dia 29 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 18.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

18 - De 22 a 25-7-1973 


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUL73/22 – Forças da 2.ª CCAÇ patrulharam a região de NHACOBÁ e LENGUEL sem terem detectado qualquer sinal da presença IN na região.


Das minhas memórias:

22 de Julho de 1973 – (Domingo) – Patrulhamento com missa. 

Caminhámos dentro da mata durante bastante tempo e julgo que a saída de Cumbijã deve ter sido bem cedo, pois que a meio da manhã tínhamos atingido o objectivo e inspeccionado a zona que me foi indicada. Eram percursos e objectivos nunca antes efectuados pelo meu grupo, e não sei se alguma vez por outros. A caminhada na mata foi normalíssima, igual a tantas outras, mas acabámos por desembocar num lugar estranhíssimo, que me causou algum desconforto, próprio da insegurança e da acuidade máxima dos sentidos. Ainda antes de atingirmos a orla da mata sentimos no ar um cheiro a maresia que nos deixou um pouco atónitos, pois na nossa frente, em campo aberto, nada indicava a proximidade de um desses braços de mar tão frequentes na Guiné, mas completamente estranhos para nós. Os odores marinhos, o dia cinzento, um chão estranho e um silêncio incomodativo, conjugavam-se para criar uma atmosfera e um cenário quase opressivos, como se indiciassem um perigo escondido ali algures. Decidi instalar o grupo na orla da mata e ir lá frente investigar sozinho. À minha frente, em campo aberto, tinha o que me pareceu uma lala, uma faixa estéril talvez com sessenta a setenta metros de largura e no limite da qual corria paralelo um cordão de pequenas árvores, a denunciar a presença de um riacho, não deixando ver nada para além dele. Havia que ir espreitar. Ao aproximar-me reparei que ao longo desta fiada de árvores havia paralelamente um uma leira muito uniforme e compacta de plantas que me davam um pouco abaixo dos joelhos e que, a uma certa distância, parecia um campo de trevo. Atravessei em direcção ao riacho por cima desse tapete muito verde e ocupei-me a observar o leito quase oculto no negrume das sombras. Para o outro lado das árvores e da vegetação cerrada, não consegui ver nada. Voltando para trás reparo, espantado, que o caminho que fiz pisando o tapete verde, parecia um corredor de um vermelho muito vivo. Fiz sinal para um dos furriéis se aproximar e partilhar comigo aquela visão estranhíssima. Ficou tão espantado como eu. Simplesmente porque aquelas plantas de folhagem miúda eram vermelhas por baixo, só se dando conta disso ao pisá-las.

Ao afastarmo-nos do riacho reparámos que à nossa direita se estendia uma bolanha com todo o aspecto de ter sido cultivada. Mas como é que, quando saí da orla da mata em direcção ao riacho, não a vi? Só percebi ao entrar na bolanha: todo o terreno tinha sido nivelado pela cota mais baixa, ficando ocultado pelo terreno poisio e irregular do lado da mata, muito mais alto. Dentro da bolanha completamente seca, chegava-nos com a aragem o cheiro a salgado com mais intensidade, mas em nenhum momento consegui vislumbrar a origem. Ao fundo da bolanha a visão era limitada pela fiada de árvores do riacho e outra vegetação de pequeno porte e nada se via para além dela. Nem eu naquela zona arriscava indagar mais longe. Até porque, em todo o tempo em que ali estivemos, tive sempre a sensação desconfortável de andar a espiolhar o quintal do vizinho. Já sozinho, ainda tentei encontrar vestígios ao longo da bolanha mas nada vi. Pelas medas pequenas de palha de arroz quase em decomposição, espalhadas um pouco ao acaso, percebia-se que tudo estava abandonado há muito.

Regressei para junto do grupo na mata decidido a pormo-nos rapidamente a milhas dali, mas encontrei no caminho um grupo de seis ou sete soldados, afastados do pelotão e sentados contra a pequena ribanceira do terreno mais elevado. À medida que me aproximava em passo acelerado, vi que estavam todos muito compenetrados e com ar solene, olhando para mim sérios mas sem intenções de se levantarem. Intrigado, só ao parar frente a eles percebi que estavam a ouvir missa – era domingo -, através de um pequeno “transístor” colocado no chão no meio deles com o som reduzido. Perguntei apenas se faltava muito para acabar, ao que um deles respondeu que devia estar quase no fim. Disse-lhes que se levantassem logo que acabasse, para eu dar ordem de marcha. E fui esperar e descansar um pouco na mata junto do grupo. Depois foi o regresso a Cumbijã, com algumas almas mais lavadas.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

JUL73/23 – Forças da 1.ª CCAÇ durante a acção “OURIQUE” patrulharam a região de SAMENAU, TUNANE e R. DÉBEL. Na região de SAMENAU ouviram umas rajadas de AAutm (armas automáticas). Dada a impossibilidade de atravessar a bolanha do R. CUMBIJÃ, bateu-se a região com Artª., cessando as rajadas.

- Realizou-se uma coluna extraordinária entre Nhala e Buba para evacuação de um ferido. (da H. U. do BCAÇ 3852).

JUL73/25 – Forças da 2.ª CCAÇ durante a acção “ORIUNDO” patrulharam a região do R. GONHEGEL sem contacto.

- Pelas 17h30 GR IN não estimado flagelou o Destacamento de CUMBIJÃ durante 10 minutos com 9 granadas de canhão S/R 82, sem consequências.


Das minhas memórias: 

25 de Julho de 1973 – (quarta-feira) – Flagelação a Cumbijã: minha 1.ª vez aqui e 4.ª ao todo.

Cumbijã, tanta vez alvo de flagelações, foi flagelada nesta data e outra vez no dia 30. Pela hora referida na História da Unidade, julgo ser a data em que, pela 1.ª vez, fui apanhado no aquartelamento durante uma flagelação. Era o 4.º ataque para o meu registo “curricular”. Mas o que ficou para sempre na minha memória, não foi a flagelação em si, mas um episódio um pouco bizarro e enigmático, que me deixou assim numa espécie de desconsolo piedoso.

Conversávamos despreocupadamente encostados ao balcão do bar, julgo que se chamava “Flor do Cumbijã”, cada um com o seu copo na mão, quando caiu a primeira granada, lá para os fundos do aquartelamento e longe do arame farpado. A primeira reacção foi largar o copo e correr para a vala mais próxima, sem medo nem precipitações, ainda duvidoso de que fosse mesmo um ataque. Mas não tardou a segunda granada, a terceira e as seguintes, cada vez mais próximas do arame farpado, para um lado e para o outro do aquartelamento. Saltei para dentro da vala, creio que era quase no meio aquartelamento, junto ao Comando e outras dependências, e já lá estava o Major D. M. com o Capitão de Operações e outros. Já dentro da vala e ao virar-me para a frente, o lado do bar, fiquei estupefacto ao ver ainda encostado ao balcão o Cap. B. C. com o seu copo de gin na mão, como se não fosse nada. Surpreso, por momentos alheei-me dos rebentamentos e a minha mente vagueou à procura de uma explicação para aquela atitude, recusando a ideia de uma bravata despropositada, que não condizia com a personalidade que lhe reconhecíamos, ou de uma postura suicida, mas não encontrando mais nenhuma explicação. Fiquei meio sem reacção, podia ter tido alguma iniciativa mas estava bloqueado. Porquê aquilo? Não lhe conhecia problemas que merecessem um tal despreendimento da vida, ainda mais na frente de todos. Mas, o que sabemos nós do foro íntimo dos outros? E de nós mesmos? Vamo-nos revelando conforme o meio e as circunstâncias inusitadas, ao ritmo em que as vamos ultrapassando. Que sei eu?

Despertou-me do devaneio, o berro do Major, “Capitão B. C. venha imediatamente para a vala!”. Ele, impávido, fitava-nos de lá onde estava, enquanto levava o copo à boca, com uma expressão que não era de desdém nem superioridade, mas de uma serenidade que não batia certo com o momento. Pareceu-me ver-lhe aflorar um sorriso mas, por certo, foi impressão minha. Entretanto o Major insistiu para que saísse dali e ele, aos poucos, foi-se aproximando de nós, sempre com uma expressão natural, nem apática nem enfática. Não estava a desafiar nem a provocar, apenas mostrava desprezo pela vida, com naturalidade.

Não recordo se chegou a entrar na vala, até porque uma das últimas granadas caía agora do lado da estrada, fora do arame farpado, e tudo acabava por essa tarde sem que houvesse sequer feridos. Entretanto os camaradas da artilharia, que haviam começado a resposta à flagelação quase no início desta, continuaram a disparar o obus por mais algum tempo e o último disparo foi também o ponto final naquela tarde de sobressalto.


Histórias marginais (1): Abelhas assustadoras. 

Por um destes dias saímos pela estrada nova, não asfaltada ainda, em direcção a Nhacobá para depois nos embrenharmos na mata num patrulhamento que já não recordo. Era apenas o meu grupo de combate e caminhávamos em fila indiana, guardando grandes distâncias, pelo meio da estrada. A via paralela à estrada, mais baixa e de terra batida, só se podia usar após picagem e nessa ocasião não era necessária. A tarde estava tão amena e solarenga que a disposição de todos era óptima, parecia até que íamos para um passeio. Uma grande recta com a mata alta de ambos os lados e próxima da estrada. Parecia que estávamos no Bussaco. A verdade é que, desde o princípio, tivemos a percepção de que tudo iria correr bem, e quando isso acontecia, tudo corria bem mesmo. Excluindo os percalços...

Indo entre os primeiros homens, vi que o da frente parou, recuou uns passos e o segundo fez o mesmo. Depois viraram-se para trás e, hesitantes, fizeram-me sinal. Apreensivo, fui à frente saber o que se passava mas, ainda distante, comecei a ouvir uma zoada intensa e que aumentava à medida que me aproximava dos dois homens da frente. Chegado junto deles, de novo virados para a frente e muito temerosos, vi com espanto uma nuvem de abelhas tão compacta e volumosa, que fazia uma grande sombra na estrada a cerca de dois metros do chão. A nuvem de abelhas, - não lhe posso chamar enxame porque seriam muitos enxames -, cobria quase toda a largura da estrada e, embora fervilhassem em reviravoltas loucas fazendo uma zoada de meter respeito, mantinham-se estáticas em relação à estrada. Nunca tinha visto nada assim nem voltei a ver, embora tropeçasse muitas vezes ainda em enxames de abelhas. Estávamos a vinte ou trinta metros das abelhas e recuámos um pouco mais para aguardar a evolução daquele imprevisto, ou eu ter de decidir o que fazer.

Nesse compasso de espera fui avaliando as hipóteses e, uma a uma, fui-as descartando. Estava a ficar num impasse e elas continuavam ali. Mesmo que tivesse uma granada de fumos, não a utilizaria naquelas circunstâncias, pois isso poderia desencadear o ataque delas em vez de as afugentar. Ocorreu-me a história que me contaram em Nhala do único burro que lá havia e que morreu com um ataque de abelhas. Acho que tive um estremecimento. Mas também não podia comunicar ao Comando que estava bloqueado com uma nuvem de abelhas, por parecer ridículo e porque eles não compreenderiam. Passar na faixa de terra batida adjacente à estrada estava fora de questão porque teríamos de fazer uma picagem à minha responsabilidade e, ainda assim, não teria garantia de passar ao lado das abelhas sem que nos atacassem. Juntei o grupo e decidi o seguinte: vamos passar um a um, lentamente, o mais agachados possível e sem movimentos bruscos. Os que aguardam mantém-se quietos assim como os que passam para o outro lado. Se as abelhas atacarem durante a passagem, deitar de barriga para baixo, imóveis e com a cara protegida. A distância segura manter a vigilância para a mata.

Pela reacção da maioria do grupo, nada convencidos, pareceu-me que com melhor ânimo aceitariam a ordem para um golpe de mão. Sentindo que era meu dever passar à prática as instruções que lhes comunicara, avancei eu para aquele turbilhão vivo e aterrador, que persistia ali. Quico enterrado na cabeça até às orelhas, golas para cima e mangas para baixo, avancei. Não tenho vergonha de confessar que, já sob a nuvem de abelhas e com aquela zoada de entontecer, embora calmo, levava o sangue gelado. Mas não aconteceu nada e eu afastei-me, sempre na defensiva, até quase as deixar de ouvir. Virei-me para trás e fiz sinal para que avançasse o seguinte. Passámos todos, embora a operação demorasse mais do que eu supusera.

A descompressão que se seguiu foi tal que parecia que caminhávamos para uma festa, mesmo se quase em silêncio. De tal modo que, já não muito longe de Nhacobá, encontrámos uma granada do nosso morteiro 60 por rebentar na berma da estrada e eu, com alguma irresponsabilidade tendo em conta a zona em que estávamos, pu-la de pé com “pinças” num monte de terra da berma e tentei acertar-lhe de longe com dois tiros de G3, falhados, quem sabe se para meu bem... O problema é que eu sabia como era delicado manusear aquele tipo de granada na situação de encravamento do dispositivo de percussão: falara-se disso quer em Mafra, quer em Tancos. Já não recordo bem mas suponho que me resignei a deixá-la assinalada na berma para, numa oportunidade melhor, a accionar com um petardo. Também já não recordo o nosso destino nesse patrulhamento, nem o regresso a Cumbijã mas, tenho a certeza, não voltámos a ver as horríveis abelhas em tal situação. Tivemos outros casos, - que mais tarde talvez conte -, mas nunca mais vimos nada parecido. Felizmente.

(continua)
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Nota do editor

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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15016: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (16): De 23 de Junho a 6 de Julho de 1973

1. Em mensagem do dia 13 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

16 - De 23 de Junho a 6 de Julho de 1973


23 de Junho de 1973 – (sábado) – Aldeia Formosa; Descanso

Dia de descanso sem nada de especial a assinalar. Em Nhacobá não tem havido problemas, salvo o problema das minas.
O camarada Alf. J. A. C. P. falou comigo sobre a eventualidade duma estadia minha em Nhala como Cmdt. Int.º da nossa Companhia, uma vez que o Alf. C. L. já lá está há bastante tempo e o seu grupo está aqui em Aldeia Formosa, como os demais, mas comandado apenas por um furriel por o outro ter ido de férias. Concordei e ele falou com o Major M. D. que acedeu. Parto amanhã na coluna que vai a Buba e, no regresso da mesma a Aldeia Formosa, virá o C. L. Falei aos meus soldados à noite. Ficarão comandados pelos dois furriéis.


24 de Junho de 1973 – (domingo) – Aldeia Formosa; Nhala: o descanso merecido e os problemas

Parti de manhã com destino a Nhala, onde cheguei relativamente cedo. Troquei impressões com o camarada C. L. sobre o comando da Companhia e questões pendentes.

Finalmente vou ter oportunidade de descansar aqui algum tempo, se bem que estejam sempre a surgir pequenos problemas para resolver, mas que, comparados com a minha recente actividade operacional, são meras mesquinhices. Lamento apenas que, comigo, não pudessem ter vindo os meus soldados, esses sim, mais do que eu a precisarem de descanso e bom trato. É que eu, além de ter um tratamento diferente do deles, tenho a possibilidade de matar a fome bastando, para isso, abrir o porta-moedas. E eles? Como sobrevivem? Eles, a quem até os cantineiros negam uma cerveja se não tiverem dinheiro trocado. E, o pior, é que por cá não há trocos. Já tenho pago caixas de cerveja ao pessoal mas, infelizmente, não o posso fazer sempre.

Aqui em Nhala estão agora, além da Formação [?] da minha Companhia, a CCAÇ 3400 completa, do Capitão M.. Este anda totalmente desmoralizado, traumatizado mesmo, e em momentos de crise torna-se insuportável mas, até ver, não me causou problemas. Eu limito-me a assinar dezenas de papéis por dia e a resolver esta ou aquela chatice que, quase sempre, surgem com o pessoal ou com a população. Nada de grave até à data. A possibilidade aventada de um ataque em grande escala a Nhala continua de pé, se bem que, ultimamente, se dê menos importância ao facto.

Gabinete do Comandante. de Companhia de Nhala: Eu e o Fur. J. R., meu colaborador e amigo.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN73/25 – Recebemos a visita do Exmo. CORONEL LEITÃO, CMDT DO CAOP-1

-  Terminaram hoje os trabalhos do Destacamento Engenharia na desmatação da periferia do Destacamento de NHACOBÁ, deixando portanto de haver companhias do BCAÇ empenhadas na protecção dos trabalhos de Engenharia.


Do meu diário: 

25 de Junho de 1973 – (segunda-feira) – Nhala: o descanso e o lazer

Hoje estou de Oficial de Dia, mas sem nada de especial para fazer, a não ser marcar presença no içar e arrear da bandeira, e providenciar os cuidados para o bom funcionamento e aspecto do aquartelamento. Rotinas.

Actualmente estou a dormir na tabanca do C. L., onde tenho relativa comodidade. Além de poder dormir descansado numa boa cama de madeira, tenho bastante espaço e uma boa ventoinha, além de que, o espaço interior é agradável. É que a minha tabanca ficou em péssimo estado aquando do tufão que por aqui passou há pouco tempo.

Hoje aproveitei a manhã a revelar filmes (película) no meu pequeno “estúdio”, para à noite poder passar umas horas a fazer fotografias. É um passatempo interessante e lucrativo, e o meu maior receio é que tenha de sair um dia definitivamente daqui para uma localidade que não tenha luz eléctrica. À noite, afinal, passei largas horas a ler o “Papillon”, o que me dá imenso prazer.

Nhala, 1973 – Aspecto geral da tabanca e da minha palhota.

Nhala. Arrear da bandeira quando entrava um Grupo de Combate.

26 de Junho de 1973 – (terça-feira) – Nhala; Nós e o IN

Levantei-me tarde hoje e nada fiz a não ser ler o Perintrep, (documento do QG enviado aos Comandantes de Companhia, de cariz confidencial e que deve ser incinerado 72 horas após a recepção). Este documento revela factos extraordinários, tanto sobre a nossa actividade operacional, como da actividade IN, potencialidades materiais IN, resenha dos acontecimentos importantes referentes ao período corrente, etc. Face a tais informações, ficamos cientes de que temos pela frente um IN cada vez mais numeroso, bem organizado e melhor armado que nós, fazendo supor um futuro de dificuldades crescentes.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN73/27 – Conforme DIRECTIVA OP do CCFA o BCAÇ 4513 torna-se independente operacionalmente do BCAÇ 3852.

[Acrescenta o Doc Resumo dos Factos e Feitos do BCAÇ 4513]. (...) passando a actuar como Batalhão de Intervenção na Região de CUMBIJÃ-NHCOBÁ.

JUN73/29 – Desloca-se para o Destacamento de CUMBIJÃ o PC (posto de comando) do BCAÇ 4513, PEL REC e PEL SAP e 2.ª CCAÇ.

JUN73/30 – GR IN NESTM (Grupo IN não estimado) destrui com explosivos dois pontões na estrada MAMPATÁ-CUMBIJÃ.

[(Agosto/2015) - Viviam-se tempos difíceis em toda a região sob a responsabilidade de Cumbijã e, os tempos que se avizinhavam, a piorar o cenário, eram de incerteza e de incompreensão face ao que pretendiam os mais altos responsáveis militares. Adivinhava-se uma situação perto do colapso ou ruptura. Para se perceber melhor as sucessivas queixas e lamentos anotados à época no meu diário, transcrevo partes do resumo da actividade do mês de Julho/73, – hoje, com estes dados à mão, é fácil de entender -, referida no 2.º Fascículo (Período de 01JUL a 31JUL73) – HU-CAP II / págs. 9 e 10, com sublinhados meus a negrito:]

“SITUAÇÃO GERAL

Durante o período o Comando do Batalhão continuou sediado em Cumbijã, cumprindo a sua missão de intervenção numa área atribuída pelo COMANDO CHEFE, limitada a leste pelo RIO SARE HAGI, a norte pela picada MISSIRÃ-BOLOLA, a oeste pelo RIO SALANQUEUAL e a sul pelo RIO CUMBIJÃ.

De toda a esta área no início do período apenas era conhecida pelas NT uma pequena parcela. Havia que tornar mais extensos os patrulhamentos, que desvendar os mistérios das áreas ainda não exploradas, que criar ao IN sensação de insegurança e quanto possível fazê-lo abandonar a área atribuída à nossa responsabilidade. No entanto esta área abrange a região do UNAL, confluência dos corredores de abastecimento do IN, que do antecedente constitui um dos seus pontos fortes, concentrando ali, além da sede do seu 3.º CE, 5 bigrupos de Infantaria, uma Bat. Artª., um Pel. AA, e ainda um bigrupo de Fuzileiros e presumivelmente 1 grupo de mísseis. Torna-se pois pelos efectivos referenciados, como pela dificuldade de acesso, como ainda pela importância que a sua manutenção tem para a sua estratégia, um objectivo extraordinariamente difícil para as NT, agora agravado pelas limitações de apoio da nossa Força Aérea”.

[Quem foi que disse que nunca chegaram a haver estas limitações?].

“De acordo com o planeamento elaborado, são levadas a efeito sucessivamente acções sobre LENGUEL, SAMENAU, TUNANE, SAMBASÓ e BRICAMA. (...).
A seguir era o UNAL. [Isto tem qualquer coisa de evangélico e profético!]. (...) Como ir ao Unal? Tentando reconstruir o pontão? Fazendo a progressão no sentido N/S a partir de Buba? Optámos pela primeira modalidade, que embora nos pareça mais vulnerável tem a grande vantagem de ser mais próximo do objectivo, favorecendo qualquer necessidade de evacuação”.

[Afinal, foram usadas a primeira e a segunda modalidades e mais que houvessem... Estive na 1.ª e, na 2.ª esteve o meu grupo sem mim por motivos de saúde, mas deu para eu perceber que, ainda tão longe do Unal e já a “porta” que nos barrava o caminho era completamente blindada a tontices... Não era com cordões humanos infindáveis a caminhar pela mata, denunciando a intenção logo à partida, que chegaríamos ao Unal. Dizia-se que antes, muito antes, tinham sido lançadas sobre as imediações do Unal tropas especiais que nada conseguiram. A completar, (sublinhado a negrito), para se perceber o estado das nossas tropas, tantas vezes referido no meu diário, transcrevo a parte final do documento já referido].

“O pessoal começa a denunciar sintomas de cansaço consequente do ritmo de actividade que lhes tem sido exigida, agravada pelas deficientes condições de repouso, pois há mais de 3 meses que dormem em colchões pneumáticos, muitos deles, em barracas de lona”.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

(Sublinhados meus a negrito)

JUL73/04 - Inicia-se praticamente nesta data uma batida a zonas nunca dantes patrulhadas pelas NT
Forças da 1.ª, 2.ª e 3.ª CCAÇ, durante a acção “OVIEDO”, patrulham a região de SAMENAU e TUNANE, tidos como locais em que o IN se encontrava instalado. É a primeira acção que se realiza para esta área. O IN não foi encontrado, embora fossem detectados vestígios da sua presença. Foi detectada e levantada em SAMENAU 1 mina antipessoal PMD-6.

JUL73/05 - Forças da CCAV 8351 durante a acção “OTÍLIA”, na região de SAMBASÓ detectaram e destruíram 1 palhota celeiro que continha estimadamente 1 Ton de arroz, aproximadamente a 50 metros desse local detectaram a destruíram 100 atados de capim.


Do meu diário:  

6 de Julho de 1973 – (sexta-feira) – Nhala; Notícias desanimadoras

Porque não tem havido nada de especial, só hoje faço umas anotações. Aqui em Nhala tudo continua normal. Tenho tido imensos problemas para resolver nesta inopinada qualidade de Comandante de Companhia. Surgem com a população, surgem com os elementos da minha Companhia, (os que estão aqui e os que estão em Cumbijã), e surgem com o Comando do Batalhão, de quem recebo constantemente mensagens ou simples correspondência confidencial.

A única coisa a quebrar a monotonia, por aqui, continuam a ser as colunas que, de passagem, sempre trazem caras novas e notícias, além da nossa correspondência. Soube, através de elementos das colunas, que o IN não tem causado problemas no que diz respeito a flagelações, mas, pela terceira vez, fez ir pelos ares os dois pontões da estrada alcatroada entre Mampatá e Colibuia.

A minha Companhia, excepto a Formação que está aqui comigo, foi transferida de Aldeia Formosa para o inferno de Cumbijã e, ao que parece, definitivamente. Só de pensar nisso fico com ansiedade. Não que tenha medo da actividade IN que na zona é um bocado intensa, mas porque Cumbijã é um “buraco” onde não se tem o mínimo de condições para viver. Demasiada tropa e, agora, com o comando do Batalhão lá instalado. (...).

Nhala, 1973. Cair da noite sobre Nhala. Podem ver-se as garrafas de alarme aos pares no arame farpado.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 11 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14993: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (15): 19 a 22 de Junho de 1973