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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22629: In Memoriam (413): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Homenageando também um casal que sempre soube, em vida, amparar-se mutuamemnte, "na saúde e na doença" (Luís Graça)


Fundão > 27 de Janeiro de 2007 >  O Torcato Mendonça (TM) que eu conheci, pessoalmente,no Fundão, sua terra adotiva... Foi lá que casou com a Ana Lurdes e onde nasceram os seus filhos, dois rapazes. O TM  que encintrou para a nossa Tabanca Grande em 2006, participou pelo menos em cinco dos nossos encontros nacionais, de 2007 a 2011.


Leiria > Monte Real > Ortigosa > Quinta do Paul > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Tabanca Grande > A Ana, que veio a conduzir do Fundão, para acompanhar o seu José (alter ego do Torcato Mendonça). 

A Ana Lourdes de Mendonça foi coordenadora dos serviços administrativos do conceituado Jornal do Fundão (que alguns de nós assinávamos na Guiné, ao tempo da guerra, a par do Comércio do Funchal, do Notícias da Amadora e outros).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Agora que o nosso querido amigo, camarada e colaborador Torcato Mendonça deixou a Terra da Alegria (*), e nos deixou tristes, inconsoláveis e mais pobres, vou recuperar escritos antigos em que falo dos dois, do José e da Ana, um casal por quem sempre tive admiração e carinho porque souberam, ao longo da sua vida em comum,  amparar-se um ao outro "na saúde e na doença". A Ana, felizmente, continua viva e vai por certo continuar a acompnhar o nosso blogue (**)


Em 17 de maio de 2008, veio de longe, do Fundão, das faldas da Gardunha, a conduzir, com o seu José ao lado (que pode mas não deve fazer tantos quilómetros ao volante), só para estar com os seus (dele) camaradas da Guiné... Le coeur oblige, mon bijou... E o que tem de ser tem muita força, diz o provérbio: a doença, traiçoeira, que vem trazer negrura às nossas vidas, apreensão aos que nos amam, incerteza aos que nos rodeiam, finitude aos nossos projectos, angústia para o jantar, pesadelos às tantas da madrugada...

Nem um ai nem um ui: a Ana (Mendonça, por casamento) viveu, em silêncio, o seu drama, individual e familiar... No píncaro do Verão... Por uns tempos, o José desapareceu (ou melhor não apareceu, recolheu-se, não se expôs, preparou-se, como nos duros tempos de Mansambo, da CART 2339, mobilizou toda a sua energia para fazer face à devastação)....

Como é que a nós, distraídos com as nossas blogarias - tu, Carlos, tu, Virgínio, eu, Luís - , não nos ocorreu que algo estava errado nessa pesada cortina de silêncio, puxada pela mão do Torcato Mendonça, o TM, um homem com lugar ao sul e que gostava de pensar em voz alta ? 

Em meados de dezembro de 2008,  escrevi-lhe, ao TM,  o seguinte:

"Um bj para a tua Ana, que é uma mulher de armas e que já sei que voltou ao trabalho... A vida é dura, José, aqui ou em Mansambo... Mas também pode ser bela, se tiver afecto(s): amor, paixão, amizade, camaradagem, emoção, compaixão, poesia... 

Diverte-te, se puderes: 'Esta vida são dois dias e o Carnaval são três'... Mas há, pelo menos, uma certeza: 'Quem de novo não morre de velho não escapa'... 

Uma coisa que a guerra da Guiné não nos deu, foi serenidade... Pelo contrário, trouxe-nos inquietude (que é mais do que inquietação). Em contrapartida, aprendemos a enfrentar a morte e a não temê-la: 'Temer a morte é morrer duas vezes' ... E tu és, para nós todos, um exemplo vivo e corajoso, de como um homem pode sorrir à morte com meia cara ou meio coração, parafraseando o título da narrativa autobiográfica do grande escritor José Rodrigues Miguéis, um lisboeta de Alfama (1901) que morreu longe da Pátria, da Mátria e da Fátria (Manhattan, N.Y., 1980). 

Que esta tertúlia, a nossa Tabanaca Grande, seja, ao menos para ti, um pouco da Fátria perdida em Mansambo, em Bambadinca e em tantos lugares da Guiné onde sofremos e fomos solidários"...

A Ana, que voltou ao seu José, passou a acompanhar desde então com solicitude mas também com a máxima das discrições as nossas blogarias... E o Natal de 2008 surpreendeu-me (e emocionou-me) com o seguinte cartão do José onde se podia ler:

"Luís Graça: Um beijo agradecido pela simpatia posta na mensagem (de força) enviada através do Torcato e que eu li. Votos de um Feliz Natal extensivo a toda a Família. Ana Lourdes de Mendonça"...

Somos, afinal, um blogue de afectos e de histórias, mas também de gente solidária... Por um momento, por uma vez ao menos, eu senti que valeu (ou valia)  a pena esta tontaria de querer juntar o fio de tantas meadas, de destar tantos nós da memória, de inquirir estas tantas vidas que foram/são as nossas (parafraseando o belo título do antigo blogue do Virgínio Briote)... Por um dia senti que também podemos fazer bem a alguém...

Senti que as palavras também podem matar, também podem ferir, também podem destruir; senti que as palavras vêm muito antes das balas, e que são as palavras que nomeiam a morte e desencadeiam a guerra, muito antes dos obuzes e dos aviões e dos carros de combate, das minas e armadilhas...Mas também senti que as palavras, em seu sítio, também podem dar conforto, animar, dar força... Senti-me feliz por saber que a Ana, que eu mal conhecia, passava os testes todos de sobrevivência... e estava apta, apartir de então,  para enfrentar o futuro, pronta para o que desse e viesse...

Em de dezembro de 2008, voltámos a pôr a Ana a sorrir, na nossa fotogaleria, como no dia 17 de Maio de 2008, na Ortigosa... E desejámos-lhe Boas Festas:

"Boas Festas,  quentes e boas como as castanhas da tua Cova da Beira... Há castanhas na Gardunha ? Por mim, só conhecia as cerejas, que são as melhores do mundo. E o requeijão... Ah! o requeijão do Fundão. Ah!, e o Torcato, o José, o Mendonça, o Viriato (o santo patrono da CART 2339)!... Ah!, e agora a Ana, mulher da vida do José, e nossa camariga."

Nessa altura aumentou o meu conhecimento (e reconhecimento) da geografia do amor, da amizade, da solidariedade, da humanidade... E por isso eu pedia paar lhe escreverem o nome, no quadro escuro, a giz, onde listamos as nossas mulheres, as nossas companheiras de uma vida, as nossas camarigas: Ana, simplesmente Ana.. Um exemplo de tenacidade e de coragem, para todos nós. 

E mais disse: 

"Temos orgulho em ti, José!... Temos orgulho em ti, Ana. Deixa-me, José, deixa-me, Ana, oferecer-vos, por fim, este poema do meu modesto poemário... Para ler nos dias de chuva miudinha e de tristeza, quando só apetece colar a cara à vidraça da janela virada para o absurdo da doença, do azar, da morte, com o maciço central da Serra da Estrela a aniquilar-nos... No fim, perceberás, Ana, e tu, José, o sentido do título. ("Poemombro, ou o ombro amigo", de Luís Graça,  2004. revisto em 2008) (**) .


PS - O TM (Torcato Mendonça) comentou seca e laconicamente: "Luís,  depois escrevo...agora não, agora não... abraço-te...somente...forte...sentido... desculpa se te molho o casaco...é uma lágrima de facto... recebe o meu abraço Amigo TM

19 de dezembro de 2008 às 10:03 (**)
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domingo, 25 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22136: Tabancas da Tabanca Grande (1): Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Lourinhã - Parte I: Nascida em plena pandemia de Covid-19...

 





 Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te ao Mar > 17 de abril de 2021 >  Peças de cerâmica da Maria do Céu Pinteus, a mulher grande da Tabanca, que faz anos a 12 de dezembro, e que ainda é do clube dos Sexas.


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Foi, a partir de março de 2020, com a eclosão da pandemia de Covid-19 e o primeiro confinamento, que a Tabanca do Atira-te ao Mar se tornou numa espécie de "porto de abrigo" para alguns amigos e camaradas da Guiné, da região da Estremadura, Oeste, Lourinhã... Dentro das regras sanitárias impostas pela Direcção Geral de Saúde, obviamente.

A Tabanca do Atira-te Ao Mar fica em Porto das Barcas, Lourinhã... Tem o Mar do Cerro em frente. A logística é fornecida pelos "Duques do Cadaval, Maria do Céu Pinteus e Joaquim Pinto Carvalho (, advogado, músico e poeta, natural do Cadaval, membro da Tabanca Grande desde 7/12/2013, ex-alf mil da CCAÇ 3398 (Buba) e da CCAÇ 6 (Bedanda), 1971/73).  (A casa, de férias, agora residência permanente do casal,  tem 3 pisos com 3 frentes de mar,  os de baixo é para os "tabanqueiros".)

Tem sido um bom sítio para, em pleno confinamento imposto pela pandemia de Covid-19, revermos, ao ralenti, os fotogramas dos filmes que de vez em quando passam (e repassam) na tela da nossa memória, ajudando porventura a exorcizar os nossos fantasmas da guerra... 

Convirá dizer que é, por enquanto, uma minitabanca, com lotação máxima de seis lugares  (de acordo com as normas da DGS),  sentados à mesa comprimida, perpendicular ao oceano Atlântico. Está assente na falésia jurássica, a menos de 100 metros da linha de água...

A Tabanca do Atira-te Ao Mar já tinha, até esta data, 7 referências no nosso blogue. Como já  explicámos em postes anteriores (*), esta nova Tabanca  tem desempenhado um papel importante na quarentena e no confinamento, resultantes da pandemia de Covid-19, passando a ser um digno sucedâneo da Tabanca de Porto Dinheiro, e  mantendo a "chama viva" das nossas melhores memórias e vivências e da esperança e melhores dias. 

Recorde-se que, com a morte do Eduardo Jorge Ferreira ( 1952-2019). a Tabanca de Porto Dinheiro ficou órfã do seu insubstituível e carismático régulo. 

Dos membros da Tabanca Grande, tem aparecido por lá, com maior ou menor regularidade,  o Jaime Bonifácio Marques da Silva (, ou simplesmente Jaime Silva, também conhecido  como "marquês do Seixal"), natural de (e agora residente em) Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, e ex-autarca em Fafe, bem como o nosso editor, Luis Graça e a Alice Carneiro (, residentes na Lourinhã).  

Estávamos à espera do João Crisóstomo e da Vilma, vindos de Nova Iorque, mas a festa da família Crisóstomo & Crispim, marcada para o Varatojo (a par da homenagem ao Eduardo Jorge Ferreira, em Ribamar, em outubro de 2020) teve de ser cancelada pelas razões imperiosas que todos nós conhecemos.

Tanto o Jaime Silva como o Pinto Carvalho têm queda para a música, e tocam alguns instrumentos (cavaquinho, o Jaime,  bandolim, viola e cavaquinho, o Joaquim), além de fazerem (ou terem feito) parte de coros ou grupos musicais, Os convívios na Tabanca do Atira-te Ao Mar metem sempre umas musiquinhas e às vezes poesia. (Em próximos postes, divulgaremos algumas dessas atuações que, no fundo, não passam de "ensaios"...)

À volta de um comprimida mesa, que pode meter à vontade mais de uma dúzia de convivas, no 1º piso (, agora com lotação máxima de  seis), temos usufruído também de magníficas refeições (, em geral a cargo das "chefs" Alice Carneiro e Maria do Céu Pintéus, mas também do régulo Pinto de Carvalho, mestre do grelhador) e dos mais belos espectáculos de pôr-do-sol (*).



Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te ao Mar > 8 de maio de 2020 >  2º piso:  vista privilegiada sobre o mar do Cerro.

Foto: © Alice Carneiro (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te Ao Mar > 2 de junho de 2020 > 1º piso: a magia do pôr-do-sol sobre o mar do Cerro.



Lourinhã > Porto das Barcas >  Atira-te ao Mar e... Não Tenhas Medo > 1º piso > 4 de outubro de 2020 > Os donos,  Maria do Céu Pinteus e Joaquim Pinto de Carvalho (que  antes da pandemia viviam habitualmente em Carnaxide, Oeiras).

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. No princípio de outubro do "annus horribilis" de  2020, despedimo-nos do verão do nosso descontentamento, com um poema do Luís Graça que dizia:

(...) À volta de um prato de sardinhas
e de um pedaço de pão de trigo barbela,
com o azeite puro da nossa oliveira,
despedimo-nos do verão,
mas não da vida, ou do que resta dela,
do puro prazer de estar vivo, e de pé,
de dedilhar uma viola,
de beber um copo em grupo,
ou de lembrar os tempos de Guiné, (...)

E em dezembro cantámos  os parabéns à dona da casa e mulher grande da Tabanca, que é também ela uma artista plástica e sobretudo ceramista talentosa como se pode ver das fotos que acima publicamos. Na ocasião ela recebeu o seguinte soneto de parabéns:

Para a Maria do Céu Pinteus,
A nossa Duquesa do Cadaval,
No dia dos anos que ela nunca mais esquecerá!

No seu palácio do Atira-te ao Mar,
Ela é hoje, e por um dia, Rainha,
Mimos deem-lhe, mas não a tratem por Céusinha,
Nem como Santa, muda e quieta, no altar.

Faz aninhos, a Duquesa do Cadaval,
Mulher d’armas que “en su situ” tem Pinteus,
Capaz de, daqui da terra, bradar aos céus
P’ra que Deus ponha à Covid ponto final.

Nove meses, confinada, tantos castigos,
Tem à frente o mar e atrás o Montejunto,
O que lhe vale é o Duque e os seus amigos.

Bem queria dar uma festa d’ aniversário,
Mesa farta, lagosta, champanhe, presunto!...
Mas, olhem, tem de ficar para o… centenário!



Lourinhã, 12 de dezembro de 2020,
2* vaga da pandemia de Covid-19…

Muita saúde e longa vida,
Que tu mereces tudo!...
Dos bons amigos, também confinados,
Companheiros de mesa do teu Atira-te ao Mar
E espetadores dos mais belos pôr do sol de 2020,

Os Viscondes da Lourinhã,
Alice & Luís

PS - Hoje, dia 25 de Abril de 2021, os tabanqueiros Joaquim, Luís e Jaime homenageiam também as suas companheiras de uma vida, e mães dos seus filhos, a Céu, a Alice e a Dina (, esta, infelizmente, já internada num lar, com incapacidade permanente; pertencia também à Tabanca de Porto Dinheiro)... 

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Nota do editor:

(*) Vd. entre outros os postes:

5 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21418: Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Lourinhã (2): A despedida do verão ou a vida que segue dentro de momentos (texto e fotos: Luís Graça)

3 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21037: Manuscrito(s) (Luís Graça) (184): a magia do pôr do sol no Mar do Cerro, Porto das Barcas, Lourinhã, na casa "Atira-te ao Mar!", dos "Duques do Cadaval"

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22083: Listagem de postes do nosso blogue com o(s) descritor(es)... (1): "Cristina Allen"... (uma das "nossas mulheres" que, de uma maneira ou doutra, "foram à guerra", e que era de uma viva inteligência, grande cultura e sentido de humor mordaz: deixou-nos no passado dia 5 de abril)

 

Peça de artesanato guineense que a Cristina Allen ofereceu, em 2009, com muito carinho,  ao blogue, na pessoa do seu editor,  num gesto de apreço pela nossa homenagem à memória da sua filha, mais nova, Maria da Glória (Locas) (1976-2009). 

A peça,  de olaria, devia ter originalmente alguma funcionalidade, que desconhecemos, e que na altura não me foi explicado pela Cristina: tem 4 orifícios no bojo, na parte inferior, e dois, muito mais pequenos, na parte superior (, possivelmente  para entrada de água e saída de vapor)... Seria uma queimador de ervas aromáticas ?... Não, diz o Fernando Gouveia, que conhece muito bem o artesanato guineense: "É uma bilha de Teixeira Pinto!"... Obrigado, Fernando e Regina Gouveia (Vd. poste P4670,  de 11 de julho de 2009).




Lisboa > Adro da Igreja do Campo Grande > 8 de Julho de 2009 > c. 19h30 > A Cristina Allen, tal como a conheci,  na missa do 7º dia por alma de sua querida Locas... Uma grande dignidade na dor e no luto... E sempre de perto acompanhada pela sua filha, mais velha,  Joana, que é psicóloga  na Guarda Nacional Republicana.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2009 /2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].






1. A Cristina Allen, membro da nossa Tabanca Grande,  desde novembro de 2008. deixou-nos passado dia 5, aos 78 anos (*).  Os últimos 12 anos da sua existència foram assombrados pelo desgosto de perder uma filha, e depois pela sua doença crónica degenerativa, 

Mulher crente, esperemos que tenha encontrado agora os caminhos da paz eterna.  A sua passagem pelo nosso blogue foi episódica (tem menos de duas dezenas de referências), mas deixou-nos alguns textos, fortes e desassombrados, e nomeadamente a evocação que fez, com ternura e humor,  dos seus 53 dias de "lua de mel", algo rocambolescos,  passados em Bissau ( cidadezinha pela qual, apesar de tudo, conseguiu apaixonar-se).

Poucas mulheres, como ela, aceitariam ir casar-se em Bissau, em plena guerra, em situação penúria e desconforto, com o noivo em véspera de ser hospitalizado. E, para mais,  voltar sozinha a casa, em Lisboa. Ao marido (, impossibilitado de ir de férias, por razões disciplinares,)  ainda lhe faltavam alguns meses de comissão de serviço militar. Ficam aqui, à nossa disposição, estes textos, que são de antologia, e que nos permitem, de algum modo, colmatar o vazio da sua ausência.  

Por outro lado, poucos de nós conviveram com ela, tirando o Beja Santos, o Jorge Cabral e poucos mais. Os membros mais recentes da Tabanca Grande nunca tiveram, por certo, a oportunidade de ler nenhum destes postes (, perdidos entre mais de 22 mil).  

Conhecia-a pessoalmente em circunstâncias muito tristes (em 8 de julho de 2009), antes tínhamos falado uma ou outra vez ao telefone.  Quero recordá-la aqui como uma grande senhora e "uma das nossas mulheres" que, de uma maneira ou de outra, "foram à guerra".

Era natural de Aljustrel. Foi professora de liceu. Deixa uma filha, Joana, e uma neta, Benedita. E um grande saudade aos amigos que com ela tiveram o privilégio de conviver.

Sobre ela escrevi em 9/1/2009: 

(,,,) Sentiu-se útil e acarinhada por todos nós, ao apreciarmos o seu gesto (generoso e corajoso) de facultar ao seu ex-marido as cartas e aerogramas que ele lhe escreveu durante dois anos de comissão militar na Guiné. E não foram poucas: algumas centenas...

Quem já leu os dois volumes do "Diário da Guiné", do nosso camarada e amigo Beja Santos, sabe quão preciosas foram, para ele (e nós, seus leitores em primeira mão), essas cartas e aerogramas, como fonte de informação minuciosa sobre a actividade diária, operacional e não operacional, primeiro em Missirá e depois em Bambadinca, à frente do Pel Caç Nat 52, entre meados de 1968 e meados de 1970.

A Cristina Allen (...) é uma mulher, de inteligência viva, de grande cultura e com um sentido de humor mordaz... É um privilégio, para nós, ela querer partilhar as emoções que sentiu e as experiências por que passou no curto espaço de tempo (53 dias) que (sobre)viveu em Bissau, entre Abril e Junho de 1970.

"Dias de brasa", chamei-lhe eu, com alguma propriedade. A Cristina não nos pediu, mas isso está implícito: "Meus bravos, saibam-me ler, nas linhas e entrelinhas"... A Cristina não é nossa camarada, mas é doravante uma amiga nossa (e da Guiné). Precisa também do nosso afecto e carinho, na véspera de uma intervenção cirúrgica a que vai ser submetida. Vamos desejar-lhe que tudo corra bem. E que volte rápido e bem, e sempre que o desejar, ao nosso convívio.

Já agora deixem-me, como leitor, dizer que este pedaço de prosa é de antologia. O próximo biógrafo de Spínola não o poderá ignorar. Ora releiam o modo como a Cristina, em duas pinceladas de mestre, fez um soberbo retrato-robô do nosso Com-Chefe: 

(...) "Havia um toque (A recolher? Por causa dele? Nunca perguntei). Mas via aquele homem passar para a mão esquerda o pingalim, encostá-lo firmemente à perna, pôr-se em sentido, crescer, enchendo o peito de ar, o ventre liso, o braço direito, o cotovelo, a mão, na mais perfeita continência que jamais vi. Ficava desmesuradamente imenso, desmesuradamente rígido, só o monóculo coruscava.

"Estarrecida, não sabia que fazer dos pés, das mãos, da mala, da mini-saia, parava, cruzava as mãos, endireitava-me (postura por postura, não baixaria a cabeça, olhava-o nos olhos, ou, melhor dizendo, no olho e no monóculo). Acudiam-me ideias bizarras – que o meu avô materno fora lanceiro e, certamente, teria sabido fazer aquilo mesmo; que ele, Spínola, escorregara em Missirá, numas cascas de batata e fora ao chão, pose, pingalim, monóculo e tudo, soltando palavrões… que aquele homem era o… 'Caco Baldé'!

"Apertava os lábios para não me rir: este é o Caco, 'Caco Baldé'" (...)

Enfim, era uma mulher de grande nobreza e sensibilidade, capaz de escrever, em público, estas palavras extraordinárias:

(...) Caro Luís Graça, as histórias de amor a que alude , morrem, por vezes, mas de nada me arrependo. Ainda hoje voltaria a subir as escadas da pequena Catedral de Bissau, mesmo que fosse, apenas, para viver o primeiro dia da “estação das chuvas”. Um trovão enorme e seco, torrentes de água lavando tudo e, à noite, a visão transcendental e única de um céu riscado de relâmpagos, na luz azul-turquesa, feérica e metálica, como se um deus antigo revelasse a sua ira e escrevesse “basta!” na caligrafia da natureza, solta em fúria. (...) 


2. Listagem de postes do nosso blogue com o descritor "Cristina Allen":

24/12/2008 > Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (5): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

(...) Na cidade, a vida aparentemente almofadada e facilitada por amigos do Mário e também meus, nada podia ocultar os abafados ruídos de combate a quinze quilómetros de distância, nem a visão dos feridos e emocionalmente perturbados no Hospital Militar.

Na companhia do Mário ou sem ele (internado ou já em Bambadinca), andava em bolandas, com as malas, de casa de amigos para o hotel; do hotel para a casa de amigos. Repito que não foi fácil ter vivido em Bissau. A noiva radiante, que o Mário descreve no segundo volume do seu Diário da Guiné, depressa murcharia. Permitiu a sorte que se formasse, como reduto de consolo, uma tabancazinha de gente amiga, em passagem ou residente, militar e civil. Relembro esses amigos (...)

9/1/2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

(...) Cheguei a Bissau a 15 de Abril, casei a 16, parti para Lisboa a 8 de Junho. Cinquenta e três dias. Se achar interesse a isto que escrevo, pode editar, pois já esclareci com o Mário esta questão. Terá havido uma semana e poucos dias de alegria e em todos os restantes, a quotidiana eternidade de desespero controlado. O meu marido sofria do que hoje chamamos, sem complexos, “stress de guerra”. E um súbito muro se atravessava entre nós. Não sei se o escreveu, mas, de olhos desmesuradamente abertos, mandava-me embora e dizia que queria morrer e ser enterrado em Missirá. Pior ainda, eu obrigara-o a casar e o nosso casamento não era válido porque não estava consciente. Doença de guerra, pura e dura.

Levei-o ao Padre. Experiente conhecedor de almas, o Padre Afonso, muito calmo, tinha ali o livro de registos e foi dizendo que, se ele queria ir morrer a Missirá, que fosse. E, quanto ao casamento, abrira uma folha nova nos assentos, bastava arrancá-la… o nosso “Tigre” deu um salto, eu temi pelo Padre, mas tudo se acalmou. “Vão lá almoçar”, disse. Porém, discretamente, fez-me um gesto e percebi que ia telefonar. (...)

8/2/2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

(...) Nessa manhã em que seria hospitalizado, o Mário e eu faríamos as malas e procuraríamos outro quarto, na “Berta”. Estava ali um espaço fresco e sombrio, com uma larga cama. Sem desfazer as malas, desci para o almoço e deparei com uma execrável salada de feijão-frade com atum. Os feijões, minúsculos e mal cozidos, o atum, na prática inexistente, cebola avonde, a gritar pela intervenção rápida da escova e pasta de dentes! Pousei ainda os talheres, mas (“saco limpo cá tá firma!”) enfrentei o questionável cozinhado.

Uma mãozinha leve tocou-me no ombro. Era a Berta, untuosa, que me perguntava se gostara do almoço (“sim.”), se o meu marido vinha almoçar (“não, foi hospitalizado.”), por quanto tempo (“não sei”) e, por fim, o tiro certeiro: num quarto de casal, eu não podia ficar, seria perder dinheiro com uma pessoa que ocupava um quarto de duas… mas ela conhecia uma senhora que alugava quartos, pessoa muito decente, e eu poderia ir comer ali as refeições (“é o vais!”,  pensei…). (...)

19/2/2009 > Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

(...) A poucos dias do seu aniversário (31 de Maio), consegui, por intermédio de um vizinho, bacalhau. E foi, enquanto preparava o enorme pirex de arroz, receita longa e complicada, que, súbita, irrompeu a estação das chuvas. O Mário não estava.

Chovia em catadupas. Corri para a rua, molhei-me toda, voltei ao forno, a roupa a secar-se-me no corpo.

Trinta e um de Maio de 1970. Quanta chuva, Mário? Vinte e cinco.

Um dia, dois dias, quantos, antes que ele partisse? Não recordo. Na sua ausência, um outro amor crescera – Bissau, a suja, colorida, mal crescida cidade africana, o cinzento opaco do Geba, junto ao cais, o céu atravessado de helicópteros, suspensas notícias, indo e vindo, silêncio povoado pelo longínquo matraquear do medo.

Nela aprendi que o belo não é o perfeito, que o belo pode ser, também, o feio em ignota desmesura, estado de alma, inquieta quietude, inesperada transigência. (...)
te cantarei bela
em cada esquina.
Bissau, como te vi,
luzeiro e sombra densa,
Bissau da paz
e luta ardente,
Bissau benvinda,
oculta para sempre. (...)

Outros postes:

7/4/2021 > Guiné 61/74 - P22077: In Memoriam (391): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021) - A Cristina, a Guiné e a sua presença na nossa sala de conversa (Mário Beja Santos)

6/7/2017 > Guiné 61/74 - P17550: O Serviço Postal Militar (SPM) do nosso contentamento: cartas e aerogramas... (E, a propósito, o que é feito dessas 10 toneladas de correio diário que circulavam nos vários teatros de operações durante a guerra ?)

9/1/2013  > Guiné 63/74 - P11024: O Spínola que eu conheci (24): Alcunha, antonomásia, apodo, cognome ou epiteto... "Caco Baldé"... Qual a origem ? (Cristina Allen / Luís Graça / Jorge Cabral / Carlos Fabião / Cherno Baldé)

1/10/2009 > Guiné 63/74 - P5038: História de vida (23): Maria da Glória, uma saudosa filha com um dom especial para o fado (Cristina Allen)

23/7/2009 > Guiné 63/74 - P4726: In Memoriam (28): Saudades da nossa Locas (1976-2009): com a dor e o riso também se faz o luto... (Cristina Allen)

9/7/2009 >Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

6/7/2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Revez Allen Beja Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)

25/12/2008 > Guiné 63/74 - P3668: (Ex)citações (9): Obrigado, Cristina, por esta doce e terna prenda de Natal (Torcato Mendonça / Hélder Sousa)

8/11/2008 > Guiné 63/74 - P3422: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (2): O exemplar nº 1, autografado, dedicado à malta do blogue

11/07/2008 > Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

28/03/2008 > Guiné 63/74 - P2693: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos (25): A festa do meu casamento, 7 de Fevereiro de 1970

__________

Nota do editor:

(*) Vd. postes  de:

  7/4/ 2021 > Guiné 61/74 - P22077: In Memoriam (391): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021) - A Cristina, a Guiné e a sua presença na nossa sala de conversa (Mário Beja Santos)

7 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22075: In Memoriam (390): Maria Cristina Robalo Allen Revez (8/3/1943 - 5/4/2021), ex-esposa do nosso camarada Mário Beja Santos, faleceu no Lar de Santa Catarina de Labouré, Lumiar, Lisboa (Editores)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (169): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)


Tancos > Batalhão de Caçadores Paraquedistas > 26 de maio de 1961 > As 11 candidatas ao 1º Curso de Enfermeiras Paraquedistas > Da esquerda para a direita, de pé: Cap Pára Cunha, Mª Ivone, Mª da Nazaré (falecida), Mª Arminda, Mª de Lurdes, Mª. Margarida Costa, Mª do Céu Bernardes e Major Lelo Ribeiro; na primeira fila, de cóscoras: Mª do Céu Policarpo, Mª Zulmira André (falecida), Mª Helena, Mª Margarida Pinto e Mª Irene... (Deste grupo inicial de onze voluntárias, só ficaram seis...).

Escreve a Maria Arminda:

 (...) "Lembro-me do primeiro dia que te conheci[, Maria Ivone]. Saímos do Aeroporto da Portela a vinte e seis de Maio de 1961, cerca das 9h30 e a bordo de um velho “Junker” (JU 52), que passou a partir desse momento a ser o nosso fiel amigo, íamos prestar provas psicofísicas ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas em Tancos. Como estava um dia com chuviscos, algumas de nós íamos de lenços na cabeça, tipo meninas do colégio em jeito de passeio de fim de curso." (...) (*)

Foto (e legenda): © Maria Arminda (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Maria Ivone Reis, ten enf
paraquedista,  Cacine,
12/12/1968.
Foto de António J. Pereira
da Costa (2013) (***)
1. Continuação da publicação de excertos de um depoimento sobre "a presença e a participação femininas na guerra colonial", prestado, em 2004,  pela nossa camarada,  Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada.


Com 92 anos feitos hoje (**), a Ivone Reis é portadora, infelizmente da doença de Alzheimer, e está ao  cuidado do IASFA - Instituto de Ação Social das Forças Armadas
há já uns largos anos. Poe essa razão, já não nos poder ler 
nem comunicar connosco. Aproveitamos, todavia, a data do seu aniversário  para dar a conhecer, um pouco mais, 
a sua história de vida e o seu testemunho como enfermeira paraquedista do 1º curso (1961) (. A Maria Arminda Santos também é desse curso e ficaram para sempre amigas.)

Ambas são, aliás,  membros da nossa Tabanca Grande. 
A Ivone Reis tem mais  de 25 referências no nosso blogue. Esteve no TO  da Guiné em três comissões (1963, 
1965 e 1969). Esteve igualmente em Angola 
e Moçambique. 

Sabemos,por outro lado, do respeito e admiração que todas 
as antigas enfermeiras paraquedistas, mais novas, têm por 
esta nossa camarada, que é para elas uma figura de referência 
(, tal como a Maria Arminda, outra decana do grupo). 
Em jeito de singela homenagem,  fomos buscar um seu antigo depoimento, 
publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais  (, editada 
pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).


Com a devida vénia à editora e à autora (Margarida Calafate Ribeiro), tomamos a liberdade de selecionar e reproduzir aqui alguns excertos do longo depoimento da nossa camarada Maria Ivone Reis (****) , que pode ser lido na íntegra aqui:

Margarida Calafate Ribeiro, "Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial", Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 19 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1212 ; DOI : 10.4000/ rccs.1212


Depoimento de Maria Ivone Reis (2004) (Excertos) 

(II e última parte) (****)



[Comparando a Guiné, Angola e Moçambique]

(...) A Guiné, embora fosse um território violento do ponto de vista da guerra, era mais acessível por ser mais pequeno e geravam-se relações mais próximas entre as pessoas. Estávamos em cima de todos os acontecimentos de uma forma muito solidária e muito humana e tínhamos uma boa relação uns com os outros: militares, civis e africanos. 

Com frequência ouvia-se em Bissau rebentamentos e poderia não acontecer nada que afectasse as pessoas. Mas, muitas vezes era um rebentamento em qualquer zona da Guiné e tocava o telefone. A enfermeira que estava escalada, entrava no jipe e imediatamente partia para a pista e voávamos para o local. 

Em Angola ou Moçambique era muito diferente devido à vastidão dos territórios. Às vezes ir buscar um ferido era como ir daqui a Frankfurt. 

(...) Depois há a diferença das situações, que tem a ver com a diversidade de cada pessoa, de cada situação… era consoante o grau de paciência ou de sofrimento daquele que acompanhávamos. 

Um dia, um jovem soldado, foi vitimado por uma mina, que lhe esfacelou um pé. Já instalado no avião que fazia a sua evacuação para o hospital militar, a enfermeira pára-quedista que o acompanhara, perguntou-lhe se tinha muitas dores. Com a cabeça ele acenou-lhe que não, mas o seu rosto continuava a espelhar todo o sofrimento que lhe ia na alma. 

A enfermeira tentou confortá-lo, dizendo-lhe para ter confiança na competência e dedicação dos médicos e de toda a equipa hospitalar que o iria tratar. Prontamente, ele olhou fixamente para a enfermeira e diz-lhe com contida emoção: “Senhora enfermeira, com pé ou sem pé, estou vivo! O que me preocupa é a dor da minha mãe quando souber.” (...)


[Alouette II e Alouette III]

 (...) A força moral daqueles jovens, naquela época, era tremenda e isso transmitia-nos uma grande força para enfrentar os problemas e para lhes dar resposta. Agora o que era mais grave para mim, era quando púnhamos o ferido na maca, víamos os sinais vitais, pulsação e tomávamos consciência de que a vida estava em risco. Aí o problema era chegar a tempo ao hospital. Felizmente que todos os que tive em mãos hegaram a tempo. São situações de muito sofrimento, que nos tocam muito.

A memória daqueles jovens que entregaram a sua juventude, sem saber bem porquê. Recordo um outro caso, esse de alto risco a vários níveis. No quartel nós podíamos sair do avião, mas na zona de combate nós não devíamos sair do avião ou do helicóptero. Era uma circunstância de muito risco. Se houvesse ataque do inimigo o helicóptero teria de levantar voo imediatamente ficando a enfermeira em terra em grande risco, sem meios nem ambiente para tratar dos feridos. Eventualmente fizemos isso em situações muito excepcionais, bem medidas, porque podia tornar-se um altruísmo muito arriscado para a vida dos outros. 

Nesse aspecto é muito importante a questão do medo, porque ajuda ao raciocínio e ao controlo. O importante é perceber como controlar o medo, para termos oportunidade de perceber a razão do medo e para que possamos ultrapassá-lo.
 
(...) Mas como dizia, o episódio que recordo foi muito no início da guerra, ainda com o Alouette II, que era um avião muito pequeno sem espaço para as macas dentro do avião. As macas iam fixas lateralmente – cá fora – de modo que nem podíamos assistir ao ferido. Depois, com o Alouette III, já 
tínhamos espaço para as macas cá dentro e para assistir ao ferido. 

Um dia fomos buscar um ferido e estávamos no quartel numa zona de guerra no Sul da Guiné, onde tinha havido um bombardeamento. Num local mais avançado em relação ao quartel estava o chamado posto avançado das tropas que era um tenda de campanha com um médico e o pessoal militar que dava apoio no campo da enfermagem. Nessa manhã houve muitos feridos.

Quando o avião estava para aterrar fazia uma volta sobre o aquartelamento para avisar que ia chegar à pista. Logo a ambulância avançava, e simultaneamente seguia para a pista um jipe de apoio e segurança. Na pista mudávamos o ferido da maca de campanha para a maca do helicóptero ou do avião. Naquela altura aterrámos na pista e lembro-me de ouvir dizer que o doente estava em estado grave. Perguntei de imediato se poderia ir lá abaixo à tenda. E fui. Encontrei um ambiente de luta pela vida. 

O rapaz, um soldado, tinha levado um tiro no tórax, e estava um fogareiro de petróleo a ferver material agulhas e outros instrumentos. Perguntei ao médico o que é que podia fazer, informando que tínhamos o avião à espera. O rapaz tinha uma hemorragia pulmonar, estava em risco, e eles tentavam cateterizar uma veia para pôr soro. Mas havendo uma hemorragia muito grande, as veias ficam colapsadas. Foi então que o médico pediu a um dos colaboradores que fosse ao quadro eléctrico do quartel buscar daqueles tubos vermelhos da electricidade e, retirando-lhes os fios metálicos, cateterizou a veia e conseguiu colocar o soro. 

E foi debaixo de perigo que avançamos com aquele corpo frágil, o colocámos num Unimog com uma tela com a Cruz Vermelha em cima e o transferimos para o avião. Chegou ao hospital com a pulsação mínima para poder sobreviver e recuperou. Ele era da zona de Castelo Branco e sei que a mãe dele me procurou, mas eu não fiz nada, apenas o assisti a bordo. O médico e a sua equipa é que fizeram um trabalho extraordinário.


[Tive muita sorte, nunca tive mortos nem partos]

(...) Ao longo de tantos anos e com tantos casos tive muita sorte. Nunca tive mortes, mas também nunca tive partos. Uma colega minha ficou muita aflita, porque um bebé nasceu a bordo e não sei o que ela fez, sei que depois daquela ansiedade acabou por conseguir entregar a criança à mãe. Para além deste trabalho dos feridos, de um lado e do outro, havia o contacto com as populações, o apoio àquelas pessoas.

Havia a população que encontrávamos nas saídas de apoio operacional no mato e com quem estabelecíamos relações. Mais uma vez dou o exemplo da Guiné, onde as coisas eram mais imediatas, devido à dimensão do território. Era tudo muito pequenino, negros, brancos, mestiços, civis, militares vivíamos todos em conjunto. 

Lembro-me de uma criança que vinha com frequência ao nosso Posto de Socorro visitar-nos. Era filha de um carpinteiro da Base Aérea. Um dia ele, o pai, disse-me que gostava muito que eu pudesse levá-la para Lisboa, para lhe dar uma vida que ele não lhe poderia dar. Expliquei-lhe que a minha actividade profissional era imprevisível e por isso era impossível impor uma responsabilidade dessas à minha família.


[Socorríamos também dos feridos do PAIGC]

(...) Ao longo dos anos da guerra estive na Guiné em 63, depois em 65 e finalmente em 69, e de cada vez que lá voltava, encontrava uma outra Ivone, porque eles davam aos filhos os nomes das pessoas de quem gostavam. Entre eles e nós havia uma relação simpática e gratificante.

Socorríamos também os feridos do lado adversário. Deontologicamente, homem/mulher, ferido/doente é, e deve ser sempre tratado como humano que é. Quando “o” tinha diante de mim como ferido, não fazia julgamentos, não se faz qualquer julgamento sobre uma pessoa que sofre. O humano fala sempre mais alto e penso que nós portugueses, por aquilo que me foi dado observar, temos uma sensibilidade muito humana. Mas chegavam-nos alguns papéis dos movimentos de libertação. (...)

["Quando é que isto acaba ?"]

(...) Eu tinha dúvidas em relação à descolonização, não que achasse que as coisas estavam bem. Mas Salazar deixou de governar em 1968. De 1968 a 1974 vão seis anos, ninguém mudou nada e só Salazar é que tem culpa? Todos nós fomos culpados, eu também porque não era capaz de dar gritos pela Paz. O que se passava é que enquanto havia um homem inocente a combater, que era o soldado, nós deveríamos estar numa retaguarda de apoio. 

No entanto, eu perguntava com frequência desde os primeiros dias: “Quando é que isto acaba, não há direito que isto aconteça…”


[Na festa do Senhor Santo Cristo com os militares açorianos da CCE 274, Fulacunda, 1963]

 (...) Falávamos da guerra, daquilo que se passava de forma muito objectiva e das coisas engraçadas, fazíamos umas partidas, festas. Lembro-me da Companhia CCE 274, aquartelada em Falacunda, na Guiné, em 1963. Tinha sido uma Companhia muito sacrificada e um dia em que eu e uma colega fomos em missão prestar assistência e evacuar feridos na sequência do rebentamento de uma mina, um militar desabafou: “Que pena, estas senhoras só vêm cá em dia de azar”. Respondemos prontamente: “Fechem a guerra e convidem-nos”. 

O convite veio no último domingo de Maio, para a festa do Senhor Santo Cristo. A Companhia CCE 274 era constituída por açorianos e os festejos iniciaram-se com uma missa celebrada pelo capelão-militar, seguida de almoço e batuque, em que os soldados, passados pela chaminé, ficaram negros e “transformaram-se” em negros. E as duas enfermeiras foram de Fafás. A guerra tinha estes aspectos humanos, agradáveis, solidários,ainda que na sombra daqueles festejos estivessem os mortos na picada e a eles prestámos homenagem.


 [“Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos” (alferes de artilharia, do quadro permanente,  cego e sem uma perna)]

 (..) Tínhamos uma vida mentalmente saudável, mas com o coração sempre “atento”, um pouco sentido, porque as circunstâncias eram complicadas. Quando acompanhávamos um ferido perguntávamo-nos: “Como é que esta mãe amanhã vai saber deste filho? Ou a mulher?”. Estávamos sempre numa vivência de sofrimento. Todas as semanas, vinham feridos para Lisboa e uma de nós acompanhava-os, embarcando de regresso logo que possível.

Eventualmente também vinham alguns feridos na TAP, dependia das circunstâncias. Morreu no ano passado um homem que tive ocasião de acompanhar numa destas viagens. Era oficial de Artilharia. Conheci-o na Beira, vindo de Nampula e recordo que quando chegou o avião o médico estava a tratar de um doente idoso, um colono branco. 

Quando o avião entrou em linha de voo, perguntei ao médico o que tinha aquele doente e se precisaria do meu auxílio. O médico disse-me que ele era cego dos dois olhos, e que não tinha uma perna. Fiquei apreensiva. Fui ter com ele, apresentei-me e disse-lhe que poderia contar comigo ao longo da viagem. Muito serenamente, com os olhos vendados, pôs as mãos dele nas minhas e disse-me: “Tive um azar muito grande, mas tive sorte”. 

Lembro-me que pensei onde estaria a sorte daquele homem. Perguntei-lhe se tinha dores. Disse-me que não e continuou: “Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos”.

Lembro-me de estremecer perante a nobreza daquele homem. Ele era alferes do quadro, tinha um pelotão à sua responsabilidade e naquele estado dizia-me que tinha tido sorte, porque os seus rapazes estavam todos bem.

Admiro profundamente esses homens que tanto sofreram. Muito pouca gente lhes dá o valor e tudo o que eles merecem, porque são homens extraordinários. Tenho a maior simpatia, admiração e respeito por esses homens e sempre que me chamam, nomeadamente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, vou sempre. Admiro extraordinariamente aqueles homens que não se queixam, que são cegos, deficientes em geral, por causa da guerra. (...)

[Cruz Vermelha Portuguesa e Movimento Nacional Feminino]

 (...) No acompanhamento dos feridos a Cruz Vermelha dava muito apoio ao visitar os doentes nos hospitais militares ou afins. 

O Movimento Nacional Feminino estava mais vocacionado para a relação entre os combatentes e as famílias. Se, por exemplo, um soldado tinha deixado os seus haveres em qualquer sítio, tinha sido ferido e depois vinha para o hospital e daí para Portugal, o Movimento Nacional Feminino através de cartas ou por contactos através dos seus núcleos fazia o possível para que as coisas fossem entregues ao soldado ou às famílias. 

Eu tenho cartas de militares, que me pediam que falasse com pessoas por eles indicadas, familiares ou que tratasse de pequenos assuntos, o que contribuía para o bem-estar daqueles jovens. 

Nessa medida, a Cruz Vermelha e o Movimento Nacional Feminino foram instituições solidárias e humanas, importantes para suavizar o vazio  o desconforto da viagem de um combatente, particularmente daqueles que sofriam fisicamente e para quem o desconforto psíquico e moral se tornava ainda mais difícil de suportar. (...)


 [O 25 de Abril e as suas contradições]

(...)  Vivi o 25 de Abril toda contente, a bater palmas, porque finalmente acabava a guerra. Mas ao fim de uma semana fiquei triste deixei de perceber o que estava a acontecer. Eu tinha regressado após tantos anos de África e estava na Força Aérea, a trabalhar no Hospital. Fui saneada a 17 de Abril de 1975 e isso surpreendeu-me. O hospital, no qual tanto me empenhara, ia abrir em Janeiro de 1976. 

Nunca me disseram a razão do meu saneamento e para que efectivamente eu saísse tinha de assinar uma rescisão de contrato com a Força Aérea. Andei um ano e meio naquela situação, falei com o General Costa Gomes, mas nunca me disseram a causa e eu nunca assinei nada. Após a eleição do General Eanes fui reintegrada na vida activa hospitalar até à minha reforma. (...)


 [O doloroso regresso à Guiné nos anos 80]

(...) Há uns tempos, na minha paróquia, onde sou catequista e nos dedicamos em equipa a preparar pessoas adultas para o baptismo, na década de 80, apareceu um rapaz da Guiné, de 19 ou 20 anos. Andava nas obras e estudava. O pai era muçulmano, mas ele queria ser baptizado. Cultivámos uma certa relação afectiva, de amizade e, por vezes, encontrávamo-nos em grupo. Finalmente o rapaz baptizou-se e continuou a conviver connosco.

Um dia, disse que gostava de ser padre. E há dois anos foi ordenado sacerdote. No ano passado, quando fez um ano de ser ordenado, convidou-nos a acompanhá-lo à Guiné. Vivi um terrível dilema, não queria mesmo ir, expliquei-lhe as minhas razões, mas acabei por ceder e sofri muito. 

Lembrei-me das casas cor-de-rosa velho ou caiadas de branco naquele verde luxuriante de Bissau e olhava para aquilo tudo degradado, aquela pobreza extrema, aquelas crianças na rua, ao abandono. Não há explicação, não há justificação possível para mim. Fiquei muito chocada. Não quero voltar a Angola nem a Moçambique. (...)

[Seleção / subtítulos / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)



domingo, 6 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21328: Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Lourinhã (1): vozes e cavaquinhos contra a guerra, os do Jaime Bonifácio Marques da Silva e Joaquim Pinto de Carvalho, em tempo de pandemia


Tabanca da Lourinhã, ensaio do tema tradicional "Ó Laurindinha, vem à janela". Cavaquinhos e vozes: Jaime Bonifácio Marques da Silva e Joaquim Pinto Carvalho. Sítio; Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, 5 de setembro de 2020.  Em homenagem ao nosso saudoso amigo, camarada e régulo da Tabanca de Porto Dinheiro, Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019)



Vídeo (1' 16''). Alojado em Luís Graça / You Tube


Letra e música: Tradicional

Oh Laurindinha, vem à janela.
Oh Laurindinha, vem à janela.
Ver o teu amor, ai ai ai, que ele vai p'ra guerra.
Ver o teu amor, ai ai ai, que ele vai p´ra guerra.

Se ele vai pra guerra, deixá-lo ir.
Se ele vai pra guerra, deixá-lo ir.
Ele é rapaz novo, ai ai ai, ele torna a vir.
Ele é rapaz novo, ai ai ai, ele torna a vir.

Ele torna a vir, se Deus quiser.
Ele torna a vir, se Deus quiser.
Ainda vem a tempo, ai ai ai, de arranjar mulher.
Ainda vem a tempo, ai ai ai, de arranjar mulher.



1.  Ontem, almoçamos com a São, viúva do nosso saudoso camarada Eduardo Jorge Ferreira ( 1952-2019). depois de uma caminhada entre a Maceira e o Porto Novo, nas imediações da sua terra natal, Vimeiro, Lourinhã... Nunca é demais esquecer que ele foi o régulo da Tabanca de Porto Dinheiro / Lourinhã, e que nos reuníamos, de vez em quando num restaurante dessa praia piscatória da Lourinhã, para comer uma caldeirada... e celebrar a amizade e a camaradagem que nos unia. 

Ontem, o petisco não foi uma caldeirada, mas uma feijoada do mar, no 100 Pratus, na Praia da Areia Branca. A São foi convidada dos casais, Maria do Céu / Joaquim Pinto Carvalho e  Alice Carneiro / Luís Graça. 

Fomos depois tomar o café ao Atira-te ao Mar, no Porto das Barcas, que tem desempenhado um papel importante na quarentena e no confinamento, resultantes da pandemia de Covid-19.  O Atira-te ao Mar passa a ser um digno sucedâneo da Tabanca de Porto Dinheiro, mantendo a "chama viva" das nossas melhores memórias e vivências. 

Daí a nova designação da Tabanca de Porto Dinheiro (que, com a morte do Eduardo, ficou órfã do seu insubstituível régulo). Como temos horror ao vazio, criámos a Tabanca do Atira-te ao Mar, no Porto das Barcas, Lourinhã, ao alcance de um tiro de canhão do Porto Dinheiro, Ribamar, Lourinhã. Fazem as honras da casa, o Joaquim Pinto Carvalho e a Maria do Céu Pinteus, os "duques do Cadaval", que nos dão o indispensável apoio logístico.

Ao fim da tarde, e a pretexto de ver o novo bandolim. adquirido pelo Pinto de Carvalho, apareceu o Jaime Bonifácio Marques da Silva, que também toca cavaquinho. O pequeno vídeo que publicamos acima marca a inauguração, oficiosa, da nova Tabanca, o Atira-te ao Mar.  

Aproveitamos também para publicar uma mensagem deste nosso amigo e camarada, o Jaime Bonifácio Marques da Silva (, ou simplesmente Jaime Silva), natural de (e agora residente em) Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, e ex-autarca em Fafe.

Data: 28 de julho de 2020, 23:26:33 
Assunto: Crónica

Caro Sobrinho

Acabei de ler o teu texto [, que publicaste no teu blogue, em 30 de julho passado, e que me mandaste por email] (*). 

Obrigado por teres a coragem de o escrever. É o primeiro texto que leio de um jovem da tua idade, já nascido após o fim da Guerra Colonial.

A reflexão que fazes sobre a inutilidade das guerras e, nesta particularmente pelos traumas que causaram a muitos dos que a viveram (combatentes, famílias, amigos) é um contributo importante que prestas aos jovens das novas gerações para a reflexão que deve ser feita nos dias de hoje face a tal pesadelo.

Disse alguém: "Pior do que uma Guerra, é fazer de conta que ela nunca aconteceu"..E muitos jovens não sabem que a Guerra Colonial aconteceu.

Há cerca de quinze dias,falava com uma jovem mulher sobre Guerra Colonial, quando às tantas ela me pergunta: "Mas o que foi a Guerra Colonial?"

Em Março de 2021 vai fazer 60 anos que a Guerra Colonial rebentou em Angola.

Obviamente que podes divulgar o texto.

Vou enviar-te dois textos que escrevi. Um deles terminei-o ontem - porque para mim: "Na Guerra não valeu tudo!"

Abraço do
Tio Jaime

2. O Diogo Picão, músico e compositor, tinha enviado a sua "crónica" ao tio Jaime, através deste email, o qual merece ser divulgado, com a devida autorização dos dois:

Olá, tio.

Como estás? Nunca consegui escrever a canção que me pediste mas saiu-me há uns dias uma crónica sobre ti e o primo Arsénio. Gostava que lesses, me desses a tua opinião, e de te perguntar se te parece bem que eu a publique no meu blogue. Se não te sentires confortável fica para ti e eu guardo-a na gaveta.

Se te apetecer dá um olhada no meu blogue: http://dpicao.blogspot.com/

Um grande abraço

Claro que o Diogo Picão fica, desde já convidado, para integrar a nossa nova tertúlia, o Atira-te ao Mar, no Porto das Barcas, Atalaia,  Lourinhã. E oxalá um dia destes ele consiga ter a inspiração e sobretudo a disponibilidade para escrever a tal canção que o tio que foi à guerra, lhe pediu. Talento e sensibilidade não lhe faltam, oxalá / enxalé / inshallah a maldita pandemia o não penalise mais, deixando-o voltar à estrada e aos palcos da música, que é o seu ganha-pão.
____________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 2 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21216: Blogues da nossa blogosfera (133): Diogo Picão: "A guerra do meu tio"

domingo, 8 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20715: Blogpoesia (664) : No Dia Internacional da Mulher: "Como todos os meus passos levam a ti..." (JUvenal Amado)

1. Mensagem do Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem":
Data: domingo, 8/03/2020 à(s) 13:36

Assunto: dia da mulher


Talvez quando chegamos a esta idade nos apercebemos que na nossa vida foram sempre dias da mulher sem que nos apercebemos ou não quisemos aceitar o facto tal a importância que tiveram as nossas vidas .

Fui uma pessoa que se pode dizer abençoada pela sua constante presença. As minhas avós, tias, minha mão, mulher e por último filha sempre cercaram de atenções e eu nem sempre as mereci na realidade.

Passados que foram os anos de brasa onde as correrias quase não nos deixavam olhar para trás é hoje que faço esse compasso analítico e revejo a importância de tudo o que me deram sem esperar retribuição

Para não deixar de assinalar mais este Dia Internacional da Mulher aqui deixo um pequeno apontamento sem o valor da Calçada de Carriche, de António Gedeão mas mesmo assim de boa vontade.

Juvenal Amado
__________________

Como todos os meus passos
           levam a ti
Uma dúvida transforma-se em certeza.
A Lua nova esconde-se e faz a escuridão 

           dona da noite,
Assim como areia fina e o vento quente
           provoca o tornado,
Também os carreiros de tanto serem 
percorridos 
           são transformados em caminhos,
nas gotas de água germinam riachos ,
rios na terra castanha fecunda
           transformam esta em seara,

Também tu me transformaste,
            mataste a minha sede
fizeste mim o homem que sou
e as minhas ausências,
            foram sempre preludio dos meus regressos

Juvenal Sacadura Amado

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20713: Blogpoesia (663): "Por sendas e becos...", "O verso que falta" e "Pás do moinho", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20712: Manuscrito(s) (Luís Graça) (179): Poema de circum-navegação ou o fado dos amantes no Dia Internacional da Mulher









Lisboa > Praia de Pedrouços > 5 de janeiro de 2020 > Partida do navio-escola "Sagres" para a viagem de 371 dias nas celebrações do quinto centenário da circum-navegação de Fernão de Magalhães.


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Poema de circum-navegação ou o fado dos amantes

por Luís Graça




Uma rosa não é nada
Neste Dia da Mulher
P'ra quem, amor, minha amada,
Tem tanto p'ra te dizer.

Se sete vidas tivesse,
Uma não queria perdê-la,
Para que contigo vivesse,
Provando sempre merecê-la.

Ao mundo uma volta dava,
Em barca que fosse forte,
Mas contigo naufragava,
Noutra ilha que nos desse sorte.

Fortuna, porém, não rima
Com os negócios do coração,
Nem creio na obra-prima,
Nem no génio da criação.

Importa o aqui e o agora,
Não o depois nem o antes,
Mas, quando me for embora,

Cumpre-se o fado... dos amantes!


Lourinhã, 8 de março de Vinte-Vinte,
... e que os bons irãs protejam os amantes 
dos novos coronavírus que por aí andam... 
à solta!
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sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20522: O nosso livro de visitas (204): António Borges, cor inf ref, ex-cap inf, cmdt da CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1970, ao tempo do José Corceiro e do José Martins



Guiné > Região de Gabu > Canjude > CCAÇ 5, "Gatos Pretos > 1970

(...) O capitão Borges com a esposa numa coluna para Nova Lamego. Sentados atrás vão os guarda-costas (elementos dos Comandos, Dragões). Houve autorização superior para o jipe poder integrar a coluna.

É uma atitude arrojada que revela coragem, determinação e cumplicidade no casal, dando provas de coesão, sem se pouparem a sacrifício para consolidar a união dos cônjuges. É evidente que o amor é mais importante que a morte... mas o capitão Borges, com esta sua ousadia, deu provas de combate, segurança e confiança, no porvir.

A senhora do capitão Borges tem que ser uma mulher de alma magnânima e imperturbável, para se arriscar a viver nestas condições, a milhas da civilização e neste isolamento, não deve ser fácil, mas é revelador de acto de afoiteza e amor para com o marido, ao querer trilhar alguns dos perigos e dificuldades inerentes ao teatro de guerra que todos aqui vivemos, só que nós militares, por imposição e obrigação, enquanto a senhora do capitão é de livre vontade, abnegando a possibilidade de bem-estar, provavelmente podendo viver na Metrópole. (...) (*)

[Foto à direita]

Guiné > Região de Gabu > Canjude > CCAÇ 5, "Gatos Pretos > 1970 > Entre o Cheche e o Bormuleo, na margem direita do Rio Corubal, a posar para a foto o capitão Borges, o capitão Costeira e o ahferes Varela (hoje advogado em Almada). É visível a margem oposta do rio Corubal.

[Foto à esquerda]

Guiné > Região de Gabu > Canjude > CCAÇ 5, "Gatos Pretos > 1970 >  Instalados junto àmargem do rio Corubal, ao fim do dia, a comer a ração de combate. 

Na foto, o capitão Borges e mais pessoal da operação; o Silva de Transmissões está de pé; alguns carregadores civis são visíveis assim como os garrafões que transportavam com água. Passámos aqui a noite, onde as formigas nos atacaram.



Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego >  14 de março de 1970 >  Recepção do povo de Nova Lamego ao Ministro do Ultramar, Silva Cunha.


Guiné > Região de Gabu > Canjude > CCAÇ 5, "Gatos Pretos > 1970 > O Ramos a cortar o cabelo ao Corceiro em Canjadude. Era normal entre as 10 e as 15h00, intervalo de descanso, andarmos assim vestidos, quando não era pior.

Fotos (e legendas): © José Corceiro  (2010) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Troca de mensagens entre o cor inf ref António José G. G. Borges, ex-cap, cmdt da CCAÇ 5, Canjadude, 1970, hoje cor inf ref (**):

(i) António Borges, quarta, 18/12/2019, 12h45

Com os meus afectuosos cumprimentos muito gostaria que me fosse indicado o endereço actual do vosso "tertuliano" José Corceiro que foi Cabo radiotelegrafista da CCaç 5,  de Canjadude (Guiné), Companhia que comandei em 1970.

Antecipadamente agradecido desejo a todos Festas Felizes.
Cor António José G. G. Borges,
ex Capitão Borges / CÇaç 5


(ii) Luís Graça, 18/12(2019, 13h15

Zé Corceiro: Já há tempos que não contactamos... Tens aqui um pedido do ex-cmdt da CCAÇ 5, em 1970, hoje cor ref António Borges. Responde-lhe, com conhecimento a mim, se não te importares... Aproveitas para fazer a "prova de vida"...

Um abraço natalício. Luís Graça


(iii) José Martins, 18/12/2019.18h45:

Boa noite, meu Comandante e Amigo António Borgs:

Espero que se encontre bem, assim como toda a família. Pediram-me para responder a este mail, o que faço com muito gosto.

Já não tenho contacto com o Corceiro há algum tempo mas, os contactos de que disponho são:
e-mail (...)

telemóvel (...)

Telefone fixo (...) 

Aproveito para enviar votos de Boas Festas e um óptimo 2020.

José Martins

 (iv)  António Borges, 2/1/2020 11h15: 

Caros amigos:

A resposta ao meu pedido sagrou-se 100% exitosa tendo "capturado" o Corceiro que era o objectivo principal da operação, mas também o Martins, e estabelecido contacto com o Luís Graça a quem felicito pelo excelente trabalho do "blogue" que vem patrocinando, executando um trabalho que seria legítimo exigir fosse feito pelas instâncias oficiais próprias.

A todos os meus votos de um 2020 pleno de êxitos pessoais.

Um forte abraço do "capitão",

Borges

2. Comentário do editor Luís Graça:

Meu caro coronel António Borges: fico honrado com as suas palavras acerca do nosso blogue, e grato pelos seus votos de bom ano de 2020, que retribuo,. Ao mesmo tempo, fico feliz por termos conseguido "levar a carta a Garcia"... Mas precisamos da presença de mais um "Gato Preto" na nossa Tabanca Grande. Depois desta agradável visita, o seu lugar é aqui ao pé de nós. E começa bem o ano de 2020 se aceitar o nosso convite, sentando-se à sombra do nosso mágico, protetor e fraterno poilão, no lugar nº 802.

 Mande-nos uma pequena nota curricular e as duas fotos da praxe: uma mais recente e outra mais antiga, do tempo do CTIG. Com certeza que terá memórias que possa e queira partilhar connosco. Será muito bem vindo.

PS - Além do José Martins e do José Corceiro, temos ainda o João Carvalho (, "um dos últimos soldados do império"), como dignos representantes da CCAÇ 5. Espero que não me tenha escapado mais nenhum nome. Cito de cor.
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(...) Durante a minha permanência na Guiné, de entre os quatro Comandantes de Companhia da CCAÇ 5, que eu conheci em Canjadude, por razões de estilos diversos, cada Comandante deixou cinzelado, na minha memória, recordações e sentimentos distintos uns dos outros. (...)

(...) Estamos integrados numa companhia independente de africanos, cujo quartel tem abrigos enterrados no chão, onde dormimos, os que conseguem, em condições desumanas. O acampamento confina com uma tbanca, onde coexistem civis e militares nativos com as suas famílias, habitando em “morançinhas” familiares tradicionais, cobertas de capim (colmo). (...)


(...) Dia 20 de março, 1970o comandante da CCAÇ 5 é o capitão Manuel de Oliveira (falecido em 31/03/2007,  com a patente de coronel tirocinado na reserva) e é voz corrente que nos vai deixar por ter sido promovido a major e foi destacado para Bissau, para exercer funções relacionadas com actividades no Ministério da Educação. A família do capitão vive em Bissau, cujo agregado familiar é composto por duas filhas e a esposa (Bióloga), que lecciona Ciências no Liceu Honório Barreto. (...)

(...) Dia 21 de março, logo cedo, antes das h00, saiu uma coluna de reabastecimento para Nova Lamego. Eu estou de serviço no posto de rádio, das 4h00 às 8h00 e das 12h00 às 16h00. O José Carlos Freitas saiu hoje na coluna e vai para a Metrópole em gozo de férias.

A coluna regressou cedo do Gabu, por volta do meio-dia. Recebi muita correspondência. Veio para substituir o capitão Oliveira o capitão Borges (hoje coronel na reserva) que era o comandante da CCS do Batalhão de Nova Lamego. (...)

(...) Dia 26, não sei se terá algum fundamento ou se será boato de caserna, mas comenta-se a notícia com honras de veracidade. Fala-se à boca cheia que o capitão Borges vai trazer a esposa, que vive em Nova Lamego, aqui para o destacamento de Canjadude.

Dia 28, houve coluna a Nova Lamego e o capitão Oliveira deixou hoje a CCAÇ 5, foi para Bissau. (...)

(..:) Desde que o Ministro do Ultramar esteve em Nova Lamego, o dia 14 deste mês [de março de 1970], todos os dias têm havido saídas de pelotões para o mato e, tem sido uma constante o movimento de envio e recepção de mensagens, no posto de rádio.

Dia 31, o capitão Borges mandou reunir os militares da Formação e esteve a definir algumas normas de conduta, que quer que sejam cumpridas por todos, principalmente na apresentação do vestuário e comportamentos. (...)

(...) Dia 7 de abril, logo manhãzinha, ao romper da aurora, saiu uma coluna para Nova Lamego. A coluna regressou a Canjadude bem cedinho, tendo recolhido no trajecto o pelotão que estava emboscado.

Ao chegar a coluna ao aquartelamento, ficou tudo surpreendido e de boca aberta… ah! ah!, embora não fosse surpresa para ninguém, pois já todos sabiam, o capitão Borges veio acompanhado da sua esposa que, segundo consta,  vai ficar a viver em Canjadude. (...) [Vd. foto acima, com a respetiva legenda] (...)


(...) Não nos podemos esquecer que estamos no mato e, a partir de agora, da parte de nós, militares, impõe-se nova conduta, mais moderação no verbalismo utilizado na oralidade, mais decoro na postura de apresentação, mormente no vestuário usado, pois tem que haver pundonor e uma determinada probidade no porte, não nos podendo dar à veleidade do desalinho que é ir dos abrigos para os balneários, só de toalha às costas (às vezes suportada por cabide fantasiado) e sabonete na mão. É toda uma atitude comportamental na disciplina, a que temos que nos ajustar. (...)

(...) A esposa do capitão Borges, com todo o respeito, é uma senhora muito simpática e bem-disposta, tem uma auréola de energia positiva. Sempre que passa por algum de nós, indiscriminadamente, não faz distinção, tem a amabilidade de nos dirigir um cumprimento de saudação, sempre com ar de pessoa feliz e sorridente. Só uma senhora que aparenta esta tranquilidade interior e serena generosidade, se sujeitaria a viver neste meio tão hostil e carenciado, onde abundam todo o tipo de privações. (...)

(...) Dia 29 [de março de 1970], por sugestão da esposa do capitão Borges, ao serão reunimo-nos todos os militares no refeitório das praças, para confraternizarmos um pouco e jogar ao loto, presidido pelo comandante da Companhia (desde que eu estou em Canjadude nunca houve uma união e envolvimento de aproximação semelhante a este acto, as águas têm sido muito separadas). Eu logo na primeira jogada fiz Bingo, ganhei 154 pesos, voltei a fazer Bingo na terceira jogada, ganhando 86 pesos, pelo que levou alguém a gracejar que eu já tinha ganho dinheiro, suficiente, para pagar uma rodada de cervejas para todos. (...)

(...) Dia 6, de maio, chegou a Canjadude o capitão Arnaldo Costeira (creio que na época era o capitão com menos idade do QP, se a memória não me falha, ouvi-lhe dizer que comandou, interinamente, uma companhia em Angola tinha ele 20 anos de idade, na altura como alferes e que tinha sido há quatro anos atrás; hoje é coronel na reserva), para substituir o Capitão Borges. (...)

(...) Dia 13, em Canjadude, foi accionado o alarme de perigo, dirigiu-se apressadamente todo o pessoal para os seus postos de defesa, mas afinal era tão só uma demonstração, para testar a eficácia da actuação do pessoal e, para o capitão Borges dar umas explicações da orgânica dos procedimentos a cumprir, em caso de ataque IN, ao capitão Costeira. (...)

(...) Dia 23, realizou-se uma operação, para os lados do Cheche, Corubal, Bormuleo, a nível de Companhia, foram o capitão Borges e o capitão Costeira nesta operação. As viaturas foram-nos levar na direcção do Cheche e apeamos muito próximo das viaturas que estavam abandonadas na picada, por terem sido acidentadas com minas. Após termos desmontado das viaturas, caminhamos bastante tempo, até nos instalarmos para comer a ração de combate. Na parte da tarde começamos a caminhar rumo ao Corubal e no percurso encontrámos um destacamento IN, já abandonado, restando vestígios da actividade humana. Destruímo-lo todo, após o que continuámos a progredir até à margem do Corubal, onde passámos a noite. Instalámo-nos junto de rochas, num lugar paradisíaco, mas para esquecer, pois durante a noite, quase todos nós fomos hostilizados por formigas, que nos queriam papar, as quais tiveram o condão de nos agitar e perturbar a nossa tranquilidade, quando precisávamos de descansar. (...)
(...) Dia 24 de maio  de 1970, veio o furriel de transmissões, Alberto José dos Santos Antunes, substituir o furriel de transmissões, José Martins.

Dia 26 de Maio, de 1970, houve coluna a Nova Lamego. O furriel José da Silva Marcelino Martins (José Martins nosso tertuliano) despediu-se de Canjadude, e da CCAÇ. 5, rumou destino à Metrópole, por ter terminado a sua comissão de serviço na Guerra do Ultramar. Desejo-lhe boa viagem, muita saúde e êxito no percurso que vai iniciar. Que a vida lhe sorria e boa sorte. (...)


(**) Último poste da série >  19 de setembro de 2019 >  Guiné 61/74 - P20156: O nosso livro de visitas (203): O jovem guineense Erickson Té agradece o trabalho que o nosso blogue tem feito pela sua terra e pede autorização para usar algumas das nossas histórias bonitas em página do Instagram