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segunda-feira, 12 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24390: O segredo de... (38): António Branquinho (1947-2023): Passei-me dos carretos... Perante a recusa dos helis em levaram os nossos dois mortos, puxei a culatra atrás da G3 e gritei: 'Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!' (Acção Galhito, 22/6/1971, regulado do Cuor, sector L1)

Guiné > Zona Leste > Região de Baftá  Sector L1 (Bambadinca)  > Regulado do Cuor > Missirá > 1969 > Aqui esteve destacado, em 1970/712, o seu Pel Caç Nat 63, com os nossos dois tabanqueiros, que a morte já levou, o alf mil art Jorge Cabral (1944-2021), natural de Lisboa,  e o fur  mil art António Branquinho (1947-2023), nascido em Vila Nova de Foz Coa. 

Entre 1971 e 1974, os Pel Caç Nat 52, 54 e 63 passaram "rotativamente" por vários aquartelamentos e destacamentos do Sector L1: Bambadinca, Fá, Missirá, Mato Cão, ponte do rio Udunduma , Enxalé, etc. O Jorge Cabral foi substituído, no comamdo do Pel Caç Nat 
63, em 1 de julho de 1971, pelo alf mil at Manuel David Coelho (oriundo da  CART 2714 / BART 2917).

O Pel Caç Nat 54, até 18/11/1970, era comandado pelo alf mil Correia. A partir desta data até para além do regresso do BART 2917 à Metrópole, passou a ser comandado pelo alf ml Hélder P. R. Martins.

Por sua vez, o Pel Caç Nat 52, era comandado pelo alf mil Mário Beja Santos, até 24/7/1970, sendo nesta data substituído,  até para além do regresso do BART 2917 à Metrópole, pelo alf mil at Nelson Alberto Wahnon Reis.
 
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

Foto: © Humberto Reis (2006) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bambadinca (1955) > Escala de 1/50 mil > Detalhes: posição relativa de Bambadinca, Nhabijões, Mato Cão, Missirá, Sancorlá e Salá. O PAIGC só mandava (alguma coisa), a partir de Salá... tendo "barracas", mas a noroeste, na zona de Madina / Belel). Já no Oio havia a "base central" de Sara Sarauol... O destacamento, mais a norte de Bambadinca, no setor L1 era Missirá, guarnecido por um Pel Caç Nat (52 ou 63, em diferentes períodos) e um pelotão de milícias... Vários camaradas nossos, membros da Tabanca Grande, andaram por outros sítios, "pouco recomendáveis"...  A Madina/ Belel (que já não vem neste excerto do mapa) ia-se uma vez por ano, na época seca... para dar e levar porrada.  A história abaixo contada passou-se no trilho Missirá - Sancorlã - Salá, em 22 de junho de 1971, no decorrer da Acção Galhito.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. O Antóno Branquinho deixou-nos no passado dia 27 de maio, aos 76 anos (*)... Natural de Vila Nova de Foz Coa, vivia na Covilhã, era irmão do Alberto Branquinho. Escreveu poucas coisas para o blogue. Tem vinte e tal referências. Mas há um "segredo" que ele não leva para o Olimpo dos antigos combatentes: já aqui o contou, em 2010 (**). De maneira singela, sem fanfarronice, mas também sem alguns detalhes importantes, como o local e a data... (Fomos recuperar, entretanto, essa informação de contexto.) Vale a pena recordar esse poste, agora republicado na série "O segredo de..." (***)


O segedo de... António Branquinho: "Passei-me dos carretos..."

Missirá, pelas 6 da manhã, preparação e início de mais uma operação de rotina. 
O Pelotão tinha sido “convocado” para proceder a uma operação de reconhecimento e patrulhamento, conjuntamente com outros dois grupos de combate. Tínhamos ainda como objectivo, desactivar uma mina anti-pessoal, detectada há já muito tempo.(**=

Durante o percurso íamos passando por locais paradisíacos, com palmeiras, mangueiros, outras árvores exóticas e pequenos cursos de água. Se não houvesse guerra e tivesse dinheiro, não me importava de construir uma vivenda num daqueles locais. Maldita guerra!

Ia eu nestas cogitações, quando me dá uma valente dor de barriga. Desta situação avisei o Jorge Cabral, como comandante do Pel Caç Nat 63, informando-o que iria sair do trilho para fazer uma necessidade fisiológica. 

Estava eu a preparar-me para baixar as calças, quando se ouve um violento estrondo. De imediato, ponho-me a correr em direcção à cabeça da coluna, ainda com as calças em baixo. Sabendo da existência da tal mina, corri de imediato ao encontro do Jorge Cabral, pensando que a mesma tinha sido accionada pelos elementos da frente. Por sua vez o Jorge Cabral pensou que eu,  ao sair do trilho,  teria accionado outra mina. Encontrámo-nos ao meio do percurso, em direcções opostas, ficando ambos estupefactos e felizes por estarmos sãos e salvos.

Como seria de esperar, gerou-se uma certa confusão. Após a acalmia das “tropas” e de se averiguar a situação, constatou-se que tinha rebentado uma mina (reforçada com granada de canhão sem recuo), na retaguarda da coluna. Tendo esta provocando dois mortos e vários feridos, uns graves e outros leves.

Perante esta situação, via rádio, pediu-se a evacuação dos elementos atingidos pelos estilhaços da mina. De imediato procedeu-se à organização da segurança a prestar aos meios aéreos.

Há já cerca de duas horas, que os grupos de combate estavam devidamente instalados, quando se ouviu o som característico dos helicópteros. Eram dois. Voando em círculos, aterraram numa clareira. Do seu interior saíram duas enfermeiras paraquedistas para se inteirarem da situação. Verificaram que além dos feridos havia dois mortos, recusaram de imediato o transporte destes, levariam só os feridos. 

Comunicaram esta decisão aos pilotos, com a qual eles concordaram. Ao aperceber-me daquela decisão, pedi-lhes para que transportassem também os mortos. Mantiveram a sua posição, dizendo:

– Não levamos os mortos!

Perante as suas atitudes drásticas, quanto ao meu pedido “passei-me”. De modo bastante drástico e enervado, empunhei a G3 em riste, puxei a culatra atrás e vociferei:

– Levais os mortos ou… dou-vos um tiro nos c….!

Como seria óbvio, eu não daria nenhum tiro, era só “ronco”. Uma coisa é certa – levaram também os mortos.

Em consequência de todas estas peripécias, não mais me lembrei da dor de barriga. Lembrei-me, sim, ao regressarmos a Missirá de beber não sei quantas “bazucas” para matar a sede.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]


2. Comentário do editor LG:


Dos 8 comentários ao poste P7291 (**), escolhi três, mais pertinentes:

(i) Luís Graça;

(...) Ora aqui está uma boa questão a pôr às nossas queridas camaradas enfermeiras paraquedistas... Por que é que elas se recusavam a levar os mortos? Eram elas ou eram eles, os homens da FAP, os pilotos e os melec?

Seguramente que havia "instruções de cima"... O custo de um heli era equivalente a 15 contos, na época, por HORA!, ou seja o vencimento (mensal) de dois alferes, se não mais, ou o pré (mensal) de 25 soldados de 2ª classe (leia-se: do recrutamento local, sem a 3ª classe da instrução primária)...

De facto, a mão de obra do exército, a tropa-macaca (sem ofensa para ninguém...), era muito mais "barata"...

No mato, para transportar, a pé, um morto, até ao aquartelamento mais próximo ou à estrada mais próxima (onde pudessem chegar as nossas viaturas) era preciso "mobilizar" um grupo de combate (30 homens) que se ia revesando... Era a tarefa mais penosa (física e psicologicamente falando) que nos podia caber, transportar, ao sol ou à chuva, um camaradda morto, em maca improvisada com paus de arbustos, impermeáveis e lianas...

Esse "calvário" está magistralmente descrito no livro do Amor Pires Mota, que eu li de um trago, a "Estranha Noiva de Guerra"...

16 de novembro de 2010 às 13:32

(ii) José Corceiro:

Numa narração que hoje escrevi para o blogue, que oportunamente irei enviar, durante uma emboscada tombaram no mato dois militares, também houve feridos. Pediram-se evacuações de heli, mas os mortos não foram no heli, ainda que não pertencessem à CCAÇ 5, foram em viatura para Canjadude, onde foram amortalhados.

É lógico, neste caso, se fosse só uma questão económica, teria sido mais vantajoso transportá-los no heli, a partir do local onde tombaram. Porque teve que vir meio aéreo, a Canjadude, trazer duas urnas. Posteriormente voltou a vir meio aéreo para levá-los já nos caixões, creio que para o local onde estava sediada a companhia à qual eles pertenciam. Eram duma companhia de “Paras”.

Interpreto a recusa de transportar mortos nos helis, por uma questão de utilidade e eficácia, porque durante o percurso do transporte dos feridos e mortos, poder-se-ia dar a coincidência de na mesma rota, aparecerem mais feridos e neste caso a lotação dum morto poderia impedir a evacuação dum ferido.

16 de novembro de 2010 às 22:20


(iii) Jorge Cabral:

Olá, Branquinho! Foi mesmo assim que aconteceu no dia 22 de Junho de 1971, na área de Salá (****). Eu já passara os 24 meses, mas ainda havia de lá voltar a 14 de Julho, quando o Pelotão já não se encontrava em Missirá. Os mortos foram Cherno Sanhá e Sambaro Embaló, ambos do Pel Caç Nat 54. (...)

17 de novembro de 2010 às 09:48
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24389: In Memoriam (479): António Branquinho (1947-2023), ex-fur mil, Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, set/69 - out/71)... Nosso tabanqueiro desde 24/9/2010, era irmão do advogado e escritor Alberto Branquinho, também ele membro da nossa Tabanca Grande

(**) Vd. poste 16 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7291: Estórias avulsas (100): A mina, que seriam duas (António Branquinho)

(***) Último poste da série > 21 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P23012: O segredo de... (37): Demburri Seidi: demorou mais de dois anos para sair da sua boca o testemunho sobre os trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976, devido em parte ao medo que sentia e a manifesta dificuldade em falar sobre a "justiça revolucionária" praticada pelos vencedores contra os vencidos (Cherno Baldé)

(****) Segundo a História do BART 2917 (pág. 78) 

22 de junho de 1971: 

No decorrer da Acção “Galhito”, realizada por forças dos Pel Caç Nat 54 e 63,  na área de Sancorlã – Salá – Paté Gidé, as NT accionaram uma mina anti-pessoal reforçada em (BAMBADINCA 2F4-76) sofrendo dois mortos e dois feridos.

domingo, 11 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24387: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte III: O segredo do comandante dos "Lynces de Có". cap inf Mário Vargas Cardoso

 

Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Có > CCAÇ 2402 (1968/70) >A tabanca de Có, incendiada, na sequência do segundo ataque ao aquartelamento, em 12 de Outubro de 1968. O brig António Spínola observando os destroços nas zonas atingidas, ladeado à sua direita pelo seu ajudante de campo, cap cav Almeida Bruno, e à sua esquerda, o cmdt da CCAÇ 2402, Vargas Cardoso.(»)

Foto (e legenda): © Raul Albino (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

O Raul Albino com a ajuda do fotógrafo Maurício Esparteiro, ex-1º cabo,  concebeu e realizou uma ideia original: um livro da CCAÇ 2402 onde todos e cada e um são gente... Do capitão ao soldado básico, toda a gente teve lá a sua foto, o seu espaço (**)... 

Além disso, cada um dos camaradas da CCAÇ 2402 podia ter uma versão única e original do livro, com registos exclusivos sobre a sua pessoa... Com uma pontinha de orgulho, o Raul e o Maurício mostraram-me, no encontro em Pombal, em 2007,  um exemplar do seu livro: cada exemplar saíu da tipografia a 8 euros, sendo vendido a 10 euros, para cobrir as quebras e as borlas ...

No II Volume, que continuou a ter  a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, o Raul contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio (que vove hoje no Canadá).  

Hoje publicamos mais uma pequena história (***) do Mário Vargas Cardoso (1935-2023), ex-cor inf ref, que há dias nos deixou,  e e, que fez uma confidência: terá sico em Có que o "periquito" do brigadeiro António Spínola, inspirando-ase no exemplo  dos "Lynces de Có", que se reuniam regulamente com os "homens grandes" e restante população local, decidiu criar os famosos "Congressos do Povo".

No nosso blogue, o Raul Albino também já havia publicado, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (*).

Mário Vargas Cardoso (1935-2023)


Spínola: "Ó Vargas, deste-me uma ideia: vamos lá fazer essas reuniões de Có mas a nível de toda a Guiné, e chamar-lhe Congressos do Povo"

por Vargas Cardoso

Uma das atividades dos "Lynces de Cõ" em que fomos originais, e que muito contribuiram  para o êxito no cumprimento da nossa missão, foram as reuniões no domingo logo pela manhã.

(...) Pela manhã dos domingos, ao içar da Bandeira Nacional, o comandante da CCAÇ 2402 dava indicação a todos os "homens grandes", chefes da tabanca (...) para comparecerem no quartel, e, às crianças da escola primária, para virem ao quartel também, juntando-se todos próximo do mastro da bandeira.

(...) À hora indicada, formava-se o pessoal de guarda; ao lado as crianças da escola, e o Vargas com os "homens grandes" atrás da formatura.

A bandeira era içada, o corneteiro tocava, os "homens grandes" descobriam a cabeça, e os miúdos da escola, algum tempo depois, já cantavm o hino nacional.

Após a cerimónia, o comandante com os "homens grandes" iam para o refeitório, onde se servia um pequeno almoço, café e pão com marmelada, aos chefes da tabanca. Depois com os oficiais e sargentos com funções de "governar" na nossa área, decorria uma reunião, onde os chefes da tabanca colocavam os pedidos de ajuda que precisavam: transporte de mancarra ou coconte para Bissau, apoio sanitário, escola, proteção para colheitas, etc. 

O nosso furriel Coelho, ou depois o Vieira (salvo erro), tinha a função da atividade psicossocial, tomavam nota dos pedidos e depois era a nossa vez de pedir a colaboração das populações. Por exemplo:  tantos homens para capinar; na 3ª feira, 40 galinhas; noutro dia, outro produto que nos fizesse falta. etc.

(...) Logo em outubro de 1968, já depois do ataque a Có (*). nós estávamos numa dessas reuniões quando chegou o héli com o nosso general Spínola [na aitura ainda brigadeiro]  (****), o qual convidei para assistir ao que estávamos a fazer.

Nunca vos contei o que agora  resolvo tirar do segredo da História. Como sabem, quando ia Bissau, normalmente o nosso "Homem Grande", convidava-me para almoçar no palácio do Governo com outros oficiais de passagem por Bissau. (...)

Depois dessa visita o gen Spínola disse-me um dia: "Ó Vargas, deste-me uma ideia. Vamos fazer essas reuniões que tu fazes lá em Cõ, mas com toda a Guiné. Vou-lhes chamar Congressos do Povo". (...)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos / Parèntses retos: LG]

___________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 31 de julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2016: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (6): O grande ataque a Có, em 12 de Outubro de 1968

(**) Vd. postes de:

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)


6 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24372: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte II: A imaginação que era preciso ter para se comer "atacadores da PM com estilhaços"!... Trocando carne do restaurante "Solar dos 10", em Bissau, por produtos locais de Có (camarão, ostras, tomate...) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023) 

(****) António Sebastião Ribeiro de Spínola, então brigadeiro, assumiu as finções de Governador e Comandante-Chefe da Guiné, em 24 de maio de 1968, em substituição do gen Arnaldo Schulz. Foi promovido a general em 4 de julho de 1969. Cessou funções em 27 de agosto de 1973.

O I Congresso do Povo da Guiné realizou-se em 1970. O IV em 1973... Baseava-se em cinco princípios: (i) direito absoluto de justiça social; (ii) respeito pelas nossas instituições tradicionais africanas; (iii) desenvolvimento económico e social;   (iv) participação ativa das gentes da Guiné, progressivamente mais elevada,  na administração dos seus própios interesses; (v) restabelecimento da Paz.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23012: O segredo de... (37): Demburri Seidi: demorou mais de dois anos para sair da sua boca o testemunho sobre os trágicos acontecimentos de Cuntima, em novembro de 1976, devido em parte ao medo que sentia e a manifesta dificuldade em falar sobre a "justiça revolucionária" praticada pelos vencedores contra os vencidos (Cherno Baldé)



O Comandante das FARP Quemo Mané (Canjabel, região de Quínara, c. 1932 - Moscovo, 1985). Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta 05248.000.024Reproduzido com a devida vénia...

Citação:
(1966-1973), "Quemo Mané", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43764 (2022-2-19)



Título de viagem (servindo de passaporte),  emitido pelo Ministério da Defesa e da Segurança Nacional,  da República da Guiné. Data: Conacri, 17 de junho de 1968. Titular: Quemo Mané, de nacionalidade guineense, nascido por volta de 1932, em Canjabel, caçador de profissão (sic), residente em Conacri,  B, 1º 298. Motivo da viagem: tratamento médico na URSS. Validade: um ano.

Fonte:  Plataforma Casa Comum / Fundação Mário Soares > Arquivo Amílcar Cabral... Pasta   07200.172.017. Reproduzido  com a devida vénia...

Citação:
(1968), "Título de viagem", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41544 (2022-2-19)


1. Em 2013,  quando publicámos o relato de Cherno Baldé sobre os acontecimentos em Cuntima, no norte da Guiné-Bissau (*), estávamos perante  a revelação de um duplo segredo:  (i) o de Demburri Seidi (nome fictício, por razões de segurança) de quem foi obrigado a assistir às execuções públicas, da inteira e única responsabilidade do comandante das FARP Quemo Mané (c.1932-1985); (ii) mas também do Cherno Baldé, que levou o seu tempo (dois anos) a recolher e a traduzir esse depoimento... e mais uns tantos até decidir publicá-lo no nosso blogue...

Daí fazer todo o sentido publicar um comentário do Cherno Baldé ao poste P11762 (*), transformando-o em poste desta série "O segredo de...".  Passados mais de 8 anos não temos conhecimento de mais nenhuma outra versão sobre estes acontecimentos que, de resto, são do domínio público na Guiné-Bissau, mas que o tempo já fez esquecer. Infelizmente Cuntima não foi exceção, nos primeiros anos que se seguiram à independência.

Em 23 de junho de 2013 escrevemos (*):

(...) Estamos então em condições de publicar hoje, num único poste, o notável e inédito documento que ele nos pede para publicar no nosso blogue (que também é dele, e de todos os guineenses, homens e mulheres de boa vontade, que querem construir connosco as pontes do futuro sem destruir os vestígios dos bons e dos maus momentos do nosso passado comum). 

 Embora extenso, é importante que se publique na íntegra, num só poste, para manter a unidade de leitura. Naturalmente, estamos abertos à publicação de outros testemunhos, de outras fontes, que contestem, ou corrijam, ou complementem, ou melhorem esta versão que contem as recordações de Demburri Seidi quando jovem, em Cuntima, novembro de 1976. (...)

Mais recentemente, republicamos em parte este poste (**).  


2. Aqui vai então o comentário do Cherno Baldé (***)

"Pode ser até que se trate de uma etapa obrigatória da evolução de todos os povos... É só analisar a História dos povos velhos do mundo e tirarmos as conclusões objectivas." (A.P. Costa)

"Sejamos pragmáticos com a História, o país Guiné-Bissau nasceu assim. Houve vencedores e vencidos e as represálias dos vencedores sobre os vencidos pressentiam-se na sua 'cartilha' comportamental, no uso, pelo PAIGC, da violência interna para dirimir conflitos». M. Joaquim.

"...Para tudo há explicações, mas para isto não há justificação". (L. Graca).


Caros amigos, ex-combatentes,

Muito obrigado pelo feedback ao pequeno texto que se foi relativamente facil de traduzir e trabalhar, demorou mais de dois anos para sair da boca do Demburri Seidi que testemunhou estes acontecimentos em 1976, em parte pelo medo que ainda o habita e, também, por manifesta dificuldade de falar sobre esta justiça revolucionária praticada contra os "fracos".

Para quem não sabe, eu venho de longe e, como tal, durante muitos anos, acreditava no que o Manuel Joaquim, na esteira do A. P. Costa, chama de "conclusão objectiva" (ver citação acima).

Inclusive acreditava piamente que as vítimas do comunismo da era estalinista se justificavam plenamente em nome da necessidade suprema do progresso dos povos. Hoje sei, felizmente, que estava redondamente enganado.

Eu, pessoalmente, estou tanto revoltado contra a prática criminosa do PAIGC como a prática, não menos criminosa e insensata, das chefias do MFA que, aparentemente, não só não tinham o controlo da situação, mas também não quiseram ter em conta a posicão da JSN - Junta de Salvação Nacional, no processo da descolonização. 

Se calhar já era tarde demais, não sei, mas se a solução era política e não militar, como se dizia, não se compreende que sejam os militares a ditar as linhas basilares da orientação estratégica a seguir num momento e sobre assuntos cruciais da história de Portugal e das suas extensões territoriais em África.

De qualquer modo e para não me alongar muito, vou ao encontro do Luís Graça para dizer que, de facto, para tudo pode haver explicacões... mas não há justificação para o que aconteceu na Guiné no pós-independência.

Não consigo esquecer uma frase que o Marcelino da Mata proferiu numa das suas raras interevenções públicas, mais ou menos nestes termos: "Nós éramos muitos, provavelmente muito mais numerosos que as FARP, e, se nos permitissem, podíamos impor uma solução negociada que conduzisse a um referendum nacional sobre o território"-

Se havia o perigo do deflagrar de uma nova guerra, de qualquer modo, no fim haveria, presumo, maior respeito e contenção entre os adversários e não a humilhação que foi a sina de todos quantos estavam do lado Português. Revejam as palavras de Abbaro Candé que preferia a morte à humilhação a que estavam sujeitos, todos os dias.

Espero não ter posto mais lenha no fogo. Mantenhas.

Um abraço amigo a todos,
Cherno Balde
26 de junho de 2013 às 11:46 


3. Informação de hoje, em que o Cherno Baldé dá mais detalhes sobre o testemunho de Demburri Seidi:


O Demburri Seidi (nome fictício) é Oinca (da região do Oio, sector de Cuntima) que viveu alguns anos refugiado no Senegal (Casamansa) durante a guerra colonial. 

Fula de origem, mas mandinga de educação e cultura, um pouco como todos os fulas do Norte, pela longa convivência num meio de maioria mandinga, nesta região em concreto. Ele domina ambas as línguas desses grupos. 

A tradução foi de fula para o portugués, mas o mais difícil, primeiro, foi convencé-lo a depor e depois, foi preciso esperar que ele pudesse se recompor e ultrapassar a evidente dificuldade de falar sobre um acontecimento que o tinha profundamente traumatizado, pelo que, algumas vezes, tivemos que interromper por vários dias/semanas/meses, porque de cada vez que revia aquelas cenas macabras consumia-se num choro convulsivo e não conseguia continuar a narrativa porque ainda se ressentia do efeito, passados que eram mais de 35 anos sobre os acontecimentos. 

Foi preciso muita paciência e alguma insistência da minha parte, pois como dizem na Guiné "Quem teve a amarga experiência com um Cankuran, tem medo do Baga-Baga", porque ambos sao da mesma cor de terra vermelha.

A localidade de Candjabel ou Gan-Djabelia (em Biafada) que consta no documento sobre Quemo Mané, está situada no troço que liga Fulacunda a Nova Sintra, onde foi sepultudo, mesmo à beira da estrada do lado direito, no sentido Fulacunda/Nova Sintra.

Abraços,

Cherno Baldé

21 de fevereiro de 2022 às 14:39



Guiné > Região de Quínara > Carta de São João (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canjabel, a nordeste de Nova Sintra.

Imfografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(**) 18 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané

(***) Último poste da série > 11 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22988: O segredo de... (36): Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74): louvado pelo comando do BART 3873, por, no decorrer da Acção Guarida 18, em 3/2/1973, em Ponta Varela, "ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro"

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22988: O segredo de... (36): Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74): louvado pelo comando do BART 3873, por, no decorrer da Acção Guarida 18, em 3/2/1973, em Ponta Varela, "ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro"


Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); nosso coeditor, ea viver, até há alguns dias atrás em Abu Dhabi, Emiratos Árabes Unidos. Volta a Portugal por um período mínimo de seis meses.


Louvor


CTIG > Bambadinca > BART 3873 > 24 de outubro de 1973 > Ordem de serviço nº 251 > 


"Louvo o Fur Mil 13839871 Jorge Alves de Araújo, da CART 3494, por durante o desenrolar da Acção Guarida 18, realizada em 3 de fevereiro de 1973, no contacto havido com o IN, ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro.

Pela sua decisão revelou dotes de coragem, pelo que é digno de público louvor."



1. Comentário do editor LG: 

O nosso querido amigo, camarada e coeditor  Jorge Araújo nunca fez gala, que eu saiba, deste louvor... que no tempo do gen Arnaldo Schulz daria, por certo, lugar à atribuição  de uma cruz de guerra... (Vd. poste P13844) (*)

Refere ele, mais abaixo, que "só após o falecimento da minha mãe, em 27Dez2015, é que tomei conhecimento da Ordem de Serviço n.º 251, do meu Batalhão, de 24 de outubro de 1973. Este documento foi encontrado no vasto espólio que me deixou (estou a falar de papel), e  ao qual designei, na altura, como o 'Baú de Minha Mãe' "... 

Ele não faz questão, mas eu faço, de partilhar este "segredo" na série que criámos há uns largos anos, em 30 de novembro de 2008,  "O segredo de...".  (**) 

(Tem ainda poucos postes, umas escassas três dezenas e meia, mas começou muito bem com um espantosa revelação do Mário Dias,  vd. poste P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações.)



CTIG > Bambadinca > BART 3873 > 24 de outubro de 1973 > Ordem de serviço nº 251 > 


Louvor atribuído o Cap Mil Inf José António de Campos Simão, da CCAÇ 12: "... por sendo comandante daquela CCaç, demonstrou capacidafr de comando, iniciativa e espírito de sacrifício, depois que a sua Companhia foi transferida para o Xime, passando de uma situação de intervenção para outra em que ficou responsável or uma zona de acção, que é a mais difícil do sector do Batalhão.

"Depis de um período bastante longo de adaptação à nova situação, a Companhia está agora a percorrer áreas de refúgio do IN, de muito difícil acesso. Pela competência demosntrada no comando da sua Companhia, é o Capitão Simão merecedor de ser galardoado com público louvor".




CTIG > Bambadinca > BART 3873 > 24 de outubro de 1973 > Ordem de serviço nº 251



2. Comentário de Jorge Araujo ao poste P22963 (***) 


Pois é, camarada António Duarte: há factos da nossa vida (de todos nós) que o tempo não consegue apagar... e então os da guerra... jamais!

Antes de mais, quero dizer-te, assim como ao colectivo da Tabanca, que deixei de dirigir a Tabanca dos Emirados desde a passada 6.ª feira, para recuperar o cargo na Tabanca do Pragal (Almada). Foram seis meses lá, e agora seis meses cá.

Quanto ao tema de hoje, que recuperas com grande oportunidade, sempre te digo que para mim não é uma efeméride, nem duas, mas sim três. Ou seja, foram as "cenas" da Acção Guarida 18, depois a viagem para Bafatá e, depois, o início do 2.º período de férias na metrópole. Foram muitas emoções em pouco tempo.

Ainda ontem, dia 2Fev2022, em contacto telefónico com o meu/nosso camarada Carneiro (ex-Alf Mil de Operações Especiais da minha CART 3494) recordámos o episódio ocorrido em 3Fev1973, na região da Ponta Varela. Ele já não participou nas últimas actividades efectuadas pela 3494, no Xime, devido ao facto de ter sido nomeado para as "africanas", tal como aconteceu com o camarada Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil de Operações Especiais da CART 3492).

Sobre o facto de ter estado no "frente-a-frente" (ao virar da esquina), o resultado do "encontro" deu lugar a um louvor atribuído pelo nosso Cmdt do BART 3873, TCor Tiago Martins (1919-1992), publicado em 24 de Outubro do mesmo ano, isto é, quase nove meses depois da ocorrência.

Como curiosidade, só após o falecimento da minha mãe, em 27Dez2015, é que tomei conhecimento da Ordem de Serviço n.º 251, do meu Batalhão, com a data indicada anteriormente. Este documento foi encontrado no vasto espólio que me deixou (estou a falar de papel) ao qual designei, na altura, como o «Baú de Minha Mãe».

Para completar este quadro de memórias, com quarenta e nove anos, vou enviar ao camarada Luís Graça, por correio interno, o documento supra, onde consta, também, um louvor atribuído ao Cap Mil Inf José António de Campos Simão, da CCAÇ 12, que agora recordaste.

Para ti e para o colectivo da Tabanca, envio um forte abraço de amizade.

Saúde.
Jorge Araújo
3 de fevereiro de 2022 às 22:45 


3. Mensagem do Jorge Araújo:

Data - quinta, 3/02/2022, 23:27 
Assunto - Efeméride com 49 anos -  03Fev7193/ 03Fev2022

Caro Luís,

Então como está a tua recuperação? Espero que estejas a registar boas melhoras..

Como referi no comentário ao poste do António Duarte, hoje editado, já regressei à "metrópole",  depois de uma comissão de seis meses lá para as bandas do Médio Oriente... Agora vão ser seis meses cá, até meados de Julho, para "nova corrida; nova viagem", como se diz nos equipamentos de diversão existentes nas feiras.

Vim alguns dias antes de caducar a minha estadia, pois precisava de tomar a 3.ª dose da vacina do Covid, uma vez que lá o não podia fazer. Além disso, havia também a necessidade de resolver alguns assuntos que a distância não o permite.

Tinha a intenção de te dar esta notícia em simultâneo com o envio de mais um texto de "memórias cruzadas"... mas o comentário, por não permitir juntar os documentos que prometi dar conta, fez com que a notícia do meu regresso tivesse de ser sem o texto terminado.

Assim, e para o que entenderes por bem fazer, anexo parte da Ordem de Serviço do BART 3873, relacionada com as ocorrências de que dou conta.

Até breve... fica bem.
Um abraço.
Jorge Araújo.
__________




terça-feira, 2 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21960: O segredo de... (35): José Ferraz de Carvalho (ex-fur mil op esp, CART 1746 e QG, Xime e Bissau, 1968/70): "Não matem a bajudinha!"


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > População sob controlo do PAIGC, no subsetor do Xime, capturada no decurso da Acção Garlopa, em 19 de julho de 1972, num total de 10 elementos.

Foto (e legenda): © Sousa de Castro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem conplementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Voltamos a publicar este texto do  José Ferraz de Carvalho  (ex-Fur Mil, Op E Esp, CART 1746, e QG, Xime e Bissau, 1968/70); radicado em Austin, Texas, EUA, desde meados de 1970, tem duas dezenas de referências no nosso blogue: faz parte da Tabanca Grande desde 19 de novembro de 2011 (*); é autor da série "Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz";  tratando-se, de algum modo, de um "confissão" ou "confidência", este texto  (***) merece ser reproduzido agora na série "O segredo de..." (****)


O segredo de... (35): José Ferraz de Carvalho:
 "Não matem a bajudinha!"


Falando de acção psicossocial, de que sempre fui partidário, lembrei-me que, durante uma operação de penetração ao sul do Xime, aprisionámos 2 elementos IN.

Depois de interrogados, guiaram-nos a uma tabanca IN. Fizemos um assalto e durante esse combate ferimos uma miúda, bajuda, com um tiro por detrás do joelho que lhe destroçou a patela [ ou rótula].

− Mata a miúda...  − disse alguém.

− Não mata nada − disse eu  [, que estava a comandar o 2º  pelotão].

E ordenei ao meu pessoal para fazer uma liteira, trazendo a bajuda para o Xime de onde foi posteriormente helitransportada para o hospital em Bissau. Oxalá ainda seja viva.

Nem tudo na guerra é destruição. Talvez alguém dos meus tempos no Xime se lembre deste episódio.

Mas ainda a respeito desta bajudinha do Xime, alguém que não tenha estado nesta situação, é capaz de não perceber o que me levou a fazer o que fiz.... 

Por outro lado, se alguém que tenha estado lá comigo se lembrar [deste episódio], seguramente dirá que o tempo que levámos a preparar a liteira, deu tempo ao IN para começar a mandar morteiradas para dentro da tabanca e tiroteio de armas ligeiras como eu nunca tinha visto. De facto, poderia ter causado sérios problemas, mas graças a Deus tudo correu bem.

A minha intenção é apenas a de dizer publicamente que nós, no mato, e em situações de perigo, tínhamos coração e respeito pela vida humana, nem sempre tudo era ronco e destruição de tudo por onde pássavamos - a [alegada política da] "terra queimada".
 
PS - Curiosamente fui eu que fiz os prisioneiros... Íamos a sair da mata para uma abertura com capim talves de meio metro de altura e um trilho que cruzava essa abertura em sentido perpendicular ao nosso sentido de marcha (se bem me lembro eram dois e não um) quando nos demos conta que eles vinham na nossa direcção a conversar e, portanto, não se deram conta de nós ( ainda bem que tinha ensinado ao "pessoal balanta" os sinais aprendido em Lamego). 

Indiquei que se alapassem e eu deitei-me de costas para o chão ao lado desse trilho. Quando, eles se deram conta de mim, só talvez a um par de metros donde eu estava deitado, levanteio torso, apontei-lhes a G3 e disse: "A bo firma ai"...  Tremiam como se tivessem visto um fantasma e eu ri-me... Foram então levados para junto do comandante dessa operação,  interrogados e vocês ja sabem o resto da história. 

Também me lembro agora uma histária mais do Júlio [, o nosso "pilha-galinhas"] (*****) que, como responsável pelos dilagrams,  andava sempre ligado a mim. Quando o contra-ataque se desencandeou, ele e eu abrigámo-nos detrás de um baga baga enorme. Começámos a responder e o Júlio por um lado de baga baga e eu pelo outro tivemos que nos desabrigar. Disse-lhe para onde atirar os dilagramas e dou-me conta de que o Júlio de joelhos no chão a disparar dilagramas e cai pra frente, redondo. 

Atirei-me para junto dele com terrível ansiedade porque estava convencido que ele tinha sido ferido. Quando me dei conta que estava vivo a primeira coisa que me disse foi: "Furriel, os meus tomates?"... Houve mais tiroteio,  acabou o contacto, levanto-me, ajudo o Júlio a levantar-se e, quando de pé ele puxa as calças abaixo dos "tomates",  lá estava um buraco de bala, uns centimetros mais a cima e pobre pobre do Júlio!...  Disse-lhe em descarga nervosa: "Ah,  Júlio ainda bem..., senão nunca mais comíamos galinha" ...

José Ferraz

2. Comentário do editor LG:

Poderá ter-se tratado  da Op Baioneta Dourada, iniciada em 2 de Abril de 1969, na área de Poindon / Ponta do Inglês, às 0h00, com a duração prevista de dois dias, e com o objetivo de "se completarem as destruições dos meios de vida na área, executadas quando da Op Lança Afiada [8-18 de Março de 1969]".

As NT eram constituídas por dois 2 destacamentos:

(i) Dest A: CART 1746 (Xime) (a 3 Gr Comb) + CCAÇ 2314 (Tite e Fulacunda, 1968/70))(1 Gr Comb);

(ii) Dest B: CCAÇ 2405 (Galomaro) (a 2 Gr Comb) + CCAÇ 2314 (Tite e Fulacunda, 1968/70) (1 Gr Comb).

Oportunamente, poderemos publicar um excerto do relatório desta operação, em que foi capturado um elemento IN, desarmado [, o Zé Ferraz refere dois elementos]. Na exploração imediata de informações dadas pelo prisioneiro, o Dest A fez uma batida à zona, surpreendendo "9 homens sentados acompanhados de 2 mulheres" (sic). Aberto fogo, foram capturadas as duas mulheres, feridas [, O Zé Ferraz refere apenas um "bajudinha", ferida].  Os restantes elementos fugiram, com baixas prováveis.

Entretanto, "ao serem prestados os primeiros socorros às mulheres feridas, um grupo IN de efectivo não estimado flagelou as NT durante cerca de 6 minutos com LGFog, mort 60 e cerca de 6 armas automáticas", sem consequências para as NT.

(Fonte: BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70. História da Unidade. Cap II, pp. 78/79).

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9065: Tabanca Grande (307): José Ferraz de Carvalho, português há mais de 40 anos nos EUA, ex-Fur Mil da CART 1746 (Xime, 1969)

(...) Em 1965 o pai  [oficial superior da Marinha]foi nomeado para ser o Senior Portuguese Officer no SACLANT [The Supreme Allied Commander Atlantic,], em Norfolk, Virgínia. Vim então estudar Engenharia nuclear para o Virginia Politecnical Institute, mas tive que ir primeiro para o Old Dominion College para fazer estudos de habilitação.

Sempre quis fazer tropa e estava aqui com uma licença militar porque era da incorporação de 65. Lisboa nunca me reconheceu os meus estudos aqui, pelo que em vez de ir para Mafra [, COM], fui para as Caldas [, CSM].

(...) Ofereci-me como voluntário para a 16ª Companhia de Comandos com a qual cheguei a Guiné em 68 [, 16 de agosto]. No fim da fase operacional [, IAO, que decorreu em Bula, Binar e Có, em setembro] não quis ser comando e fui então destacado para a Cart 1746, Xime, onde o Capitão [António] Vaz [ 1939-2015] me responsabilizou em formar um grupo de combate com o segundo pelotão cujo alferes tinha sido enviado para Lisboa doente" (...).

O J. Ferraz de Carvalho, uma vez terminada a comissão da CART 1746, em junho de 1969, foi colocado em Bissau, no QG, e deve ter regressado à Metrópole, com a 16ª Ccmds, em 24 de junho de 1970 (**)..
.



(*****) Vd. poste de 30 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9116: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (10): Júlio, o pilha-galinhas do Xime

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21855: O segredo de... (34): Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando (testemunho recolhido por José Ferreira da Silva)


Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 
Gondomar > Fânferes > Tabanca dos Melros > 

O nosso tertuliano José Ferreira da Silva (,, o "Silva da CART 1689") com o protagonista desta história, o camarada Dionísio Cunha , aqui à direita. 


Foto (e legenda): Jorge Teixeira (Portojo) /José Ferreira da Silva (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. É um segredo... que já não é segredo (****). Foi recolhido e divulgado há cerca de 8 anos, pelo nosso camarada (e escritor, com três livros publicados), o José Ferreira da Silva (ex-fur mil op esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com mais de 160 referências no nosso blogue.


Foi publicado na sua série "Outras memórias da minha guerra" (e mais tarde reproduzido em livro, o I volume das "Memórias Boas da Minha Guerra", Lisboa, Chiado Books, 2016) (*).

Já na altura tive ocasião de dar os parabéns ao Dionísio e ao Zé Ferreira pela coragem, frontalidade, autenticidade e honestidade deste testemunho. Não tinha na altura (nem tenho ainda hoje) razões para pôr em causa a sua veracidade nem o rigor da recolha do Zé Ferreira. Sei que ele levou alguns meses a confirmar e acertar certos pormenores. E obteve aautorização do Dionísio para publicar esta "história", primeiro no nosso blogue (*) e depois em livro [, vd, imagem da capa à esquerda].

Eu próprio falei, há dias, no dia 24 de janeiro passado, com o Dionísio. E mais uma vez ele não levantou qualquer objecção a que o seu testemunho pudesse ser de novo reproduzido, agora, nesta série, "O segredo de...". Disse-me: "Tudo o que lá está foi verdade"...

Por sua vez,eu retorqui-lhe que um dia ainda haverá um cineasta que pegue  nesta história já esquecida, mas reveladora da importância que têm os valores humanos, na paz e na guerra.  E repeti o que tinha comentado há oito anos atrás:

 "Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um 'fait-divers' da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma. (...) Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande."... 

Sei que o Dionísio não é utente das redes sociais, não conhece o nosso blogue, não tem computador nem endereço de email... Mas tem um filho que é informático, e a quem vou pedir um dia destes uma foto do pai, do tempo da Guiné, para o apresentar formalmente à Tabanca Grande e sentá-lo à sombra do nosso poilão, como ele tão justamente  merece. 

Continua ligado ao Centro Social e Paroquial de Valbom. Estava em casa com a sua Ângela, um e outro já com alguns problemas de saúde  próprios da idade. Desejei felicidade a ambos.

E vamos agora "ouvir (e saber ouvir)" o seu testemunho (****), reproduzido com talento, detalhe e rigor pelo Zé Ferreira.  Mesmo que para aqueles que já o conhecem, o depoimento merece ser lido, relido e comentado. 

O único ponto de discórdia (, já discuti isso com o Zé Ferreira),  é o nome da operação, referida no texto: estamos a publicar a história da 3ª CCmds (1964/66), na versão de João Borges, e em maio de 1967 não parece ter havido nenhuma Op Azimute: houve duas no Oio (Op  Vermute, a 10 de maio;  e Op Vinagre, a 17; e uma terceira, na ponta Matar, na região de Cacheu, a 26 de maio). 

Pela descrição do Dionísio (que não se lembrava já do nome da operação, o Zé Ferreira é que lhe chamou Op  Azimute),  admitimos nós que possa ter sido  a Op Vermute, mas o relatório  parece ter sido omisso quanto a eventuais baixas civis. O que não admira: quem conheceu a realidade operacional do CTIG, sabe que os nossos relatórios de operações por vezes pecavam, uns por excesso, outros por defeito. Confronte-se, entretanto,  as declarações do Dionísio com o resumo da Op Vermute feito pelo João Borges, infelizmente já falecido em 2005  (***):

(...) "Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume." (...) [Dionísio Cunha]


Resumo  da Op Vermute, segundo João Borges (***)





Feia > Fiães > 2 de dezembro de 2017 > Sessão de apresentação dos Volumes  I e II de "Memórias Boas da Minha Guerra", do nosso camarada José Ferreita da Silva.   

"O  cmnbatente  da 3.ª CComandos, Dionísio Cunha - protagonista da história “É Guerra, é Guerra (Será?)”, pág,119, I Volume - fala da guerra, da sua justeza e da sua condição de desertor, de que se orgulha muito, segundo diz. Preso na Metrópole, voltou à Guiné e à sua Unidade, tendo participado voluntariamente em perigosas operações até terminar a sua comissão de serviço." (**)

Foto (e legenda): José Ferreira da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O segredo de Dionísio Cunha, desertor e bravo soldado comando

por José Ferreira da Silva


Eu estava sentado à mesa, já na ponta final do abundante almoço/convívio na Quinta dos Melros, em Fânzeres, Gondomar. Tinha à minha direita o José Carvalho, herói de Gadamael, na guerra da Guiné, e à minha esquerda o meu amigo Jorge Teixeira, que foi da CCS do nosso BART 1913, sediado em Catió (que, agora, é muito conhecido por “Portojo”, na sua actividade de fotógrafo de arte). Este já havia aberto uma garrafa de conhaque “caseiro” especial, oferecida pelo Bateira de Cinfães que, pelos vistos, a destinava à próxima quadra natalícia.

Na nossa frente estava uma garrafa de água (a única em toda a mesa), ainda por abrir. Uma mão, vinda de trás de mim, estendeu-se pela nossa frente, procurando alcançar a dita garrafa. Surpreendido, perguntei:

– Quem está doente?

Logo a resposta veio célere:

– É para lavar o copo. Vou tomar um remédio especial.

E como eu não tinha ainda travado conhecimento com este ex-combatente, perguntei-lhe:

– Onde andaste?

– Estive na Guiné, na 3ª Companhia de Comandos, a do Álvaro Cardoso, marido da artista Paula Ribas.

– Éh, pá, estive selecionado em Vendas Novas para integrar essa Companhia – disse-lhe, enquanto ele se afastava para junto do topo sul da mesa.

O Portojo aproveitou logo para falar do Dionísio, portador de uma história curiosa e que ele já andara tentado em conseguir.

Não levou muito tempo para que o Dionísio aparecesse, junto de nós e já bem “medicado”, com a firme disposição de contar a sua história. Logo se fez uma rodinha de curiosos, bem atentos, saboreando todas as palavras.


A paixão, aos 18, pela Ângela, de 14

E foi assim:

É o quarto dos seis irmãos nascidos e criados pelo casal José e Rosalina, de Valbom [Gondomar] . Na escola, o Dionísio entrou directamente para a 2ª classe, uma vez que já sabia ler.

Com oito anos já trabalhava de manhã num ourives, onde ganhava 5$00 por semana. À tarde frequentava a escola.

Aos 12 anos entrou para a Fundição Herculano [Azevedo], no sector dos componentes eléctricos.

Aos 18 anos apaixonou-se pela Ângela, com quem namorava às escondidas, em virtude de ela só ter 15 anos. Um ano depois, já farto de andar a esconder o condicionado namoro, resolveu ir falar com o futuro sogro, um homem analfabeto mas de palavras muito sábias. Aproveitando um bom momento das suas relações, atirou:

– Senhor Zé, tenho uma coisa para lhe dizer, mas até me custa falar.

– Desembucha, rapaz. Sabes que até gosto de te ouvir – respondeu.

– Ando a namorar com a sua filha há um ano, sei que ela é muito nova, mas queria que me autorizasse a namorá-la à frente de toda a gente. – disse o Dionísio.

–Olha, rapaz: cada um que trate de si, porque eu já estou servido há muito tempo.

E foi assim que namorou 8 anos com a mulher que escolheu e que, ainda hoje, ama e admira.

Em Julho de 1964 foi à Inspecção. Recorda ter sentido alguma revolta quando verificou que o colega da escola primária, Júlio Sousa, o “Matulão”, filho do patrão Albino, das Indústrias de marcenaria, um destacado dirigente da União Nacional, ficou “Livre”, ao contrário dele, um “caga-tacos” à sua beira, que ficou “Apurado  para todo o Serviço Militar”. Ele, futuro engenheiro, abastado e disponível, ao contrário do Dionísio, que era pobre e amparo da mãe e de dois irmãos menores.

Foi para Espinho (GACA 3) em 25 de Outubro de 1965. Confessou que teve um aspirante que o tratava muito bem e que odiava um tal tenente  Grilo, que o castigara injustamente. Fez ali a escola de cabos e seguiu para os Comandos de Amadora. Aqui também mereceu alguns castigos, que o forçavam a apoiar o Refeitório. Porém, o Cabo do Rancho acabou por o rejeitar devido ao prejuízo que dava. Dali seguiu para Lamego, onde formaram a 3ª Companhia de Comandos.


Maio de 1967 : No Oio, três mulheres mortas, 
com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas, vivos.


Seguiram de barco para a Guiné no dia de S. João de 1966, depois de uma noite mal dormida no RALIS de Lisboa. Foram directamente para o Quartel de Brá, em Bissau.

– Então como foi isso lá na Guiné? – perguntei.

E ele iniciou:

"Tive muitas operações, muitos combates e algumas aventuras. Mas há uma que me marcou imenso e foi considerada uma loucura. Aconteceu nos primeiros dias de Maio de 1967.

Fomos de lancha para participarmos numa operação no Olossato (“Op Azimute”) (***), na zona do Oio. Levávamos um guia, que se perdeu, o que nos obrigou a retirar. Viemos por outro lado e ouvimos barulho de pessoas. Aproximámo-nos em progressão lenta, fizemos o assalto, tal e qual como era costume.

Avançavam as equipas de dois de cada vez para cada lado, enquanto os outros faziam o fogo. De seguida, avançavam estes, enquanto os outros disparavam. Envolvemos o objectivo e,  após despejarmos bastantes munições, entrámos no pequeno acampamento. Encontrámos alguns corpos baleados, caídos e, entre eles, estavam três mulheres mortas, com os respectivos filhos ainda amarrados nas costas. Vivos.

Eu agarrei numa garotinha, linda, que, sem chorar, se abraçou a mim, enquanto dois dos meus companheiros, pegaram as outras duas crianças. Que fazer com as crianças, foi o problema. Abandoná-las, à mercê dos animais? Deixá-las a fazer barulho? Trazê-las? E para onde?

Disse que queria ficar com a minha (a que tinha ao meu colo) mas o subcomandante Rodrigues disse que isso não era possível e insistiu que teriam que ser caladas. E acrescentou:
– Cada um cala a sua e rapidamente, porque estamos já a correr muitos riscos."


O Dionísio, já com a voz embargada, parou e aproveitou para limpar os olhos. E continuou:


"Após algumas hesitações, os meus companheiros resolveram o problema, e eu também ia fazer o mesmo. Pousei a criança no chão e, quando ia a puxar o gatilho, ela estendeu a mãozita na direcção da ponta da arma. Senti-me quase sem acção, indeciso e sem forças. Reagi, apontei a arma de novo e disparei na direcção do chão, evitando atingir a criança. Os outros não se aperceberam e corri rapidamente para junto do grupo, que já se afastava.

Entrámos para a lancha e dei comigo a matutar naquela situação e noutras a que a guerra me havia obrigado. As imagens não me saíam da cabeça."


Saudades da Ângela e uma 'boleia' no Uige até casa, clandestino,  
no meio da comissão
 

"Estávamos aquartelados em Brá, Bissau,  e era para lá que sempre regressávamos. Quando chego ao Cais da Amura verifico, mais uma vez que ali, ao largo, se encontrava o navio Uíge, que havia trazido mais militares (BART 1913) [, desembarcado em 1 de maio de 1967] e que regressaria a Portugal com outros, já com a sua missão cumprida.

Já andava a sofrer há muito com as saudades da minha Ângela, da minha família, dos meus amigos de Gondomar e estava cheio da guerra e, agora, com as imagens dessa última operação, comecei a pensar na hipótese de fugir.

As saudades eram cada vez maiores. A cabeça já não pensava noutra coisa. E já tudo me parecia possível. Meti algumas coisas nos bolsos e fui para o cais na expectativa de me meter no barco. E não foi nada difícil.

Quando dei por mim, já lá andava dentro à vontade, sem que ninguém me exigisse qualquer formalidade. Andei de um lado para o outro e cheguei a integrar um grupo de amigos na maior das confianças. Talvez pensassem que eu fora em rendição individual. Entre os vários passatempos, a maior parte do tempo era passado a jogar as cartas.

Quando cheguei a Lisboa,  fui aos CTT mandar um telegrama para casa, para não chegar lá sem ser esperado. Meti-me no comboio e à noite já estava junto da minha namorada. No dia seguinte, por coincidência, quando ia para a matinée com ela, o Carteiro perguntou-nos por um endereço (que era o de minha casa) para entregar o tal telegrama.

Dois dias depois já estava a trabalhar normalmente, na Fundição Herculano Azevedo, nos componentes para energia eléctrica.

Os meus colegas de trabalho perguntavam-me coisas sobre a guerra mas eu desviava o assunto. Sabia que era perigoso falar disso porque a PIDE andava atenta e ainda mais por constar que eu era comunista.

Entretanto, em Brá, o Capitão Álvaro Cardoso não queria acreditar no desaparecimento do Dionísio e dizia: 

– O Dionísio era valente e patriota, portanto não ia fugir para os turras."


Alguns dos amigos mais chegados, conhecendo o seu aparente descontentamento recente, ainda esperaram ouvi-lo através da Rádio Argel, no Portugal Livre [, leia-se: "Voz da Liberdade"], programa do conhecido Manuel Alegre. Depois, a hipótese mais provável era a de que ele fora sozinho ao bairro negro Pilão, porque era um gajo sem medo e fora apanhado e morto.

Desaparecido ou morto eram as palavras constantes na participação efectuada pelo Capitão Álvaro.

Num domingo, ao fim da tarde, 42 dias depois da fuga, estava o Dionísio a namorar quando a sua mãe o foi avisar:

–Olha, disseram-me que anunciaram na RTP que te andam a procurar e que te deves apresentar do Quartel-General do Porto.

– Ó, mãe, não se aflija, vai ver que não é nada de especial. Amanhã ou depois, vou lá ver o que querem.

No dia seguinte, eram umas 10h30 quando o altifalante da empresa chamou:

– Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!... Atenção, Dionísio Cunha, por favor venha ao escritório!

Duas praças da Policia Militar, esperavam-no. Estava entregue, 24 horas depois, à sua companhia de Comandos, em Brá.


Eh!, pá, estás f..., sabes o que é um  desertor?!


Quando chegou ao Aeroporto de Bissalanca,  encontrou o condutor Formiga, que costumava ir buscar o Correio e lhe deu boleia. Surpreendido com o Dionísio, alarmou-o:

– Estás fodido, pá. Como desertor, vais direitinho para a cadeia.

Uns minutos depois já estava a ouvir do Capitão:

– Já vieste? Fazes alguma ideia daquilo em que te meteste? Sabes o que se faz aos desertores? Sabes, ou não?

– Ó meu Capitão, eu andava muito abatido, cheio de saudades e, ao ver o Uíge, ali a receber malta para regressar, não resisti à tentação.

– Pois, e agora vais ver a malta a ir embora e tu ficas aqui a fazer outra Comissão de Serviço. Eu não te quero fazer mal algum, mas tens um processo a correr, devido à tua fuga. Vai-te apresentar ao teu alferes Sampaio Faria.

"Participei em muitas Operações. Nem sei bem por onde andei. A nossa Companhia ganhou duas vezes a Flâmula de Honra em ouro. No aspecto disciplinar, lembro-me de uma aposta que fiz com o Condutor 'Comando' Garcia que correu mal. Ele gabava-se que mais ninguém era capaz de pôr o Unimog a trabalhar. Apostámos e eu, em pouco tempo, pus-me a dar voltas com o Unimog na parada. Por azar, a cena foi vista pelo sargento Mariano Agapito que logo foi fazer queixa ao Capitão. Como eu não tinha carta de condução, a coisa agravou-se para o Garcia, que apanhou 10 dias de prisão. Eu, solidário com ele, fiz-lhe companhia permanente até ele sair. Conversávamos, jogávamos às cartas, às damas e dominó."

Finais de Março de 1968. Está em preparação uma das maiores e mais perigosas operações militares realizadas na Guiné: “Op Bola de Fogo”, para a implantação de um quartel (Gandembel), na zona do “corredor de Guileje”, no coração do Cantanhez, zona controlada pelo PAIGC. Foram mobilizadas forças extraordinárias quer em qualidade, quer em quantidade.

Na 3ª. Companhia de Comandos, também convocada para esta operação, o ambiente não era favorável para a sua participação voluntária. Como faltava pouco tempo para regressarem à Metrópole, o Capitão teve dificuldades em fazer-se representar com 2 grupos.


Voluntário para a Op Bola de Fogo: 
a salvação do Dionísio

O mau ambiente está retratado na história da Companhia, através do ex-furriel João Borges, já falecido (mulher, filhos e netos continuam a participar no Encontro anual da 3ª Companhia), acusando o “método insólito e discriminatório” usado, uma vez que “o voluntariado nunca foi posto em causa” e que não podiam aceitar a divisão criada entre os camaradas. Chegou-se ao ponto das mesas separadas e dos reforços específicos só para os novos voluntários.

– Entretanto, o sargento Agapito, que parecia nunca ter gostado da minha pessoa, um dia, nesta fase final, teve a amabilidade de, em voz alta e em público, avisar-me: 'Ouve lá, ó Dionísio, vai arrumar as tuas malinhas para ires para os Adidos, para alinhares noutra comissão de serviço'.

O Dionísio, chateado, ainda perguntou:

– Quem foi que lhe disse que vou para os Adidos?

– Foi a informação que chegou do Quartel-General – respondeu o Sargento.

O Dionísio saiu ao encontro do Capitão:

– Então, meu Capitão, pedi-lhe para ficar integrado na 5ª Companhia e o Sargento diz-me que vou para os Adidos. Não foi isso que lhe pedi.

– Ouve lá, ó Dionísio, tu não fazes parte do grupo de voluntários para a última operação? – prguntou o Capitão.

– O meu Capitão sabe que sou sempre voluntário, desde que cheguei a Lamego, para formarmos a 3ª Companhia.

– Vamos lá para o Cantanhez e depois vamos ver o que se poderá fazer pela tua situação – disse o Capitão.

Antes da “Op Bola de Fogo”, a 3ª Companhia de Comandos ainda participou em acções de flagelação próximo do local do futuro aquartelamento Gandembel, na “Op Rolls Royce”. Foram 2 grupos a participar nessas operações de apoio.

(A Op Bola de Fogo teve início em 8 de Abril de 1968. A minha CART 1689, já experiente neste tipo de tarefa de apoio à construção de novos aquartelamentos, desempenhou o seu papel na progressão e escolha do local, bem como na sua defesa. Lá permaneceu até 15 de Maio, regressando para junto do Batalhão, em Catió, no dia 24, tendo sofrido 53 ataques, durante esta Operação).

Poucos dias antes da 3ª Companhia de Comandos regressar a Lisboa, o capitão chamou o Dionísio, para o informar de que, graças ao seu comportamento em toda a comissão e em particular no exemplo de voluntariado que deu nesta última operação, havia conseguido anular o seu castigo e que ele iria regressar com os seus camaradas.

O Dionísio afirmou ter sentido uma das maiores alegrias da sua vida.

– Todos os meus camaradas se sentiram felizes por este desfecho, o que justificou uma grande farra e uma das nossas maiores bebedeiras de sempre.

José Ferreira da Silva
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Post scriptum do autor:

Hoje, o Dionísio, um grande colaborador do Centro Social e Paroquial de Valbom, tornou-se num dos responsáveis promotores de Cursos sobre a Pastoral da Família, Preparação para o Matrimónio, Pais e Padrinhos, Acompanhamento de Casais com Problemas e Celebrações de Casamentos e outras festas religiosas.

Logo que chegou da guerra, o Dionísio tratou do seu casamento e, como tal, teve de se confessar. E como vivia preocupado com o passado recente da guerra, abriu-se com o padre, a quem expôs a sua preocupação:

– Sr. Padre, tenho uma preocupação que não me sai da cabeça.

– O que é isso, rapaz, que não se possa resolver?

– Olhe, eu tenho a certeza de que matei gente, e agora, como é?

– Deixa lá, Dionísio, matar na guerra não é pecado. Deus perdoa-te, até porque quem não mata, morre.

Foi então que o Dionísio rematou:
 
– Pois é, padre. Tudo bem se o Deus for branco, porque se for preto, estou fodido.

[Revisão / fixação de texto /título e subtítulos, 
para efeitos de publicação deste poste: LG. 
Com a devida vénia, ao José Ferreira da Silva e ao Dionísio Cunha]

 
2. Comentários dos nossos leitores [em 2013; repare-se que três, infelizmente, já não fazem parte da lista dos vivos: o Jorge Teixeira 'Portojo', o Luís Faria e o Mário Vasconcelos]  (*)

(i) Fernando Gouveia

Luís Graça: Aqui tens a história, inderectamente contada pelo próprio, estória um pouco romanceada incluida no meu livro NA KONTRA KA KONTRA, a páginas 139. O Dionildo da minha estória, como podes ver, chama-se efectivamente Dionísio. (...)
 
19 de março de 2013 às 13:12
 
(ii) Luís Graça

Fernando, tinha ideia de ter ouvido esta história ... do "arco da velha". Algures... Afinal, foi no teu livro. Dou os parabéns, aos dois, ao Dionísio e ao José Ferreira...

Não tenho razões para pôr em causa a veracidade do testemunho do Dionísio e o relato do Silva. De resto, no blogue é proibido julgar um camarada. Na América, esta história dava um filme. Em Portugal, não passaria de um "fait-divers" da guerra colonial, se o Fernando Gouveia e agora o José Ferreira da Silva não a tivessem posto em letra de forma.

Vou pedir ao Silva que traga esse camarada até nós, à Tabanca Grande. Eu próprio gostaria de o conhecer pessoalmente. Eu e mais o nosso batalhão da Tabanca Grande. (...)

19 de março de 2013 às 17:04

(iii) Carlos Silva

Olá,  Luís: A história do nosso camarada "melro" Dionísio Cunha e aqui contada pelo Zé Ferreira já é conhecida no seio da nossa Tabanca dos Melros, creio que desde a altura [2010/2011] que o Fernando Gouveia tomou conhecimento.

De facto a história das crianças é arrepiante ...

Quanto a conheceres pessoalmente o Dionísio Cunha, tu que vais várias vezes ao Norte, porque não apareces num 2º sábado de um mês à Tabanca para conviver com a rapaziada ?

Pode ser que ouças mais histórias por lá. (...)
 
19 de março de 2013 às 17:54

(iv) Jorge Teixeira

Eu estava lá, ou por outra, estava cá a ouvir com atenção a história do Dionísio (estava mesmo em frente dele), mas também estive lá na guerra e como costumo dizer, aquilo em certas situações mais parecia a guerra do Solnado:

- Porra! Mas o que é que eu estou aqui a fazer, esta guerra nem é minha, aproveito a boleia do Uíge e vou mas é para casa! Se bem o pensou, melhor o fez!

Também sei que se contam muitas "estórias", mas estar ali frente ao Dionísio a ouvir a sua narrativa fluída e sem artifícios, sem dar ares de quem se estava a armar, foi impressionante.

Se porventura inventou alguma coisa foi sem maldade, porque via-se mesmo que não era fanfarrão e não estava a inventar.

Tempos de guerra. (...=)

20 de março de 2013 às 00:29
 
(v) Luis Faria

Gostei de ler.

A crueza da passagem (?) referente às crianças, reconduziu-me lá para as bandas de Capó,  Teixeira Pinto (Balanguerez). Vd. Poste P7172 de 24 Out 2010.

Por vezes a guerra obriga a tomada de opções com potenciais implicações, sempre dificeis de tomar e a meu ver nunca mais esquecidas! (...)


20 de março de 2013 às 10:48

(vi)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Ao apresentar estes dois camaradas, sabia que o Silva era capaz, como ninguém, de anotar e escrever de forma notável esta história de vida do Dionísio.

Não conheço o relato do Fernando Gouveia, mas presumo que também deve ser interessante.

Se bem me lembro há uma "Pasta" aqui no blogue referente ao capítulo dos desertores. A quem muita gente chamou de covardes. Parte da história do Dionísio poderia ser contada e arquivada nessa "Pasta". Alguém teria coragem de lhe chamar covarde ? (...)

2 de abril de 2013 às 13:40

 (vii) Mário Vasconcelos

Na verdade, este testemunho ou depoimento dava um perfeito filme.

O Dionísio é de facto, pelas descrições feitas, um grande militar, ao qual acrescenta situações mirabolantes, mas compreensivas. A leitura deu-me um bom dia para hoje.

Um abraço ao nosso camarada com votos de uma vida cheia de tudo. Ele merece-o, como tantos outros afinal.

14 de abril de 2014 às 13:18

 (viii) Ze de Lamego

Meus caros amigose camaradas.Adorei! Nunca tinha ouvido uma estoria deste cariz.Vou querer conhecer o ator.Consehuiu emocionar-me.Ao Ze Ferreira apenas dizer-lhe que continue a dar-nos o prazer de ler os seus escritos,pois são sempre de uma rigorosa veracidade.Abraço-vos. Ze de Lamego

14 de abril de 2014 às 14:17

 (ix)  Unknown [Jorge Teixeira 'Portojo']

Zé Lamego Pereira, já estiveste várias vezes ao lado dele. Pelo menos na mesma sala.
Na próxima vou-te apresentá-lo.

14 de abril de 2014 às 15:44

(x) Silva da Cart 1689 [José Ferreira da Silva]:

Caros amigos,

Tal como mostram algumas fotos, o Dionísio contou a história diante alguns camaradas, na Tabanca dos Melros (*). Daí até à sua publicação, foram vários meses. Como se tratava de um relato verídico, procurei que todo o resto também o fosse. Até porque os nomes se mantiveram os verdadeiros. 

Por outro lado, foi preciso aferir das coincidências ligadas à minha pessoa (Companhia de Comandos), ao desembarque do meu Batalhão, o  1913 (Uíge, Bissau, 1 de Maio de 1967) e à minha Cart 1689 (Gandembel, Op Bola de Fogo). Desloquei-me algumas vezes ao encontro do Dionísio e, com ele, efectuei algumas correcções.

Resta-me agradecer ao Dionísio pela sua disponibilidade e pela sua verticalidade nos testemunhos que me prestou. (...)

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Notas do editor: