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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20499: Historiografia da presença portuguesa em África (193): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
O Governador Velez Caroço encontrou a Guiné pacificada, ou quase (haverá operações na região Bijagó, ainda insurgente), traz carta branca para pôr cobro à moleza e à corrupção, encontra uma resistência feroz da classe mercantil de Bolama, o Governo de Lisboa está sem dinheiro, a crise financeira na Guiné é acentuada, Velez Caroço toma medidas, verga um antigo Secretário-Geral da Colónia, consegue ultrapassar a questão dos cambiais, caminha sempre em cima da lâmina, reorganiza serviços, lança-se no fomento em plena crise fiduciária.
É o nome sonante da governação republicana na Guiné, bem merecia um estudo mais aturado à sua obra.

Um abraço do
Mário


Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (2)

Beja Santos

A I República não ofereceu grandes vultos governativos na Guiné. A figura excecional, que se irá projetar no trabalho dos governadores seguintes, como Leite Magalhães, Carvalho Viegas ou Ricardo Sá Monteiro, é Jorge Velez Caroço, teve dimensão político-cultural e entusiasmo para deixar obra. Apanhou a paz, tinha suficiente prestígio político (era Senador) para atacar interesses instalados de gente inescrupulosa. E o mais relevante deste relatório, correspondente ao seu primeiro ano de gerência, foi a dinâmica introduzida. Já se falou do saneamento das contas, do seu pensamento sobre a política indígena, vamos continuar. Reorganizou o seu gabinete e a secretaria do Governo.
É neste momento que ele vai afrontar um tabu, a questão cabo-verdiana, veja-se o que ele envia ao Ministro das Colónias:
“Sabido é por todos os funcionários que por aqui têm transitado, que, devido à falta de instrução nesta colónia, não podem os nativos preencher os lugares que vagam nas diferentes repartições, até mesmo os de simples amanuenses. A Província encontrava-se enxameada de empregados recrutados em Cabo Verde e que, com raras exceções, as suas habilitações e competências não iam além das manifestadas pelos nativos. São raros os cabo-verdianos que falam português. A linguagem por eles empregada, até mesmo no desempenho dos seus cargos oficiais, é esse estropiado dialeto que nos envergonha aos olhos dos estrangeiros. O português ouve-se falar em Bolama e Bissau por alguns funcionários e comerciantes portugueses. Os próprios estrangeiros que forçados pela sua vida comercial se vêm obrigados a aprender a língua da colónia aprendem e falam o crioulo, julgando falar o português! A obra de desnacionalização desta colónia era lenta, mas era contínua e persistente. É preciso que não se continue a dizer que a Guiné Portuguesa é uma colónia de Cabo Verde. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres, e assim, prestando-lhe esse serviço, cumprimos ao mesmo tempo um dever patriótico ligando esta região pelo comunismo de ideias, pela conjugação de interesses e pelo amor e veneração à mesma bandeira, à terra onde nascemos e que para todos, europeus e coloniais, será sem distinções mãe extremosa”.

Velez Caroço estudara os dossiês à exaustão, daí a profundidade com que fala dos serviços da Fazenda, da política aduaneira, do movimento comercial e marítimo, dos serviços de fomento da Província, cuidando até ao pormenor do que se tinha feito nas obras públicas, satisfeito com os serviços novos, com a radiotelegrafia, registando o que se estava a fazer na saúde e nos serviços da Marinha, lembrando que se concluíra o edifício do Observatório Meteorológico em Bolama, bem como a modernização que puder imprimir aos serviços militares.
Dá igualmente conta das explorações agrícolas, é interessante o que ele nos diz:
“As explorações agrícolas mais importantes da Província são as existentes na região de Bambadinca-Bafatá. Entre elas destaca-se a dirigida pela Companhia de Fomento Nacional, que na sua exploração tem já empregado quantiosas somas. Todas estas explorações são dignas de protecção, pois do seu desenvolvimento resultarão fatalmente grandes benefícios para a Província, ensinamento para o indígena, familiarizando com os modernos engenhos, aperfeiçoadas alfaias agrícolas, emprego de tracção animal, aperfeiçoamento da pecuária, modernos processos de sementeira de arroz, cana-sacarina, milho, etc., serração de madeiras, construção de carros – tanto na parte referente a obra de carpintaria como na relativa a ferragens”.

Debruça-se sobre a pecuária, os correios e telégrafos, o orçamento colonial, exalta a honestidade de funcionários cumpridores, enumera o muito que há a fazer no setor da saúde; mais adiante, analisa os serviços da Marinha e os melhoramentos que prevê mandar executar.
E deixa um retrato duríssimo sobre os serviços militares:
“Encontrei as unidades militares da Província em condições de não poderem prestar qualquer serviço de valia, caso a elas tivéssemos de recorrer, quer para a manutenção da ordem nas populações urbanas, quer as tivéssemos de empregar para dominar qualquer revolta do gentio.
Os soldados não têm disciplina, não tinham instrução militar, nem mesmo sabiam fazer uso da arma que lhes estava distribuída. Mantinham-se as aparências, porque os indígenas são respeitadores da autoridade do branco e isto, para olhos profanos, podia dar a ilusão de haver disciplina militar. Afinal, eles distinguiam-se dos outros indígenas, simplesmente porque vestiam uma farda de caqui, em geral mal feita e deselegante.
Impunha-se uma nova organização acabando com a caótica composição das companhias mistas de infantaria e artilharia que ninguém sabe para que serviam, desdobravam-se em uma companhia de artilharia de guarnição com sede em Bissau, e em duas companhias de infantaria indígena, uma com sede em Bissau, outra em Bolama.
A instrução dos quadros tem sido lamentavelmente descurada. As exigências de competência e aptidão dos postos inferiores das tropas coloniais são mínimas, e assim chega-se a dar ingresso no quadro dos oficiais sem cultura correspondente às exigências do meio social em que vão viver e sem preparação militar para o desempenho das múltiplas obrigações hoje impostas a um oficial”.

É minucioso, daí a relevante importância que tem este documento para o estudo da Guiné no arranque da década de 1920: dá-nos conta do funcionamento da Imprensa Nacional, do municipalismo, do ensino, do fomento, até do pessoal administrativo das circunscrições. No final do seu relatório apensa documentos e dados estatísticos de grande importância. Junta-se uma imagem curiosa do croqui da Guiné Portuguesa em 1922, a ser verdade o que ali se escreve sobre etnias dominantes, os Fulas-Pretos, os Fulas-Forros e os Futa-Fulas ocupariam quase metade do território, Beafadas e Nalus a zona do Quinara e do Tombali, a norte temos Banhuns, Baiotes, Cassangas e depois os Mandingas, até chegar ao Oio, os Papel predominariam em Bissau. É um croqui interessante mas há sérias dúvidas que tenha validade para estudos etnológicos e até antropológicos.


Recomenda-se a todos os interessados por estudos desta natureza que releiam a obra “A Presença Portuguesa na Guiné, História política e militar, 1878-1926”, por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016, a partir da páginas 762, estão ali dados extremamente úteis sobre a governação de Velez Caroço, o relato das hostilidades que encontrou, destaca-se este relatório, as operações militares empreendidas nos Bijagós, a ação de fomento por ele empreendida.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20467: Historiografia da presença portuguesa em África (192): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20467: Historiografia da presença portuguesa em África (192): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
O destino tem destas coisas, surpreende-nos com imprevistos muitos amáveis. Fui levar umas lembranças a um amigo meu, alfarrabista em Tomar e ele mostrou-me este relatório que ainda vinha com as páginas fechadas, oferecido por Velez Caroço em 12 de março de 1925 ao Dr. Lino Netto.
É um documento de leitura obrigatória, este Tenente-Coronel de Infantaria, politicamente prestigiado, confrontou-se com muita gente hostil em Bolama, desde a primeira hora, não faltaram intrigas em Lisboa, impávido e sereno abriu estradas, estabeleceu alianças étnicas, saneou as contas orçamentais, trazia um projeto e, contra ventos e marés, foi-lhe dando execução.
É de uma grande importância o que escreve, e daí os parágrafos que aqui se transcrevem, eloquentes quanto ao governador e ao estado da colónia.

Um abraço do
Mário


Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (1)

Beja Santos

Velez Caroço está no topo da lista dos mais importantes governadores da Guiné e há razões de sobra para a sua alta classificação: foi desenvolvimentista intransigente, o seu nome é evocado pela honestidade, pelos princípios republicanos, pela boa equipa que constituiu com os administradores, pela boa gestão económica e financeira num período crítico, já que a seguir à I Guerra a Guiné definhou; e pela organização dos serviços e da administração, no rescaldo da pacificação adotou um sistema de alianças e conivências étnicas que se veio a solidificar nas governações seguintes, e que tanta importância teve aquando da luta pela independência.

Só que este relatório introduz elementos novos para a leitura da vida política, económica, para o relacionamento entre o Governo e as populações indígenas, traz uma nova luz entre o contencioso dos comerciantes de Bolama e o governador pelas razões das lutas entre os republicanos e os democratas que aqui tiveram pálido reflexo e pelo princípio do definhamento de Bolama face à crescente notoriedade da dinâmica de Bissau. Tudo conjugado, vale a pena, para não dizer que é obrigatório, atender ao que ele escreve no seu primeiro relatório para o Ministro das Colónias.
Veja-se logo no seu arranque:
“Para a elaboração deste relatório dispensarei os informes do Secretário do Governo da Província, visto que o relatório apresentado por este funcionário além de considerações descabidas contém pontos de vista sobre administração e política indígena, perfeitamente opostos ao ensinamento que tenho tirado do exercício do meu cargo. Este funcionário está sendo sindicado. A seu tempo lhe será feita justiça”.
Informa o ministro de que encontrou más vontades e resistência, o que lhe veio fortalecer o ânimo, procurou fazer o saneamento da Província. “Eram acusados altos funcionários. Forçoso era começar por cima, para me revestir daquele prestígio e autoridade que deve manter e inspirar sempre aquele que é chamado a administrar justiça. Esta minha orientação foi recebida como uma orientação de guerra por parte daqueles que iam ser atingidos. Fui mal correspondido por alguns. Acobertados com sorrisos de amabilidade e aquiescência, com afirmações de lealdade e promessas da mais desinteressada cooperação, fomentavam na sombra a intriga; informavam-me com deslealdade, já de ânimo preconcebido de mais tarde se aproveitarem das fraquezas e dos erros que porventura pudesse cometer, orientado por tais informes – que eram recebidos de boa-fé e sem suspeições, – e fazerem então uma campanha que tivesse como consequência – ou ter de arrepiar caminho e servilmente me submeter às suas imposições, passando o governador a ser governado, ou ser aniquilado, embarcando pressurosamente para a metrópole no primeiro transporte disponível”.

Revela o entendimento que tem sobre uma política indígena num período em que se extinguiram desacatos. Sabe que se estão a desenvolver más vontades e calúnias daqueles que querem fazer fortuna rápida à custa da exploração indígena, era o enriquecimento grande e depressa sem atender ao progresso moral e material da colónia. Fala sobre o trabalho imposto como uma necessidade de vida, um princípio social de incontestável moralidade.
E desenvolve o seu pensamento:
“Para as necessidades actuais da Província da Guiné, pode dizer-se que o indígena produz o bastante, mas a verdade é que isto não basta e há-de acabar um dia. A exportação tem aumentado e muito, mas não tenhamos ilusões, esse aumento é aparente, não foi devido a um correspondente desenvolvimento agrícola; não, foi devido ao desenvolvimento comercial. O indígena tem facilidade na venda da mancarra, do coconote, do arroz, do milho, da borracha, da cera, etc., etc. E daí a ilusão de que todo esse movimento comercial é acompanhado pelo correspondente desenvolvimento agrícola. Chegará a época em que a produção estagnará. Para evitar que esta previsão fatídica se realize, só há um remédio – fomentar a Província, desenvolver-lhe a agricultura.
É preciso trabalhar. Se o indígena não quer trabalhar voluntariamente, seja compelido a fazê-lo. Faça-se um regulamento estabelecendo-se um mínimo de trabalho para cada indivíduo. Rodeie-se esse regulamento de todas as cautelas e seguranças para evitar abusos, mas tenhamos também em vista que se o indígena que trabalha precisa de protecção fiscalizadora aos actos do patrão, por sua vez este precisa também de ser defendido da falta de cumprimento das obrigações do indígena trabalhador. E só assim haverá confiança”.

Espraia-se sobre a situação económica e financeira da Guiné, lembrando a falta de estradas, a incúria da instrução, pois não havia edifícios escolares, não esquece a tremenda crise económica, e o ter agido comprando casas para os funcionários, aumentando-lhes os vencimentos, remodelando as pautas alfandegárias, suprimindo a receita dos direitos de importação do álcool, procurando proteger os produtos colhidos na Guiné, manifesta a intenção de transformar o imposto de palhota em imposto de capitação. Sumariza o que está a fazer: na criação das escolas, nas obras locais do Pidjiquiti, nas pontes, hospitais, edifícios para as repartições, instalação de um museu, e tudo levava a supor que o orçamento de 1922-23 iria fechar com saldo positivo.

Encontrou a magistratura judicial numa lástima, procurou dar-lhe dignidade:
“Tem a Guiné duas comarcas – Bolama e Bissau. Existindo só uma – a de Bolama – esteve sempre a Guiné sem magistrados de carreira. Os julgamentos fazem-se com interinos, com substitutos, com provisórios, com delegados e advogados ad hoc, etc.. Se o recrutamento dos interinos para uma era difícil, é intuitivo que para as duas é quase impossível. Só assim se explica que ainda há pouco tempo se tivesse proposto para advogado ad hoc um indivíduo condenado em audiência pública por ferimentos e furto.
Na comarca de Bolama, logo após a minha chegada à Província, fui informado de que estava exercendo as funções de juiz um funcionário que tinha no mesmo juízo um processo pendente. Esse processo era de pouca importância, mas apesar disso chamei esse funcionário e aconselhei-o a que pedisse a sua demissão”. 
E escreve esperançado: 
“Ainda havemos de chegar um dia em que os juízes hão-de deixar de considerar a Guiné simplesmente como uma estação de passagem para o gozo de licenças graciosas (tão caras estão custando à Província) e hão-de para aqui vir com firmes propósitos de trabalhar também um pouco para a disciplina e morigeração dos costumes da Guiné”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20440: Historiografia da presença portuguesa em África (191): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (6): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2): "Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Iniciou-se este punhado de reflexões com uma carta endereçada ao Governador da Guiné a propósito de um questionário etnográfico onde se conferia larga importância ao conhecimento da vida dos indígenas, a sua vida material e a sua constituição moral, conhecê-lo para educá-lo nos bons valores da cultura ocidental, a preponderante.
Nesse mesmo ano surgiu a obra a que agora se faz referência, surgida no início do Estado Novo, maturada durante a Ditadura Nacional, apologia do Império Português, mas onde se fala do perigo espanhol, da indiferença do povo para os valores imperiais, são inquiridas personalidades vincadamente nacionalistas, integralistas, militares das campanhas de África, um grande empresário e até um republicano, que é zurrado pelo seu comentário ao militarismo nacionalista. Seja como for, levantava-se a consciência imperial, pobretes na Europa, mas com vasto Império, imensas riquezas para explorar, o sonho de muitos era levantar a agricultura e desbravar tais riquezas pelas várias partidas do mundo.
Do racismo se falará mais adiante.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2)

Beja Santos

Em 1934, em circunstâncias completamente diferentes àquelas em que o Capitão Vellez Caroço se dirigiu ao Governador da Guiné para justificar o seu questionário etnográfico para melhor se conhecerem as minúcias da vida material dos indígenas, para melhor se exercer a ação colonizadora e de soberania na Guiné, a Imprensa Nacional publica um inquérito organizado por Augusto da Costa entre 1926 e 1933, o inquérito aparecera no Jornal do Comércio e das Colónias, tinham sido ouvidos Afonso Lopes Vieira, Pequito Rebelo, Fernando Pessoa, Bento Carqueja, Sousa Costa, Marcello Caetano, José Francisco da Silva, Fernando Garcia, João Ameal, João de Almeida, Paiva Couceiro, João de Azevedo Coutinho, Hipólito Raposo, Fidelino de Figueiredo, Alberto de Monsaraz, Américo Chaves de Almeida.
Augusto da Costa era inequivocamente nacionalista e tradicionalista, as suas preocupações aqui expressas prendem-se com o Império, o que fazer dele quando potências poderosas como o III Reich e o Reino Unido procuram entendimento para retalhar Angola e Moçambique, Augusto da Costa insiste que Portugal é a terceira potência colonial do mundo, que o país permanece indiferente a todas estas potencialidades e verbera:  
“Aos intelectuais portugueses se impõe o dever sagrado de levantar as forças morais do país, acordando a consciência nacional. A imprensa, não há que esconde-lo, tem graves responsabilidades: porque os jornais e jornalistas são capazes de manter o espírito público em tensão durante um mês seguido, dando-lhe todas as minúcias e particularidades de um crime misterioso, são os mesmos que se negam, pelo cansaço, a manter no público esse mesmo estado de espírito, quando se trata de mostrar os perigos que ameaçam as colónias portuguesas”.

O escritor e jornalista endereçou a um conjunto de intelectuais um pequeno questionário, com as seguintes fórmulas:
- sim ou não Portugal, potência de primeira grandeza na Renascença, guarda em si a vitalidade necessária para manter no futuro, na nova Renascença que há de seguir-se à Idade Média que atravessamos, o lugar de uma grande potência?;
- sim ou não Portugal, sendo a terceira potência colonial, tem todos os direitos a ser considerada uma grande potência europeia?;
- sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a razão de ser como povo independente no concerto europeu?;
- sim ou não o moral da nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade coletiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza nacional, e na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?

Como se depreenderá, até porque este inquérito se espraiou por diferentes anos compulsivos da Ditadura Nacional e na alvorada do Estado Novo, para além da diversa substância das respostas houve perspetivas políticas de diferente valência. Entenda-se o que Augusto da Costa pretendia: a Idade Média eram as trevas que atravessaram a monarquia constitucional e o republicanismo, gente que acreditava no parlamentarismo e liberalismo de má memória, o Renascimento aparecera com a Ditadura Nacional, havia perigos, a Espanha republicana ali ao lado, esperanças como o Acto Colonial de 1931, mas tudo imerso em dúvidas. A escolha dos intelectuais não fora arbitrária. Marcello Caetano não era indicado como assessor de Salazar mas como diretor da revista Ordem Nova, há muito boa gente que tem esquecido que o último líder do Estado Novo era simpatizante da extremíssima-direita. Fernando Pessoa acreditara em Sidónio Pais e deu apoio à Ditadura, no início; alguns deles, como Pequito Rebelo ou Hipólito Raposo, vinham do integralismo; foram questionados militares das campanhas de África como o Contra-Almirante José Francisco da Silva, Brigadeiro João de Almeida e Paiva Couceiro. Pequito Rebelo considerava que Portugal era uma nação agrária e colonial, o seu futuro estava na agricultura e nas colónias, Fernando Pessoa terá respondido em dia não, torcia o nariz à grande potência, deve ter arreliado quem o questionava respondendo coisas assim:  
“Portugal grande potência construtiva, Portugal Império – aqui, sim, é que, através de grandeza e de decadência, se revela o nosso instinto, e se mantém a nossa tradição. Nas mais negras horas da nossa decadência, prosseguiu, sobretudo no Brasil, a nossa acção imperial, pela colonização; e foi nessas mesmas horas que em nós nasceu o sonho sebastianista, em que a ideia do Império Português atinge o estado religioso”.

 Fernando Pessoa, por Almada Negreiros

A generalidade dos inquiridos não admite a hipótese da perda das colónias. Há quem aproveite para bater em tudo o que se passou depois da revolução francesa, veja-se o Dr. Sousa Costa:  

“Quanto à anarquia, essa explica-se pelas ideias falsas que os enciclopedistas, os seus filhos, netos e todos os outros herdeiros ou parentes espirituais inocularam nas grandes massas urbanas e proletárias. São essas massas, como se sabe, numa época de centralização absolutista e de activo industrialismo, quem constitui as elites populares. Para onde elas se inclinam, para aí se inclina a balança do equilíbrio social”.
O mesmo deponente, questionado se seríamos uma grande potência europeia, responde assim:  
“O exemplo da Holanda é flagrante, e constitui a melhor resposta a dar àqueles que consideram Portugal pequeno demais para tão grande território. A nossa pequenez continental serviria de justificação a todos os ataques, a todas as ambições que pairam sobre as nossas colónias. Porque não atacam a Bélgica? Porque não atacam a Holanda? Simplesmente porque nem a Holanda nem a Bélgica dão as provas de abandono que nós damos à nossa melhor riqueza; porque tanto a Bélgica como a Holanda cuidam seriamente da sua riqueza, não dando motivos a que os outros as apodem de povos perdulários. Porque tanto a Bélgica como a Holanda administram a sua fortuna. Se nós entrássemos pelo mesmo caminho, se tanto interna como externamente administrássemos as riquezas que ainda nos restam de um património já largamente desfalcado, não seria a nossa pequenez continental argumento que servisse para alguém justificar os seus instintos de rapina”.

 O jovem Marcello Caetano

Marcello Caetano também parecia estar em dia não, respondendo que o moral da nação podia ser levantado por uma intensa propaganda de forma a criar uma mentalidade coletiva, deu resposta terminante:  

“Acredito pouco na formação de uma mentalidade colectiva, irmã-gémea da soberania nacional e da opinião pública. Quanto a mim, o remédio é este: a par da propaganda intensa, a acção dirigida no intuito de alcançar o poder para uma minoria inteligente realizar aquilo que vagamente a grande massa poderá apoiar, mas não compreender. Eu não espero nada dos políticos. Espero, sim, de uma política nobre servida por homens dignos. Livro, revista,… Acho-os úteis para chamar a atenção dos homens de escola para o problema. Mas que, os que já se interessam por ele há muito e para ele acharam soluções, busquem pô-las em prática no ambiente novo em que vivemos, sem as peias da politiquice e os embaraços da verborreia estéril do Parlamento”.

A verdadeira voz dissonante foi a de Fidelino de Figueiredo, desdramatizou a perda das colónias, se tal acontecesse não atingiria as garantias da nossa independência, e escreveu:  
“Há muitos países na Europa sem os prestígios históricos e sem a individualidade de Portugal, que gozam tranquilamente a sua independência, sem possuírem colónias e sem as terem perdido”.
E enquanto é perguntado sobre uma política de grandeza nacional, o antigo diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa não esconde ser adverso do militarismo político, o que deixou Augusto da Costa encabulado, ainda por cima Fidelino atacara como gato a bofe a censura prévia, Augusto da Costa sentiu-se no dever de apoiar o 28 de Maio e lançar as suas estocadas à Rússia e à Espanha republicana.

O livro com base no inquérito de Augusto da Costa fazia a apologia do Império Português, apresentava-nos como imperialistas, havia que reabilitar o orgulho do vasto império, estabelecer os nossos deveres imperiais, rever a nossa fraca cultura histórica e lembrar a superfície total do Império Português, distribuída pelas sete partidas do mundo, um império com missão espiritual, se o nosso patriotismo era vibrante, havia que dar definição e consciência ao instinto vital da raça, moldar a opinião pública, dar-lhe consciência imperial, definir novas leis para o império, o Dr. Salazar já resolvera o problema financeiro e fizera aprovar em 1931 o Acto Colonial: Portugal, depois de ter sido a pequena casa lusitana, transformou-se, por força da fatalidade histórica e geográfica, num vasto império. O Estado Novo terá ouvido Augusto da Costa, nesse mesmo ano de 1934 realiza-se a I Exposição Colonial no Porto, lá esteve presente a Guiné, com pompa e circunstância. O Império tomara conta das elites, de alguns bancos e de alguns empresários. A Agência Geral das Colónias começou a trabalhar a todo o vapor. Mas não se desenvolveu a tal mentalidade coletiva que Augusto da Costa aspirava. E quando se desenvolveu, bastantes anos mais tarde, foi para mandar gente empobrecida para os colonatos, o novo Eldorado.

Do racismo que se irá aparelhar ao colonialismo, falaremos mais adiante.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1): Questionário Etnográfico elaborado pelo Capitão Vellez Caroço (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20332: Historiografia da Presença Portuguesa em África (184): O modelo (Maria Barba) e o fotógrafo (José Bacelar Bebiano)... A propósito de uma morna "imortal"...Resta saber quem era o "senhor tenente Serra"...evocado na letra "Mária Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más...

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (183): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1): Questionário Etnográfico elaborado pelo Capitão Vellez Caroço (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
A ideia de que constituía um imperativo civilizar gente primitiva, o gentio, aproximando-a dos preceitos ocidentais, dos seus valores políticos e religiosos, tem uma longa história na cultura portuguesa. Era um gentio bárbaro ou selvático, devia ser ajudado a melhorar as práticas agrícolas, a trabalhar nas obras públicas mas também para empresas. Se aprendesse a ler e escrever, podia vir a ser assimilado.
Na hora da luta armada, foi revogada toda esta legislação e camuflada a matriz racial e ideológica de um longo processo colonial. O que neste texto se apresenta é uma breve síntese da ascensão do racismo como evidência científica para depois o podermos comparar com as práticas raciais do nosso colonialismo. O Estado Novo tudo fez para negar haver racismo, mas ele existia no Oriente, mesmo em Goa, em Angola, Moçambique, São Tomé e Guiné, com as especificidades da escravatura mascarada, do trabalho forçado, da distinção entre civilizado, assimilado e gentio.
Talvez um racismo de brandos costumes, mas inequivocamente organizado na discriminação, no preconceito, na descategorização.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1)

Beja Santos

Em 1934, o Capitão de Infantaria Jorge Frederico Torres Vellez Caroço, então Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas na Guiné, dirige-se ao Governador Carvalho Viegas, a quem envia um questionário etnográfico que estará na base no seu trabalho, publicado muito mais tarde, no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa sobre o régulo Monjur, do Gabú:
“Excelência
Os factos e as características observadas na vida do indígena e na sua maneira de ser, e na necessidade absoluta e urgente de procurar metódica e progressivamente aproximá-lo da nossa civilização, com a garantia indispensável dos seus direitos, é verdade, mas tendendo sempre para um melhor e mais completo aperfeiçoamento, determinaram a conveniência de criar para ele uma ordem jurídica adaptável à sua mentalidade ‘primitiva’, às suas faculdades psíquicas, aos seus sentimentos e que se harmonize, tanto quanto possível, com o respeito pelos seus usos e costumes, cuja transformação se deve efectuar lenta e gradualmente, evitando assim possíveis perturbações que tanto têm de inúteis como de prejudiciais.
De resto, são estas as directrizes gerais estabelecidas pelo Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, são estes os princípios preconizados pelo Acto Colonial, que mandam proceder à codificação dos usos e costumes dos indígenas.
Claro está, que não é possível nesta colónia, onde a diversidade de componentes étnicos singulariza a sua população nativa, elaborar um código único regulador de quaisquer das normas referidas.
A diferenciação absoluta de usos e costumes entre muitas das raças que a povoam, obriga ao desdobramento de tantos códigos quantos forem as étnicas caracterizadamente diferentes.
Para este desidrato, porém, são necessários elementos básicos – que nos faltam – em que o conhecimento das minúcias da vida material do indígena, ande a par com a ciência da sua constituição moral. Desta falta de elementos para, sobre eles se assentarem normas que regulem a acção colonizadora e de soberania tendentes à evolução dos povos para um melhor Estado social, repito, sem ataques bruscos à sua insuficiência psíquica e arraiados costumes primitivos, surge a necessidade de elaboração de um Questionário Etnográfico”.



É conveniente recordar que desde os primórdios da República os sucessivos governadores exigiam aos administradores documentos desta natureza que possibilitassem o conhecimento, nas diferentes localidades, de quais os grupos étnicos, a sua identidade e caraterísticas e dados antropológicos, a vida familiar, os direitos de propriedade, as práticas agrícolas, a natureza do comércio e indústria, os tipos de habitação e de alimentação e algo mais. Não era pois original o que o Capitão Vellez Caroço propunha, tratava-se porventura de uma atualização, tais dados existiam em poder da administração. O que para o caso mais interessante se põe à reflexão tem a ver com algo que serviu de eixo veiculador da proposta civilizadora que tem os seus antecedentes na monarquia constitucional, que passa pela I República e que se dinamiza com o Estado Novo: a missão civilizadora face às insuficiências detetadas nos indígenas, havia que proceder à radiografia o mais detalhada quanto possível, e daí este questionário etnográfico que o Capitão Vellez Caroço viu aprovado pelo Governador Carvalho Viegas.

O que nos remete para essa tumultuosa questão do racismo e do colonialismo à maneira portuguesa. Pois vamos ao significado dos termos.
Faz-se recurso ao que em “Racismos, Das Cruzadas ao Século XX”, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2015, Francisco Bethencourt escreve sobre racismo:
“O racismo atribui um único conjunto de traços físicos e/ou mentais reais ou imaginários a grupos étnicos específicos, acreditando que essas caraterísticas são transmitidas de geração em geração. Os grupos étnicos são considerados inferiores ou divergentes da norma representada pelo grupo de referência, justificando assim a discriminação ou a segregação. O racismo tem como alvo não só os grupos étnicos considerados inferiores, mas também os grupos considerados concorrentes, como os judeus, os muçulmanos ou os arménios.
O racismo distingue-se do etnocentrismo no sentido em que não se refere de forma abstrata a bairros ou comunidades outras desprezadas ou temidas; regra geral aplica-se a grupos com quem a comunidade de referência lida – grupos esses considerados associados a regras de sangue ou de descendência. O etnocentrismo pode expressar desprezo por outra comunidade, mas aceita a inclusão de indivíduos dessa comunidade, ao passo que o racismo considera que o sangue afeta todos os elementos da comunidade em causa”.

Voltaremos a este importantíssimo trabalho de Francisco Bethencourt noutra ocasião, ao longo da sua investigação falará do contexto histórico do racismo na Antiguidade Clássica, invasões bárbaras e expansão muçulmana; aludirá à expansão ultramarina europeia, as sociedades coloniais desde os séculos XVI e XIX; mais adiante analisará as teorias das raças e depois as políticas raciais em vários impérios.
O pontapé de saída para esta análise, indispensável na cultura portuguesa, não é saber, como ponto de partida, se fomos colonialistas ferozes ou se praticámos uma espécie de convivência multirracial que nos distinguiu supinamente de todas as outras potências colonialistas, a despeito do trabalho forçado, da escravatura ou da exploração económica. Racismo sempre existiu e a investigação de Francisco Bethencourt é bem elucidativa: esmagamento e escravidão do vencido, também por ser inferior; a discussão, em atmosfera religiosa, se os negros e os índios tinham alma: a própria democracia grega estava confinada a um conjunto de eleitos, os demais era ralé desprezível, etc.

No século XIX, a obra de Darwin veio criar evidência científica quanto a uma evolução da espécie humana, A Origem das Espécies, por interpretações adulteradas irá situar-se como matriz das raças puras e das raças inferiores. Em “A Evolução do Racismo, Diferenças humanas e uso e abuso da Ciência”, Círculo de Leitores, 1996, Pat Shipman enfatiza como esta obra de Darwin gerou uma falange de simpatizantes e de grandes opositores, a Igreja de Inglaterra foi contundente e o nome de Darwin era ridicularizado por ligar o homem ao macaco. Na Alemanha, as ideias de Darwin foram repescadas por Ernst Haeckel, um cientista que irá ter grande peso nas doutrinas arianas. Recorde-se que em território alemão estavam a surgir exemplares do homem de Neandertal, os fósseis começavam a ser datados, os dados expostos na Bíblia contestados. Haeckel, inconscientemente, lançava as bases das doutrinas raciais. “Para ele, uma raça era não o que os biólogos sabem hoje que é: uma subdivisão regional de qualquer espécie; uma população local vagamente unida por uma tendência para compartilhar particulares variações de fenótipo ou genótipo. Uma raça era uma nacionalidade, uma tribo ou mesmo um grupo étnico culturalmente mas não geneticamente diferente dos seus vizinhos. Haeckel nunca escondeu a sua convicção de que a lei biológica devia governar a sociedade humana. Acreditava piamente que as raças eram tão diferentes umas das outras como as espécies de animais, o que parecia ser um suporte científico para o racismo descarado”. E não se escusou a dizer que a raça alemã devia estar sujeita a um poder autoritário e ser dominada pela eugenia.

Dentro das adulterações do darwinismo, falava-se na sobrevivência dos mais aptos, quem sobrevivia controlava os outros. Ideias que ganharam simpatias nos EUA. A guerra civil deixara a população perturbada, vulneravelmente consciente das diferenças entre as raças, a partir de então declaradas legalmente iguais, e das crescentes disparidades entre classes sociais e económicas. Do darwinismo enquanto processo evolucionista passou-se para o darwinismo social, ganhou popularidade estudar famílias com graves problemas de criminalidade ou alcoolismo. Depois das obras de Mendel, cresceu a simpatia pela eugenia. Foram recolhidos dados sobre a frequência e a distribuição de uma espantosa quantidade de variedades de traças dentro das famílias. Estudos sobre: hermafroditismo, hemofilia, fenda palatina, lábio leporino, dedos curtos ou mais de cinco dedos, surdo-mutismo, demências e deficiências mentais. Passo a passo caminhava-se para um abismo racial. Numa época de grande imigração, alguns cientistas da antropologia insistiam que a política de imigração devia ter como base a história hereditária do indivíduo e da sua família. Noutra dimensão do problema, ganhou também popularidade a ideia de esterilizar deficientes mentais, imbecis e a lei da esterilização começou a ser aprovada. A carga fiscal dos doentes, loucos, indigentes e criminosos pesava fortemente sobre o número cada vez menor dos empregados.

Nos EUA, a esterilização tornou-se mais popular como meio de enfrentar o problema dos criminosos, dos pobres ou dos que passavam por loucos congénitos. A esterilização obrigatória dos internados em instituições era perfeitamente legal. Na Alemanha, o quadro doutrinário era diferente, um forte sentido romântico misturava-se com uma confusa ciência ou racismo, fazia-se a apologia das glórias físicas, morais e intelectuais dos verdadeiros alemães: altos, louros, de olhos azuis, escorreitos camponeses de descendência ariana ou nórdica. Escondeu-se que a raça ariana era uma criação largamente mítica, as pessoas que falavam a língua proto-europeia na base comum de sânscrito, zende, arménio, grego, latim, lituano, eslavónio, alemão, céltico, inglês, francês, e muito mais. Atribuiu-se a origem deste arianismo à região do Ganges, eram os indo-europeus. Procurou-se encontrar um povo hostil, um inimigo mortal da futura raça pura, recaiu sobre o judeu. Atenda-se que a história do antissemitismo da Europa em geral e na Alemanha em particular vem de longa data. Desde a Idade Média que os judeus tinham imensas restrições. Antes do século XIX, era legalmente proibido a um judeu na Alemanha possuir terras ou ocupar cargos públicos. Estava constituído o caldo de cultura que Hitler aproveitou para encontrar como inimigo principal, depois de ter posto nos campos de concentração os dirigentes dos partidos de esquerda, os antissociais, o preconceito e a discriminação atingiam o auge entre europeus, com longuíssima história de fixação no continente. Era a mais gigantesca manifestação racial que se conhecera, levou à matança em massa, era um racismo com categorias distintas daquele que se praticou em África, tinha por detrás projetos políticos muito distintos dos do colonialismo.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20290: Historiografia da presença portuguesa em África (181): Dados Informativos 4, publicação da Agência Geral do Ultramar - Guiné, 1968: Os números da educação e saúde (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P20024: Historiografia da presença portuguesa em África (170): “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Dir-se-á que este livro de Jorge Vellez Caroço é um ensaio eivado de generosidade e patriotismo, bem procura, mediante o que se sabia de antropologia, etnografia e etnologia, dissecar e sumarizar os conhecimentos sobre a História antiga de África, ainda hoje numa completa neblina, fala de um Gabú cuja geografia e evolução histórica está hoje melhor clarificada por Carlos Lopes, como já se referiu anteriormente. E quanto à destituição de Monjur, há hoje outros olhares e é por isso que seguidamente iremos fazer referência a um trabalho dedicado ao regulado do Gabú entre 1910 e 1930, do investigador Eduardo Costa Dias, um outro modo de iluminar a cena e de compreender o poder Fula e a sua aliança com a potência colonial.

Um abraço do
Mário


Monjur, o Gabú e a sua História, por Jorge Vellez Caroço (2)

Beja Santos

Em 1948, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava o trabalho “Monjur, o Gabú e a sua História” por Jorge Vellez Caroço. Jorge Vellez Caroço, filho de Jorge Frederico de Vellez Caroço, Governador da Guiné entre 1921 e 1926, fora diretor de um departamento ligado aos assuntos indígenas, o seu nome aparece num conjunto de relatórios que tiveram a ver com um incidente de uma aeronave francesa que se teria despenhado em chão Felupe, nos anos 1930, esta vasta documentação, bem curiosa por sinal, está a ser estudada pela investigadora Lúcia Bayan, razão pela qual aqui não se faz referência ao seu conteúdo. Diga-se em abono da verdade que o título da obra não corresponde completamente ao conteúdo. Em 1933, no exercício das suas funções, Jorge Vellez Caroço conduziu um inquérito sobre o estado da política indígena na circunscrição civil do Gabú, mexeu em muitos papéis, fez muitas consultas, ouviu populações e consultou mesmo autoridades da África Ocidental Francesa.

Já aqui se fez referência às considerações do autor sobre a Pré-História e a História antiga de África, impérios e reinos, igualmente se falou do Futa-Djalon, do Firdu e Gabú, chegou a hora de falar das diferentes ocupações da região. Primeiro, os Mandingas, que se dispersaram pelo oeste, fala-se da lenda da ocupação Mandinga e também como eram escolhidos e como governaram os régulos Mandingas do Gabú e de novo o autor nos lembra as convulsões no centro originário das etnias que constituem o grupo sudanês, a intensidade da corrente migratória no período dos Almorávidas e durante a ação despótica dos imperadores do Mali, em que os Mandingas e os Soninqués, Bambarás e Fulas se fixaram no terreno. Convém aqui exprimir que mesmo à luz dos conhecimentos atuais ainda se mantém completamente difuso o período de chegada e fixação das famílias Mandingas que se estabeleceram no Gabú. Há referências às famílias de apelido Mané e Sané e as diferentes localidades que fundaram e ocuparam. O Futa-Djalon foi habitado pelos Fulas, sempre instados a pagar impostos aos Mandingas, a prazo criaram-se as condições para lutas sangrentas entre os Fulas do Futa e os Mandingas, são acontecimentos que irão ter lugar entre os fins do século XVIII e a segunda metade do século XIX. Seguiu-se um período de grandes guerras que tiveram o seu epicentro em Béré-Colon, Nhampáio, Cam-Salá e Columbai, o autor descreve com bastante detalhe a tomada de Béré-Colon, os Mandingas regressaram porque os Fulas pouco se demoraram, esta batalha marca o início da queda do poder Mandinga do Gabú. Estes reagem e atacam os Fulas em Nhampáio, segue-se um período de contendas sem vencedor claro. Até que os Fulas convergem um grande exército para conquistar Cam-Salá, que era protegida por uma série de trincheiras e fortes paliçadas, os Mandingas resistiram até à exaustão e depois suicidaram-se quando verificaram não ter mais resistência para combater.

Começara o domínio dos Fulas entre o Gabú e o Forreá. Em capítulo à parte, o autor explana os termos da ocupação Fula, fala de Mamadu Paté, do seu filho Bacar Demba, da guerra entre Fulas e Djolas (Beafadas), depois de Bacar Guidali e de outras figuras de régulos responsáveis pela ocupação definitiva do Gabú. Não esquece de mencionar os Futa-Fulas, então concentrados no território do Boé, quando este território dependia do regulado de Labé. E chegamos finalmente à figura de Monjur, filho de Bacar Guidali. Monjur torna-se uma figura dileta das autoridades portuguesas, o seu nome está indelevelmente ligado aos trabalhos de retificação da fronteira, era governador o Comandante Oliveira Muzanty. Nome prestigiado é confirmado como nome indiscutível para suceder ao régulo Selu, tanto o comandante da circunscrição como o governador da colónia o confirmaram no lugar. Reina durante doze anos, rodeado do maior prestígio, estimado pelo seu povo, a população do Gabú aumentou, é um período sem perturbações e agitações políticas. O régulo cumpre as suas obrigações para com o governo, paga os impostos e participa em todas as operações de pacificação. E depois, veio a contestação, as calúnias, as insídias: que Monjur não tinha direitos para ascender a régulo, argumentação sem pés nem cabeça, mas a contestação alargou-se, Monjur teve que ceder e repartir poder.

É nesta questão que o autor levanta uma questão candente, mais tarde reacesa durante a luta de libertação: o critério da independência das raças. É assunto incómodo para a colonização portuguesa. A era da pacificação, após as operações de Teixeira Pinto, tivera ressonância no Gabú. A independência das raças foi uma pura invenção das autoridades administrativas face à avalanche de pretendentes a chefados, isto quando era política assente a condenação da independência das raças. Em 1927, Monjur é arbitrariamente destituído do seu cargo e deportado para o Corubal, não chegou a partir porque entretanto morreu. Este critério da independência determinou uma transformação radical na organização política do Gabú, desapareceram os chefes de território e deu-se lugar aos chefes de raças, acarretou o êxodo de milhares de indígenas para o território francês. O autor avalia negativamente o comportamento das autoridades administrativas para com o Monjur e a sua obra; anos mais tarde, em 1932, Ponces de Carvalho, então Director dos Assuntos Indígenas explica ao governador que tal política não tinha qualquer sentido, devia-se voltar à situação anterior. E Jorge Vellez Caroço passa em revista o território do regulado do Gabú, a sua origem, os seus chefes e a lista interminável de sucessões. Lista igualmente as guerras de pacificação da Guiné em que Monjur cooperou ao lado de Graça Falcão, Judice Biker, Calvet de Magalhães e Jorge Vellez Caroço. O seu funeral foi um acontecimento memorável, acorreram às cerimónias milhares de indígenas da Guiné Portuguesa, da Guiné Francesa e da Gâmbia, formaram-se alas de indígenas de Gabú-Sara até ao Ôco, numa extensão de três quilómetros, e o corpo de Monjur foi passado de mão em mão até à sua derradeira morada.


E a obra de Vellez Caroço termina assim:
“Foi Monjur um grande régulo, que bem soube administrar e dirigir o seu povo e como se diz entre os indígenas – nunca em chão português houve ou poderá haver um chefe que igualá-lo possa em valor, grandeza e prestígio.
E, se assim não fora – como refere o Administrador Francisco Artur Mendes – não lhe teria sido possível uma unidade política, que ameaçou por mais de uma vez romper-se ruidosamente através do seu longo governo.
Como merecida e justa homenagem a Monjur, podia construir-se um mausoléu modesto, mas decente, no lugar onde hoje existe o seu túmulo pobre, entregue apenas ao cuidado dos seus descendentes; e sobre a lápide que o encimar, inscreverem-se os seus serviços e as palavras e os louvores que bem traduzam o reconhecimento da Mãe Pátria agradecida”.

A Comissão Executiva que aprovou a publicação do livro dizendo, no entanto, que quanto ao conteúdo e às conclusões, eram inteiramente alheios. “É exclusivamente a opinião do autor, em que de modo algum nos envolvemos”.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20008: Historiografia da presença portuguesa em África (168): “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18203: Notas de leitura (1031): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (17) (Mário Beja Santos)


Escola Missionária de Bolama


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Este documento é intencionalmente extenso, não conheço melhor comprovante, relatório tão meticuloso e protesto quase virulento, como este.
Trata-se de responder ao governador do BNU sobre uma alegada revolta de Felupes que ocorreu em Novembro de 1933, fruto da queda de um avião francês, que se presumia ter acontecido na região de Susana. O que aqui se expõe,  demonstra de forma eloquente que era precária a posição portuguesa em toda aquela região, cambiava a violência, não se pagava o imposto de palhota, cortavam-se cabeças por tudo e por nada. É um episódio tão impressionante que o historiador René Pélissier lhe dedicará inusitada atenção, como veremos mais adiante.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (17)

Beja Santos

O ano de 1933 vai ser dominado pela chamada revolta dos Felupes. Em 10 de Novembro desse ano o BNU sede envia o seguinte telegrama:

“Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe se o gentio se revoltou – telegrafe se ordem restabelecida quem e como foi sufocada alteração. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando. Este telegrama é absolutamente confidencial para toda e qualquer pessoa seja como for a sua categoria.

A 13, por carta talhada, o gerente de Bissau escreve ao governador relativamente à revolta dos Felupes:  

“Há cerca de três meses levantou voo de Dakar, com destino a Ziguinchor, um avião francês tripulado pelo aviador Gatti, acompanhado de um observador.

Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira Norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo.

O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa acompanhadas de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dakar, para fazerem, por sua vez, novas pesquisas.

O administrador da circunscrição não consentiu nessas diligências sem autorização superior, e essa equipa francesa foi a Bolama conferenciar com o governador, regressando ao posto de Susana acompanhada pelo ajudante de campo deste.

Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião e dois ou três dias depois seguia também para Susana o Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Capitão Velez Caroço. Afirma-se que este oficial, depois de iniciadas novas pesquisas, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes (gentio da região) que desde sempre se tem mantido mais ou menos rebelde, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.



No dia seguinte ao da ida daqueles oficiais a Bolama, regressaram a Bissau com um pequeno contingente, e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram dois soldados, ficando vários feridos. O facto foi comunicado ao governador, seguindo imediatamente para o local, com reforços, o Capitão Sinel de Cordes, comandante da polícia. Chegado este a Susana, e posto ao corrente do que se tinha passado, entendeu, e muitíssimo bem, que era preciso castigar energicamente os revoltosos, tanto mais que já o ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a cinco soldados, presumindo-se que outro tanto tivessem feito aos tripulantes do avião desaparecido.

O Capitão Sinel de Cortes veio a Bissau conferenciar com o governador, no dia 4 do corrente, e no dia seguinte regressava a Susana com mais reforços, sendo expedidas ordens para de Bolama virem todos os oficiais e soldados disponíveis que aqui chegaram cerca de meia-noite desse dia, seguindo ato contínuo por via marítima para a região revoltada.

Entretanto, era mandado chamar o nosso [, do BNU,] chefe dos contínuos, Bora Sanhá, alferes de 2ª linha, com bons serviços prestados em anteriores campanhas, para se lhe ordenar que organizasse o mais rapidamente possível um grupo de irregulares Fulas, com o fim de coadjuvarem com as tropas regulares na ação decisiva que o momento impunha contra os Felupes. Poucas horas depois, Bora Sanhá escolhia 100 homens da sua confiança, alguns deles seus antigos companheiros de armas, dos 300 que se lhe ofereceram, depois de armados e municiados, embarcaram para Jufunco (povoação revoltada). Ao mesmo tempo, foram expedidas ordens para em Bambadinca serem mobilizados mais 200 irregulares Fulas, também comandados pelo Tenente de 2.ª Linha Bonco Sanhá, primo de Bora, um dos quais foi a Lisboa o ano passado, à Exposição Industrial.

Corriam os mais desencontrados boatos sobre o que se estava a passar com os Felupes. Dizia-se que aos aviadores desaparecidos tinham sido cortadas as cabeças, operação de especial simpatia dos Felupes, para, depois de descarnadas por elas beberem vinho de palma com sangue de galinha, como manda o ritual.

Tinham sido mortos dois soldados nossos e feridos outros, em combate; foram mandados para a região revoltada, todos os soldados disponíveis, 100 ou 120; mobilizaram-se irregulares, etc; mas as autoridades, guardando uma reserva que nada justifica, a nosso ver, informavam que nada se passava de anormal, que se tratava de um simples caso de polícia! O Capitão Sinel de Cortes assumiu o comando de regulares e irregulares, ao tudo cerca de 400 armas e cinco metralhadoras, começando a bater os revoltosos com a energia que o momento impunha. Os revoltosos, porém, batidos mas não derrotados, refugiavam-se entre pântanos de onde era difícil desalojá-los por falta de artilharia, visto estarem fora do alcance das metralhadoras e espingardas, fazendo pequenos ataques de guerrilhas, dizimando dezenas de auxiliares. A região é muito pantanosa e portanto moroso o avanço das nossas forças.

O governador seguiu para o campo de operações, e durante quatro dias estivemos, em Bissau, sem quaisquer notícias. Sua Excelência regressou a esta cidade em 11, à noite, e no dia seguinte, aproveitando o convite que nos fez para irmos falar, tivemos ocasião de trocar impressões sobre o que se passava com os Felupes.

Disse-nos que, apesar das grandes dificuldades de avanço das nossas tropas, o gentio, desalojado, se tinha posto em fuga, sofrendo importantes baixas; resolvera dar por findas as operações, deixando apenas na região uma pequena força para policiamento, visto que os acontecimentos não tinham a gravidade que se lhes atribuía; que se tratava apenas de um caso de polícia, já solucionado, e que se iniciaria uma política de atração do indígena, que se deve ter refugiado no território francês, criando-se para início dessa política, a circunscrição civil de S. Domingos, que abrangerá toda a região dos Felupes.

Ao senhor Ministro das Colónias devem ter sido prestadas outras informações mais claras e precisas, pois nós julgamos saber que a situação de Susana, conquanto não seja grave, é, todavia, um tanto melindrosa. As nossas tropas, à custa de sacrifícios grandes, têm efetivamente avançado e arrasado todas as povoações por onde têm passado, incendiando as palhotas e destruindo as culturas, dizimando os revoltosos sem contudo os derrotar.

A revolta, que teve início na tabanca (povoação indígena) de Jufunco, estendeu-se a outras povoações, como Egino, Bolor e Lala, engrossando, consequentemente, o número dos rebeldes, que a princípio se calculavam entre 1500 a 2000, número que hoje deve ser muito mais elevado, oferecendo mesmo poucas garantias toda a região dos Felupes. 

A ação das nossas tropas está longe, muito longe mesmo, segundo as informações que temos, de se poder considerar decisiva. Ainda nos últimos dias foi assaltada pelos rebeldes uma camioneta que conduzia auxiliares, escapando, por milagre, o condutor do carro; aos outros foi a todos cortada a cabeça e membros, e os troncos decapitados deixados na estrada, alinhados, numa demonstração de ameaça e requintada selvajaria. As cabeças foram levadas para, consoante o uso, servirem de taças.


Bolama- Interior de uma escola

É curioso notar, e convém não esquecer para melhor se poder aquilatar do caso de polícia em questão, que, até hoje, as nossas tropas não conseguiram ver nem uma mulher nem uma criança. Quer isto dizer que o gentio está perfeitamente decidido a tudo e disposto a combater até ao fim. O gado também desapareceu, na sua quase totalidade, o que não é menos significativo. Só por manifesto desconhecimento dos usos e costumes gentílicos se poderá atribuir significado diferente a estes detalhes. O senhor governador, porém, resolveu, e possivelmente com muito acerto, mandar recolher as tropas em operações, deixando na região revoltada, porventura batida mas não derrotada – não é demais frisá-lo – um destacamento de polícia.

Não desejamos comentar esta medida governamental, porque isso não está na nossa índole, nem temos fundamento bastante para considerar desastrosa a ordem de retirada. Não percebemos nada de assuntos militares, nem dos altos problemas de administração ou de política indígena e muito menos de política internacional.

Mas, talvez justamente por isso, permitimo-nos discordar absolutamente – perante V. Exa., nesta carta confidencial –, da atitude assumida pelo senhor governador. A saída das nossas tropas da região revoltada sem ter infligido um exemplar castigo aos revoltosos é desprestigiante e será, necessariamente, mal interpretada pelos vizinhos franceses, que estabeleceram postos militares ao longo da nossa fronteira, guarnecidos por tropas senegalesas rapidamente transportadas para lá em camiões e bicicletas, como fomos informados.

Sabe-se que em Ziguinchor um francês que acompanhou as duas senhoras a que atrás fizemos menção ao referir-se à nossa ação nas pesquisas do avião desaparecido nos alcunhou de cobardes. Talvez tenha sido por isso que o Capitão Sinel de Cordes, calmo e sereno, mas decidido, tivesse tido a intenção de acabar de vez, com a lenda dos Felupes, lenda que tem custado a vida a soldados e auxiliares indígenas”.

Nunca até agora me fora dado ler documento tão contundente e exposição tão pormenorizada de gerente para governador do BNU. Fala-se em vergonha, na arrogância Felupe que no ano anterior tinham feito sofrer um revés na mesma região às nossas tropas, cortando cabeças, era completamente incompreensível deixar os Felupes sem uma punição severa. E o gerente da filial de Bissau recorda ao governador em Lisboa os Bijagós da ilha de Canhabaque e a falta permanente de respeito dos Papéis na ilha de Bissau, os Papéis recusavam-se à reparação das estradas da ilha e à limpeza da cidade mandando fazer este trabalho os Balantas e os Mancanhas, considerados os intrusos do “seu chão”. E mais criticava o governador por não ter acedido à proposta do ministro das Colónias de dispor de dois aviões para acompanhar as operações. E assim se despede o gerente de Bissau:

“O efeito moral seria ótimo, sendo esta a melhor forma de mostrar aos franceses que também dispomos dessa arma de guerra”.

Mas não fica por aqui esta saga da revolta dos Felupes, como veremos a seguir.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 5 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18175: Notas de leitura (1029): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (16) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18188: Notas de leitura (1030): A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17421: Historiografia da presença portuguesa em África (78): Erros, gralhas e imprecisões na notícia sobre a visita do Subsecretário de Estado das Colónias à Guiné em 1947 (Armando Tavares da Silva)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Fonte: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol II - Número Especial, [Comemorativo do V Centenário da Descoberta da Guiné], 1947, 542 pp. [Disponível "on line" aqui]


[O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, "órgão de Informação e Cultura da Colónia", foi criado em 21 de julho de 1945. pelo então governador Sarmento Rodrigues, 

O Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicou durante 28 anos, entre 1946 e 1973, 110 números normais do Boletim e um número especial [, este, em outubro de 1947].

Esta publicação periódica é de excecional interesse para o conhecimento  científico da presença histórica portuguesa na Guiné-Bissau, e portanto para a história do país antes da independência. Não tem paralelo em outras publicações nos outros territórios ultramarinos portugueses. 

Esta colecção de obras foi digitalizada e incorporada na Memória de África Digital com autorização do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) da Guiné-Bissau, entidade que sucede ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e, portanto, a actual detentora dos direitos sobre esta publicação. lê-se no portal das Memórias de África e do Oriente .

"O Portal das Memórias de África e do Oriente é um projecto da Fundação Portugal-África desenvolvido e mantido pela Universidade de Aveiro e pelo Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento desde 1997. É um instrumento fundamental e pioneiro na tentativa de potenciar a memória histórica dos laços que unem Portugal e a Lusofonia, sendo deste modo uma ponte com o nosso passado comum na construção de um identidade colectiva aos povos de todos esses países."



I. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva, autor de “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.)


Caro Luís Graça,


Alguns comentários – já com algum atraso – ao Post 17377 de 19 de Maio (*):


1. O primeiro é que é preciso cuidado com o que aparece escrito nos jornais, pois é vulgar encontrar-se erros, gralhas e imprecisões.

2. A última campanha de Canhabaque é de 1935-36, aparentemente motivada por os indígenas se recusarem à limpeza e abertura de estradas. Possivelmente foi escusada e resultado de falta de tacto e diplomacia…

3. Porto Gole estaria perto do ponto que Diogo Gomes atingiria em 1456 quando percorreu a parte navegável do Geba; daí para a frente os bancos de areia presentes na baixa-mar terão impedido a passagem aos navios. No Geba,  Diogo Gomes observou bem o que era o macaréu!

4. Quanto aos “91 anos de penetração portuguesa” estamos em presença de outra gralha monumental! Em vez de 91 deveria estar escrito 491!

5. A ponte visitada por Sá Carneiro a 7 de Fevereiro, segundo a notícia, foi a “grande ponte do Corubal”,  construída em 1937.

Uma outra ponte em cimento armado sobre o rio Mansoa fora inaugurada em Maio de 1923, pelo governador Vellez Caroço, ponte esta que tomaria o seu nome. 


Nos planos deste governador esteve a construção de uma ponte sobre o Corubal, o que foi abandonado para que as verbas disponíveis permitissem terminar a construção da ponte sobre o Mansoa, e por estar a findar a época seca. 

Em Junho de 1947 seriam iniciados trabalhos para substituir a antiga ponte Vellez Caroço, inutilizada nos seus pilares e tabuleiro. A ponte do Saltinho no Corubal, projectada para permitir a ligação do Norte com o Sul da colónia durante 7 meses no ano, foi iniciada em fins do mesmo ano de 1947.

6. Sobre queda de pontes, lembremo-nos do que sucedeu em 2001 em Entre-os-Rios!

7. A condecoração dos “grandes chefes, companheiros de Teixeira Pinto” terá ocorrido na véspera, 6 de Fevereiro, no Gabú (e não em Bambadinca). Foram condecorados com a medalha de prata de Dedicação e Mérito os régulos Madiu Embaló, Saliu Embaló, Demba Só e Malam Embaló. Dois cipaios foram também condecorados: Uri Jaló e Babá Galé.

Seguem em anexos 3 imagens relativas à recepção dispensada ao subsecretário de estado das colónias por chefes fulas, e a condecoração de um deles.

Anexo ainda uma carta da Guiné (de Teixeira da Mota) com o itinerário percorrido pelo governante, com indicação das obras na altura existente no território e, a sublinhado, as que ele iniciou ou as que estavam em construção.[A publicar, com maior detalhe,  no próximo poste da série.]

Como estará tudo nesta altura?


PS - A fonte desta documentação é o número especial de Outubro de 1947 do "Boletim Cultural da Guiné Portuguesa" (BCGP).

As imagens foram tiradas de uma cópia pessoal do BCGP e digitalizadas por mim. Não as utilizei no meu livro.



A foto [nº 2] com os cavaleiros fulas está na p.359; a foto [nº 1] em que um régulo é condecorado está na p. 358; a foto [nº 3] em que o subsecretário de estado é levado em triunfo está na p.361. 
A carta da Guiné do Teixeira da Mota está entre as ps. 454 e 455.

O artigo do Boletim é do cmdte Avelino Teixeira da Mota (na altura 2ºtenente), dedicado colaborador de Sarmento Rodrigues. Já faleceu, e tanto quanto pude apurar, sem descendência. Tinha, pelo menos, um irmão, mas não creio que, não sendo descendente, tenha direitos sobre os trabalhos do irmão. Assim como não creio que o actual INEP disponha de idênticos direitos. Os guineenses devem simplesmente ter "tomado conta" das instalações e espólio. O Boletim terminara.

Penso que seria bonito publicar estes elementos como uma homenagem ao Teixeira da Mota. Os seus trabalhos são capitais no que respeita à Guiné.




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Nota do editor:

Vd. poste de 19 de maio de 2017 >  Guiné 61/74 - P17377: Historiografia da presença portuguesa em África (76): Subsecretário de Estado das Colónias em visita triunfal à Guiné, de 27/1 a 24/2/1947 - Parte V: De regresso, de Bafatá a Bissau, sexta-feira. 7 de fevereiro, com passagem por Fá (Mandinga), Bambadinca, Xitole e Porto Gole

Último poste da série > 1 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17419: Historiografia da presença portuguesa em África (77): "Guiné, Alvorada do Império", 1952, um álbum de glórias do Governador Raimundo Serrão (Mário Beja Santos)