Mostrar mensagens com a etiqueta Vellez Caroço. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Vellez Caroço. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Março de 2022:

Queridos amigos,
A história deste avião desaparecido tem foros de tragicomédia, o palco principal foi o chão Felupe, tudo começou com um avião desaparecido, as autoridades senegalesas consideraram que se despenhou no mar devido a um tornado, a viúva moveu o céu e a terra para haver inquérito in loco, temos três peças fundamentais para analisar o assunto. Primeiro, o que escreve René Pélissier na sua História da Guiné, 1841-1936, volume II, Editorial Estampa, 1997, houvera rebelião Felupe no início da década de 1930, aparentemente contida, refere os aspectos caricatos e mitológicos do canibalismo Felupe, entramos depois no desaparecimento de 30 de junho de 1933 que vai levar a interrogatórios duríssimos à palmatória, os inquiridos disseram tudo o que o inquiridor pretendia, nasceu a confusão de que o avião teria caído em chão Felupe na Guiné portuguesa, nada se comprovou, certo e seguro foi o registo de declarações contraditórias e por vezes delirantes; segundo, a documentação elaborada pelo capitão Jorge Vellez Caroço em que se encontra nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, o oficial também desmonta as inverdades e aproveita a oportunidade para criticar abertamente a intrusão missionária francesa e responsabilizar os missionários portugueses de não estarem cabalmente a cumprir o seu múnus. Iremos ver seguidamente o que já aqui se escreveu sobre o relatório do BNU da Guiné, em 1933, não se possui mais documentação sobre este caso.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e contribuem, a seu modo, para introduzir uma nova abordagem ao extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Fez-se referência no texto anterior a um conjunto de diligências associadas ao desaparecimento de um avião francês, o relatório oficial de Dacar dava-o como desaparecido no mar, por efeito de um tornado, a mulher do aviador não estava conformada, apelou às autoridades francesas, seguiu-se um conjunto de diligências, não conduziram a coisa nenhuma.

Vejamos agora o relatório dos Serviços de Negócios Indígenas, referente ao ano de 1934, assinado pelo Capitão Velez Caroço, este tivera grave contencioso com o governador, houve mesmo apreciação em Lisboa do seu comportamento, processo arquivado, daí poder entender-se o cuidado da sua escrita sobre o Caso Gaté. Observa que toda a sua ação dentro da colónia foi a de conseguir o regresso dos indígenas refugiados em território francês e procurar a pacificação da região com a cooperação das autoridades de Ziguinchor. Tinha acompanhado o jornalista Didier Poulain na sua visita à região dos Felupes e, igualmente, enquanto membro da Comissão Internacional sobre o Affaire Gaté procurara desempenhar da melhor maneira a sua missão tanto em território nacional como em território francês. E dirige-se ao governador do seguinte modo:
“Brevemente serei afastado desta Direção de Serviços. Apenas terei de dizer a V. Exª que deixo com eles a saudade de não poder levar ao fim dos problemas, que era meu desejo concluir, saindo com a consciência tranquila de que trabalhei quanto pude o mais e melhor que sei”. A data deste relatório é de 30 de março de 1935, Bolama.

Convirá ter-se em atenção, neste acervo que está nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia a outros documentos, logo o aditamento que o dito Capitão Jorge Velez Caroço fez ao relatório sobre a visita à região dos Felupes do jornalista Didier Poulain, a data é de novembro de 1934:
“Na visita ao Administrador Superior do Casamansa, Mr. Chartier, foi-me revelado que o órgão parisiense Le Journal, largamente subsidiado por Madame Gaté vinha proceder a investigações sobre a queda do avião tripulado pelo marido e para tal incumbira o jornalista e aviador Didier Poulain. Depois da sua estada na região, o referido jornalista tinha a convicção de que o aeroplano caíra na região dos Felupes. O jornalista do Le Matin chegara a conclusões totalmente opostas. O guia de Didier Poulain, de nome Mussá, apenas pôde informar ter visto um avião sobre Carabar, não garantia a data em que o avião fora visto, tendo, no entanto, apurado que as horas a que foi visto esse avião não condiziam com as do voo do avião de Gaté, o avião teria sido visto a uma hora em que o aviador Gaté nem sequer tinha ainda levantado voo. Este Didier Poulain prestou informações falsas a Madame Gaté. O administrador do Casamansa informou o seu governo que o avião de Gaté não podia ter caído na nossa Guiné, mas sim nos mares, e possivelmente bem perto do ponto de partida. Vários aviadores se tinham pronunciado que nem as condições atmosféricas nem a quantidade de gasolina que continha o depósito do avião de Gaté lhe permitiam o voo tão longo, não podendo atingir a Guiné Portuguesa. O jornalista Didier Poulain visitou Jufunco e toda a região dos Felupes e se não viu mais foi porque não quis ver”.

Igualmente há que ter em conta o relatório sobre a visita à região dos Felupes de Didier Poulain, feito igualmente pelo Capitão Jorge Velez Caroço, datado de outubro de 1934. A missão era a de acompanhar o jornalista na sua visita a Jufunco, procurando indagar dos fins com que essa visita se fazia e características especiais que a definiam.

“Didier Poulain era capitão aviador e combateu na Grande Guerra. Encontra-se presentemente ao serviço do Affaire Gaté. Diz-se interessado nos usos e custos indígenas. O Capitão Rouxel voara anteriormente sobre território português sem respeito pelas condições que haviam sido estabelecidas pelo governo da colónia. O Capitão Rouxel agira incorretamente. Madame Gaté fora acompanhada na sua visita à região Felupe por Mr. Figuier, um comerciante que afirmara ao signatário que pouca importância mereciam as informações de Madame Gaté. Cheguei à conclusão de que o avião Gaté não aterrou na Guiné Portuguesa. A receção dos Felupes aos visitantes franceses foi muito cordial. O guia de Madame Gaté fora habilidoso a pôr todos os indígenas a dizer que sim a todas as perguntas de Madame Gaté. Apareceu extemporaneamente um pedaço de tela de avião conforme mostrou o Sargento Chambon, que acompanhara Madame Gaté.
As próprias autoridades francesas tinham concluído não haver provas da queda do avião Gaté. Didier Poulain criticava o facto de o governo francês ter consentido sempre que Madame Gaté procedesse a investigações particulares. Didier referiu a versão que Madame Gaté fez correr de que o marido estava nos Bijagós prisioneiro dos alemães”
.

E vai tecer mais considerações que tem a ver com a missão e extrapolam, fala sobre o problema missionário em que era escandalosa a intrusão francesa preparando indígenas da nossa colónia. Os missionários franceses ensinavam os nossos indígenas a exprimirem-se em crioulo. Criticava igualmente as missões portuguesas que só procuravam instalar-se nos grandes meios, fugiam às duras provas de trabalhar no interior do mato.

Temos agora o relatório da comissão internacional franco-portuguesa com vista a encontrar os restos do avião desaparecido em 30 de junho de 1933, no decurso de um voo experimental que tinha na tripulação o Piloto-ajudante Gaté e como passageiro o Sargento Brée. Portugal fazia-se representar pelo Capitão Jorge Velez Caroço e pelo Administrador Arrobas Martins, responsável pela região dos Felupes em Susana; a França fazia-se representar pelo Capitão Dendoid, reuniram-se em 18 de dezembro de 1934 em Ziguinchor e começaram as suas pesquisas em 22 de dezembro. Nos Bijagós Madame Gaté pretendia que o seu marido estava prisioneiro numa companhia alemã, concessionária num grupo que fazia a exploração do óleo de palma. A comissão visitou várias ilhas sem qualquer resultado. E acontece que a empresa alemã a que Madame Gaté fazia referência tinha capitais mistos portugueses e alemães. Não fazia qualquer sentido que aquela empresa retivesse como prisioneiros dois aviadores que teriam sidos transportados por mar, já que o avião não tinha combustível para chegar aos Bijagós. O governador português também deu conta da informação que lhe fora prestada pelo Coronel do Regimento de Atiradores Senegaleses, em Dacar, ele tinha a convicção de que o avião caíra no mar. O governador pedia que se verificasse a informação antes de começarem as pesquisas na região dos Felupes.

Temos agora outro documento, o relatório da Comissão Franco-Portuguesa constituída para encontrar os restos do avião Potez-Salmson n.º 821, desaparecido em 30 de junho de 1933 no decurso do voo experimental acima de Cabo Verde. Dá-se a constituição do grupo, do lado português estão presentes o Capitão Velez Caroço e também o Administrador Martins. Apareceu, segundo se ouviu dizer, um pedaço de tela em território Felupe, na Guiné portuguesa, mas a testemunha ouvida pela Comissão Franco-Portuguesa não conseguiu obter informações precisas por quem inicialmente fizera tal declaração, Moussa N’Doyle, estava em Dacar e de lá não saía. Dava-se um prémio da região Felupe do Senegal a quem entregasse uma peça do avião desaparecido ou informações que permitissem encontrar o aparelho. Madame Gaté trouxera uma grande quantidade de tela para a Guiné e distribuiu-a pelos indígenas. Velez Caroço escreve o seguinte: “nós encontrámos 1 m2 em Bolama e cerca de 3-4 m2 em Susana. Esta tela não pode de modo algum ser considerada como proveniente do avião de Gaté”. Para Velez Caroço tinham sido 15 dias de inquéritos inúteis na região Felupe, o Coronel Comandante do 7.º Regimento de Atiradores Senegaleses era perentório de que o avião tinha sido atingido por um tornado. Foram ouvidos outros depoimentos e a questão do tornado era uma constante. Em 8 de fevereiro de 1935 Velez Caroço faz o seu relatório, é profundamente cáustico: nascera a lenda dos aviadores devorados pelos antropófagos de Jufunco; contradiziam-se as declarações de quem vira e de quando um avião, até já se falava na fronteira da Gâmbia e do Senegal; eram completamente fantasiosas as declarações de Moussa N’Doyle; chegara-se ao cúmulo de alguém ter dito que vira uma peça grande metálica, de forma cilíndrica, que se assemelhava ao motor do avião, veio-se a descobrir que não passava de uma caldeira de alambique; fizera-se um reconhecimento aéreo na região Felupe, sem quaisquer resultados, embora houvesse ali locais onde o avião pudesse aterrar; e alerta o governador para casos de indisciplina, desobediência e agressão às autoridades administrativas portuguesas em região Felupe. Concluído a consulta deste acervo, vamos dar a palavra ao chefe da delegação do BNU, enviou relatório sobre toda esta questão para Lisboa.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
A surpresa de dois extensos relatórios assinados pelo Capitão Jorge Frederico Velez Caroço e destinados ao governador da Guiné, Major Carvalho Viegas, encontrados nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, ressuscita alguns dados aqui já versados, caso do importante relatório do chefe da delegação do BNU da Guiné sobre os acontecimentos relacionados com as rebeliões Felupes, que dominaram o início da década de 1930. Valeu a pena regressar à leitura da obra de René Pélissier, "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Volume II, Editorial Estampa, 1997", ele trata com bastante detalhe o chamado L'Affaire Gaté, consultou as fontes documentais francesas que mostram claramente que este desastre aéreo ocorreu em território senegalês, não teve qualquer ligação com a Guiné Portuguesa. Mas acendeu-se o rastilho a uma tragicomédia onde até se fantasiou que havia uma base naval alemã nos Bijagós... Que o leitor se prepare para novos episódios.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e procuram clarificar um extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Volume II, Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Comecemos por René Pélissier, que teve a faculdade de consultar arquivos em França sobre o assunto, inicia o seu texto por nos falar nas rebeliões dos Felupes (1933, 1934, 1935), na mitologia de que eram antropófagos, o que nunca se demonstrou, e lança-se diretamente em L’Affaire Gaté, dando-nos a cronologia dos acontecimentos. Tudo começou no dia 30 de junho de 1933, enquanto executavam um exercício de voo em altitude, dois aviadores da Base Aérea de Dacar, o Ajudante-chefe Gaté e o Sargento Mecânico Brée, apanhados num tornado, desaparecem no seu Potez-Salmson; no mês seguinte, as autoridades da base procederam a buscas, não encontraram o aparelho nem os corpos, arquivaram o caso, não foram conhecidas buscas desenvolvidas pelas autoridades portuguesas; no verão, a Senhora Gaté, insatisfeita com o inquérito oficial, a expensas suas, ciente que o marido está vivo, vem ao Senegal, entra em contato com o Senhor Figuié, este encarrega um agente seu, Moussa N’Doye, de procurar saber mais em meio africano; na Gâmbia como no Casamansa, obtém informações de um avião avistado dirigindo-se para sul; a Senhora Gaté, acompanhada pelo casal Figuié e Moussa N’Doye entram em chão felupe guineense; esta missão contata em Susana Apaim-Ba, conhecido por Alfredo, feiticeiro de Jufunco, este declara não ter visto qualquer avião; o administrador de Canchungo, comandante Joaquim Esteves, junta-se aos franceses, convoca uma reunião com Felupes; os chefes declaram nada saber, mas Mamadu Sissé diz que viu um avião dirigindo-se para o sul que deve ter aterrado em Jufunco; a Senhora Gaté parte para Bissau e depois para Bolama, onde o Governador Carvalho Viegas mostra o processo das investigações e facilita a viagem à Senhora Gaté, que regressa aos Felupes; inopinadamente, há Felupes que afirmam que o avião está em Jufunco, entregam a Esteves um pedaço de lona do avião, trazido por um africano, dizendo que o encontrou em Jufunco, se tudo estava mirabolante mais mirabolante ficou quando o comandante Esteves declara que o dito Alfredo quis mandá-lo assassinar, ele vai ser interrogado pelos franceses; aparece agora Capitão Velez Caroço, manda prender Alfredo, em Susana o comandante Esteves interroga os suspeitos à palmatória, depois de torturado Alfredo confessa que o avião aterrou em Jufunco, dá informações contraditórias sobre os dois aviadores e diz que recebeu instruções do Deus da Guerra para destruir o avião, continua o interrogatório, as versões dos prisioneiros divergem cada vez mais, depois os prisioneiros invadem-se, chegam soldados e metralhadoras de Susana, Velez Caroço recomeça os interrogatórios, é-lhe dito que o avião foi desenterrado – temos aqui já todos os ingredientes para uma telenovela de aventura e ação, com pozinhos de crime e mistério; Velez Caroço e as tropas partem de Susana para Jufunco, a zona é militarizada, chegam dois oficiais aviadores franceses ao S. Domingos, há notícia de combates em frente de Jufunco, o capitão de armas de Bolama, Joaquim Sinel de Cordes, parte para ir buscar reforços e acabar com a resistência de Jufunco, vive-se já um clima de guerra, Alfredo invadiu-se e passou pela Casamansa, os Felupes refugiaram-se na floresta; já em novembro, Moussa N’Doye regressa a Dacar e anuncia que os portugueses queimaram Jufunco – esta é a versão dos factos nas fontes francesas, de uma hipótese nunca fundamentada de que um avião francês, por obra do acaso, ter aterrado em Jufunco, estalou a rebelião dos Felupes; toda esta sequência trágica irá prolongar-se por 1934 e 1935, como René Pélissier pormenoriza: o Exército está em chão Felupe, ali passa seis meses, desconhece-se o número real das baixas dos Felupes, tudo se agudiza em maio de 1934, nova ofensiva contra os Felupes; em Paris, a Senhora Gaté não desarma, escreve para os órgãos de soberania, diz que o marido está preso nos Bijagós pelos alemães, e diz mesmo existir no arquipélago uma base naval alemã, a tragicomédia refina-se, as operações contra os Felupes prosseguem.

É altura de fazer ouvir o responsável pelo BNU da Guiné, ele recebera de Lisboa o seguinte telegrama: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe se ordem restabelecida quem e como foi sufocada a operação. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando”.

A 13, em carta talhada o gerente de Bissau escreve para Lisboa:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar com destino a Ziguinchor um avião francês tripulado por aviador e acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo. O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana, a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa, acompanhadas de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem, por sua vez, novas pesquisas. O governador autorizou e este grupo regressou ao posto de Susana acompanhado pelo ajudante de campo do governador. Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião. O Capitão Velez Caroço, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes, que desde sempre se tem mantido mais ou menos rebelde, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.
Regressaram a Bissau e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram 2 soldados, ficando vários feridos. Imediatamente seguiu para o local o Capitão Sinel de Cordes, que castigou os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a 5 soldados. Entretanto, era mandado chamar Bora Sanhá, alferes de segunda linha, para se lhe ordenar que organizasse o mais rápido possível um grupo de irregulares Fulas, com o fim de coadjuvarem as tropas regulares. Poucas horas depois, Bora Sanhá escolhia 100 homens da sua confiança, alguns deles seus antigos companheiros de armas, embarcaram para Jufunco. Corriam os mais desencontrados boatos sobre o que se estava a passar com os Felupes. O Capitão Sinel de Cordes assumiu o comando de regulares e irregulares, ao todo cerca de 400 armas e 5 metralhadoras, começando a bater os revoltosos com a energia que o momento impunha. Os revoltosos refugiram-se entre pântanos. O governador seguiu para o campo de operações. Voltando a Bissau, o governador trocou impressões comigo sobre o que se passava com os Felupes. Que tinham sofrido importantes baixas, resolvera dar por finda as operações, visto que os acontecimentos não tinham a gravidade que lhes atribuía. As nossas tropas, à custa de sacrifícios grandes, tem avançado e arrasado todas as populações por onde têm passado, incendiando as palhotas e destruindo as culturas”
.

A carta é longa, tem o condão de introduzir importantes detalhes sobre tudo o que se passou e que, mais adiante encontrará os relatórios posteriores de Velez Caroço, depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, aspetos complementares de grande interesse, se bem que, há que o reconhecer, toda esta história não tem pés nem cabeça se atendermos aos relatórios franceses que davam como seguro que o desastre aéreo ocorrera noutras paragens. E vemos misturados a compreensível ansiedade da Senhora Gaté com o encadeamento de rebeliões Felupes que dão a toda esta trama o ar de uma telenovela de tempos coloniais, onde se cruzam hipóteses absurdas de uma base naval alemã nos Bijagós, interrogatórios brutais a Felupes e a ganância de informadores que a troco de compensações de alguns milhares de francos inventavam a queda de um avião que uns viam ter passado, mas que concretamente ninguém sabia dizer para onde. Que o leitor se prepare, há ainda mais condimentos para adubar esta história verdadeiramente estereofónica.

(continua)
Avião Potez-Salmson
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
René Pélissier
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23773: Historiografia da presença portuguesa em África (342): A União Nacional e um retrato da Guiné em 1942 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23447: Historiografia da presença portuguesa em África (326): Aviação na Guiné (1925-1946) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de uma despretensiosa resenha de elementos encontrados sobre o primeiro período da aviação na Guiné, incluiu-se a intervenção da aviação comercial, a presença da Pan American Airways e os seus Clippers que amaravam em Bolama, ainda me falta encontrar imagens da Pan Am em Bolama, já as vi, não sei aonde. Estes hidroaviões amaravam onde é hoje o Oceanário, os viajantes vinham da Portela de Sacavém até ao Tejo e daqui partiam para a América mas passando por África. São meras recordações sobre um transporte aéreo que só se tornou regular na Guiné muito mais tarde. Mesmo na década de 1950, quando os voos se tornaram mais regulares, os viajantes saíam de Lisboa em direção a Dacar, havia transbordo para Ziguinchor, o resto era feito de automóvel.

Um abraço do
Mário



Aviação na Guiné (1925-1946)

Mário Beja Santos

Ia a caminho da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, e meditando sobre matérias ainda não pesquisadas relacionadas com os meios de transporte na antiga colónia, deu-me para pesquisar os passos pioneiros da aviação. Encontrei uma comunicação alusiva às comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné que me ajudou à cronologia dos acontecimentos, e de seguida uma carta das ilustrações referentes às viagens que ocorreram neste período.

Tudo começa em 1925, Pinheiro Corrêa, Sérgio da Silva e Manuel António ligam Lisboa a Bolama com um avião Breguet XIV, motor Renault 300 CV, viagem de 31 horas e 31 minutos. Foi o evento do ano. Houve festa rija, discussões e discórdias quanto banquete dedicado a estes pioneiros da aviação. Quando estava a preparar o livro Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné, encontrei aspetos trágico-cómicos. A viagem ficou ilustrada, como se pode ver.

Tenente Sérgio da Silva, Capitão Pinheiro Corrêa e 1.º Sargento Manuel António, antes da segunda partida, na Amadora
Recorte de "O século", com a notícia que O Presidente da República recebeu os aviadores, antes da partida
Chegada dos aviadores a Bolama, no dia 2 de abril onde aterraram no Campo de Aviação Sacadura Cabral
O Governador da Guiné, Tenente-Coronel Velez Caroço, na receção
Monumento em Farim dedicado aos pilotos portugueses
Em 1927, três italianos ligaram Bolama a Pernambuco. Nesse mesmo ano, Sarmento de Beires e outros realizaram a primeira travessia aérea noturna do Atlântico Sul em hidroavião Dornier, motores Lorraine 450 CV, fazem Lisboa-Bolama, confirmam os métodos portugueses de navegação aérea. Na etapa Bubaque-Ilha de Fernando de Noronha foram percorridos 2595 quilómetros em 18 horas e 11 minutos.

E assim se chegou a 1928, teria lugar a primeira viagem Lisboa-Guiné-S. Tomé-Angola-Moçambique num percurso total de mais de 15 mil quilómetros. Escreveu-se no DN que “o jovem capitão Celestino Pais Ramos partir da Amadora no seu Vicker, cumpria a primeira etapa da sua viagem, a primeira por avião feita às colónias portuguesas da Guiné, São Tomé, Angola e Moçambique” E mais se escrevia no DN: "Os valorosos aviadores iniciam hoje às primeiras horas da manhã a segunda parte do raid", e passava a relatar as aventuras de Pais Ramos (piloto e comandante), Oliveira Viegas (piloto), João Esteves (tenente navegador) e Manuel António (sargento mecânico). O mesmo matutino dava conta de dissabores, como se escreveu: "Resolvido o pequeno incidente originado pela falta do óleo necessário aos aviões que devido ao mau tempo não foi desembarcado em Bolama, os valorosos aviadores vão recomeçar hoje às primeiras horas do dia o raid a Moçambique, iniciando a segunda parte da sua viagem."

O grupo levaria 51 dias a cumprir esta expedição, fazendo escala em mais de 30 localidades e acumulando 101 horas de voo. Na etapa que começariam a 14 de setembro, fariam a viagem de Bolama a Kayess, "num percurso de 570 quilómetros, que devem ser cobertos em 3 horas e 49 minutos de voo", especificava o DN.

1931 é o ano marcado pela chegada a Bolama da Esquadra Balbo, italianos, vêm em aviões H. S. 55, dois motores Fiat 500 CV. O percurso percorrido compreendia Orbetello-Cartagena-Kenitra-Villa Cisneros-Bolama-Natal-Baía-Rio de Janeiro, num total de 10 400 quilómetros. Bolama tinha sido escolhida para dar o salto sobre o Atlântico Sul. Eram 14 aviões. É na descolagem de Bolama, no início de janeiro, que se dá um acidente aéreo e morreram 6 aviadores, o governo italiano mandou erigir um monumento em sua memória, exatamente em Bolama, era para mostrar aos vindouros que tinham sido os italianos quem tinha atravessado o Atlântico Sul em formação de aviões.

Vão seguir-se outras viagens até 1941, caso da viagem Lisboa-Guiné-Angola-Lisboa, feita por portugueses. A enigmática Elly Beinhorn fez vários voos sobre a Guiné em avião Klem, motor Argus, deu como pretexto comissões científicas… Nunca se apurou se vinha pela ciência ou em missão de espionagem. Nesse mesmo ano de 1931, o alemão Christiansen, levando a bordo o almirante Gago Coutinho e mais 11 homens de tripulação fez ligação Lisboa-Bolama-Natal com o hidroavião gigante Dornier X, equipado com 12 motores Curtiss de 600 CV, foi uma viagem cheia de acidentes.

No período de 1935/36, tenho como comandante Cifka Duarte realizou-se o cruzeiro aéreo às colónias: Lisboa-Guiné-Angola-Moçambique, em aviões Vickers-Jupiter 420 CV.

Em 1939, Sérgio Silva, quando nomeado Diretor dos Serviços Aeronáuticos da Guiné, utilizou a via aérea para ir tomar posse do seu cargo. Partiu de Lisboa a 9 de abril, chegou a Bolama a 12 do mesmo mês.

A história da aviação comercial na Guiné conta-se em duas penadas. Houve várias companhias francesas e inglesas que pensaram aproveitar Bolama como ponto de escala em futuras linhas aéreas para ligação de Dacar e Bathurst com as possessões inglesas e francesas de África, nada se concretizou. Só a Pan American Airways utilizou Bolama quando, no inverno, os seus hidroaviões Clipper eram forçados a abandonar a rota dos Açores para as suas regulares ligações aéreas América-Europa, com escala terminal em Lisboa. O primeiro Clipper amarou em Bolama em 6 de fevereiro de 1941 e o último em 24 de novembro de 1945. No ano seguinte, a Pan American passou a utilizar aviões de rodas e as paragens da Guiné Portuguesa foram esquecidas.

Pouco depois da meia-noite do 17 de dezembro de 1930, doze hidroaviões Savoia-Marchetti "S-55-A" descolaram da Baía de Orbetello, na Toscana, a norte de Roma e frente à ilha de Elba
Memorial aos italianos vítimas do desastre aéreo em Bolama
Clipper da Pan American junto da Torre de Belém
Selos comemorativos da primeira viagem da Pan American Airways a Bolama
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23428: Historiografia da presença portuguesa em África (325): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22894: Notas de leitura (1407A): O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,

O agora jubilado professor do ISCTE e durante muito tempo o responsável pelo Centro de Estudos Africanos desta instância universitária tem vasto currículo de investigação guineense, são, por exemplo, incontornáveis, os seus artigos de caráter enciclopédico sobre a Guiné, escrito com José da Silva Horta, os seus estudos sobre os judeus na Senegâmbia. 

Neste trabalho desvela-se uma realidade com base na evidência científica e que tem a ver com conceções de aproveitamento de alianças, de negociação de fidelidades e da escolha entre um grande território com um grande chefe ou régulos implicados na gestão da administração colonial, mesmo com um campo de liberdade específica. Prevaleceu a segunda conceção, foi essa que observámos nas nossas comissões sem perceber muito bem o que estava por detrás delas. Eduardo Costa dias dá-nos uma interessantíssima chave explicativa, a propósito do Gabú entre 1900 e 1930.

Um abraço do
Mário



O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias

Beja Santos

O Professor Eduardo Costa Dias, com larga investigação referente à colónia da Guiné, publicou na revista Africana Studia, n.º 9 de 2006, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, um trabalho intitulado “Regulado do Gabú (1900-1930): A difícil compatibilização entre legitimidades tradicionais e a reorganização do espaço colonial”

Uma visão singular que apraz aqui registar, indo diretamente às questões nodais que a investigação contempla.

Primeiro, os problemas da dominação territorial colonial como se puseram nas primeiras décadas do século XX, um processo diversificado que contou com operações militares contra potentados recalcitrantes, cartografia rigorosa, sujeição dos africanos a uma lógica económica e política colonial, que obrigou a novas regulamentações e alargamento da malha político-administrativa, concomitante com o desenvolvimento das comunicações e de outras infraestruturas. 

A Guiné, mesmo a uma escala relativamente modesta, contou com uma rede de estradas ligando o litoral ao interior, generalizou-se o telégrafo e depois o telefone, substituíram-se os antigos postos, presídios e fortificações por pontos locais da quadrícula político-administrativa. 

Enfim, uma dominação territorial que se fez com desacertos, cumplicidades e submissão de poderes locais, havendo resistência passiva, desobediência por parte das populações e dos poderes ditos tradicionais, que se manifestavam sobretudo na recusa do pagamento de impostos, na contestação dos chefes reconhecidos pelas autoridades coloniais, mas muito mais.

Segundo, o estudo centra-se nos anos 1900-1930 na região do Gabú, a figura principal do estudo é o régulo do Gabú entre 1906 e 1927, Monjour Meta Bâlo, já vimos anteriormente referências a este régulo no livro “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço, filho do Governador Jorge Frederico Vellez Caroço. Monjour tinha legitimidade tradicional e era benquisto pelas autoridades portuguesas, até ao dado momento em que se coligaram contestações locais e coloniais.

Terceiro, o investigador dá-nos um retrato da Guiné Portuguesa nesse período: décadas de afirmação da dominação territorial, expedições militares punitivas em territórios recalcitrantes: Papéis da ilha de Bissau, Balantas de Mansoa, regiões dos Bijagós, os Mandingas do Oio, entre outros. Tudo acompanhado de questiúnculas e queixas da administração e dos militares: o antigo herói Abdul Indjai fez-se cair em desgraça; Teixeira Pinto envolver-se-á em confrontos com a Liga Guineense; Vellez Caroço teve vários conflitos com o secretário do Governo, Sebastião José Barbosa, por exemplo. 

A despeito das frequentes mudanças de governadores e das orientações da administração colonial, ir-se-á afirmando uma linha de apoio à administração portuguesa, terão a etnia Fula à cabeça.

Ainda antes do Estado Novo, foi promulgada a Carta Orgânica da Guiné, que dividiu a população residente em civilizada e indígena; em 1919, o território da Guiné Portuguesa foi dividido em dois concelhos e treze circunscrições; substituiu-se o imposto de cabeça por palhota; e manteve-se, mesmo com simulação, a requisição dos indígenas para um sem número de atividades, o trabalho forçado mascarado, e o autor dá vários exemplos com a Casa Gouveia, a Companhia Estrela de Farim e a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné.

Quarto, atenda-se ao conceito de Vellez Caroço para a modernização da colónia, ele era defensor da figura do “chefe de território” em vez do “chefe de raça”, de uma política diferenciada para cada etnia e de aproximação aos chefes muçulmanos em detrimento dos animistas. Nesta ótica, observa o autor, ele foi o pai da estratégia colonial que privilegiará durante décadas a aliança da administração com os chefes Fulas.

É nesse contexto que vamos agora situar o Gabú, povoado maioritariamente por muçulmanos (Fulas e Mandingas). Escreve o autor: 

“A soberania portuguesa no Gabú fez-se quase por delegação de poderes, isto é, controlando meia dúzia de chefes tradicionais e remunerando a sua lealdade com uma quase total liberdade de exercício do poder sobre as populações, recebendo em troca apoio para ações militares no resto da Província”. 

O termo Gabú era automaticamente conotado com a área onde pontificava o régulo Monjour e muito menos como a porção de território administrado pela circunscrição sediada em Bafatá. Lembra igualmente o autor que o regulado do Gabú herdou o nome e parte significativa do território do antigo reino Mandinga “animista”, do Kaabu, que existiu, na região compreendida entre os rios Gâmbia e Corubal. A administração portuguesa marcou presença em meados da década de 1910, apareceu a circunscrição administrada do Gabú com sede em Oco, depois em Gabú Sara (futura vila de Nova Lamego, hoje cidade do Gabú). O Gabú estava pouco integrado no espaço da colónia e não era alvo prioritário para intervenções das tropas portuguesas.

Quinto, e assim se passa para a lógica política de entendimentos preferenciais, escolha de interlocutores e relacionamento com os chefes tradicionais. Os chefes eram classificados em três grupos: o dos leais, o dos interesseiros e o dos rebeldes. 

Vellez Caroço, nos anos 1920, estruturou a política de aproximação aos muçulmanos e teceu os contornos da aliança estratégica do poder colonial com os chefes Fulas. Monjur, o régulo do Gabú, foi um precioso auxiliar da administração colonial, combateu ao lado por portugueses nas guerras de pacificação e durante muito tempo dominou as rivalidades entre etnias. E como diz o autor, acabou destituído quando a administração colonial perdeu o interesse em manter um território tão grande nas mãos de um único homem. Monjour é apanhado neste turbilhão de mudanças. No livro escrito pelo filho de Vellez Caroço é bem claro que ele, tal como o pai, era partidário da política dos grandes regulados e adversário acérrimo da multiplicação de regulados. E no seu livro ele apresenta Monjour como vítima das sucessivas traições da sua gente e de alguns administradores que eram favoráveis à lógica da “independência das raças”.

Sexto, o autor historia a ascensão e queda deste régulo que terá nascido em 1850 e faleceu em 1929 na região do Corubal, a sua ascensão não foi pacífica, a chefia do regulado fora contestada por um irmão e por vários descendentes de régulos anteriores. É no choque destas duas lógicas, do “critério da independência das raças” com pequenos regulados e a dos grandes regulados em que apostou sempre Vellez Caroço que veio a prevalecer, em 1917, uma divisão do Gabu em vários regulados, a situação durou pouco, no ano seguinte o regulado foi unificado e Monjour reinvestido como grande chefe. Mas a sua liderança era ameaçada por novos líderes. E com a retirada de Vellez Caroço para Portugal, acaba por ser destituído com uma pensão de trezentos escudos mensais, em 1927, e deportado com residência fixa para o Corubal, onde morre em 1929.

Sétimo, assim chegamos às conclusões. 

Foram-se impondo duas conceções dominantes: a dominação do território via o controlo de um único interlocutor, e que prevaleceu entre os anos 1900 e 1917; e uma conceção de dominação que privilegiava não só os pequenos regulados em prejuízo dos grandes como igualmente a efetiva circunscrição territorial de cada regulado a uma malha precisa da quadrícula político-administrativa colonial, a partir de 1917 e aplicada sobretudo a partir de 1926.

 Prevaleceu a segunda, os régulos foram funcionalizados, a ter obrigações, a despeito de aplicarem, dentro de moldes aceites pela administração colonial, decisões próprias dentro da área de jurisdição. E esta lógica vai chegar até à emergência do nacionalismo, foi com esta lógica que Amílcar Cabral e o seu PAIGC foram obrigados a lidar.
Tocador de korá no Gabú.
Jorge Frederico Vellez Caroço
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 de Janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22647: Historiografia da presença portuguesa em África (286): A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (1): "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves; edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Nada do que ainda hoje ocorre, em termos de tensão separatista no Casamansa, deixa de ver com os acontecimentos advenientes da gradual presença francesa e dos sucessivos conflitos entre Portugal e a França, e que culminaram com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. As partes contratantes nem sonharam a tragédia que criaram, ao assinar um documento histórico sem se terem perguntado se havia relevos naturais, se se separavam etnias, se os habitantes de Ziguinchor aplaudiam a mudança de colonizador. E pôs-se de imediato um problema novo: a delimitação das fronteiras, será um corrupio de peripécias entre 1888 e 1931. 

É um período em que se distinguirão homens como o Visconde de Santarém ou Honório Pereira Barreto. O visconde irá brandir uma peça preciosa intitulada Memória sobre a Prioridade dos Descobrimentos dos Portugueses na Costa de África Ocidental para Servir de Ilustração à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara. Barreto procurará consolidar a posição portuguesa, não perde uma oportunidade para tentar acordar os responsáveis políticos para o risco de se perder a colónia, não se ilude que a situação de Ziguinchor deixara de ser brilhante no século XIX, os franceses tudo procuravam para a isolar, tinham efetivo militar de sete soldados e um movimento comercial asfixiado. E agora vamos ver como se processaram as operações de delimitação, no Norte, no Leste e no Sul, é um verdadeiro romance.

Um abraço do
Mário



A história turbulenta da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Este súbito mergulho na história bem movimentada da delimitação das fronteiras franco-portuguesas da Guiné (1888-1931) surgiu de um imprevisto enquanto manuseava documentos da secção de Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.

 Numa pasta bem fornecida datada de 1934 suscitou-me a curiosidade um curto documento intitulado “Auto de delimitação da fronteira franco-portuguesa entre os marcos 52 e 53”, fui logo ler, o que teria acontecido de ter surgido novo problema na delimitação fronteiriça? O texto é breve, é uma ata remetida para Bolama, é assinada pelo diretor de Serviços e Negócios Indígenas Jorge Frederico Torres Velez Caroço, e, como se verá, não passa de pequena história resolvida à moda portuguesa, passa-se para outro o que nós não sabemos deslindar:

“Aos 25 dias do mês de janeiro de 1934, tendo-se reunido na região de Catabá, próximo da fronteira franco-portuguesa, entre os marcos 52 e 53 as comissões representativas dos governos da Guiné Portuguesa e da Guiné Francesa, compostas, respetivamente, pelos Srs. Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor da Agrimensura, Capitão Carlos de Brissac Neves Ferreira e Administrador da Circunscrição Civil de Bafatá Eugénio Veloso da Veiga (segue-se a lista dos ajudantes) e os Srs. A. Gallo, Administrador de 2ª Classe das Colónias, Comandante do Círculo de Kemlis e L. Brunet Manquat, Adjunto Principal dos Serviços Civis, Chefe da Subdivisão de Youkounkoum, Círculo de Kemlis, a fim de definir-se rigorosamente a linha de fronteira entre os já citados marcos 52 e 53 para se poder igualmente definir a posição do local onde teve lugar a agressão do guarda francês que originou esta reunião, em relação à mesma fronteira, sobre o qual recaem dúvidas, de estar situado em território português ou francês. 

Foram estas comissões de parecer: que após todas as tentativas executadas para definir rigorosamente a já citada linha de fronteira, e bem assim a posição do local igualmente já referido, não podendo chegar a uma conclusão precisa devido à falta de elementos concretos, uma vez que as medições executadas pelo agrimensor português conduziram a resultados imensamente diferentes dos elementos fornecidos pela comissão francesa, resolveram propor aos governos que respetivamente representam a nomeação de novas comissões em cuja compleição entrem técnicos agrimensores das duas colónias, a fim de poderem definir precisa e rigorosamente a linha de fronteira entre os marcos 52 e 53. Encerram-se os trabalhos e lavra-se a presente ata”.

Estava despertada a curiosidade em tentar entender o fundo do imbróglio, não propriamente onde fora agredido o guarda francês, mas qual a razão de tantas dificuldades para os agrimensores. Toca de estudar, e começou-se por um clássico, uma obra de inequívoco valor, "A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné", por Maria Luísa Esteves, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica Tropical e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Lisboa, 1988.

Porquê encetar um estudo destes pela questão do Casamansa? Foram os conflitos nesta região que desembocaram na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. É um percurso histórico digno de análise. Os dois países reivindicavam uma área que é hoje um sétimo da superfície do Senegal, o Casamansa, Portugal alegava direitos históricos, a França encetara na primeira metade do século XIX tornar-se uma potência colonial, cobiçava regiões africanas na África Ocidental, desde Marrocos ao Gabão, e não só. 

É facto que o impulso do expansionismo colonial europeu iria ser mais percetível a partir de 1876, isto do lado português, houvera antecedentes para a opção africana, com Sá da Bandeira. Os franceses haviam-se instalado nas margens do Casamansa em 1828. Teremos um observador de primeira água para a evolução destes acontecimentos, será Honório Pereira Barreto que não se cansará de alertar o governador de Cabo Verde para as graduais tentativas de controlo do Casamansa pela França. Os subscritores da convenção de 12 de maio de 1886 não irão atinar com as graves consequências de pôr em forma de tratado o que era desconhecido no terreno.

Como dirá no final desta obra Maria Luísa Esteves:

“As duas Guinés, a Francesa e Portuguesa, foram criadas sem ter em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. 

Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações se fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de Geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas. Apenas se procurara satisfazer os interesses dos países colonizadores e destes o mais forte teve sempre a última palavra”.

O conhecimento da região do Casamansa é comprovado por descrições de autores dos séculos XV, XVI e XVII, é um repertório onde constam os nomes de Luís de Cadamosto, Valentim Fernandes, André Alvares de Almada, André Donelha e Francisco de Lemos Coelho. O rio Casamansa despertava o apetite de muitos pelos negócios que possibilitava. Não é segredo para ninguém que o período filipino foi profundamente nefasto para a presença portuguesa e fasto para a gradual presença de concorrentes, desde a França, a Grã-Bretanha, a Espanha e a Holanda. 

Os franceses instalaram-se na Ilha dos Mosquitos em 1828, na embocadura do rio. Enceta-se uma correspondência diplomática intensa entre Portugal e a França, para Portugal não será difícil argumentar os seus direitos históricos, a França é a potência forte ou não responde ou interfere cada vez mais, irão ter lugar inúmeros conflitos, desde apresamento de barcos a pessoas. Honório Pereira Barreto faz o que pode e o que não pode, tratados de paz com chefes do Casamansa, compra território ou cedência com direitos exclusivos de soberania, navegação e comércio.

 Encurtando argumentos, depois de inúmeros conflitos e após 16 sessões entre representações luso-francesas chegou-se à convenção de 12 de maio de 1886, o Casamansa com o presídio de Ziguinchor passou a pertencer à França, e a sul, o rio Nuno, teve o mesmo destino.

Ainda hoje se discute se o saldo foi negativo ou positivo. Portugal passou a ter legitimidade para considerar como sua possessão o território até ao Futa Djalon, se Geba era o presídio mais longínquo, havia que ocupar toda a região do Gabu. Recebeu-se a região de Cacine, e a diplomacia da época parecia contente pela França ter prescindido dos seus direitos nos territórios de Massabi e ter havido reconhecimento do protetorado português numa larga faixa entre Angola e Moçambique (numa altura em que se sonhava com o Mapa Cor-de-Rosa). Iam agora começar as dores de cabeça com a delimitação das fronteiras. 

Logo em 1888 desloca-se uma comissão com a intenção de marcar as áreas de influência das partes. O entendimento é difícil, ainda ocorrem incidentes nas zonas fronteiriças, não havia marcos, na maior parte dos casos a fronteira era uma verdadeira terra de ninguém. Vão seguir-se doze anos sem uma nova missão, era um embaraço de parte a parte, assinaram-se papéis sem ter havido previamente o levantamento topográfico dos locais a delimitar, ninguém pensara nas divisões naturais nem nas realidades étnicas e sociais. Estão a organizar-se missões de 1900 a 1905, tenta-se um trabalho sério da balizagem das fronteiras, procedendo-se ao reconhecimento de certos rios, negoceia-se a troca de territórios. Pensa-se em 1905 que está terminada a demarcação da fronteira luso-francesa da Guiné, mas haverá retificações até 1931.

A investigação e a narrativa de Maria Luísa Esteves são comprovadamente aliciantes. Primeiro situa o Casamansa, refere o que há de melhor na literatura de viagens; temos depois a história económica da Guiné, em pinceladas fortes dá-nos uma síntese da presença portuguesa entre os séculos XV e XIX; entra-se agora na luta pela posse do Casamansa, a diplomacia recorre a tudo quanto sabia da documentação histórica para mostrar que os portugueses não eram intrusos nem tinham chegado ontem, a autora passa em revista as notas diplomáticas enviadas para Paris, uma boa parte delas jamais obteve resposta. Havia exaustão dos dinheiros públicos, a emigração continuava a ser canalizada para o Brasil, o Governador de Cabo Verde não tinha meios para agir. 

O herói da trama é mesmo Honório Pereira Barreto, e a autora passa em revista os tratados que ele celebra com os chefes gentílicos. A presença francesa no Casamansa agudizava-se, afetava o comércio de Ziguinchor, mas também o de Farim e Geba. Os apelos lancinantes de Pereira Barreto revelam-se verdades com punhos:

 “Soubemos conquistar, é verdade, mas passada a conquista não soubemos aumentar nem mesmo conservar. Tratamos os gentios com desprezo, ameaçamos quando é preciso atacar e insultamos quando convém acariciar. Os estrangeiros ingleses e franceses atacam quando são insultados, e dão avultados presentes quando os gentios se humilham, satisfazendo assim a sua natural cobiça, pois é a melhor, e menos dispendiosa maneira de conter obediente e amigo o gentio todo”.

A autora dá-nos a referência da presença francesa da Guiné, temos também o apetite britânico em Bolama, mas este estudo nem se enquadra neste trabalho. E descreve os incidentes entre 1882 e 1884, e assim se chega à convenção de 12 de maio, a partir de agora vem a dor de cabeça da delimitação das fronteiras e o seu corolário de peripécias.

(continua)


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia

Mapa da Guiné apresentado no Número Comemorativo da Exposição Colonial do Porto, 1934
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22627: Historiografia da presença portuguesa em África (285): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22627: Historiografia da presença portuguesa em África (285): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Creio que se recordam que aqui se fez a recensão de um livro memorável História das Missões Católicas na Guiné, do Padre Henrique Pinto Rema, é indiscutivelmente a obra com mais significado no campo missionário. Fiz uma súmula de cerca de doze páginas deste incontornável trabalho, espero inseri-lo num livro em preparação "Guiné, Bilhete de Identidade", quem dele quiser ter acesso é só pedir-me. Atenda-se ao espírito da época em que Jorge Velez Caroço exige mais às missões, articula o seu trabalho com a implantação do espírito de ser português, a religião é tida como um dado civilizacional, uma outra acepção do patriotismo, revela o administrador colonial uma manifesta propensão para o uso do crioulo, um passo para a língua portuguesa, e recorda ao governador Carvalho Viegas que onde se põe uma igreja também se deve pôr uma mesquita. Algo mudará nos anos seguintes, com o Ato Missionário, em consequência da Concordata de 1940, mas serão os italianos a aparecer com mais força, como se sabe.

Um abraço do
Mário



Acerca das missões religiosas na Guiné, década de 1930

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o n.º Res1-Est145, Pasta P-N.º9 consta um relatório assinado pelo Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Jorge Frederico Torres Vellez Caroço, com data de 19 de maio de 1934, dirigido ao Governador Carvalho Viegas. O assunto tem a ver com as missões religiosas na Guiné e inicia-se num tom um tanto bombástico:
“Serão talvez as minhas palavras a minha sentença de morte como elemento de ação funcional nesta colónia, mas não importa, pois que, acima dos interesses pessoais e dos interesses de coletividade estão os da Nação. Abordo, Sr. Governador, o problema das Missões Religiosas.
Tem colhido benéficos resultados para a colónia vizinha a ação desenvolvida pelos seus missionários e o seu cuidado vem sendo tal que têm educado e feito missionários indígenas – conforme em tempos idos em Portugal se praticava – entre os quais se contam um Felupe e um Manjaco. Sabe V.ª Ex.ª quem são estes dois indígenas? Um Felupe de Jufunco e um Manjaco da Costa de Baixo. Dois indígenas da nossa colónia. Preferiram estes aos seus próprios indígenas. Sabe V. Ex.ª qual é a língua que estes e outros missionários franceses da região do Casamansa falam aos indígenas da sua própria colónia? O crioulo. Cito até um facto curioso e muito interessante. Em 1932 fez-se em Cacheu uma festa religiosa à Nossa Senhora da Candelária, a santa padroeira daquela vila. Vieram assistir à festa os missionários da colónia vizinha – a pedido dos missionários de Santo António de Bula – e autorizado pelo então vigário-geral nesta colónia, que impôs a condição de os missionários franceses pregarem obrigatoriamente em português e, de facto, tendo um deles subido ao púlpito para pregar disse o seu sermão em crioulo da Guiné, fazendo-se compreender por toda a gente melhor que os nossos próprios missionários. Mas há mais. Até o catecismo que é distribuído aos indígenas é escrito em crioulo da Guiné. Como eles cuidam de tudo, em que nós nem sequer pensamos…


É desolador, Sr. Governador, entrarmos em território estrangeiro e vê-lo repleto de indígenas portugueses, e a toda a hora nós vemos os missionários nas suas bicicletas percorrendo toda a região sem olharem a perigos. Numa palavra, as Missões Religiosas Francesas cumprem religiosamente a sua missão; as nossas têm até hoje sido nulas ou quase nulas, procurando instalar-se apenas nos grandes meios, ou nos meios mais pacíficos, rodeados unicamente dos indígenas chamados cristãos, desenvolvendo apenas o seu papel de padres e tendo até hoje posto completamente de parte a sua ação missionária e civilizadora. Até em Bula, único meio indígena onde instalaram a sua ação, longe trazer benefícios à colónia, tem trazido inconvenientes.

Caraterizava outrora os nossos missionários o espírito de sacrifício levado ao exagero, ao serviço da Cruz, sim, mas ao serviço da Nacionalidade, carateriza-se hoje o espírito da conveniência e do comodismo, com um desapego quase absoluto pelos interesses da nação, preocupando-se apenas com o que convém à sua comunidade e querendo apenas ser padres. Têm oposto, como V.ª Ex.ª sabe, uma resistência passiva enorme à sua ida para os Felupes e os Bijagós. Para que são necessários missionários em Cacheu e Geba? Para que são necessários três missionários em Bula? Porque não se vão estabelecer nas regiões em que os interesses da Pátria exigem a sua presença? A sua função na colónia não é dizer missa, não é para isso que ela faz o sacrifício de centenas de contos. Se as populações católicas das povoações aonde estão fixados querem padres que façam como se faz na Metrópole, que os mantenham, porque os missionários são necessários para outros fins, e estes não se resumem apenas em aumentar o número de adeptos à religião cristã, circunstância que dentro do importantíssimo papel que lhes compete desempenhar deve ocupar apenas um lugar secundário. Vejamos o que dizia esse grande português e colonial que se chamou António Enes, no seu relatório de 1893: ‘O catolicismo já dispôs de toda a África Portuguesa durante séculos, quando também dispunha de heróis e mártires para o apostolado, quando a espado servia de haste à Cruz, quando eram de oiro as conchas dos batizados, quando se exterminavam povos para lhes salvar as almas, quando os mosteiros eram paços tendo reinos por cercas, e, todavia, da sua propaganda e da sua tutela, servidos pelo poder civil de joelhos, impostas pelas armas quando não logravam fazer-se aceitar pela palavra, ajudados por todas as fascinações da riqueza, só ficaram ruínas pomposas nos sertões e nas crónicas memórias elegíacas de sacrifícios estéreis, ou triunfos efémeros! As ordens religiosas prestaram em África serviços que não se podiam exigir do seu caráter. Ensinaram coisas novas e muitas ciências, revelaram descobrimentos à Geografia, deram valiosos socorros à Política. Mas não deixaram arvorada a cruz senão onde a força ficou de guarda e esse símbolo da religião do amor não entranharam nos espíritos, nos sentimentos, nos costumes dos povos não ficou uma recordação do Cristianismo. Dos milhões de indígenas que batizaram não se gerou um cristão. De tantas conversões de régulos que operaram, não resultou uma única modificação no estado social das raças africanas".

E Jorge Velez Caroço continua:
“Em Portugal apenas se fazem padres e não os padres que nós necessitamos. É uma utopia pensar em aniquilar as crenças religiosas dos indígenas. Mas se o indígena for ao mesmo tempo educado no respeito pela Nação e identificado nas vantagens que do seu domínio resultam para o seu bem moral e material, teremos atingido os fins que a Nação exige, e a religião terá conquistado sempre o mesmo número de adeptos. É, pois, este último, o critério que devemos adotar. Há dias foi o administrador da circunscrição de Suzana procurado em Ziguinchor por indígenas Brames que do nosso passaram para o território francês, manifestaram-lhe a pretensão de voltarem e de se fixarem na área da circunscrição de Suzana, região de S. Domingos, desde que lhe dessem um padre e uma igreja, acrescentando ser grande – algumas centenas – o número de indígenas que tanto desejavam. Só a necessidade absoluta de instalar uma missão em plena região dos Felupes não fosse já indiscutível e imprescindível, a conveniência e a oportunidade de podermos povoar a quase deserta região de S. Domingos, só por si também impõe essa medida, e, assim, Sr. Governador, afigura-se-me indispensável a intervenção do governo da colónia na ação das missões religiosas aqui instaladas, impondo-lhes a obrigação de se fixarem onde os interesses da Nação assim o exigem, visto que a iniciativa com elas pouco os preocupa. As conveniências dos cristãos de Cacheu, Geba e outros pontos nada valem, em face dos interesses da Nacionalidade e obrigarem as missões a cumprirem o seu dever será motivo bastante para que elas amanhã agradeçam a quem as despertou do marasmo.
Pode V.ª Ex.ª com os meios de que dispõe auxiliá-los na construção de casa própria para a sua instalação e uma igreja na região dos Felupes, Suzana ou Varela podiam ser os pontos a escolher. A construção de uma pequena ermida em S. Domingos é também indispensável. Na região de S. Domingos há muitos indígenas que professam a religião muçulmana, e como estes não têm contato algum com aqueles que se aproximam dos princípios da religião cristã – porque o pediram já e porque tanto convém ao repovoamento da região – aconselhável se torna que auxiliemos também a construção de uma mesquita. Assina em Bolama, em 8 de março de 1934, Jorge Frederico Torres Velez Caroço".

Igreja de S. José de Bolama na atualidade
Casas da Rua de São José, na região de Alfândega, Bissau, década de 1890
Bissau na década de 1960, ao fundo a estátua de Honório Pereira Barreto
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22604: Historiografia da presença portuguesa em África (284): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22580: Historiografia da presença portuguesa em África (282): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Reduziu-se ao máximo as descrições elencadas pelo Tenente-Coronel Miguéis acerca das operações de pacificação entre 1834 a 1924, no essencial é matéria que interessa a estudiosos, no geral permite picar com uma grande angular da fragilidade da presença portuguesa e há que dizer claramente que continua a pôr-se muita emoção e a mostrar muita indignação por alegadas atropelos ao prestigiado Capitão Teixeira Pinto, sem nunca ter em atenção que Abdul Indjai praticou , e há relatos a confirmar essas depredações, saques, sequestros, roubos, assassínios, durante a campanha de pacificação. Acontece que os mercadores portugueses e estrangeiros que viviam ao tempo na ilha de Bissau queixaram-se ao governador que quem era comandante da campanha era o oficial português. Abdul fica como régulo do Oio (manda a verdade que se diga que ele era régulo do Oio e do Cuor), e tudo leva a crer que atuava praticando barbaridades. Que era ambicioso, basta ler esta peça histórica do seu aprisionamento, talvez o documento mais detalhado que conta a história do seu afastamento da Guiné.

Um abraço do
Mário


A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (3)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

O Tenente-Coronel Miguéis dá-nos porventura o relato mais detalhado sobre a prisão de Abdul Indjai, sugere que houve para ali uma tremenda cabala, intrigas sem fim que caíram sobre Teixeira Pinto, acusado de muita coisa. Quem toma posições pró e contra Teixeira Pinto e as tropelias praticadas por Abdul Indjai esquece-se de que Abdul Indjai tudo pilhava, consentia em todos os saques, sequestros, roubos, era a sua forma de manter os seus homens de mão satisfeitos. Só que estes saques, sequestros, roubos abrangiam direta e indiretamente comerciantes que denunciaram a situação através da Liga Guineense, o governo pôs-lhe termo, mas os ressentimentos ficaram, Abdul pôs-se a jeito para o ajuste de contas.
No texto anterior iniciámos a descrição destas operações, continuamos a dar a palavra ao relato do tenente-coronel Miguéis:
“Abdul Indjai tendo tido conhecimento que uma força de 30 soldados tinha saído de Farim acompanhando géneros para o posto de Mansabá, mandou dizer ao comandante do posto que se ele precisava de 500 carregadores lhos forneceria imediatamente.
Como não fosse aceite a oferta, Abdul saiu com uma força armada mas pouco depois foi ter com o comandante do posto de Mansabá pedindo-lhe que deixasse ir um cabo europeu com o seu sobrinho Alburi ao encontro da sua gente para avisar que não atacassem a força do alferes Figueira. Este alferes chegou com a sua força a Mansabá sem ter sido atacado, apesar de ter encontrado no caminho bastantes jauras (homens de guerra armados). Reforçado o destacamento, Abdul tratou de isolar os Oincas do posto, para evitar que o comandante tivesse conhecimento do que fazia a sua gente, mas ele próprio fornecia lenha e água aos nossos soldados.

Em 29, seguiram de Farim para Mansabá 6 carregadores com géneros para a guarnição do posto, indo com eles o indígena Bacar Sedibe que ia ter com um seu irmão, ex-soldado que fazia o serviço de auxiliar.

Em 30, este indígena declarou ao comandante de Farim que tendo pernoitado numa tabanca de Bironca ali compareceram alguns jauras que pretendiam degolá-lo, conseguindo fugir depois de ter levado algumas espadeiradas.

Em 1 de agosto, constou ao Capitão Lima ter havido tiroteio entre a gente de Abdul e as forças de Mansabá. Jancó Dabó com os auxiliares segue em auxílio do posto e ao mesmo tempo segue uma força sobre o comando do Alferes Trindade, com 1 sargento, 3 praças europeias, 25 indígenas e 49 auxiliares. Acompanha esta força o Capitão Lima que ao chegar à povoação de Demba-Só lhe foi entregue por um Oinca uma carta em que se dizia “estamos cercados, temos Alferes Figueira ferido com certa gravidade, dois soldados feridos e um morto”. Chegado próximo de Mansabá pelas três horas, o Capitão Lima ouviu o tiroteio mas não lhe foi possível continuar a marcha porque os auxiliares se recusaram a acompanhar a coluna com receio de que o posto fizesse fogo contra eles.
Às 5-30 pôs-se a coluna em marcha para Mansabá sendo surpreendida por um tiroteio dos jauras que estavam emboscados ao longo da estrada de Lanfarim, cujo ataque foi repelido pela coluna e pelo posto.

Em 2, o Alferes Figueira faleceu pelas 4-30 horas e as colunas ocupando as quatro faces do posto fez fogo sobre os jauras. Dois auxiliares que saíram para buscar água foram feridos e por este motivo os auxiliares Mandingas, Oincas e Grumetes desanimaram. Os jauras atacaram a face leste do posto e pouco depois o Alferes Trindade, tendo derrubado o querentim onde eles se abrigavam, assim como cortado o milho, dirigia um ataque que tinha por objetivo destruir todos os abrigos impelindo os jauras contra a tabanca de guerra de Abdul.
Às 19 horas as povoações estavam em chamas e a coluna aproximava-se da tabanca de Abdul, quando se ouviu vivo tiroteio para os lados de Mansabá-Mansoa. Era o Alferes Alberto Soares que chegava com uma coluna de 277 homens e uma peça de 7 cm.

Na madrugada de 3 fizeram-se alguns tiros de canhão contra a tabanca de Abdul e logo a seguir veem-se duas bandeiras brancas, uma na tabanca de Abdul e outra na morança de Alburi Indjai. Cessado o fogo, dirigiu-se para o posto Alburi Indjai que vinha comunicar que Abdul Indjai se rendia com toda a sua gente que estava dentro da tabanca. Estando já a amarrar fechos de armas para delas fazer entrega. Pouco depois Abdul Indjai era preso.

Em 16 de agosto, a P.P. n.º 343 declara terminadas as operações no Oio, com a derrota das forças e a captura do ex régulo Abdul Indjai, levanta-se o estado de sítio na circunscrição de Farim e regiões dos comandos militares de Bissorã e Balantas. Nesse mesmo dia são extintos os comandos militares de S. Domingos, Papéis, Bissorã e Balantas.

Em 29 de agosto, por P.P. n.º 385 é demitido do posto de tenente das forças de 2.ª linha e de régulo da região do Oio Abdul Indjai. Assina esta portaria o Governador Henrique Alberto de Sousa Guerra. Mais tarde este homem é deportado para Moçambique, tendo ficado em Cabo Verde, onde faleceu.
Deste modo termina a vida do herói que nas campanhas de Bissau, comandando os seus soldados, empregou com excelentes resultados o fogo por descargas, cujos efeitos ele bem conhecia. Durante a rebelião nunca foi visto a comandar um único homem nem tão-pouco a sua gente fazer uso dessa espécie de fogo”
.

Recorda-se ao leitor que o Tenente-Coronel Miguéis procedeu a um levantamento relacionado com as campanhas de pacificação, por determinação do Governador Velez Caroço, é um documento de leitura obrigatória e que encerrará, estou em crer, o relato mais detalhado das operações que levaram à prisão de Abdul Indjai. O mistério das acusações sobre Teixeira Pinto em estreita conexão com as práticas de pirataria atribuídas a Abdul Indjai carece de estudo e estranho é que a historiografia portuguesa não procure uma explicação documentada não só por se tratar do herói da pacificação mas por poder envolver razões fundamentadas por parte de quem foi esbulhado pelos homens de guerra de Abdul Indjai.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22562: Historiografia da presença portuguesa em África (281): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2) (Mário Beja Santos)