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terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Tabanca de Iale Varela > Dezembro de 2010 > Crianças felupes.

Foto:  © Patrício Ribeiro (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



1. Mensagem de ontem do Jorge Cabral...(e lá dentro uma estória de encantar, que só podia sair da "pena de ouro" do nosso "alfero Cabral"):


Com os votos de um Natal-Natal! E um GRANDE ABRAÇO! 
 J. Cabral


2. Estórias cabralianas > Uma floresta de árvores de Natal... Ou natalício apanhanço ?

por Jorge Cabral

[ex-alf mil art, cmdt Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71; jurista, prof ensino sup univ, reformado]

A 24 de Dezembro pela manhã, fomos a Bambadinca. Trouxemos bacalhau e o correio. 

Para mim chegou uma carta dos meus sobrinhos, escrita pela minha irmã. Dentro dela, um desenho do Pai Natal. Barba branca e uns óculos na ponta o nariz. Tal e qual eu ,agora…

À noite consoámos. Nem tristes, nem alegres.

No dia 25, como fazia sempre de madrugada, fui atrás do meu abrigo, junto ao arame, aliviar a bexiga. Mas, mesmo antes de iniciar a função, olhei a mata. Olhei e vi todas as árvores enfeitadas com luzes e bolas cintilantes:
 –Venham ver! – gritei.

Toda a gente dormia... Só apareceu um puto, o Braima, neto da Binta, que ficou extasiado.

Ao almoço relatei a maravilha. Ninguém levou a sério.  Chamei o Braima, mas de nada serviu. Natalício apanhanço, comentou o Branquinho…

Quarenta e quatro anos passados, confirmo. Eram milhares de árvores de Natal.!

Já contei ao meu neto. Acreditou…

Jorge Cabral

__________________

Nota do editor:

Últimos cinco  postes da série > 


(...) Um dia, ouvi, em Bambadinca, que ia haver um campeonato de futebol. Para além da CCaç 12 , entravam todos os Pelotões e Serviços da CCS. Inscrevi o Pel Caç Nat 63, embora não tivéssemos equipa, nem sequer bola, que me apressei a adquirir.

Chegado a Fá, ordenei treinos diários. Tarefa difícil, pois os meus soldados africanos nem as regras conheciam. Eram fortes e rápidos, mas pareciam especialistas em sarrafadas. Para tirar a bola ao adversário valia tudo. (...)



26 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12345: Estórias cabralianas (83): Da Gata Catota à Tabanca da Queca... (Jorge Cabral, com bolinha...)

(...) No fim dos anos 70, era um simpático advogado, com muitas clientes que me gabavam a grande sensibilidade…Entre elas, destacava-se a D. Prazeres, que eu divorciara de um marido violento e me assediava todos os dias, com questões que, de jurídico, tinham muito pouco. (...)


2 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12238: Estórias cabralianas (82): Quando cabeças e rabos não são equivalentes, e nem sempre dois mais dois são igual a quatro: O Sitafá, as fracções e as sardinhas (Jorge Cabral)

(...) Em Missirá durante dois meses, estivemos sem abastecimentos. Época das chuvas, o sintex e os dois unimogues avariados .Ainda tínhamos conservas,mas faltavam as batatas, o vinho e o arroz para os africanos. Um dia porém, o Pechincha conseguiu fazer dos dois burrinhos, um, que andava. Fomos a Bambadinca, deixando a viatura, à beira da bolanha de Finete, que atravessámos até ao rio, o qual cambámos na piroga do Fodé. (...)


30 de outubro de 2013 > Guiné 63/74 - P12222: Estórias cabralianas (81): Em Vendas Novas, de ronda, na Tasca das Peidocas (Jorge Cabral)

(...) Em Janeiro de 1969, eis-me garboso aspirante na E.P.A. [Escola Prática de Artilharia], em Vendas Novas. Ao contrário dos outros aspirantes, encarregados da instrução no C.S.M. [, Curso de Sargentos Milicianos], eu fui colocado na Secção de Justiça e na Acção Psicológica, sendo ainda nomeado árbitro de andebol da Região Militar. (...)

13 de setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)

(...) Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte. (...)


terça-feira, 17 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13300: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XI: (i) a história de um acidente com uma viatura por causa do "enterro do bacalhau"; (ii) sonâmbulos e "apanhados do clima"; e, por fim, (iii) com minas e armadilhas não se brinca(va) (Avelino Pereira, madeirense)





1. Histórias da CCAÇ 2533 > Parte XI (Fur mil at inf, minas e armadilhas, 4º pelotão, Avelino Pereira, madeirense)

Continuamos a publicar as "histórias da CCAÇ 2533", a partir do livro editado pelo 1º ex-cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). Esta publicação é uma obra coletiva, feita com a participação de diversos ex-militares da companhia (oficiais, sargentos e praças).

A brochura chegou-nos às mãos, em suporte digital, através do Luís Nascimento (que também nos facultou um exemplar em papel e que, até ao momento, é o único representante da CCAÇ 2533, na nossa Tabanca Grande).

Temos autorização do editor e autores para dar a conhecer, a um público mais vasto de amigos e camaradas da Guiné, as aventuras e desventuras vividas pelo pessoal da CCAÇ 2533, companhia independente que esteve sediada em Canjambari e Farim, região do Oio, ao serviço do BCAÇ 2879, o batalhão dos Cobras (Farim, 1969/71).

Desta vez vamos publicar o restos dos  episódios, contados pelo fur mil Avelino Pereira, do 4º pelotão, madeirense, e  que correspondem às pp. 53/55.  (i) a história de um acidente com uma viatura por causa do "enterro do bacalhau"; (ii) sonâmbulos e "apanhados do clima"; e, çpor fim, (iii) com min as e armadilhas não se brinca(va).

Na foto que se publica em cima, o nosso camarada, pode facilmente identificar-se o nosso camaraada, o ex-1º cripto Luís Nascimento.










___________

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11097: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) (Parte III): A nossa messe, no Quartel de Baixo, em Nova Lamego, decorada pelo famoso Pechincha, fur mil op esp e desenhador de profissão



Guiné > Zona leste > CART 11 (Nova Lamego, Piche, Paunca, 1969/1970) > Lendo a revista brasileira "O Cruzeiro", na nossa messe em Nova Lamego, no Quartel de Baixo...Decoração a cargo  furriel mil op esp Pechincha (que depois foi para o QG).

Foto (e legenda): © Abílio Duarte (2013). Todos os direitos reservados. (*)

1. Perguntou o Hélder de Sousa, em comentário ao poste P11092:

Caro camarada Abílio Duarte

Na legenda da 2ª foto está escrito "Lendo a revista brasileira "O Cruzeiro", na "nossa messe em Nova Lamego, decorada pelo furriel Pechincha".

Ora bem, quem era 'esse' furriel Pechincha?

A pergunta deve-se a que,  quando cheguei à Guiné, em Novembro de 1970, fiquei alojado num quarto em Santa Luzia ocupado por três furriéis, dois amigos de Vila Franca e o terceiro era um tal Pechincha que tinha feito parte dos quadro duma 'companhia nativa' e que por aquele tempo desempenhava uma função qualquer no QG, na Amura.

Será o mesmo Pechincha? O nome não é assim tão vulgar...

O que eu refiro era, antes da incorporação, e ao que me foi dito, desenhador na Câmara de Lisboa e vivia em Moscavide. (**)

Abraço
Hélder S.

 2. Respondeu o Abílio Duarte na caixa de comentários do mesmo poste,  P11092:

Olá Helder,

É  esse mesmo,  o Pechincha que eu refiro, era o Furriel de Operações Especiais, da Escola de Lamego. Éramos os dois do mesmo pelotão, desde Penafiel até Nova Lamego.

Só que o malandro era desenhador, e quando chegamos ao Gabú, deram-nos o Quartel de Baixo, Como era conhecido na altura. Como aquilo estava abandonado, e não tinha muitas condições, o nosso Capitão desafiou-o a fazer uns desenhos para as casas de banho e outras, para quando fosse a Bissau ir ter com o padrinho dele, que era o Cor Robin de Andrade, para arranjar uma cunha e ter materiais de construção para nós fazermos as obras.

O que aconteceu foi que os desenhos eram tão bons que o Pechinchja foi para Bissau, e nunca mais voltou. Mas os materiais vieram. A seguir souberam que o meu Alf comdte de pelotão era Eng Civil, e foi também para os reordenamentos, e também nunca mais voltou. Nem foram substituídos. Estás a ver o filme, não estás !?,,,

O mais giro desta foto, mas não se consegue ver, é que o Pechincha nos seus desenhos punha os bonecos com frases do Spinola, e a nossa preocupação era,   se aparecesse o Spinola, termos sempre uma brigada pronta para apagar as bocas do Pato Donaldo e companheiros.

É esse Pechincha que conheceste em Bissau, e garanto-te que era um artista, aí lá se era.

Um Abraço.
Abílio Duarte
____________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 13 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11092: Álbum fotográfico de Abílio Duarte (fur mil art da CART 2479, mais tarde CART 11/ CCAÇ 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paúnca, 1969/70) (Parte II)

(**) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2556: Estórias de Bissau (16) : O Furriel Pechincha: apanhado ma non troppo (Hélder Sousa)


(...) Pois este amigo Pechincha, que era, salvo erro, de Moscavide e trabalhava como desenhador na Câmara Municipal de Lisboa, tinha fama de estar um bocado apanhado e com uma pancada enorme, mas acho que aquilo era mais para ganhar fama e beneficiar dela.

Digo isto porque tive com ele algumas conversas, muito interessante e educativas, que me elucidaram bastante sobre a situação que se vivia e como ele pensava que se iria desenvolver, o que, no essencial, não divergiam muito do que eu pensava.

Mas também não deixava a sua fama por mãos alheias e logo na noite de 11 para 12 de Dezembro fui testemunha privilegiada duma dessas situações.

Nessa noita comemorava-se o S. Martinho. Eu fui portador para os amigos vilafranquenses de alguns quilos de castanhas e de um garrafão de água-pé (por sinal, bem forte!), além de outros mimos. Com um bidão, em frente às camaratas onde os quartos se encontravam, fez-se o assador e então vá de comer chouriços assados, salsichas e castanhas, tudo bem regado com a dita água-pé e outras bebidas estranhas, em grandes misturadas (cerveja, uísque, coca-cola, etc.), tudo a animar uma simulação de uma emissão de rádio protagonizada pelos camaradas das Transmissões com jeito para a coisa, como por exemplo o Furriel Roque.

Com o avançar das horas era tempo de serenar, descansar os corpos e retomar forças para o dia seguinte. Acontece é que, como sempre sucede em situações semelhantes, nem todos estavam pelos ajustes e com a previsão para breve da viagem de regresso do Carvalho Araújo havia alguns, cujos nomes não ficaram registados na minha memória, que integrariam essa viagem final para a peluda, como diziam, e estavam dispostos a prolongar a sua festa, até com atitudes menos próprias e profundamente negativas, principalmente para quem tinha fortes experiências no mato, como seja arremessar as garrafas vazias para cima dos telhados de zinco dos quartos o que, como calculam, a mim ainda não produzia efeito mas para quem já tinha reflexos condicionados era bastante aborrecido.

Ora o nosso bom Pechincha avisou solenemente os meninos que ou paravam imediatamente a graçola ou tinham que se haver com ele à sua maneira. Dada a fama que tinha, que não regulava lá muito bem e que era bem capaz de usar arma, os ânimos serenaram quase de imediato e na generalidade mas, também como sempre sucede, há sempre alguém que procura forçar a sorte e um deles, que também me disseram que estava apanhado (afinal, quem é que não estava?, acho que dependia do grau) resolveu irromper no nosso quarto com uma panela na cabeça e a bater com duas tampas como se fossem pratos duma banda de música.

Entrou, com ar de quem estava muito contente da vida e satisfeito por desafiar as ordens, mas o que eu vi de imediato foi o nosso amigo Pechincha, que estava estendido sobre a sua cama e que era logo a primeira à entrada, estender o braço sobre a cabeceira da cama, agarrar numa espécie de um dos dois machados nativos que estavam lá a enfeitar e sem mais explicações nem argumentos arremessou-o para o intruso, acertando-o na panela que estava na cabeça, deixando-o com o ar mais aparvalhado de perplexidade que vi até hoje, deixar o quarto a tremer e a balbuciar "este gajo está de facto mais apanhado do que eu!". (...)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10569: (Ex)citações (201): Não me lixem com o Pifas! (Salvador Nogueira)

1. Mensagem do nosso leitor (e camarada, ex-oficial paraquedista que passou pelos 3 TO da guerra de África), Salvador Nogueira (de quem, naturalmente, não temos nenhum foto já que já não é nem pretende vir a ser grã-tabanqueiro):

Data: 23 de Outubro de 2012 19:50

Assunto: Desabafo

Amigo Luís,

tu, tendo estado 24 meses à espera do avião para Lisboa - presumo- qualquer que fora a tua especialidade, operacionalidade, efectividade, produtividade e outras coisas acabadas em 'ade', estiveste no mato e,  tendo vivido lá, com tudo o que isso deixa entrever de bom ou mau - nem todos tinham que ter a mania de ser 'desportistas'- poupa-me aqueles merdas do Pifas e do caraças!

Se há coisa que ainda hoje não consigo conter é uma agressividade surda em relação aos galarozes que ficavam em Bissau porque sim. Isto, sem falar na Polícia Militar, claro... é outro nível de merdice e é, era!,  para tratar à porrada ou a cagar de muito alto.

Bem, o Pifas é um boneco sem graça, descaracterizado. Lembra estranhamente aquele mamarracho da Expo98, também descaracterizado, estúpido; mas é um boneco. Agora, a recordação periódica daqueles merdas da rádio e das suas actividades pseudo-sérias, é para irritar quem dormiu em Madina Xaquili ou para verificar o desportivismo de quem fazia emboscadas às guardas de flanco do PAIGC no corredor do Guileje?

Em bom jargão - não me f... ! Que eu bem me lembro quem fazia e quem não fazia nenhum lá na Guiné; a começar por alguns vistosos acólitos do General Caco e a acabar nuns alferes filhos-d'algo, passando p'os pifas e fifas e ...

desculpa o estendal!

Um abraço, Salvador.

PS - E se publicasses este palavreado todo havia porrada no Rossio ou continuávamos todos muit'amigos como dantes? Não eu e tu, a malta do tabancal...
_______________

Nota do editor:


sábado, 13 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10528: (Ex)citações (200): Pois que viva... o VAT 69! (Tony Borié / Luís Graça)



1. Mensagem do Tony Borié, um camarada luso-americano, a propósito de um comentário do editor L.G.  ao seu último poste, P10524:

Olá, Luis. Este poema (*), vai para o meu espólio de guerra. Já lá está. 

Que o Criador continue por muitos e longos anos a inspirar-te, e dar voz aos teus sentimentos, que são o de muitos milhares de antigos combatentes, felizmente ainda vivos, e que os podem ler, e ver neles a sua imagem reflectida. 

Estou um pouco longe do meu querido Portugal, já não uso o passaporte de Portugal, mas continuo a chorar ao ouvir o hino de Portugal e a sofrer ao lembrar-me na nossa vivência em África. 

Por favor, continua a dar vida à tua página na Internet, que é um grande motivo de coragem, e a voz de milhares de antigos combatentes. Talvez sem quereres, já fazes parte do património da história do nosso conflito com as antigas colónias de África. 

Um abraço do amigo, Tony Borié.

(*) Comentário de Luís Graça  ao poste P10524:

Tony, Ganda Cifra!... Pois que viva o Vat 69!... Ajudou-nos a (sobre)viver!... (Felizmente que eu nessa altura não era um homem... da saúde pública!). 

(...) Retenho ainda a imagem
Do nosso patético duelo
No bar de sargentos de Bambadinca,
Tendo por arma, letal,
Uma garrafa de VAT 69
(Ou era Jonhnie Walker ?
Ou White Horse,
a tal do cavalinho branco ?
Já não me lembro do rótulo,
Sei apenas que era scotch,
E do bom,
Daquele que vinha
From Scotland
For the Portuguese Armed Forces
With love!
)…

Um duelo de morte,
Gole a gole,
Até ao gole final,
Em menos de 15 minutos!...
Com árbitro e tudo,
Apostas a dinheiro,
Mirones e claques de apoio,
Como mandavam as regras
Dos apanhados do clima de Bambadinca!

Apanhados do clima, dizes bem,
Exaustos,
Usados e abusados,
Filhos de um Sísifo menor,
Condenados ao mais insano dos suplícios,
Uma guerra a que chamavam
De contra-guerrilha,
Uma guerra do gato e do rato…
Não, não, era a roleta russa,
Ninguém tinha pistolas de tambor,
Era o fado lusitano,
Era o fado da Guiné,

Meu camarada, meu amigo, meu irmão,
Era a nossa triste condição,
Era a nossa quiçá estúpida, mas viril, maneira
De matar… o tempo,
O tempo em tempo de guerra,
O tempo de espera entre uma e outra operação.
O tempo de espera que podia ser
Entre a vida e a morte.
Era a insanidade mental,
Era a raiva, traiçoeira,
Era a lucidez da loucura a tomar conta
De nós….

(...)

In Luís Graça > Blogpoesia > Elegia para um paisano.

2. Comentário do Tony Borié ao comentário do editor L.G.:

Olá, Luis:

O teu poema ao Vat 69 e outros" scotchs" é  um hino às horas que nós,  antigos combatentes, passávamos, nos intervalos da guerra, que sofremos no corpo e na alma!. Bem hajas. Nessas horas, éramos nós, oriundos da Europa, onde entre dois scotchs, dávamos largas aos nossos sentimentos, de amizade, abraços, amor ao próximo, esperando a paz dentro da guerra, e algumas chorávamos, lembrando o nosso recanto no Portugal, que o mapa colocou à beira mar plantado!. 

Nas minhas andanças pelo mundo, em alguns países, não havia Vat 69, e então olhava a garrafa e pedia um "cavalinho branco" [, White horse,] , como me sabia esse scotch, fechava os olhos e pensava no chão vermelho, no arame farpado, e no cheiro a camuflado sujo, roto e cheio de lama que via nos meus colegas secarem encostado ao meu mosquiteiro!. 

Não vou continuar, porque vou começar a ser piegas, e isso não é bom num antigo combatente!. Um abraço, Tony Borié.

________________

Nota do editor:

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Guiné 63/74 – P8377: Memórias de Jolmete (Manuel Resende) (2): FNAC - Fundação Nacional dos Apanhados do Clima

1. O nosso Camarada Manuel Resende*, ex-Alf Mil At da CCaç 2585 do BCaç 2884, que esteve em Jolmete, Pelundo e Teixeira Pinto, (1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem:

BCaç 2884 – Mais Alto
CCaç 2585 – Aquela Máquina


O tempo da nossa passagem pela guerra, mais concretamente pela Guiné, não foi feito só de tristezas, desalentos, saudades, … enfim, tantos outros sentimentos que não vale a pena enumerar. Também passamos os nossos bons momentos de boa disposição, camaradagem, convívio, etc. 

Na companhia 2585 de Jolmete 1969-1971 houve, em determinada altura, meados de 1970 depois do assassinato dos Oficiais do CAOP, um grupo de graduados, que de tão apanhados que estavam, criaram a FNAC. Não estejam já a imaginar uma empresa de ar condicionado para a Guiné, nem tão pouco uma editora de livros ou discos de vinil. Não, tratava-se pura e simplesmente de uma fundação. A “FUNDAÇÃO NACIONAL DOS APANHADOS DO CLIMA”, em abreviaturas FNAC.

A FNAC era composta por todos os oficiais e sargentos da Companhia 2585 que quisessem aderir. Praticamente aderiram todos. Os aderentes, como fazia parte dos estatutos, tinham de ter um nome artístico. Depois de fazerem o juramento de adesão, ficavam a pertencer ao grupo dos “organizados”, pelo que recebiam o respectivo cartão de “sócios”. Junto fotos de alguns cartões (só consegui estes).


De cima para baixo, da esquerda para a direita: Fur Mil Araújo, Alf Mil Godinho, Fur Mil Gomes, Fur Mil Gondar, Alf Mil Ferreira, Fur Mil Filipe, 2ºSarg Mesquita, Fur Mil Rodrigues e 1ºSarg Vinagre

A direcção da FNAC era exercida por:

Presidente: José Manuel Gonçalves Rodrigues (ex-fur), de nome artístico “GEM-GIS-KAN”
Secretário: António Alberto Miguéis Marques Pereira (ex-alf) de nome artístico ” WASINGTON”.

Tesoureiro: Manuel Joaquim Meireles (ex-fur) de nome artístico “O MENINO DO BARREIRO”. 

Além dos estatutos pensados e escritos ponto a ponto, com a colaboração dos associados, e votados sempre em assembleia-geral, e do cartão individual com foto artística do associado, foi desenhado pelo (ex-fur) Cristo um emblema de lapela. Aproveitando a vinda de férias à Metrópole do nosso presidente, foi encarregue de os mandar fazer na Fotal em tempo útil. Assim aconteceu.



Capa dos estatutos da FNAC
 
 

À distância de 40 anos tenho pena que o parágrafo nº 1 dos estatutos restringisse a adesão apenas a graduados da CCAÇ 2585, pois tivemos muitas solicitações para aderências por parte de outros que gostariam de pertencer, o que viria a valorizar no futuro (agora) os convívios. Enfim, temos de interpretar os estatutos à luz dos tempos de então, apanhados, à espera da peluda e cheios de boas intenções.

Agora perguntam os amigos leitores deste apontamento… “então e onde está a FNAC”? Boa pergunta, mas sinceramente não sei responder. Ainda tenho esperanças, com a ajuda desta publicação de nos voltarmos a reunir. Tenho contactos com o presidente, o (ex-fur) Rodrigues, que vive no Fundão e com o tesoureiro o (ex-fur) Meireles, que vive em Linda-a-Velha. Espero que o (ex-alf) Marques Pereira também apareça.

A FNAC, paralelamente ao que acontecia na parte militar, também deu alguns louvores aos organizados que mais apanhados estivessem. A mim tocou-me também esse galardão, que passo a reproduzir.

 .



A seguir vou publicar uma cópia dos estatutos.

 





A FNAC tinha também como missão animar todo o pessoal da 2585, não eram só os graduados que andavam stressados. Para isso fundamos a “RADIO PIRATA DE JOLMETE”. Esta Rádio, cujo aparelho transmissor era um receptor a válvulas do curso da “RÁDIO ESCOLA” que eu tinha tirado no último ano antes da minha entrada na tropa, e que tinha levado para a Guiné, serviu para, com uma adaptação feita por mim, transformá-lo em “receptor-emissor”.

Com uma boa antena cedida pelo nosso furriel Gomes de transmissões, e instalada entre a minha caserna e o refeitório dos soldados, conseguia captar perfeitamente a EN em onda média e dar um pouco de música durante o jantar. Convém dizer que o som era dado por uma coluna feita pelo nosso carpinteiro, tipo corneta com um altifalante que eu levei e que me tinha custado na “Astro-Técnica” 2.200$00, com 40 W de potência. Pesava cerca de 10 KG. 

Mais à noite retransmitia a EN e outras em onda curta, numa frequência que todos os pequenos receptores a pilhas com OM-OC captavam. Nesta frequência era transmitido também um programa de discos pedidos que às vezes fazíamos, no abrigo do Comando, numa pequena sala do 1º Sargento Vinagre.

Na foto que a seguir mostro, vê-se o grupo de locutores em acção. À esquerda o (ex-fur) Guarda, ao centro o (ex-fur) Rodrigues (nosso presidente) e à direita o (ex-alf) Marques Pereira (nosso secretário).

Fotos: © Manuel Resende (2010). Direitos reservados.

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

10 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5246: Memórias de Jolmete (Manuel Resende) (1): A visita dos Deputados a Jolmete em Julho de 1970

domingo, 29 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8346: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Não se brinca com coisas sérias...

1. Mensagem José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 26 de Maio de 2011:

Caro Vinhal

Junto nova história para integrar nas "Memórias boas da minha guerra".

Trata-se de mais uma das muitas ligadas ao meu amigo Furriel Faria, mais conhecido pelo Berguinhas.

Junto também fotos de um "Casamento" em Canquelifá, de onde destacamos a "noiva" (Berguinhas), o seu "pai" (Branquinho) e o rapaz que segura a cauda do vestido (Massamá).

Um grande abraço do
Silva da Cart 1689



Memórias boas da minha guerra (18) >  Brincar com coisas sérias? Parece, mas não é

Vivia-se pacatamente em Canquelifá nos últimos tempos da nossa comissão. Não havia guerra (só uns patrulhamentos de rotina). A alimentação era razoável, o que não tinha acontecido até então. Tudo era pretexto para brincadeira, enquanto se esperava calmamente a viagem do regresso.

Todavia, havia uma excepção. O “Dôtô” Faria, era o Furriel Enfermeiro, conhecido também por “Pastilhas” e, essencialmente, por “Berguinhas”. Era um indivíduo excepcional: humilde, solidário, humano e… bastante divertido. Dava gosto lidar com ele. Mas quem mais gostava dele era a população local e a… senegalesa, a quem se dedicava religiosamente.

Prestava assistência médica permanente e como fazia autênticos milagres, estava sempre extremamente ocupado. Dormia na Enfermaria e, quando acordava, já tinha uma fila de dezenas de metros - doentes vindos, durante a noite, de distâncias até 70 Km do outro lado da fronteira.

Porém, também gostava de se divertir e, para isso, tinha que acamaradar com o grupo de amigos mais chegados. Ele, que jogava bem às cartas (nunca vi melhor na sueca), era o primeiro a prolongar o almoço, com a jogatana.

Várias vezes tínhamos que interromper o jogo para ele poder dar indicações aos cabos enfermeiros ou, até, ter que intervir de imediato. Recordo-me de uma mulher que se aproximou de nós e, como se expressava mal, abriu o pano que a envolvia, a fazer de saia, e mostrou o cordão umbilical pendendo, pedindo, por gestos, para ser cortado.

Um dia jogávamos numa mesa, junto à vedação. Uma bajuda aproximou-se da rede e chamou-o:
- “Dôtô, Dôtõ, pingo pa mi pai”?

O “Doutor Berguinhas” jogava, entusiasmado, mais uma sesta de Ramy.
- Eu vou lá, mais logo, lá para as 4 ou 5 horas – respondeu o Berguinhas.

A bajuda estendeu o braço, fazendo um ângulo de, aproximadamente, 45º e perguntou:
- Quando o sol está lá?

O Berguinhas confirmou ser a essa hora. Passado um pouco, voltou a bajuda, agora mais preocupada:
- “Dôto, Dôto, pingo pa mi pai. Ele manga di doente”

O “Berguinhas” respondeu que iria lá já de seguida. Logo que a rapariga se afastou, o Santana, coadjuvado em coro pelos outros colegas de jogo, interpela o Berguinhas:
- Que merda é esta, pá? O velho não escapa e andas aqui a estragar o jogo, todos os dias, por causa dele. Resolve a situação, porque isto assim não pode continuar.

O Berguinhas pediu para chamarem o cabo enfermeiro. Logo que este chegou, disse-lhe:
- Pegas naquela caixinha de cor alaranjada que está na última prateleira, do lado direito e vai dar uma injecção ao velhote Sali, o pai da bajuda Salem.

Depois do jantar, a malta voltou a reunir-se na esplanada, debaixo das mangueiras. Entre bebida, anedotas e provocações, lá se ia matando o tempo da melhor maneira. Surge então, pela boca do Amed, que estava de passagem, a informação de que o velhote Sali havia falecido.

Logo os mesmos que haviam atacado o “Berguinhas” ao principio da tarde por estar sempre a interromper o jogo, agora o acusam:
- Ó meu caralho, não me digas que mandaste matar o velho?... Só porque te incomodava à hora do jogo?... Tiveste coragem para fazer uma coisa dessas?... Tens a mania que és religioso e fazes uma merda destas! Francamente, há gajos que não têm consciência nenhuma!

O Berguinhas, afectado pela surpresa, não sentia forças para reagir àqueles “velhos apanhados do clima”. Deitou os olhos para o céu, benzendo-se repetidamente e exclamou em voz alta:
- Ó Virgem Santíssima, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, que mal fiz eu a Deus para ter que aturar estes filhos da puta... Vós sabeis que se eu os aguentar até ao fim, irei ao Sameiro de joelhos desde cá do fundo, da curva das Madalenas! E vou também a Fátima a pé, onde andarei à roda da Basílica, de joelhos, até não poder mais. Por favor, dai-me mais uns meses de vida, para eu poder cumprir as promessas.

Casamento em Canquelifá > Ao fundo, a noiva (Berguinhas) acompanhada de seu pai (Branquinho). Mais à frente o noivo (?) acompanhado pela mãe (?). Em primeiro plano o Padre e o rapaz da caldeira.

Casamento em Canquelifá > Os noivos, provavelmente já (mal) casados. A jovem que segura no véu, generosamente decotada, é o Massamá

Casamento em Canquelifá > Fotografia de conjunto

************

Nota: O Berguinhas era esmeradíssimo no tratamento dos doentes. Era um autêntico milagreiro e, por isso, era respeitado e adorado pela população como um santo. Os diálogos que aqui se reproduzem são verdadeiros, mas, da parte de quem o interpelava e, depois, acusava, não passavam de “provocações” de quem muito o respeitava e apreciava, mas que ele tomava como autênticos.
Veio a morrer em acidente de viação poucos meses depois de regressarmos.

Silva da CART 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8267: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (17): O Cabo velho

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos

1. Mensagem de José Brás (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 6 de Julho de 2009, com um belíssimo texto que se transcreve mais abaixo, integrado na série Vindimas e Vindimados:

Carlos, camarada

Para não perder o ritmo aqui vai mais um texto com mais um abraço. Quer dizer, com muitos abraços, como verás na leitura dele. José Brás


ACHAMOS NÓS QUE NÃO NOS CONHECÍAMOS*

Cego sou
e surdo
porque passas tão perto
e não te vejo
nem oiço
fazendo o teu caminho
no poema de Machado
prolongamento apenas
de ti próprio

Achas tu que não nos conhecemos, que nunca nos encontrámos por aí, em anos perdidos nas baiucas fadistas de Lisboa; nos aviões da TAP a caminho das praias do Brasil em setenta, oitenta, noventa; em cinquenta e tal, alombando sulfates entre cepas velhas, nas colinas de vinha em Alenquer; no Niassa, em Novembro de sessenta e seis, entrando nas escuras águas da Guiné; na pista da Portela, em noventa e três, comendo trolha da polícia de intervenção; nos Invernos do Quebeque, neve, dias de sol nas fachadas da rua Ste. Catherine, Alten Munchen à noite, música bávara, Eisbein e... gajas; nas sessões de jazz do Berkeley College of Music em Bóston; em setenta e cinco, nervos à flor-da-pele, medo a sério maior que nas matas da Guiné, por colar papéis do partido nas saídas do metro, em Nova Yorque, em lugares de passagem de portugueses duas vezes, de madrugada a caminho do trabalho, à noite de volta a Greenwich Village e ao TV diner; Em Vila Franca, em sessenta e poucos, poupando na mesa os sete e quinhentos indispensáveis para ver "A Casa de Bernarda de Alba" pelo Teatro Moderno de Lisboa; no sol das arenas, descoordenado do tempo, abraçando toiros e escutando a voz quente das multidões, nas escadarias do hotel D. João III, em Luanda, no ano da independência, protegendo colegas da TAP, mulheres sem guerras no pelo e a gramarem com ataques do MPLA à Unita, metralhadoras, bazookas, morteiro no terraço; nas noites de farra de desquitadas na discoteca do Intercontinental de S. Conrado; nos cagaços pioneiros do ultraleve.

Que não nos conhecemos, dizes, ou pensas, e até estranhas que misture aqui tão diferentes lugares e tempos, que os amasse como se a vida e o viver não fossem mais que uma página em branco no monitor do portátil onde cada qual possa escarranchar palavras, botar a palavra ao ritmo do que lhe vem à tola, mesmo que nas palavras que amontoa, nada diga sobre a vida, digo, sobre gente, sobre aspirações de cada um, os desejos, as diabruras e virtudes, sempre maiores aquelas do que estas, e que, além disso, passe pelo tempo sem direcção nem sentido cronológicos, hoje ontem e amanhã arbitrariamente amontoados.

E pelos lugares também, na estrada de Buba, segurando nos braços o Marques a apagar-se. A apagar-se lentamente como pavio sem cera que o alimente, a respiração a ir-se, cada vez mais ténue, mais ténue, mais ténue, até se apagar de vez, os olhos abrindo, abrindo, fitando não sei o quê, fitando o nada de onde viera há vinte anos e onde voltava agora, definitivo.

A estrada de Buba em sessenta e sete, antes das vinhas da Cova do Charco, em Alenquer, em cinquenta e oito.

Os teatros "Off Brodway", em setenta e quatro, antes da praça de Touros de Salamanca em setenta.

Afinal, pisaste alguns dos caminhos que eu trilhei; olhaste horizontes que também eu olhei; desejaste mulheres que eu havia desejado já, ou desejei depois; ansiaste metas que também eu sonhei; sob o fogo do inimigo, buscaste abrigo nas mesmas árvores tropicais que me haviam protegido a mim; mergulhaste nas quentes e azuis águas dos trópicos, almoçaste as mesmas salsichas, bebeste a água das bolanhas que eu bebi, quando a falta de água nos deixava ansiosos e de vontade frouxa contra a sede, sofreste as mesmas nuvens de mosquitos entrando nos olhos, na boca, no nariz, passaste o Natal dormindo dois minutos de cada vez, entre um ataque e a espera de outro, como eu dormiste dias e noites ao lado das caixas que guardavam amigos, esperando transporte para Bissau, primeiro, e depois Lisboa, aldeias no Alentejo e nas Beiras, nome de rua.

Então, porque estranhas tu que eu fale como se nos tivéssemos encontrado realmente nestes actos e nestes lugares, e em nós os milhares de amigos que connosco, entre sessenta e três e setenta e quatro se tramaram como nos tramámos nós?

Só porque não esbarrámos de frente, num desses lugares que nomeio, à hora xis do dia ípsilon, do mês tal de milnoveetrocaopasso?

Não bebemos juntos umas Sagres, ou Cuca, ou Budweiser, ou Labatt, ou Brahma Chopp numa esplanada do calçadão, olhando piranha e viadinho?

Não tomámos outro veneno qualquer no mesmo balcão de single bar, em grupo data-hora perfeitamente identificável e coincidente, nos bate-fundo do mundo?

Só porque não concordámos ou não discordámos sobre temas comuns, nas horas vazias de cada um, fosse aonde fosse, afirmando coisas como se as perguntássemos, de tantas dúvidas que nos enchiam, a mim, a ti, a todos, ou quase, apanhados do clima que éramos nos anos que deveriam ser de certezas?

O tempo e o lugar, o grande tema!

O lugar. Os lugares nem sequer nos desviaram do encontro.

Tu dizes.

Talvez! Talvez que tenhamos em comum alguns desses sítios, muitos até, posso dizer, porque além do lugar dos tiros e dos medos, terras, ruas e praças de que falas, não todos, evidentemente, já eu atravessei também, mas em tempos diferentes, no calendário, nos relógios, na posição relativa da Terra e do Sol.

O tempo. O tempo, talvez.

Mas o tempo o que é, de facto?

Olhas para trás, em sentido figurado, está visto, não com o olhar dos olhos, com a capacidade que têm de imitar a câmara fotográfica, apanhando objectos e pessoas, cenas, actos honrados ou vilezas, fixando-lhes a imagem de pernas para o ar na retina, essa espécie de película de longínqua invenção, elo apenas no transporte delas ao sistema nervoso central para identificação e feed back.

Olhas é com a memória que tens das coisas e das gentes, das cenas que representaste antes, num ponto qualquer dessas entidades que dizem ser o tempo e o lugar, as alegrias e tristezas que dizes ter vivido e trazes ao hoje como se as vivesses agora mesmo e não ontem ou há mais de trinta anos.

Retomas o lugar que decidiste ser o teu durante a noite da emboscada, coordenando o silêncio da mata, coordenando as dúvidas dos teus, escondendo as tuas porque quem comanda não pode ter dúvidas.

Retomas os passos na picada, olhos e ouvidos atentos, os nervos crispados por ti e pelos que de ti dependem, cada passo em frente uma vitória.

És tu e podia ser eu, milhares e milhares de eus iguais nas ânsias, no cansaço, na certeza de que, venha o que vier, nada há de melhor que a certeza do futuro.

Não é seguro que as emoções trazidas em cadeia no processo, sejam as mesmas que talvez tivesses sentido então, tal como eu, ou sendo, não tenham a mesma profundeza, o mesmo brilho, a mesma rugosidade.

Mas não interessa aprofundar muito isso, ou corres o risco de mentir-te a ti próprio, afirmando que sim ou que não.

Quem sabe se não é aí, nessa falha, nessa fímbria de descoordenação, que podemos encontrar a essência do tempo e, nesse caso, a mim me parecendo que não vivemos apenas uma vez mas duas, três, muitas, tantas quantas as vezes que voltamos ao vivido, então, continuamos pelos dias regressando à mata, à messe, às noites de espera, ao cheiro a podridão que o sol faz levantar da bolanha, ao primeiro som cavo da explosão da morteirada, às cinco da manhã, ao abraço, sentimento de união que só ali foi possível, e continua sendo, e solidamente real.

E mesmo esse espaço indefinido a que chamam futuro, mesmo esse que, aparentemente não conseguimos divisar, o que é?

Repara.

Nenhum homem é apenas o que é hoje, mas também, hoje, muito do que foi antes e alguma coisa do que vier a ser depois.

E assim sendo, um homem nunca foi apenas o que foi, mas a cada momento do que foi, também o que é, e alguma coisa do que vier a ser.

Um homem não será nunca, apenas o que vier a ser no futuro, mas a cada momento do futuro, também o que é já hoje e o que foi antes.

Quer dizer, então, que o antes, de algum modo, era já o hoje e o futuro.

Quer dizer então e ainda, que o hoje, o antes e o futuro, tempos aparentemente tão definidos e distantes, mas, de facto tão entrelaçados, tão confusamente emaranhados, tão dependentes uns de outros, são apenas partes do todo da vida e tanto poderiam entrar no princípio, como no meio, como no fim dela.

O nosso futuro irá ainda passar muitas vezes pelo Xitole, por Guileje, pelo K3, por Susana, pelo tarrafo, pelos rios, pelo coração de tantos amigos e, quem sabe, mesmo pelos dos inimigos, vivos todos, porque em nós vivem mesmo os que dizem ter morrido.

Como vês, milhões de vezes nos cruzámos já e muitos mais milhões nos iremos encontrar num tempo assim, sem fim nem princípio.

Por exemplo, no Saltinho, cacholando as suas águas claras; no Mato Cão, em Catió comendo ostras, no instintivo mergulho ao chão ao primeiro tiro deles, depois, o coração a retomar o ritmo certo, a segurar os acontecimentos, a segurar-se a si próprio; na padiola improvisada, carregando camarada ferido, se não morto ou caminhando para tal, vencendo o estorvo da mata apertada que fustiga a cara, as mãos, a alma, até a um "porra, caralho, puta que pariu isto!".

Que nem blasfémia é, por vir de dentro, da revolta ingénua e sentida contra o limite; ou em quarto abarracado da Guiné, jogando a lerpa e o abafa, bebendo qualquer coisa que preencha apenas vazios intermitentes no acto de beber.
Soldados fomos e certamente somos ainda, um pouco, tendo sido nesse tempo, também, o que somos hoje, civis.

E teremos ainda tempo, talvez, outras coisas para ser na vida que nos resta, marcados pelo que fomos então, marcados pelo abraço grande e colectivo que daremos sempre, no som da costureirinha e do morteiro, longínquos nos anos, segundo se diz, mas para nós, intemporais.

E achei eu, também, que não nos conhecíamos!
Todos.
José Brás

*Ao Joaquim Mexia Alves,
camarada primeiro a quem
dei troco na Tabanca Grande,
e através dele, aos outros que
estão em nós, aos nós que
estão nos outros



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O Joaquim Mexia Alves em agradável conversa com o José Brás... Este último foi Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68... É autor de um premiado romance, de 1986, Vindimas no Capim (Lisboa, Europa-América) (**). Pertenceu aos quadros da TAP. Mora em Montemor-O-Novo.

__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

3 de Julho de 2009 A Guiné 63/74 - P4636: Vindimas e Vindimados (José Brás) (5): Tudo na mesma em Salancaur
e
7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4649: Blogoterapia (114): A Honra da Companhia, os fantasmas de Guileje, os limites da tolerância (José Brás / António Matos)

(**) Informação que foi pedida ao José Brás por um significativo número de amigos e camaradas em Ortigosa, e não só, que querendo adquirir o Vindimas no Capim não conseguem encontrá-lo.

ASS: Aquisição de Livros
Mem Martins, 8 de Julho de 2009

Caro José,

Espero que esteja bem.

Vimos por este meio informá-lo que poderão adquirir o seu livro nas nossas
livrarias Europa-América (Castelo Branco, Estoril, Faro, Lisboa, Parede ou
Porto) e Lyon (Cacém, Castelo Branco, Mafra, Mem Martins ou Queluz) ou
através da nossa sede (219 267 700, e-mail: clubedeleitura@europa-america.pt
ou através do nosso website: http://www.europa-america.pt/ ).

Sempre ao dispor.
Os meus melhores cumprimentos,

Inês Valentim
Relações Públicas

sábado, 17 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. O bairro do Cupelon fica(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia... Para os tugas, era o Pilão, tout court... Ainda espero vir a encontrar um Fado do Pilão para ombrear com o do Bairro Alto... (LG) 

 Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados. 

1. Mensagem do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72): 

 Caro Luís: Se calhar é uma dúvida bizantina mas sempre a vou colocar .... Relativamente à Sondagem 2 o que é que é para concordar ou discordar, nas suas variantes graduais ? Se concordo que é verdade que nos era dito para não "ir sozinho à noite ao Pilão que os gaijos são todos turras" ou se era mesmo verdade que "não se devia ir sozinho ao Pilão, sobretudo à noite, por os gaijos serem todos turras"? 

 É que realmente a mim também me foi passada a "informação/recomendação", já não me lembro se foi coisa formal ou se foi por ser corrente entre as conversas da nossa malta, por isso, nesse sentido, terei que colocar a cruzinha na concordância. 

 Agora se é para corroborar a verdade que está subjacente às recomendações, já não posso concordar inteiramente porque cheguei a andar sozinho no Pilão (ou era Cupilão ?), embora essas visitas culturais e de prospecção etnográfica fossem feitas de dia, pois à noite (e cheguei a ir lá a um alfaiate que me fez umas calças com tecido que comprei por lá...) ia normalmente acompanhado e apenas em duas ou três ocasiões e para ir ao tal alfaiate. 

 Cumprimentos 
 Hélder Sousa 

2. Comentário do editor LG:

Helder, a tua questão é pertinente e muito mais pertinentes ainda são as respostas que tu próprio dás... de resto, com excelente sentido de humor... Com que então ias ao Alfaiate do Cupilão ?! 

 Comecemos pela dúvida mais simples: Cupilon, Cupilom, Cupelon ou Pilão ? 

No meu tempo (1969/71), eu dizia, nós dizíamos, Pilão... Na planta da cidade de Bissau, capital da Guiné-Bissau, que nos foi fornecida pelo A. Marques Lopes (vd. imagem no topo) , vem Cupelon (de Cima e de Baixo),na parte setentrional, ladeada à direita pela npssa conhecida Estrada de Santa Luzia... Cupelon é, pois, o terno correcto, em crioulo... Cupilão é um aportuguesamento... Pilão é uma corruptela... Mas era o termo mais frequente usado pelas NT... É a minha interpretação, claro. 

 Quanto à dúvida, de fundo, metodológica, tens toda a razão: a pergunta está mal formulada, não é clara concisa e precisa, como mandam os manuais... Cito o proxeneta (no norte, diria: azeiteiro) de um furriel miliciano fotocine que conheci na espelunca do Chez Toi

"Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite: os gajos são todos turras"... 

 Ao citá-lo, fi-lo intencionalmente como um mero estímulo, positivo ou negativo, para a nossa malta manifestar-se, escrever, opiniar, etc. O assunto, como sabes, é delicado. 

Eu tenho tentado pôr a malta a falar destas coisas ditas marginais do nosso quotidiano de guerra... A frase não é falsa nem verdadeira, mas é óbvio que contem duas ou até três proposições, o que a torna confusa ou, no mínimo, ambígua:
 - Ao Pilão nuncas vás sozinho [, porque é perigoso];
 - Ao Pilão nunca vás sozinho [, porque é perigoso], sobretudo à noite [, o que é ainda mais perigoso];
 - Os gajos [do Pilão, os chulos] são todos turras... 

 A fala do fotocine é primária, grosseira, racista, estereotipada, típica de um boçal representante de um exército de ocupação. Ora a verdade é que o Cupelon era um bairro popular, de gente séria e trabalhadora, habitada também por raparigas que fugiam da guerra (as guineenses) ou da miséria de Cabo Verde (, as caboverdianas, ditas pretas de 1ª )... e tiravam o partido possível da presença massiça de militares, uns em trânsito para o Vietname (mato), outros aquartelados em Bissau e arredores (malta do QG, tropas especiais...). 

 O Pilão era um mito... Alguns dos nossos camaradas - sobretudo os que estavam sedeados em Bissau e Bissalanca - até tinham lá os seus amores... Que eu saiba, nunca ninguém ficou lá sem a cabeça, embora alguns de nós a tenham perdido por lá... Pergunto: Quem não ficou lá pelo menos uma noite, vindo do Vietname (sic), em trânsito, na véspera da partida do avião para férias ou no regresso das férias ? Ou pelo menos, ido lá noite, desenfiado em Bissau, à procura de sexo ? 

 Julgo que o Pilão não era mais perigoso do que o Bairro Alto ou o Cais do Sodré, em Lisboa, naquela época... O que o tornava perigoso era o excesso de álcool da malta da tropa, da nossa tropa, que, às tantas da noite, andava a procura das verdianas ou pretas de 1ª (sic)... 

 Mas eu não sou o mais qualificado para falar do Pilão... Não sou sequer qualificado de todo: nunca lá vivi, falta-me a vivência, o conhecimento empírico... Confesso que passei lá uma noite. Por curiosidade e solidão. Fui lá com um alferes miliciano da CCAÇ 12, na véspera de ir de férias... Não tínhamos nada para fazer em Bissau, estávamos já apanhados do clima, com um ano de guerra pura e dura... E dois já formavam um... pelotão !... 

 Estávamos hospedados numa espelunca: se a memória não me atraiçoa, dessa vez era mesmo no Chez Toi... (onde, por sinal, um dia, já no final da minha comissão, me arrombaram a mala e fanaram-me uma das garrafas de uísque velho que eu levava; o gordo do dono acabou por pagar o prejuízo)... 

 Enfim, a noite no Pilão foi uma experiência deprimente, daquelas que se fazem, nos nossos verdes anos, apenas para experimentar e pôr no currículo... Passei a noite a ouvir a filha da cabo-verdiana a chorar... Às cinco da manhã, zarpei, com a morte na alma... 

 Por outro lado, é bom lembrar que somos da geração em que os jovens ainda se iniciavam nas casas de passe (ilegalizadas por Salazar em 1962) ou seus sucedâneos... Fomos educados dentro dos cânones da moral sexual dominante, a do Cardeal Cerejeira e do Dr. Salazar. 

O exército colonial, esse, era mais pragmático: os serviços de saúde militar na Guiné estavam bem fornecidos de caixas de pomada antivenérea (eram um luxo os preservativos!) e de penicilina!... Quem não apanhou uns milhões de penicilina na Guiné ? ! Aos vinte anos, e para mais na situação-limite que era a guerra, em todas as gerações, fazem-se pequenas loucuras só para transgredir os padrões da moral dominante... Ir ao Pilão fazia parte dos nossos rituais de transgressão... Ia-se até por bravata... Com mais medo ou menos medo, muitos de nós passaram por lá... E outros até - mais felizardos do que nós - tinham lá cama, mesa e roupa lavada... 

 Enfim, respondam à sondagem como quiserem... E sobretudo depois comentem, escrevam, mandem as vossas estórias! 
 ___________ 

 Nota de L.G.: 

 (1) Sobre o Pilão (ou Cupilão ou Cupelon), e as nossas (a)(des)venturas por lá, vd posts de: 14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça) 

(..) Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas. O Pilão é o lumpen… 

Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta (...) 


Do meu diário: 14 de Agosto de 1972 > Um dia que nunca mais vou esquecer, pois o Crachá que recebi será o simbolo COMANDO até à minha morte. Foi uma cerimónia bonita com muitos copos, muitas fotos e de tarde fui para Bissau, direitinho ao Pilão, porque o corpo não é de ferro e a Antónia é um mimo. (...). 


Depois de acomodado no Cumeré, uma das minhas primeiras prioridades era vir à cidade encontrar-me com um colega que tinha a informação de estar na Manutenção Militar. E então, quando me encontrei com o velhinho, meu amigo, pedi-lhe para me levar ao Pilão, às bajudas... 

 Então lá fomos os dois, e no caminho fui avisado sobre os preços que na altura eram praticados: 
- Se for guineense, são 50 pesos; se for caboverdiana, são 100 pesos. 

 (...) Entretanto, a companheira furtiva, ao ver notas de 50 e 100 escudos, vendo que eu era periquito, pede-me 100 escudos... Aí eu disse: 
- Não, se quiseres são 50 escudos; se não quiseres, vou-me embora. 

 Ela disse que não, e aí eu vim embora a seco.O meu amigo. quando chego à beira dele tão rápido ficou admirado, e disse:

 - Já ?! ... Nem deu tempo para tirar a roupa!... Então, eu contei-lhe o sucedido e ele disse-me: 
- Fizeste bem, vamos a outro bar. Ora bares era o que não faltava no Pilão ou Cupilon... Eu respondi-lhe: 
- Agora já perdi a vontade, amanhã eu venho cá outra vez para saciar o desejo... 

E assim aconteceu. Cambiei os escudos por pesos, a diferença não era assim muito mas era alguma coisa, e lá fui com a caboverdiana por cem pesos. (...)


(...) E as escapadelas ao Bairro do Cupelon [ou Pilão], e as noitadas da cerveja e das ostras no Café Portugal? E as codornizes fritas do Zé da Amura? Que será feito do célebre Hotel Berta, onde se comiam os melhores gelados do Mundo? Mas o que mais me emocionou foi ver, através das fotos, o estado de ruína desta cidade de terra vermelha. 

Ao lembrar-me de tudo isto e ao escrever estas linhas não consegui travar algumas lágrimas. Sobretudo, porque à distância de quarenta anos no tempo, não mais consegui reunir todos os camaradas desse tempo, todos esses amigos que, como muito bem sabe, eram a nossa família de afinidade durante 24 os 25 meses de comissão. (...). 


Seguimos em direcção ao Pilão, com o Tomás a fazer uma condução à maluca. Falou numa cabo-verdiana que nenhum de nós conhecia, que ficaria perto da casa da Eugénia, essa conhecia eu bem. Corremos imensas ruas e ruelas do Pilão, eram tantos os saltos que o carro dava que o Rita já dizia estar a apanhar mais pancada que numa tempestade no mar. 

A determinada altura, uma das rodas do carro cai num buraco com grande violência, ouve-se um barulho de latas e ficamos com menos luz. O Tomás pára o Peugeot e símos para verificar o sucedido. Com a pancada, um dos faróis saltara do encaixe, ficando virado para o solo, preso pelos fios de ligação. Nenhum problema, continuamos às voltas, à procura das gaijas que nenhum conseguia dizer onde ficavam e o farol acabou por cair, ninguém soube onde. Aí pelas três da manhã, chegamos a um local do Pilão onde se encontrava um grande aglomerado de pessoas, em estado de grande exaltação. Paramos, saímos do carro e vemos no meio daquele maralhal o Alf Mil Domingos, de braço engessado ao peito, prestes a levar, na melhor das hipóteses, uma grande carga de pancada.

 O Comandante Rita, graças à sua estatura, vai furando, connosco atrás até chegarmos ao Domingos, também de cabeça perdida. O que se passara? - O caralho do Oliveira trouxe-me para aqui, bateu à porta daquela gaja, ela diz que está ocupada, o cabrão manda um pontapé na porta, rebenta-a, a tipa grita, começa a juntar-se este maralhal e o gajo deixou-me sózinho. (...) 


(...) De Bissau conheci muito pouco. Apenas o Pilão, e neste Os Dez Quartos, um palácio do Prazer. 

Era o local ideal para um sexólogo, pois tendo todos os quartos o mesmo tecto e paredes incompletas, ouviam-se os murmúrios, os gritos, os ais e os uis, deles e delas, em plena actividade. 

Sempre que lá fui, abstraí-me um pouco da minha função e dediquei-me à escuta, tentando até catalogar os clientes por posto, ramo, forma, jeito, velocidade e desempenho. A noite de véspera do meu regresso foi lá passada. 

Que melhor despedida podia eu, então, ter programado? Para sempre ficou marcada na memória a cena dessa noite. No chão a ressonar e de pistola à cinta, um grande fuzileiro e, encostado a ele, todo enrolado em panos, um bebé. Na cama, ela, semi-adormecida, ordenando uma actuação silenciosa (...). 


Óptimas lembranças da Fátima, uma fula do Pilão, em cuja casa (um quarto apenas...) dormi algumas noites, numa cama onde dormia também o bébé de um ano. Boa rapariga, que fazia pela vida e que, por isso, me fez, uma noite a proposta de eu trazer umas quantas cervejas do QG para ela vender aos seus visitantes: 
- Estou doido, filha, mas não tanto. Nem penses nisso. Boas noites lá passei, uma ou outra com emoção, quando os comandos ou os fuzos batiam à porta e ela respondia:
- Está ocupado! - e eu a ajudava dizendo: 
- Estou eu, vão pra outra! Houve uma noite, não nenhuma destas nem a da proposta dela, que tive de sair a meio. É que o bébé borrou-se todo. Enquanto ela tirava água do pote para lavar o filho e os lençóis, tive de lhe dizer: 
- Fatinha, já não dá. Vou-me embora. (...) 


(...) Cupilon: Bairro tabanca da população, geralmente na periferia, eram um misto de atractivo irresistível e de perigo potencial mas nós, os militares recém-chegados, ignorávamos que a guerrilha tinha apoio em todo o lado, e assim todos os militares chegados a esta querida terra africana procuravam saber onde era e onde ficava (local de africanização e de gozo sexual) sempre apinhado de militares, dado que nele permaneciam lindas bajudas sem cabaço e partiam catota a toda a força: desprendidas da vida teriam nos prazeres da carne sustento bastante para fazerem vida desafogada, que de uma outra forma não conseguiam.

O convívio com aquela gente de população fascinava. Fosse pelo exótico dos usos, fosse pela atracção das raparigas, que designávamos por bajudas, independentemente de o serem. E só o eram enquanto virgens. Os seus erectos seios, tensos de jovem e dos nossos apetites, não escapavam ao despudorado atrevimento dos militares brancos. (...)

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves, ao centro, ladeado pelo seu impedido, o Mamadu (à esquerda) e o cozinheiro, herói desta estória (à diereita).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Texto do Joaquim Mexia Alves, com data de 3 de Agosto de 2006:

Caro Luis Graça:

A propósito de apanhados (1) e outras vivências, junto fotografia tirada no Mato Cão, onde estou eu, o Mamadu, impedido da messe, e o cozinheiro, de quem não lembro o nome, mas penso que pertenceria ao Pelotão de Morteiros de Bambadinca, que tinha uma secção no Mato Cão (2).

O referido cozinheiro era um bom rapaz, muito ingénuo e um pouco apanhado, e que nunca tinha saído para o mato (já lhe chegava estar no Mato Cão!).

Retenho esta história:

Um dia, irritado com as graças e ditos acerca da sua pessoa, declarou solenemente que se ía embora.

Meteu pernas ao caminho, passou o arame farpado no lado contrário ao do Rio Geba e continuou pela mata dentro.

Claro que eu não fiquei nada preocupado e disse ao resto do pessoal:
- Não há problema. O gajo anda um pouco, vê-se sozinho e volta a correr.

Só que o tempo foi passando e o cozinheiro não havia modo de voltar.

Ao principio fiz um pouco de finca-pé, do tipo "Se pensas que te vou buscar estás muito enganado", mas depois comecei a ficar preocupado.

Lá vesti qualquer coisa mais conveniente para sair para a mata, peguei nas armas e acompanhado - salvo o erro, pelo Furriel Bonito -, saí do perímetro para ver se o encontrava.

Não estava muito longe, mas como tinha começado a escurecer o medo era tanto que já não andava nem para a frente nem para trás.

Lá o trouxemos para dentro, preguei-lhe a descasca conveniente e, claro, no outro dia a seguir lixou-se, porque foi mais gozado que antes.

No entanto todos gostavam muito dele e por isso era tudo foi feito com muita camaradagem.

Mais uma história leve, que também servia para nos irmos libertando das tensões.

Abraço

Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029

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Nota de L.G.

(1) Sobre a temática dos cacimbados ou apanhados, vd. entre outros os seguintes posts:

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P992: 'Estar apanhado' dava muito jeito e algum gozo (Joaquim Mexia Alves)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P973: Estar ou fazer-se 'apanhado' para não enlouquecer (Jorge Cabral)

19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P972: Cacimbados ou apanhados do clima ? (Zé Teixeira)

17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P965: 'Cacimbados', 'apanhados do clima'... ou os nossos comportamentos de risco, bravatas, diabruras, loucuras... (Luís Graça)

13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)


15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)

(2) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)

sexta-feira, 28 de julho de 2006

Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (II): tirem-me daqui!



João Tunes, ontem e hoje: na Guiné, foi Alf Mil trms (primeiro, na CCS do BCAÇ 2884, Pelundo,1969/70; e depois, na CCS de outro Batalhão, Catió, 1970/71). Engenheiro - químico, escreve diariamente, com lucidez, paixão e talento, contra a corrente do(s) tempo(s), no seu blogue Água Lisa (já vão vai na versão 6).


Fonte: Bota Acima, blogue de João Tunes, 7 de Abril de 2004

I - TIREM-ME DAQUI !

Os civis fardados à força que tinham habilitações consideradas suficientes, eram militarizados como soldados cadetes durante seis meses e o seu aproveitamento era coroado com o título (modesto) de Aspirante a Oficial Miliciano.

Esta patente, uma espécie de grau de estagiário em oficialato, durava até chegar a ordem de envio para África. Quando a guia de marcha era recebida, era-se automaticamente promovido a Alferes Miliciano. Todas as regras têm excepções. O Barros foi despachado para a Guiné como Aspirante. Ficou famoso por ser a excepção à regra e porque era meio xoné. Em rigor, perto dos quatro quintos xoné. Licenciado em Filosofia, o Barros era incapaz de se adaptar às regras da vida militar. A instituição castrense bem tentou fazer dele um homem de armas mas o sujeito era relapso à farda, aos procedimentos, à ordem unida e ao espírito guerreiro.

Quando cadete em Mafra, o Barros era sempre o último a chegar à formatura e, quando chegava, os atavios estavam sempre mal amanhados e quantas vezes a Mauser ao ombro vinha com o cano a apontar para o chão... Porque, o que o Barros gostava mesmo era de discutir Sócrates e Platão. A instituição teve de resolver o problema do Barros. Nada fácil. Deve mesmo ter sido caso para reunião de generais reumáticos no Estado Maior General ou coisa parecida. A guerra aquecia e as frentes de combate não paravam de aumentar. Era precisa mais gente, cada vez mais gente, para conter a guerrilha. Começava a haver escassez no recrutamento. A procura de mancebos ultrapassava a oferta. A decisão foi sábia: o Barros ia mesmo para a guerra (mas para a Guiné, porque ele só merecia o pior) mas não era promovido a alferes. Seria Aspirante para sempre. Logo ele, que o que mais aspirava era voltar aos livros e às discussões filosóficas, coisas bem alheias aos trabalhos da guerra.

Na Guiné, andou de quartel em quartel, acumulando punição atrás de punição. O Aspirante Barros não servia, cada vez servia menos, pois a cachimónia cada vez ia trabalhando pior. Como era um perigo nas operações, ia sendo dispensado de sair para o mato, acumulando detenções sobre detenções até o Comandante pedir a Bissau a sua substituição. Então, o Aspirante Barros enchia o saco do fardamento com os seus livros e rumava a outro quartel. Até que a cena se repetia. E repetiu-se muitas vezes.

Uma vez, o General Spínola visitou um quartel onde estava o Aspirante Barros e quis conhecê-lo. O Barros apareceu mal amanhado e com olhar ausente. Spínola disparou a censura:
- Você não tem vergonha de ser o único Aspirante na Guiné?

O Barros concentrou-se, olhou Spínola de frente e disse mansamente:
- Estamos em igualdade, o senhor, que eu saiba, é o único General na Guiné.

Puseram o Barros numa prisão em Bissau por ter insultado o General. O Barros, então, deixou de ler. Podia ler, quem já pouco olhava? O Tenente Coronel Melo, comandante do Batalhão no quartel de Catió, era um oficial com pretensões intelectuais (por onde passava, estudava os costumes étnicos e ia escrevendo livros sobre os usos e costumes das tribos africanas). Era opositor ao regime e não gramava o Spínola, embora fizesse a guerra com todo o profissionalismo. Era também um católico devoto. Em resumo, o Tenente Coronel Melo era um católico progressista, gostava de armas e de paradas, não gramava o fascismo e tinha bom coração. Sabendo da história do Barros, o Tenente Coronel condoeu-se e pediu para o colocarem no seu Batalhão. E o Aspirante Barros lá veio com o seu saco (agora vazio de livros) parar a Catió. E passou a ser meu companheiro de quarto. Companheiro silencioso. O Barros quando chegou a Catió também já tinha deixado de falar.O Barros foi dispensado de serviços e passava os dias deitado na cama. Dispensado de todos os serviços, não. Para lhe dar algum sentido de utilidade militar, o Barros entrava na escala de oficial de dia ao quartel com a missão única de presidir ao içar e ao arriar da bandeira (havia outro oficial que fazia o serviço restante).

O Barros cumpria a sua única tarefa militar segundo um ritual tacitamente assumido por todo o quartel. O sargento de dia perfilava a tropa, dirigia-se à janela do quarto do Barros e berrava enquanto fazia a continência da praxe:
- Meu Aspirante, apresenta-se a guarda de dia.

O Barros, ouvindo o berro do sargento, levantava-se em cuecas, assomava à janela, e naqueles preparos, imitava uma espécie de continência. Então, o sargento de dia mandava içar ou arrear a bandeira portuguesa e o Barros voltava à solidão do seu silêncio.A partir de certa altura, o Barros passou a instalar-se, durante o dia, no bar dos oficiais, bebendo copos atrás de copos. Tinha, como companhia, o Tenente Coronel Melo que preferia escrever os seus livros e fazer os seus despachos ali, no silêncio diurno do bar enquanto o resto dos militares cumpriam as suas rotinas de serviço. O Tenente Coronel escrevia, pensava, escrevia. Barros bebia em silêncio.

De tempos a tempos, o Barros arremessava o copo contra a parede e gritava:
- TIREM-ME DAQUI! 

O Tenente Coronel comentava,  paciente:
- Calma, nosso Aspirante.

E o Barros acalmava até novo arremesso, novo grito e novo apelo à calma por parte do Comandante.

E a cena ia-se repetindo ao longo do dia e dos dias, num ritual assumido pelos dois oficiais e respeitado por toda a tropa sem dar lugar a galhofa. A única consequência negativa destas cenas era a redução assustadora no stock de copos no bar de oficiais. Mas, isso não era problema sem solução: na guerra, para beber é preciso copo?

Era habitual que, a meio da noite, o Nino Vieira se lembrasse de mandar os seus rapazes mandar-nos morteiradas para dentro do quartel. Ao primeiro rebentamento, havia que agarrar a G3, nossa companheira inseparável, e correr para irmos cumprir funções defensivas e contra-ofensivas. Para que o Nino não se ficasse a rir de nós. O Barros não se mexia. Limitava-se a abrir os olhos e fixá-los no tecto. Imóvel. O Aspirante Barros já tinha deixado de aspirar a sobreviver.O Barros esteve duas semanas em Catió, sem castigos que avermelhassem mais a sua caderneta disciplinar.

Um dia, o Tenente Coronel Melo apareceu sorridente. Tinha conseguido (com a ajuda do médico do Batalhão) uma consulta de psiquiatria para o Barros com vista à sua evacuação da Guiné. O Barros não acabou o tempo da sua comissão na guerra da Guiné. Foi libertado para a vida civil como Aspirante a Oficial Miliciano.

Não voltei a ver o Barros. Mas, volta e meio, o Barros entra-me pela memória dentro. E então, a raiva, ai a raiva, a raiva aos que alimentam guerras, faz-me um nó na boca do estômago. Não sei sequer se está vivo, onde está e o que faz o meu antigo camarada e companheiro de quarto. Espero bem que não ande a passear, sem olhar, sem falar, sem ler e a gritar TIREM-ME DAQUI!, ouvindo os palermas saudosistas do Império a clamarem contra o crime da descolonização e caçarem votos aos ex-combatentes. Porque esses merdosos não valem um caracol ao pé do Barros. Desejo sinceramente que o Barros esteja recuperado e a discutir Sócrates e Platão. Algures. Em paz.
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Nota de L.G.: