Mostrar mensagens com a etiqueta QG/CTIG. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta QG/CTIG. Mostrar todas as mensagens

domingo, 20 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15879: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (15): N'fendi cadera goss!

1. Em mensagem do dia 7 de Março de 2016, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense da CSJD/QG/CTIG, 1973/74) enviou-nos uma lição de crioulo da Guiné-Bissau:


N'fendi cadera goss!

O crioulo da Guiné-Bissau

O crioulo é uma língua natural, isto é; uma linguagem que foi desenvolvida naturalmente pelo ser humano, de forma espontânea e serve de meio de comunicação entre os falantes de idiomas diferentes.
Estas linguagens: “Possuem normalmente gramáticas rudimentares e um vocabulário restrito, servindo como línguas de contacto auxiliares. São improvisadas e não são aprendidas de forma nativa.”

Consta que o crioulo da Guiné-Bissau (kriol) terá surgido como uma mistura de vários dialectos das mais variadas etnias, de modo a dificultar a compreensão dos portugueses, na época do colonialismo. Trata-se de uma língua falada, e não escrita, pois há poucos livros escritos em crioulo, e também não é a língua oficial do país, não sendo portanto, ensinada nas escolas.
Durante a guerra colonial na Guiné-Bissau (1963-1974), com a chegada massiva de tropas oriundas das várias regiões de Portugal, o crioulo da Guiné acabou por absorver muitos vocábulos portugueses.
Por outro lado, os militares portugueses, “na caserna”, acabaram por “inventar” algumas expressões, misturando crioulo com regionalismos e algum calão, originando uma linguagem digna de inclusão num qualquer compêndio linguístico.
Mas como, efectivamente, não existia qualquer dicionário, nem documento escrito que informasse qual o real significado de alguns termos em crioulo, estes eram por vezes usados de maneira diferente pelos militares, conforme a época e a região em que permaneceram na Guiné.

Por exemplo:
“- Djubi lá!” (para alguns “Djubi” significava “Jovem” e, para outros, significaria “Olha”; “lá” significava “ali” para todos).
Assim, para uns, “djubi lá!” queria dizer: “Jovem, olha ali!”; para outros queria dizer: “Olha ali!”
De qualquer maneira este pequeno exemplo serve para demonstrar a imaginação de caserna, pois era frequente ouvir-se os militares a usarem um novo verbo; “jubilar” (de “djubi lá”), como por exemplo:
“- Eh pá, estás a ‘jubilar’ a bunda da bajuda?!”
Que se podia traduzir por :
“- Eh pá, estás a olhar para o ‘traseiro’ da moça?!”

Conforme referi numa mensagem anterior, havia na sala onde eu prestava serviço na CSJD/QG/CTIG quatro escriturários, dois brancos e dois negros. Um dos escriturários brancos era também ajudante na Igreja Católica de Bissau (sacristão?) e falava crioulo muito bem. Deu-me algumas “aulas” e eu, na altura, “desenrascava-me” razoavelmente a falar crioulo.
Conhecia muitas frases e, embora seja minha intenção deixar aqui alguma informação sobre o assunto, não asseguro que a ortografia seja a correcta, já que o meu crioulo foi aprendido de ouvido, aliás como quase toda a gente por não existirem livros sobre o assunto.

O título deste capítulo “N’fendi cadera goss!”, era uma frase frequentemente usada pelos negros quando se “pegavam” uns com os outros e estavam prestes a chegar a vias de facto. Significava:
- n’ (eu)
- fendi (parto)
- cadera (cadeira, bunda)
- goss (rápido, depressa)

Isto é:
“- Eu parto bunda rápido!” o que, traduzido para um português mais vernáculo, queria dizer:
“- Eu parto-te já o ‘focinho’!”

Uma vez que já se passaram mais de quarenta anos e muitos dos termos já se me “varreram” completamente da memória, fiz umas pesquisas na net, onde encontrei a informação abaixo, à qual acrescentei algumas frases que aprendi de ouvido.

“Em português temos: eu, tu, ele, nós, vós, eles. Em crioulo: n', bu, i, no, bo, e. Estes são os chamados pronomes «fortes». Algumas vezes é possível usar os «fracos»; Ami, abo, elis. (eu, tu , eles).

Kuma ke bu sta? (como é que tu estás?)
Kuma bai kurpu di bo? (Como vai o seu corpo? = Como vai sua saúde?)
No na bai nus nima (nós vamos ao cinema)
Sta dretu (está certo, está bem), (o «está» virou «sta» e o «direito» virou «dretu»)
Pa bia di kê? (porquê?), (talvez uma derivação de “por via de quê”)
Alin'li (aqui estou, no sentido de «tou na boa»)


Como curiosidade, aqui vos deixo um "Pai Nosso” em crioulo da Guiné-Bissau:

“No pape ku sta na seu, (Pai Nosso, que estais no Céu)
pa bu nomi santifikadu, (Santificado seja o Vosso Nome)
pa bu renu bin, (Venha a nós o Vosso Reino)
pa bu vontadi fasidu (Seja feita a Vossa Vontade), (talvez traduzido à letra: 'para vós vontade fazida')
na tera suma na seu. (Assim na Terra como no Céu)
Partinu aos no pon di kada dia, (O Pão-Nosso de cada dia nos dai hoje)
purdanu no pekadus (Perdoai-nos as nossas ofensas)
suma ke no purda kilis ki iaranu, (Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido)
ka bu disanu kai na tentason (E não nos deixeis cair em tentação)
ma libranu di mal. (Mas livrai-nos do mal.)
Amen. (Amém)"


Alguns sinónimos:

ka = não;
ka bai = não vou;
ka tem = não tenho;
ka sabe = sabe mal, não presta;
ka sibe = não sei;
ka miste = não quero;
parte (de reparte?) = dá;
catota = vagina;
peso = escudo, dinheiro;
parte peso = dá escudo, dinheiro;
parte catota = anda fazer amor ;
parte punho = (adivinhem…);
Manga = muito;
Ronco = festa, bom, fixe, etc.

Se a duas ou três palavras em crioulo juntarmos uma ou outra palavra em português, ficamos a falar crioulo que nem um manjaco!

Por exemplo:
- Furriê, parte peso(1) (furriel dá um peso).
- Ka tem patacom (não tenho dinheiro).

Quando nos aparecia um preto que ainda não conhecíamos.
- Kal raça di bó?
- Fula.
- Manga de ronco!

Se fosse de uma outra etnia qualquer (são cerca de trinta) respondia-se de igual modo e eles ficavam felizes, claro, porque tinham orgulho na sua raça.

Nos anos de 1960-70 estava em moda uma canção de Gianni Morandi (cantor italiano) que tinha o título; “Não sou digno de ti”.

Na maioria das vezes as rádios locais transmitiam os seus programas totalmente em crioulo e, entre os militares, constava que a dada altura o locutor de serviço terá anunciado:

“- Pa tudu irmon de no tera e Mamadu Djaló cabita Catió, Giani Morandi na bai na canta pra bo, ‘Ka so dinho di bo’ ”.

Provavelmente tratar-se-ia apenas de uma ‘caricatura’, onde o uso de muitos «ós» dava à frase uma sonoridade engraçada.

“Pa tudu irmon de no tera” – Para todos os irmãos da nossa terra, para todos os guineenses.
“Mamadu Djaló” – nome muito frequente na Guiné-Bissau.
“cabita Catió” – que mora em Catió (pequena cidade da Guiné-Bissau).
“na bai na canta pra bo” – vai cantar para vocês.
“Ka so dinho di bo” – Não sou digno de ti.
____________

Fontes:
Wikipédia
http://marcoembissau.blogspot.pt

(1) – O peso foi a moeda da Guiné-Bissau entre 1975 e 1997, após o que foi substituído pelo Franco CFA (Colónias Francesas Africanas) aquando da sua entrada na União Monetária dos Estados da África Oriental - UEMOA (Union Économique et Monétaire Ouest Africaine).
Já antes da independência os guineenses chamavam “peso” ao escudo português da Guiné.

Abílio Magro
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15618: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (14): O Prisioneiro da Ilha das Galinhas

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15618: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (14): O Prisioneiro da Ilha das Galinhas

1. Ainda em mensagem do dia 8 de Dezembro de 2015, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense da CSJD/QG/CTIG, 1973/74), traz-nos desta vez a história de um prisioneiro da Ilha das Galinhas, que se fazia acompanhar de um símio que parece ter tido um fim trágico.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)


14 - O Prisioneiro da Ilha das Galinhas

A azáfama fazia lembrar uma tarde de fim de feira numa qualquer terra do interior de Portugal, onde as embalagens vazias de cartão se amontoam ao lado de cada tenda e os feirantes se apressam a recolher os artefactos e produtos não transacionados para, na madrugada seguinte, regressarem à estrada e ocupar novamente as “montras” numa outra feira qualquer.

Estávamos em finais de Setembro de 1974 e o recinto da “feira” era a pequena “parada” defronte do edifício do QG/CTIG.

Com efeito, havia muita movimentação de pessoas e bens e o asseio parecia ter sido algo descurado. Notava-se algum nervosismo e pressa em fazer malas. Lembrava o términos de um qualquer período de férias de Agosto no Algarve em que havia necessidade de andar lesto, a fim de se evitar as longas filas de trânsito das estradas algarvias daqueles tempos.

As entradas e saídas do Quartel-General eram constantes e respirava-se, efectivamente, um fim de feira com desfazer de tendas. A grande maioria das Unidades Militares que tinham estado sediadas no interior do território, já tinha regressado à Metrópole e era agora chegado o momento dos últimos “moicanos”, nomeadamente os militares metropolitanos que se encontravam presos na Ilha das Galinhas.
A pequena Ilha das Galinhas, com apenas 50 km² de área é uma das oitenta e oito ilhas que compõem o Arquipélago de Bijagós.

Durante o período colonial funcionou nesta ilha uma prisão, designada por "Colónia Penal e Agrícola da Ilha das Galinhas".
Esta colónia estava destinada, essencialmente, a presos políticos, incluindo elementos do PAIGC, alguns dos quais ali estariam em trânsito para a prisão do Tarrafal (Ilha de Santiago - Cabo Verde).

Os prisioneiros andavam soltos pela ilha e a maioria trabalhava na bolanha (cultivo de arroz) e nas plantações de ananás e mancarra (amendoim) que havia pelo campo.

Nos finais de Setembro de 1974, um desses prisioneiros, militar metropolitano, andava por ali no recinto da “feira” do QG/CTIG a aguardar não se sabia muito bem o quê.
Fazia-se acompanhar por um corpulento macaco-cão que segurava por uma trela de corrente de aço.
Este “prisioneiro à solta” apresentava uma tez bastante avermelhada, indiciando excesso de sol recente (ou algum excesso de aguardente) e trajava de um modo demasiadamente informal para um militar naquele local; camisa, calções e sapatos de ténis militares. Na cabeça, sempre descoberta, ostentava uma farta cabeleira arruivada e encaracolada e, nas pernas e coxas, várias tatuagens “pornográficas” a necessitarem de “bolinha vermelha”.

Era de poucas falas e parecia andar por ali apenas com o intuito de desafiar “altas patentes”, digo eu.

Com efeito, dava-me um certo gozo ver majores, ten-coronéis, coronéis, etc., que entravam ou a saíam do QG, depararem-se com aquela figura acompanhada do “seu animalzinho de estimação” e, pasmados, fitando o “moicano”, receberem em troca um olhar ostensivamente desafiador que os desarmava por completo e os “aconselhava” a prosseguir o seu caminho, o que faziam sem pestanejar.

Com muito custo lá conseguimos chegar à fala com o “moicano” e, segundo recordo, ele aguardava autorização para trazer o “companheiro” para a Metrópole, mas, confrontado com a nossa convicção de que isso não seria possível, logo afirmou que: “então cortava o pescoço ao símio!”

Eram dias de muita rebaldaria e, lá fora, na estrada que passava em frente ao QG/CTIG, era constante o movimento de negros alombando para suas tabancas “troféus de guerra” diversos, tais como: colchões, frigoríficos, aparelhos de ar condicionado, etc.
Alguns capitães conduziam jipes bastante “mal-tratados” que avariavam constantemente e era vê-los a empurrar a “sucata” com a ajuda de um ou outro militar…, imagens vivas do fim do Império Colonial Português.

Uns dias depois é chegada a hora do meu regresso a casa e lá estava no aeroporto de Bissalanca o “moicano”, sem macaco.

Viajou connosco e disse-nos que o tinha matado (??).
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15593: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (13): Um Herói à Minha Porta

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15593: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (13): Um Herói à Minha Porta

1. Em mensagem do dia 8 de Dezembro de 2015, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense da CSJD/QG/CTIG, 1973/74), traz-nos o relato da reacção de um "herói" da Guiné incomodado com a passividade das autoridades metropolitanas.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)

13 - Um Herói à Minha Porta
(bazófia militar)

Como referi anteriormente, eu prestava serviço na CSJD/QG/CTIG - Chefia de Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné, onde, como Furriel Miliciano Amanuense, coadjuvava um Alferes Miliciano na Secção de “Doenças”.
Esta Secção tratava dos processos de doenças, acidentes, ferimentos e mortes (em campanha, em serviço ou em combate) e a minha principal tarefa, para além dos registos, controle e arquivo, era a de verificar se os mesmos estavam devidamente instruídos, isto é; se continham todos os documentos obrigatórios (ficha do militar, testemunhos, relatórios médicos, etc.) e devolvê-los às Unidades instrutoras, se fosse caso disso.

Como devem calcular, durante a minha comissão militar na Guiné, passaram-me pelas mãos inúmeros processos daqueles, proporcionando-me um bom conhecimento do que, oficialmente, sucedeu em muitas das acções em que as NT (nossas tropas) sofreram baixas (ferimentos ou mortes) por acção directa ou indirecta do IN (inimigo – PAIGC).

Sendo o território da Guiné-Bissau muito pequeno (área equivalente ao nosso Alentejo), qualquer “embrulhanço” (ataque IN) sofrido pelas NT, era rapidamente conhecido em Bissau e os respectivos pormenores eram transmitidos facilmente de boca em boca. Contudo, à boa maneira portuguesa onde; “quem conta um conto acrescenta um ponto”, as notícias chegavam quase sempre exageradas, com algumas bravatas e inúmeras baixas à mistura, factos que não eram minimamente confirmados nos processos que, havendo feridos ou mortos, mais tarde me vinham “parar às mãos”.

Num determinado dia em Bissau, constou ter havido um “embrulhanço” às portas da cidade, sofrido por uma qualquer coluna de reabastecimento que dali saíra.
Falava-se então à boca cheia, entre militares, ter sido esse “embrulhanço” fruto de uma acção muito violenta do IN e onde morreram alguns militares e muitos outros ficaram feridos.

Nestes casos mais “mediáticos” eu tinha por hábito registar a notícia no meu “disco duro” e ficar a aguardar os eventuais processos referentes aos feridos e mortos, se os houvesse.
E houve! Não mortos, mas apenas dois ou três feridos ligeiros e os respectivos processos lá me vieram parar às mãos mais tarde e, se bem me lembro, o que afinal acontecera terá sido o seguinte:
Era uma pequena coluna de reabastecimento cujo destino já não me recordo. Lembro-me que na frente seguia um Unimog com milícias, no meio da coluna duas ou três viaturas com a carga e, a fechar, outro Unimog, mas com militares. A data altura rebenta um pneu da viatura da frente, o pessoal atira-se de imediato para o chão e desata a disparar a torto e a direito.

Resumindo: na queda um milícia partiu um pé, outro deslocou um braço e acho que foi só isso que aconteceu…

Passaram-me pelas mãos muitos processos do género, mas também muitos em que os nossos militares foram gravemente feridos ou mortos em circunstâncias horríveis. Muitos deles por falta de assistência, principalmente após a introdução na guerra, por parte do PAIGC, dos misseis Strella, que impediam a Força Aérea de prestar o apoio célere que até aí prestavam às forças terrestres.
Mas havia também muita bazófia e esta julgo que se estendia aos três TO’s (Teatros de Operações); Angola, Moçambique e Guiné e era usada mais frequentemente e provavelmente por quem, naquelas guerras, levou uma vida sossegada.

Um dos militares mais condecorados do Exército Português, o famoso Alferes Graduado Comando e guineense Marcelino da Mata (hoje Tenente-Coronel), embora reconhecidamente um grande guerreiro, exagerava imenso nos relatos das suas façanhas, referindo algumas vezes ter enfrentado e derrotado, com reduzido número de efectivos, um número elevado de elementos IN, verificando-se posteriormente em relatórios oficiais que nem o seu grupo era tão reduzido, nem o grupo IN tão elevado. Por vezes referia também árvores com mais de cem metros de altura [??].

Se mesmo aqueles cujos actos heróicos eram reconhecidos gostavam de acrescentar uns “pontos”, imaginem os outros que nunca se viram na necessidade de dar um tiro.
Recordo-me que, já depois do 25 de Abril e numa das minhas vindas de férias à Metrópole, ter-se passado comigo um pequeno episódio ao qual me lembrei de dar o título de : “Um herói à minha porta”.

Morava eu então na cidade do Porto, na Rua Aníbal Cunha onde, perto da minha residência, estava instalada a DORN do PCP.
Estávamos no mês de Agosto ou princípios de Setembro de 1974 e houve uma tentativa de assalto àquela sede do PCP, com tiros à mistura, pelo que havia dois cordões militares; um junto à Rua da Torrinha e outro junto à Faculdade de Farmácia (portanto, um no início e outro quase no final da rua) para impedir a passagem de pessoas. A mim deixaram-me passar por ser morador, mas fiquei por ali, junto à porta de entrada da minha residência, a ver o evoluir dos acontecimentos.

Acalmados os ânimos e abrandada a segurança, chega-se junto a mim um camarada da Guiné, dali daquelas Unidades Militares perto do QG/CTIG e que por cá se encontrava de férias, ou tinha terminado a comissão (não me recordo) e, acompanhado da respectiva namorada / mulher (?), começa com esta conversa:
- Ó Magro, estes gajos aqui a brincar às guerrinhas! Queria vê-los lá na Guiné, como nós, a aguentar aqueles ‘embrulhanços’!

Claro que não tive coragem para desmascarar o “herói do ar condicionado” junto da namorada, ou mulher, mas aquela narrativa era bem demonstrativa da bazófia que alguns dos nossos camaradas usavam junto de familiares e amigos para se arvorarem em bravos combatentes, ainda que muitos deles não tivessem dado qualquer tirito.

Provavelmente “arrumavam com eles à chapada”!
Nunca se sabe…, ele há “heróis” para tudo…!
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de abril de 2014 Guiné 63/74 - P12928: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (12): Guerra copofónica

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15385: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXII Parte): Outros horários; Contas com os fornecedores; Um mês e meio para o fim; Um Folgado no QG e VAT 69

1. Parte XXII de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 18 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXII

1 - Outros horários 

Em frente às vivendas, meia dúzia de escadas acima, ficava a messe dos oficiais do QG, um edifício também só de um piso, sobre o comprido. À entrada, à esquerda, um pequeno bar, bem fornecido, uísques de todas as marcas, Drambuie e outros licores, Gordon’s, chocolates, tudo o que se podia encontrar de melhor. Os lavabos em frente, urinóis em fila e nos cantos, os espelhos do costume, tudo bem limpo logo pela manhã. A sala das refeições era um salão comprido que dava para muita gente e também para alguns que, nas várias repartições do QG, davam o melhor do seu esforço para que nada faltasse às NT espalhadas pelo território. 
Foi lá que tomou o primeiro pequeno-almoço, ainda não eram 9 horas, depois de duas ou três de sono. 
Depois foi por ali fora, como se alguém o empurrasse, com o Capitão Valente e outros, por entre as palmeiras, no empedrado, relva bem tratada nos lados. 
Entrou no edifício do comando, o capitão à frente com vontade em mostra-lhe as instalações, aqui a secretaria, o 1.º sargento tal, os nossos cabos tal e tal, o 314, soldado amanuense, este gabinete passa a ser seu, os lavabos são aqui, o alferes a olhar para aquele barracão grande, zinco no telhado. Agora vamos à cantina, venha ver o seu pelouro. 
O meu capitão quer mesmo amarrar-me aos copos e às garrafas? 
Tem mesmo que ser, não tenho outra opção, isto não custa nada, a voz amigável do velho capitão, pingalim na mão. 

Por que é que tanta malta, aqui no QG, anda de pingalim, não vejo cavalos em lado nenhum!

Esta cantina está bem montada, tem tudo, quando aqui cheguei esta barraca estava a cair de podre, continuava o Capitão Valente. 
Que ar miserável, precário, como os abarracamentos cobertos a zinco que vira nas Lajes, do tempo da 2.ª Guerra, por fora cinzentos-escuros, por dentro muito mais acolhedores que esta frieza. Parecida com a messe de oficiais, onde tomara há pouco o pequeno-almoço, só nos extremos. 
Vamos, o capitão a mostrar tudo, a caminho outra vez do edifício do comando, tabuleta cá fora que o empreendedor capitão mandara o 314 pregar. 


Nasci no Ribatejo, sem pai ao lado, nunca soube quem foi o responsável, a minha mãe foi sempre de pouco falar, na hora em que morreu estava eu em Angola, andei descalço pelo Cartaxo, aos caídos, uma família de lá a quem devo o que sou, meteu-me na Casa Pia. Sou casapiano com muito orgulho, fui para a tropa e fiz a carreira. Tenho uma tertúlia de amigos no Cartaxo que de vez em quando me mandam uns garrafões dos melhores tintos daquelas redondezas. 
Meu capitão, o senhor está mesmo interessado em que eu tome conta das cantinas? 
Nosso alferes, quantas vezes já lhe disse que sim? 

Para não falar de outros, estava com um problema que ainda não tinha conseguido dar a volta. Não tinha sono às horas de agora, há meses que vivia com outros horários, não eram ao contrário destes, mas quase. Passava pelas brasas aí pela meia-noite, os companheiros de quarto a entrarem àquela hora, acordava, uma espertina contínua, as horas a andar para trás, nunca mais chegavam as 6 ou 7, então sim, um tiro, directo até à uma ou duas da tarde, o pessoal a regressar do serviço da manhã, então ainda de cama, não vens almoçar? Um banho, a caminho da messe, o Capitão Valente cá fora com os compagnons, como lhes chamava, ó nosso alferes, algum problema?

************
 
2 - Contas com os fornecedores 

Começava o dia e o serviço sempre à mesma hora, mais minuto menos minuto. Era quase sempre o primeiro a entrar no edifício do comando da CCS a seguir ao almoço, muito antes do Capitão Valente, aliás quando entrava nunca via lá ninguém. 
Um dia, aí pelas duas da tarde, viu o capitão a entrar e a fazer um esforço danado para não arrotar, o bagaço ainda fresco em cima do almoço parecia tê-lo entupido. Amigavelmente perguntou-lhe se andava com algum problema, não satisfeito com a falta de resposta, voltou a perguntar com cara de pau, depois só com os olhos, o alferes calado a ler-lhe o pensamento, este gajo está mesmo a gozar comigo. Quando arriscou dizer-lhe que tinha dificuldade em dormir à noite arrependeu-se logo. O capitão engasgou-se com os arrotos e, aos soluços, saiu do gabinete a murmurar qualquer coisa como quero lá saber que não acorde a horas! 
Às 5 da tarde como o regulamento dizia, os sargentos, os cabos, o 314, o pessoal todo a sair, até amanhã, e ele ainda às voltas com as existências das cantinas, bares, fornecedores, até se fazer noite. 
Naquele final de dia, ao sair voltou a encontrar-se com o Capitão Valente, depois da cena a seguir ao almoço. 
Nosso alferes, você anda a irritar-me! Tenha paciência, faça um esforço, venha de manhã, isto não é um trabalho em part-time! Diga-me lá, o que lhe devo fazer, o que devo fazer para você entrar a horas? 
Eu, se fosse ao meu capitão mandava-me para a metrópole. Se não pudesse, despachava-me para o mato, um Catió qualquer serve. 
Ouça lá, alferes, você quantos anos tem, 24 ou 25, não? A gozar comigo! Ora olhe para mim, tenho idade para ser seu pai! Olhe para mim, porra, está na frente de um casapiano, sabe o que representa isso? Não sabe! 
Olhe, faça as liquidações aos fornecedores amanhã, à hora que lhe der na gana! À hora que lhe der na gana! 

Na manhã seguinte, eram para aí 7 horas quando passou os olhos pela última página do livro, impresso na Tipografia tal na Amadora aos tantos dias do mês tal e tal, a pé antes que se arrependesse, o chuveiro em cima e o companheiro de quarto a protestar com o barulho, que é que te está a dar, pá, que horas são? 
Porta fora, ar fresco, o pequeno-almoço como já não se lembrava, quando acabou estava a oficialada menos jovem a entrar, o Capitão Valente também, os olhos e os óculos arregalados para ele, pareceu-lhe. 
Bom dia, fresco como uma horta acabada de regar, a caminho do edifício do comando da CCS, a prometer um novo horário. 

O motorista não era como alguns guias no mato, conhecia as voltas todas dos fornecedores, começou por o levar à Ultramarina, parou o jeep e não é que quando põe o pé no chão vê a Teresa a bater com o portão, livros e cadernos na mão. 
A farda amarela de terylene dava muito nas vistas, já não deviam chegar a uma dúzia as que ainda andavam pela Guiné toda, há muito que se usavam as fardas verdes, dos periquitos como lhe chamavam agora. 
Para a frente, a outro fornecedor. Deu a volta até ao último, à Casa Gouveia, entrou, o empregado recebeu, recibos no envelope, porta fora, o empregado cabo-verdiano a chamá-lo, um esquecimento qualquer, a devolução do envelope, um minuto, outro envelope, a pasta de mão a ficar gorda de recibos, este envelope está mais grosso, recibos atrasados, deve ser, deixa arranjar melhor, abriu-o, um maço de notas de 50 pesos. 
Ó senhor, há aqui um equívoco qualquer, não me mandaram receber, só pagar, deve ser engano, outra vez para dentro, uns minutos largos, as caras deles a olhar uns para os outros, um mais graduado a vir ter com ele, nada de especial, senhor alferes, apenas o costume para pequenos arranjos na cantina das praças, o senhor capitão tem conhecimento. Ficaram a olhar um para o outro e para o envelope. Decidiu-se pelos bons-dias, embora para a CCS. 

Esbarrou à entrada com um Capitão Valente diferente, sorridente, então que tal? 
Tem aqui os recibos, meu capitão. 
Deixe isso para depois, junte ao relatório do final do mês. 
Meu capitão, tome conta desta papelada toda, tem para aqui recibos que não são da minha gerência. 
No final da tarde, viu o capitão entrar-lhe pelo gabinete, com explicações sobre procedimentos a seguir, outros costumes também que ainda não conhecia, os recibos que vinham dentro dos envelopes, afinal, traziam todos acompanhamento, uma deferência para com a CCS, arranjos na cantina e tal. Boa tarde, meu capitão. 
Uns dias depois alguém conhecido dele, ouvira o Capitão Valente, na roda dos compagnons, explicar como se metia na ordem um gajo rebelde às horas do regulamento. 

************

3 - Um mês e meio para o fim 

"A partir de hoje faltam-me 41 dias para o fim da comissão. Nunca mais volto cá, nem depois do Cabral se sentar no Palácio. Vou sem saudades desta terra. 
As veleidades de lutar pela Pátria aqui na Guiné ficam cá, deixei de acreditar. E aqui no QG, muito poucos têm coragem de defender a manutenção da guerra, a defesa disto está a limitar-se, é o que se ouve por todo o lado, à contagem dos dias que faltam para se irem embora. Apenas alguns oficiais, superiores sobretudo, fazem o seu papel, insistem na justiça da luta, mas quase ninguém lhes dá ouvidos. Junto deles, alguns dizem que sim como podiam dizer que sim a qualquer outra coisa, quando os vêem de costas mandam-nos à outra parte. E os que chegam, as primeiras coisas que querem saber é como se pode arranjar colocação no QG. Ainda agora chegou e já está a fazer perguntas dessas? Quem é quem, a ver se os papás, familiares ou amigos dão com a chave que lhes abra a porta para passarem o tempo nos corredores do ar condicionado".

Tinham chegado da metrópole há dias, as caras não enganavam. Camaradas da escola militar, todos tenentes, faziam parte da primeira fornada de subalternos que marchavam para o ultramar, um ano como adjuntos dos comandantes de companhia no mato, para depois regressarem à metrópole, formarem companhias e partirem para Angola, Moçambique e Guiné. Era uma boa ideia, parabéns a quem a teve. 
Encontrou-os, cinco à volta de uma mesa na messe do QG, abriram espaço para mais um, os milicianos a passarem pela mesa a olharem para as caras que os recém-chegados costumam trazer. 
Falaram da vida deles, por onde tinham andado, o que tinham feito, queriam saber coisas, como estava a evoluir a situação militar, um a perguntar-lhe pela ilha do Como, é um tal Nino não é? 
Vocês querem mesmo saber a minha opinião? Esta é uma guerra quase só de milicianos. Não só alferes e furriéis, também cabos e soldados apanhados à mão, com a ajuda dos padres, dos tipos das juntas de freguesia, dos regedores, vai-se arrastando, mas é uma questão de tempo, meia dúzia de anos talvez, não muitos mais. Muitos mortos e estropiados depois, o PAIGC vai-se deitar nas camas onde agora dormimos. Sei que é uma chatice, que talvez preferissem ouvir outras coisas, mas é o que vos posso dizer. E desejar-vos sorte! 
As caras deles, vermelhas do calor, sem troco, a olharem uns para os outros. 
Dias depois deixaram de ser vistos na messe. 


Quase todos os finais de tarde passava pela piscina, depois descia até à cidade, passava pelo quiosque do Bento, mexia nos livros, à procura de novidades, levava um ou outro, mais ao seu gosto, As Vinhas da Ira num dia, O Inverno do Nosso Descontentamento dias depois. 
Na esplanada já encontrava poucas caras conhecidas, via muitos militares, mas quase todos com aspecto de recém-chegados, caras vermelhas, a escorrerem suor, à volta de mesas cheias de copos e garrafas de cerveja. 
Ao Hotel Portugal deixara de ir, outros deveriam ter tomado conta daquelas mesas, quando ocasionalmente por lá passava também só via caras novas. 

Num daqueles dias, ao fim da tarde, dirigiu-se para o quarto, cheio de boas intenções, vestir o fato de banho e ir até à piscina. 
Quando abriu a porta viu o Manaças a sair do quarto de banho e um enorme cheiro a desinfectante. 
Ó Manaças, andas a tomar banho em Old Spice? 
Não é Old Spice, é Tabac, é para disfarçar o DDT que tem um cheiro do caraças!  
DDT? Aqui dentro? Eu julgava que o pessoal da desinfestação andava a matar os mosquitos lá fora. DDT para quê? Uma camada de chatos, desde quando? Então e onde? Há quanto tempo andas com isso? Uma semana? É pá vamos mas é ao hospital, eles têm um líquido que tira isso tudo. 
Tu vais mas é agora ao médico, ao hospital militar. 
Porta fora, directo à messe, o Capitão Valente na mesa do costume, os compagnons à volta, ó nosso alferes, ainda bem que apareceu, preciso de falar consigo, no fim de jantar, estou ali pelo bar, apareça.

************
 
4 - Um Folgado no QG 

Chegou-me um alferes da metrópole, da Administração Militar, vem destinado à companhia, é de uma família minha conhecida de há muitos anos. Vem-me mesmo a calhar, e para si também, que está morto por deixar a gerência das cantinas. Vou entregar-lhe a responsabilidade desse serviço. 
Você já teve a sua conta, tem sido um tipo leal, e eu aprecio muito isso, pode crer, tirando aqueles problemas que tivemos no início. Resolvemos bem o assunto, olhe que eu já o dava perdido. Vou deixar o filho da mãe para aí a comer relva, até ganhar flor! Mas sabe como é, não me canso de dizer, casapiano uma vez, casapiano para toda a vida. Eu tenho muita roda, sabe? Olhe, falta-lhe quê, para aí um mês, um mês e meio? Claro que vai ter que fazer, apareça por lá, todos os dias, dê uma ajuda na papelada, umas assinaturas e tal. 
Amanhã convinha que estivesse no edifício do comando aí pelas nove horas para as apresentações, a seguir leva-o ao pessoal das cantinas, vai-lhe passando a escrita, deixe tudo em ordem, ok?

O alferes miliciano da Administração Militar já tinha chegado. Só podia ser aquele militar que estava à porta do barraco do Capitão Valente, o tal edifício do comando. Caqui muito verde, óculos escuros graduados na pele muito branca. 
Mais um de óculos escuros logo pela manhã! 
Então o nosso capitão ainda não chegou, a mão estendida para o ilustre administrativo.
Chama-se Folgado?1 O nome é bom. Está a gostar de Bissau? Nem por isso? Olhe que esta terra tem muitos encantos, os olhos também ajudam. Mas se anda à procura de paisagens encontra-as, bem lindas, fora de Bissau, no mato.
As merdas que tinha ouvido dos outros já estavam entranhadas. Desculpe, Folgado, com estas coisas não se brinca, esqueça.
Passara o dia todo com o alferes, economista recém-licenciado, casado logo a seguir com uma colega, papeis passados à máquina pelo 314, para um e para o outro, assinaturas dos dois, a do capitão por baixo, gerência passada, trespassada, tudo.
Pronto, é tudo, Folgado, felicidades, que a vida lhe corra bem por aqui.

O companheiro de quarto fora ao hospital, foi atendido por um médico de quem nem o nome fixou, mostrou-lhe as partes baixas, milhões de bichinhos, o doutor de óculos e lupa, de longe, mas são chatos, senhor alferes, são chatos mesmo, estes já nasceram com DDT, quanto mais DDT lhes der mais os gajos engordam, ó nosso sargento prepare aí um frasco daquele líquido para os ácaros aqui do nosso alferes, pode subir as calças, o alferes todo envergonhado, nunca se vira em tal achado. Ficou à espera que lho preparassem o líquido, feito de propósito segundo as regras da farmacopeia militar guineense, habituada também a este tipo de ataques. 
É puro, meu alferes, o frasco vai um pouco mais de meio, enche com água, agita bem, para cima e para baixo, deixa assentar a espuma, toma banho primeiro, seca-se com uma toalha, toalha para dentro de um alguidar, não se esqueça. 
Se não quiser queimar a sua roupa, mergulhe-a em água, lençóis, toalha, toda a roupa em que em tocado, com uma boa quantidade deste líquido e deixe-a num tanque ou em alguidares uns dias. O meu alferes toma banho, deixa-se secar, depois passa o líquido diluído em água por toda a zona genital, atrás também, orifícios não, claro, pelas pernas abaixo, deixe-se estar uns dez minutos, vai sentir um ardorzinho, depois banho outra vez, deixe-se estar outros dez minutos com água por todo o lado, fique a secar, eram uma vez esses chatos, vai ver, o alferes a perder o seguimento, cheio de comichões e já sem paciência para tanta minúcia, sim, sim, claro, nosso sargento, é o que vou fazer. 

É pá, estou à rasca, olha para isto, arde-me isto tudo, olha como está a pele, até os pelos caíram todos. Passei a merda do líquido, se calhar mais concentrado que devia, não enchi o frasco de água até acima para ver se fazia mais efeito. 
Mete-te no chuveiro, água a correr, entra pá, lingrinhas, quem te disse que um matemático tem que ser um bom enfermeiro? 
É pá, a água ainda me faz arder mais! 
Quem te mandou sair da água, não é nada de grave, tem calma, levanta-te, vamos ao hospital. O Manaças tremia todo, quase tanto como o Fiat Necker a descer Santa Luzia abaixo, Associação, Palácio, estrada para Brá, a chiar como nunca, agora até esta chocolateira a ganir nas curvas, rectas e tudo, uma grande travagem, o carro virado ao contrário, que classe, a porta do camarada a dar para as escadas do hospital, só faltaram palmas, poeirada e olhos não. 


Meia hora depois o Manaças desceu as escadas com um ar já mais aliviado e entrou no carro. 
Então, estás melhor ou não? Cheiras a pomada! Queres que te leve ao quarto? Eu vou ficar por aqui, como qualquer coisa no Império, uma sandes de queijo, pãozinho acabado de sair do forno, com uma cerveja em cima. Queres vir? 
Manaças, quanto tempo te falta para acabares a comissão, dezasseis meses ainda? Estás a fazer o teu pé-de-meia para quando chegares à metrópole comprares uma bruta máquina, não? Para o teu curso primeiro, a máquina fica para depois. E então, ora conta lá, os alunos das tuas explicações portam-se bem, aprendem com facilidade? 
Interessados, atentos, bom comportamento, vontade de aprender, não estão ali para brincar, é como quisessem aproveitar um tempo que nunca tiveram. 
Não, não é o caso de serem explicações, de terem que pagar, tenho até dois alunos a quem nem estou a levar nada. Vi que não era fácil eles pagarem, disse-lhes para pagarem quando pudessem. 
Não, não me apercebo de animosidade contra nós, não lhes vejo ódio, sinto-os até amigáveis, há qualquer coisa entre mim e eles, talvez um espaço que ainda não consegui estreitar. Nunca abordei o assunto da guerra com eles, mas penso que não lhes será difícil perceber o que penso. 
Falaram do ambiente da metrópole e muito de Coimbra. Manaças, o companheiro de quarto, tinha vindo de férias há dois meses, estava a juntar dinheiro para ir outra vez, queria ir para a Figueira entre Julho e Agosto, passar as férias ao sol e ao vento, com a namorada, colega dele em Coimbra. 
Gostas dela? 
Nem me fales! 
E não tiveste vergonha de andar para aí a apanhar chatos? 
É pá, não me fales mais nisso, até me sinto fraco! 
Pois deves estar, falta-te peso, milhões de chatos a menos, para aí um quilo, não? 
Sei lá, a gaja meteu-me a camada que viste e deu-me de brinde um escarepe, já viste? 
A brincarem um com o outro, acabaram a rir-se, duas sandes no meio de outras tantas cervejas. 
Sabes como é, desde que vim de férias, sem ver o padeiro, as bajudas que vão aos quartos de Santa Luzia buscar a roupa para lavar, todo o bicho careta se mete com elas, ganharam tanta ou mais resistência que os meus chatos, dali nunca levei nada. 
Uma noite da semana passada, fui até ao Hotel Portugal, estive lá a beber umas cervejas, meti-me num táxi, é pá nunca na tua vida contes isto a alguém, ouviste? 
Disse ao taxista que me apetecia dar uma volta para espairecer, o gajo meteu pelo Cupilão, quase ninguém àquela hora naquelas vielas, até tive receio, veio-me à cabeça aquela história que se conta dos dois gajos que apareceram com as gargantas cortadas, o taxista saiu, voltou passado um bocado, disse-me que eram 20 pesos2, que ela estava à minha espera.
Entrei um pouco desconfiado, olha pá, esqueci-me de tudo quando a vi na cama, de pernas dobradas, de barriga para cima, só com uma camisa de noite curtinha, nunca tinha visto tanto. Tinha ao lado dela na cama um bebé e no chão de terra andavam galinhas e um porco a passear, vê lá tu!
Chatos, escarepe de brinde, galinhas e porcos na assistência, 20 pesos para o taxista. Misérias, Manaças, confissão amanhã na Sé!
Volta à praça, o Palácio do Governador Schulz com as luzes apagadas, direcção ao QG. 
____________

Notas: 
1 - Nome fictício 
2 - Equivalente a 20$00 (vinte escudos) da Metrópole 

************ 

5 - Vat 69 

Os Homens de guerra de F. Ponthier, de Estalinegrado às terras da Argélia e de Marrocos, o reencontro de dois homens de armas na mão, 35 pesos. Uma agulha no Palheiro do J. Salinger, um jovem burguês expulso de casa a vagabundear por N.Y., drama da juventude, 35 pesos. A Morte do Cavalinho do Bazin, o duelo entre a mãe e o filho pequeno, uma perseguição implacável, a triste conclusão dessa luta, uma recordação da Teresa. O Escândalo Profumo, de três jornalistas, 40 pesos. A Sentença, de M. Gregor, a história da violação de uma jovem de 16 anos por um grupo de soldados americanos, numa cidade alemã ocupada. Chegar é já em si bastante, de José da Câmara Leme, uma série de contos que interligados são histórias de meia dúzia de homens de guerra, mercenários da Legião Estrangeira, passadas na guerra da Argélia, 35 pesos. Uns atrás dos outros, marchava tudo, a boa média a manter-se. 
Começava normalmente pela uma ou duas, os dois comparsas a assobiarem de olhos fechados, o Manaças de papo para o ar, a boca escancarada, é por causa deste corneto, dizia ele. Por aí fora, até às 6 ou 7, o corpo sem posição, braços dormentes, livro no chão, acordava logo, com os barulhos, não podia ficar, metia-se no chuveiro, meio esquisito a sair para o dia alto a caminho da CCS do Capitão Valente. 
À saída da messe encontrou o Manaças com os dois companheiros, então, queres vir dar uma volta, anda daí, meteram-se no carro, janelas abertas, a descer devagar a avenida até à cidade, e de repente todos à gargalhada com a história das aventuras no Cupilon de uma figura militar importante do QG. Uma história descoberta na cama de uma menina, a satisfazer também as necessidades de um camarada mais falador. 
Vamos comer um gelado, o mais periquito e mais calado também para os outros. 
Mesmo bons, é uma casa nova de uma senhora cabo-verdiana, abriu há pouco tempo. 
Este gajo ainda agora chegou e já conhece mais que ele, vai longe! Para onde? 
Benfica, por aí, uma rua para cima, umas escadinhas até à vivenda, uma varanda aberta para a rua, três ou quatro mesas, cadeiras à volta, muita frequência. 
Uma taça de gelado para cada, copo de água a acompanhar, olhos para a rua, uma sirene de ambulância ao longe, um dente a doer-lhe logo à primeira colher, uma dor fininha, que chatice, julgava que isto já estava sossegado, eles a quererem conversa, a mão na cara sem saber para quê, é um dente, não? 
A dor parecia que ia embora, ouvia o que estavam a dizer, colher na boca a medo, aí vinha ela outra vez, mão na bochecha para quê? 
Não posso mais, tenho que me ir embora! Espera um pouco, vamos todos. 

O livro a meio, a dor fininha, intermitente passou a corrente contínua, a latejar, parecia que o sacana do dente queria sair da boca, como se também já tivesse cumprido a comissão. Desvairado no quarto de banho a bochechar com uísque. 
Vodka é melhor, não tens aí vodka, pergunta o Manaças. Vat 69 de serviço, boca abaixo pela garrafa, calor no estômago, na cabeça, parece que isto agora vai. Qual vai, qual carapuça, cama fora, desaustinado, camisa e calças num rápido, sapatos sem cordas nem nada, porta fora, onde vais, pá? 
Meteu-se no VW, se a porta de armas não se abre tão depressa, ia o pau e o militar de sentinela, a acelerar pela avenida de Santa Luzia abaixo, não dava mais o desgraçado, nem chiava nem nada, a lembrança do fim da comissão, que se lixe! Nunca ninguém tinha tido uma dor como esta, a boca, cabeça, tudo a latejar. Farmácia perto da Amura, junto à Ultramarina. Olhe saiu agora isto, Optalidon, é uma coisa nova, leve este tubo. 
Quantos tem, doze, acha que dá? 
Vai dar e sobrar, amigo, tome um agora, se não abrandar, tome outro daqui a 4 horas. 
Tem aí água? Foram logo dois pela boca abaixo, carro outra vez, uma festa numa vivenda e eu aqui com esta dor de dentes. 
A festa dos dentes é que não havia maneira de acabar, isto agora vai começar a abrandar, mais devagar pela avenida acima, o sentinela ao encontro, pau da porta de armas a levantar-se, a chave de mansinho na porta, também não valia a pena, ressonavam como uns porcos. A dor é que nada, só se fosse maior. 
Depois desapareceu, adormeceu. Quando acordou, não havia grandes alterações, os dentes doíam menos, mas doíam, sentia-se era um bocado estranho. Sabes que horas são, pá? Cinco, da tarde!

************

Continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 12 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14977: O segredo de... (21): O que custa(va) ser periquito numa terra como a Guiné (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/GG/CTIG)


Messe de Oficiais do Quartel General em Sta. Luzia, hoje transformada em Hotel. Ainda dá para ver parte de uma mangueira das muitas que ladeavam os arruamentos.
Foto e legenda: © António Teixeira (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada Ribeiro Agostinho (ex-Soldado Radiotelefonista / Condutor Auto e Escriturário da CCS/QG/CTIG, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2015:

Boa noite Camarigos
Após vista de olhos, habitualmente diária, acabei de ler a história do António Medina, que me fez lembrar uma passagem também secreta, na época, que vou agora descrever, e que se acham que interessa, podem publicar.

Quando cheguei à Guiné, em rendição individual, desembarquei e fui apresentar-me nos Adidos em Brá.
Na secretaria foi-me dito que a Companhia, à qual ia destinado, tinha regressado à Metrópole havia dois dias (18-08-1968 no UÍGE), estávamos a 20-08-1968.
Então o Sargento da Secretaria perguntou-me se eu tinha carta de condução pois poderia ficar lá como condutor do Comandante, o que eu de imediato aceitei.

Foi preciso ir ao QG, a Santa Luzia, para pedir a minha colocação e lá fomos os dois. Em conversa com o chefe da Secretaria do QG, o Sr. Major Vilas Boas Mouzinho de Albuquerque, apercebendo-se de que eu tinha estado na Secretaria do Comando do RI 6 no Porto, disse que precisava de mim lá e que se arranjaria um condutor para o Sr. Comandante dos Adidos, outro que não eu.
Acabei por cumprir toda a comissão na secretaria do QG, que só foram 16 meses, pois soube contornar os obstáculos, como manda a tropa, desenrascando-me da melhor forma, mas isso contarei noutra oportunidade. Agora vamos ao tal segredo.

Um belo dia estava eu à porta da Secretaria, no corredor do QG, quando ia para entrar e vejo chegar, pela porta principal, um periquito (camuflado novinho ainda sem lavagem) cheio de pompa.
Fiquei ali parado a vê-lo passar cheio de cagança e reparo que era Capitão. Eu que trabalhava sem boina, fui ocupar o meu lugar na secretária, num gabinete só meu, com vista para a parada e refeitórios da CCS e da PM, por trás do balcão onde trabalhavam outros colegas que atendiam quem vinha do corredor.

Ainda não me tinha sentado quando ouço perguntar pelo soldado que estava há pouco ali à porta, pensei logo de quem se tratava, do periquito, pois eu não lhe bati a pala.
O Sargento que chefiava a parte do balcão, chama-me e eu apareço por trás da parede divisória dando de frente com o Sr. Capitão, que de pronto dispara:
- Oh pá, não me conheces? Não me respeitas?

Eu, já em sentido, peço-lhe desculpa e digo-lhe a todo o momento estamos em contacto com patentes superiores às nossas e é normal proceder assim.
Ele virou-me as costas a remoer qualquer coisa e foi-se.
Retomei o meu trabalho, que era o registo de toda a correspondência que entrava no QG, à excepção da Secreta, que era tratada pelo meu chefe directo, o Sr Major Mouzinho de Albuquerque, do qual tenho saudade e de quem gostaria de saber, pois me despedi dele com um grande abraço, deixando-o a chorar. Era da Póvoa de Varzim, mas não mais soube dele.

Estava eu a retomar o trabalho no registo de correspondência e de novo ouço a perguntar algo ao balcão, e o Sargento indica que é ali atrás que deve dirigir-se. Aparece-me outra vez, de repente, o periquito. Desta feita para me perguntar se eu tinha alguma correspondência relativa a ele próprio. Perguntei-lhe o nome e respondi-lhe que não tinha nada relacionado com ele, ao que ele me pergunta como é que eu sabia. Eu explico-lhe que normalmente fixo o que escrevo e com aquele nome não tinha passado lá nada. Ele replica que tinha urgência em tratar do assunto e de novo lhe digo que logo que apareça, eu despacho para a repartição a que vier destinada.
Ele lá sai a falar sozinho e eu, de imediato, procuro a correspondência que tenho na secretária e encontro um envelope que era mesmo o que ele queria e escondo-o no fundo da gaveta. Primeiro irei despachar todos os outros e depois vou pensar o que irei fazer com o dele.

Ainda estou a pensar no caso, quando de repente me aparece o Major, meu chefe, e o periquito de novo. O Major com todo o respeito, como era seu hábito, cumprimenta-me, pois estava noutro gabinete e pergunta-me se eu não teria a dita correspondência que o nosso Capitão pretendia.
- Meu Major, pois se o nosso Capitão ainda há pouco esteve aqui e eu lhe disse que não tenho.

Lá me recomendou que mal chegasse, despachasse de imediato, pois o nosso Capitão tinha muita urgência.
Mais tarde, com calma, lá analisei o assunto e como não havia registos que me comprometessem até ter chegado ali esse envelope, e como o assunto que já nem sei de que se tratava, não era tão importante, e só me comprometeria se o registasse, não o fiz. Rasguei pura e simplesmente.
O que custa ser periquito numa terra como a Guiné.

Foi caso único aquele rasgar de correspondência, mas atrasei vários casos, de alguns oficiais que entravam por lá dentro e ao deparem com um soldado disparavam com o: Óh pá tens aí este processo, ou esta correspondência, ou isto, ou aquilo?... Se tivesse passado, dizia que já estava em tal repartição. Se não tivesse passado, quando me chegasse às mãos, ficava mais uma ou duas semanas à espera, dependendo de onde me chegasse essa correspondência, se da Província se da Metrópole.

O respeito é muito bonito e alguns não tinham mesmo categoria nenhuma, apesar de terem galões a pesar nas suas responsabilidades. Mas depois dessas entradas desses oficiais, quando viravam costas, normalmente a seguir vinham com a cunha do meu Chefe, ao que eu já estava habituado e ao que sabia dar a volta.

Mais um segredo que fica contado. Façam o que entenderem.

Um abraço a cada um de vós.
Ribeiro Agostinho
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14962: O segredo de... (20): Fernando Brito (1932-2014), ex-1º srgt, CCS/BART 2917 (1970/72): quadro, em "folha de capim", do seu infortunado filho (, morto mais tarde num trágico acidenrte, em 2001), pintado pelo caboverdiano Leão Lopes, em Bambadinca, 1971 (Cláudio Brito, neto)

domingo, 19 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13761: Convívios (637): Convívio da CART 1802 (Nova Sintra, 1987/69)... 27 de Setembro, em Vila Velha de Rodão (Silvério Dias)

1. O nosso camarada Silvério Dias, ex-1º Srg Art Ref, locutor do PFA, Bissau QG/CTIG (1967 a 1976), enviou-nos a seguinte mensagem. 

Camaradas,


Aqui se apresentam alguns dos "heróicos" defensores da camaradagem que uniu os "Pioneiros de Nova Sintra", ex-combatentes da Guiné no período de 1967/69.

Reunião "cultural" em Vila Velha de Ródão e almoço no Restaurante Quinta das Olelas (Retaxo), já no Concelho de Castelo Branco. Foi no dia 27 de Setembro p.p. ...Para mais tarde recordar...



2. Para afixar no "Jornal de Parede" recordamos estes interessantes versos do "senhor Pifas", hoje "poeta todos os dias", Silvério Dias... que “roubamos” no seu blogue: 


COMPANHIA DE ARTº. 1802

"Pioneiros de Nova Sintra"

Quem "houvera" de dizer'!
Na Guiné cumprimos missão.
Honrámos o nosso dever.
Dos tantos, hoje poucos são.

Aqui, com prazer nos juntámos
Para o convívio desejado.
"Pioneiros" nos tornámos,
Em Nova Sintra, o "baptizado"!

Vila Velha, de braços abertos
Nos acolhe e também a elas,
Nossas mulheres, talvez os netos...
Todos almoçaremos nas Olelas!

Bem-vindos companheiros
Que na Guiné foram "primeiros"!

VVR
27 Setembro, 2014
__________

Nota de M.R.:

Vd. Também o poste de:


Vd. último poste da série em:

domingo, 13 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12974: Memórias dos últimos soldados do império (1): “Bate estradas” histórico, escrito à minha filha em 1973, e uma redacção da minha neta, vinte anos depois (Albano Mendes de Matos)

1. O nosso Camarada Albano Mendes de Matos, TCor Art.ª Ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG (Bissau, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

Envio um texto sobre o aerograma, o célebre «bate-estradas», que uma neta escreveu, numa aula de Português, quando aluna no Colégio Maristas, na Parede, para uma possível publicação na «Tabanca».

Abraço.
Albano Mendes de Matos


AEROGRAMA OU "BATE ESTRADAS" > UM DOCUMENTO HISTÓRICO E UMA REDACÇÃO



Em Janeiro de 2003, no Colégio Marista da Parede, onde estudava uma minha neta, uma professora de Português, pediu aos alunos que, no dia dos avós, levassem um objecto histórico que tivesse pertencido ou feito por um avô ou avó.

A minha neta falou com a mãe e esta mostrou-lhe aerogramas que eu lhe tinha enviado da Guiné, onde estive em comissão de serviço de 1972 a 1974, e que guardava numa caixa. A minha neta levou alguns aerogramas para o Colégio Marista, que foram objectos de curiosidade.



Aerograma, o célebre «bate-estradas».

Imagem digitalizada: © Albano Mendes de Matos (2014). Todos os direitos reservados.


A professora disse, então, aos alunos que fizessem uma redacção sobre os objectos que tinham levado.

A minha neta fez a seguinte redacção:


«O AEROGRAMA

No baú das recordações, encontrei uma caixinha de cartão muito bonita. A caixinha foi carinhosamente forrada com um papel brilhante enfeitado com grinaldas de flores, anjinhos e corações. Abri-a, curiosa, e lá dentro um laço de seda azul apertava um montinho de cartas amarelas. Escolhi uma, mirei-a de frente e no verso.

Dentro de um rectângulo, no canto superior esquerdo, li: “O transporte deste aerograma é uma oferta da TAP aos soldados de Portugal.” Então, percebi que a cartinha amarela se chamava aerograma. Foi escrito pelo meu avô para a minha mãe. E fiquei a saber que o meu avô tinha sido um soldado de Portugal!

Investiguei um pouco e fiz montanhas de perguntas sobre os simpáticos aerogramas.

Descobri que através deles os “soldados de Portugal” comunicavam com os familiares e os amigos. Antigamente, não existiam telemóveis, nem Internet e poucas pessoas tinham telefone em casa. Por isso, quando se estava longe, escreviam-se muitas cartas, neste caso, aerogramas. O avô, nessa época, encontrava-se em comissão militar, na Guiné-Bissau. Esteve lá dois anos e, durante esse tempo, só veio à Metrópole (Portugal) quatro vezes. Assim, longe, enviava muitas cartas, aerogramas e postais.

Os aerogramas tinham uma alcunha, contou-me o avô. Eram os “bate-estradas” porque chegavam a todo o lado onde estivessem soldados. Imagino que naquela época, visto do céu, o nosso país devia ser amarelo, pois eram tantos os aerogramas que voavam de um lado para o outro e eram tantos os soldados que estavam na guerra!

Ser militar devia ser muito doloroso! A avó confessou-me que, sempre que recebia uma carta do avô, fixava a data e pensava:“Pelo menos neste dia estavas vivo e de saúde; hoje, já não sei se estás bem.”

Também fiquei a saber que quem inventou os aerogramas foi o Movimento Nacional Feminino. Era um movimento de senhoras que apoiavam os militares do Ultramar.

Entretanto, pedi autorização ao meu avô para ler publicamente algumas das suas palavras»:

"Bissau, 25 de Setembro de 1973

"Querida Rita

"Como vais de saúde? Bem disposta?

"Tens trabalhado muito? Olha que a escola está quase a chegar e este ano já é mais difícil. (...)

"Aqui, vai tudo na mesma, só mais cansado e aborrecido. Enganei-me no emprego. (...)

"Muitos beijos do teu pai

"E assina."

Passados dezanove anos: nasci.

Passados mais onze anos: estou aqui a contar esta história.»
Lúcia Maria Matos Carreira

2. Comentário de do editor MR:

Fica aqui o desafio ao nosso último grã-tabanqueiro, nº 652, para abrir o "baú" das suas recordações e continuar a partilhar, connosco histórias e memórias do seu/nosso tempo... Recorde-se que ele terá sido o último militar português a vaguear pelas ruas de Bissau, na noite de 13 para 14 de outubro de 1974, antes de apanhar o último avião para Lisboa. Eu, "pira de Mansoa", também estou nesta lista dos últimos soldados do império, tendo regressado em 15 de Outubro de 1974, na última viagem do T/T Uíge, com as últimas tropas portuguesas que estiveram no CTIG.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12920: Tabanca Grande (431): Albano Mendes de Matos, ten cor art ref, GA 7 e QG/CTIG (Bissau, 1972/74), grã-tabanqueiro nº 652

1. Mensagem de 13 do corrente, enviada pelo Albano Matos: 



Luís Graça

Tenho muito gosto em integrar a «Tabanca Grande». Logo que possível, vou enviar um apontamento sobre o Caderno de Poesias «POILÃO», que organizei e fiz, na Guiné, publicado de forma artesanal pelo Grupo Desportivo e Cultural do Banco Nacional Ultramarino.
 
Tenho contactos com Mário de Oliveira, do restaurante o «Ninho» e com o meu amigo Silvério Pires Dias, do PIFAS e da Emissora da Guiné.

Abraço.

Albano Mendes de Matos

2. Comentário de L.G.:

Aqui fica uma resenha biográfica, respigada da Net e completada com elementos informativos do nosso blogue, sobre o novo grã-tabanqueiro, que se vai sentar, à sombra do nosso poiulão, no lugar nº 652, ao lado do seu amigo e  camarada  Silvério Dias:

(i)  Nasceu em Castelo Novo, Fundão, em 1932,

(ii) É tenente-coronel do Exército na reforma, com várias comissões de serviço durante a Guerra Colonial: 

Angola (Grupo Art 157 / BArt 147, 1961/63); 

Angola (BArt 1469/ CArt 1469, 1965/68; 

Guiné (GA 7 e QG/CTIG - Secção de Milicias e Chefe de Contabilidade, 1972/74);

(iii) Na Guiné, a par das tarefas militares, organizou festivais de poesia e representações teatrais, bem como os «Cadernos de Poesias POILÃO», com autores guineenses e portugueses;

(iv) Já em Angola, havia publicado,  em 1973, o caderno de contos africanos «Jangadeiro», dos quais foram apreendidos 300 exemplares pela PIDE/DGS;

(v) É também licenciado em Antropologia Cultural e Social e mestre em Ciências Antropológicas;

(vi) Foi professor na Universidade Moderna;

(vii) Estreou-se no romance em 2008, com a obra «A Casa Grande» (Prémio Literário Aquilino Ribeiro).

Mandei ao Albano o convite para integrar a Tabanca Grande, convite que ele aceitou de bom grado. È também o nosso apreço pelos contributos que o Albano já deu para a preservação e divulgação da nossa(s) memória(s) da Guiné...

A partir de agora, passamos a tratar-nos por tu, de acordo com as nossas regras de convívio, e como de resto se impõe entre camaradas do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.  Sê bem vindo, Albano. E vê se mandas uma foto atual.

Um alfabravo. Luís Graça

__________________

Nota do editor:

quinta-feira, 13 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12831: Historiografia da presença portuguesa em África (47): O dia em que saiu o último soldado português, de Bissau: 13 ou 14 de outubro de 1974 ? (Albano Mendes de Matos / Luís Gonçalves Vaz)

Ten Albano Mendes de Matos, CA/CTIG, 1973
1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Albano Matos, com dataa de 1 do corrente;

Assunto - Último dia da Guiné: datas

Caro Amigo Luís Graça,


Num comentário de Luís Gonçalves Vaz sobre a data de saída da Guiné num escrito meu, queria informar o senhor que,  nos meus documentos de matrícula,  consta que saí de Bissau em 14 de Outubro de 1974 e cheguei a Lisboa no mesmo dia.

O último avião saiu pelas 01H30M do dia 14. Logo, tudo o que descrevo se passa no dia 13 de Outubro de 1974. A não ser que a data nos meus documentos esteja errada. Eu dependia do pai do Sr Luis Vaz, Chefe do Estado-Maior, que, creio, que no dia 13 já não esteve no Quartel General, de onde eu saí no dia 13,pelas 13H00.

Albano Mendes de Matos
Tenente-Coronel Chefe de Contabilidade do CA/CTIG


Luis Gonçalves Vaz
2. Mensagem, de 2 do corrente, do Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande e filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74),  a quem dei conhecimento do teor da mensagem acima:

Olá, Luís Graça:

Obrigado pela tua atenção em me enviares a informação. Acabei de responder, e pelos vistos eu "troquei a hora, não os dias", a saber:

Caro sr Tenente-Coronel Mendes Matos:

Peço-lhe desculpa, pois só ontem fui informado deste seu post por um e-mail do Editor Luís Graça. Agradeço-lhe se ter dignado vir aqui repor a verdade da data/hora (já vi que troquei a data/hora do último embarque no cais marítimo com o grupo data/hora do último voo), que julga ser a correta.

Não vou nem quero opor-me à sua data de 13 ou 14 de Outubro,quando refere no seu artigo, afinal trata-se do depoimento de um dos "protagonistas deste momento histórico" que, como tal, merece toda a minha credibilidade. Mas gostaria de o informar que "oficialmente" no Relatório que possuo,elaborado pela 2ª Rep do QG e autenticado pelo sr. Major Tito Capela, na página 46, apresenta para o último embarque aéreo das nossas tropas, o grupo "Data/Hora" de 140230OUT, como o embarque do CMDT CHEFE e elementos do QG.

"Informa também" que foi no dia 13 de Outubro que o QG/St Luzia foi entregue, logo o seu artigo está de acordo com este Relatório "Secreto", de que já dei aqui visibilidade.

Agora apercebo-me que "troquei" o grupo Data/Hora, e além de  pedir desculpa a todos pela minha incorreção,quero também aqui corrigir esta hora, como tal onde digo "..Às 23 horas do dia 14 de Outubro de 1974, estes militares serão os últimos a retirar da Guiné..." quero emendar para: "Às 2h30min do dia 14 de Outubro de 1974, estes militares serão os últimos a retirar da Guiné (por via aérea ...).

Estive a reler o Relatório, e no mesmo o que parece uma "incoerência", pois o grupo Data/hora do último embarque (aéreo) é 140230OUT, e o grupo data/hora da entrega do QG/CCFAG na Fortaleza da Amura, é 142300OUT, não o será, pois  o último embarque de tropas portuguesas, foi por via marítima em LDGs (no cais de embarque) pelas 23h00min (142300OUT), executado diretamente da fortaleza da AMURA para os navio UIGE e NIASSA, como tal devem ter sido estes os militares que entregaram o QG da AMURA (??).

No entanto, e segundo este mesmo Relatório, estes navios só saíram da zona em 151000OUT, em suma terão sido estes os últimos a abandonar este TO. Agora se assim não foi, então será esta minha fonte que não foi fiel no que concerne às datas (terá alguma gralha ou mesmo erro nestes grupos Data/Hora ?). Relativamente aos registos do meu pai, só encontrei a referência que seria no dia 14, a saber:

Bissau, 5 de Outubro de 1974

"... Dia de trabalho derivado da antecipação da nossa saída em 15 deste mês (pois passou para 14 de Outubro) ...

 Coronel Henrique Gonçalves Vaz
(Chefe do Estado-Maior do CTIG)

Entretanto, também registou na sua agenda de CEM, a antecipação de vários voos de cargas .... A pressão era "muito grande" para que abandonássemos aquele TO.

Grande Abraço

Luís Gonçalves Vaz

3. Comentário de L.G.:

O nosso camarada Albano Mendes de Matos, nascido em Castelo Novo, Fundão, em 1932,  é também antropópologo, poeta e romancista com obra premiada ("A Casa Grande", 2008).

Aqui fica uma resenha biográfica, respigada da Net e completada com elementos informativos do nosso blogue (*)

(i) Tenente-coronel do Exército na reforma, com várias comissões de serviço durante a Guerra Colonial: Angola  (Grupo Art 157 / BArt 147, 1961/63; Angola  (BArt 1469/ CArt 1469, 1965/68; Guiné (GA 7 e QG/CTIG - Secção de Milicias e Chefe de Contabilidade, 1972/74),.

(ii) é  também licenciado em Antropologia Cultural e Social e mestre em Ciências Antropológicas;

(iii) foi professor na Universidade Moderna;

(iv) na Guiné, a par das tarefas militares, organizou festivais de poesia e representações teatrais, bem como os «Cadernos de Poesias POILÃO», com autores guineenses e portugueses;

(v) publicou, em 1973, em Angola, o caderno de contos africanos «Jangadeiro», dos quais foram apreendidos 300 exemplares pela PIDE/DGS;

(vi) estreou-se no romance em 2008, com a obra «A Casa Grande», que recebeu o Prémio Literário Aquilino Ribeiro.

Acabei de mandar ao Albano Matos o seguinte mail:

Albano: Vou fazer um poste com as vossas duas mensagens, a do Albano e do Luís... E vou convidar o Albano para integrar a nossa Tabanca Grande... É mais do que justo até pelos contributos que já deu para a preservação e divulgação da nossa(s) memória(s) da Guiné... Memórias e afetos... Espero que diga que sim... E que aceite, A partir de então, o tratamento é por tu, de acordo com as nossas regras de convívio, e como de resto se impõe entre camaradas do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Um alfabravo. Luís....(**)


PS - Temos cá vários camaradas da BAC

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/BAC%201

___________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

 9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2827: Os últimos a saírem: um estrangeiro numa nova Nação (Ten Cor Albano Mendes de Matos)

(...) Um pouco depois das 11 horas da noite [, do 13 de Outubro de 1974], dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.

Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.

Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:
- Meu tenente, onde deixo o jipe?
– Atira-o para uma barreira!

Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.

No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.

Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.

Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto. (...) 

domingo, 18 de dezembro de 2005

Guiné 63/74 - P366: O meu Natal de 1966 no QG, em Bissau (Virgínio Briote)

O meu último Natal na Guiné, no QG. Um luxo!
vb

NATAL DE 1966,

Virgínio Briote

Uma eternidade aquele mês de Dezembro, nunca mais acabava.

Arrumações no quarto, ordem na papelada, cópias dos relatórios das operações, as centenas de fotos. Estas são para rasgar, isto onde foi, quem é este gajo, apontamentos ao lado, nomes dos camaradas atrás, e depois disto, para onde fui? Anotava o que se lembrava, folhas e folhas, dois anos quase, ali à sua frente, parecia um romance.

O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, pensa em mim. E uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, sem ideias, nem sabia como começar.

Quero estar contigo, só contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, nem sei o que devo escrever.

O sono leve, intermitente, e as malas, o que vou levar? Uma chega, leva tudo. Já pensaste no que vais levar, o que é que vai contigo? Os livros, todos, uma muda de roupa civil, as coisas do quarto de banho. Os sapatos civis e militares, o camuflado, tudo no saco da tropa. Levaria vestida a farda amarela, a que envergara aquele tempo todo, as botas de cabedal e a boina. O resto fica tudo.

O despertar súbito, outra vez muito acordado, uma sensação de medo a aparecer, a tomar conta dele, uma vontade irreprimível de fugir, os pés fora da cama, o que vou fazer, para onde, a tremer como se estivesse com febre. No quarto de banho, frente ao espelho, este sou eu com as mãos na cara, isto vai passar, só falta um mês.

Tinha que ser, numa daquelas tardes entrou no cemitério. Foi directo à campa do Silva. As diligências que fizeram, até o dinheiro que receberam pelas armas que capturaram, reverteu todo para as urnas de chumbo, para as trasladações dos corpos dos camaradas mortos. Tantos trabalhos que ele e o capitão Leão tinham feito e o Silva ainda aqui está, à minha frente.

António Maria Alves da Silva. Nasceu em 17 de Janeiro de 1942. Faleceu em 6 de Março de 1966. Sem flores, sem nada.

A menina Teresa? É noutro lado. Lá em baixo, aquela do meio, sim, à beira daquela palmeira. Uma tampa de mármore. “A saudade dos teus Pais e Amigos. Maria Teresa Campos Correia. Nasceu na Praia em 27 de Maio de 1947. Faleceu em Bissau em 23 de Outubro de 1966. Paz à sua alma”. Um jarro simples com flores frescas.

A guerra via-a de muito longe, como se fosse um assunto que já não lhe dizia respeito. Mas mesmo assim, às vezes não podia esquivar-se aos relatos dos recém-chegados do mato.

A nova companhia de comandos andava por Tite. Raramente saíam com efectivos inferiores a dois grupos. Entretanto chegara outra companhia, de um jovem capitão, um tipo simpático. Então como é isto aqui, fresco, não? As zonas da guerrilha são todas iguais ou há diferenças? Antes que me esqueça, cumprimentos do Manilha, quando chegar a Lisboa contacte-o.
Praticamente inexpugnável o Sul, as NT confinadas aos aquartelamentos. Madina do Boé, um inferno, o Diem-Biem-Phu dos portugueses, o capitão de lá a dizer que só viviam dentro dos abrigos, cavados no solo, suportados por troncos e enchidos com cimento em barda. Passavam os dias a verem a vida em frente por entre os buracos. Abastecidos do ar, os aviões faziam malabarismos para não serem atingidos. Madina vai ser o primeiro aquartelamento a ser tomado pelo PAIGC, era um assunto arrumado, ouvia-se em muitas bocas.

Um Allouette mergulhou numa bolanha, na zona de Tite, não se sabia se fora atingido ou se fora um acidente. Foi montada uma autêntica batalha, daquelas que se vêem nos filmes. Fuzileiros e comandos a protegerem o heli, sob fogo cerrado. O coronel da base aérea, ele próprio a pilotar um Dakota teve que se impor para meter os páras dentro do avião. Largou-os na zona da batalha, os pára-quedas abriram-se e toda a gente parou o fogo, não acreditas, Gil?

Um mecânico francês que estava em Bissau a fazer a manutenção dos helis foi transportado para o local com o equipamento todo para ver se conseguia tirar o aparelho das águas da bolanha. E não é que conseguiu, pá?

O norte em brasa, Barro, Bigene, Guidage, o Oio nem se fala, o leste ainda assim-assim!

Natal à porta, as montras de Bissau mudaram a cara, muitos militares nas ruas a entrarem e a saírem das lojas. Devia estar a fazer um ano andava por Barro e Bigene, foi um fim de ano diferente.

No QG organizaram uma ceia de natal como devia ser, bacalhau e os doces todos. Estava lá toda a oficialada superior, Brigadeiro incluído.

Beberam todos muito bem, alguns demais, como acontece sempre. Depois, ao ar livre, viram um filme italiano, com o Gianni Morandi, um cantor novo que estava na moda, a fazer o papel principal dentro da farda de um soldado, o que é que havia de ser? Um apaixonado, aquele Morandi, tirava canções atrás de canções. Tantas que a maralha lá de trás, entusiasmada, começou a acompanhar a música, primeiro muito baixo, depois já se sabe como é, outros entusiastas também, até o Morandi se virou para eles, a cantar de lágrimas nos olhos. Uns alferes de merda, uns comunistóides, que é para isso que agora servem as universidades, dizia um major do cága-e-tosse voltado lá para trás!

No outro dia, corria pelas mesas da messe uma história meio esquisita. Lá para as tantas, um noctívago quando ia a entrar para o quarto, ouviu música de samba a vir da porta entreaberta de uma das vivendas. Quis dançar também, empurrou a porta e fechou-a logo. Deve ter visto mal, uns gajos todos nus a dançarem encostados uns aos outros, pode lá ser?

Se calhar o líquido que tinha nos olhos era álcool! Mas eu vi, o fulano encostado ao sicrano, o beltrano amarrado ao… Estás a ver, nem te lembras dos nomes dos gajos!