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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23994: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVIII: Breve história do império do Cabú



A lenda de Alfa Moló - belíssima ilustração do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos 
maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pág 53)



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5




O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amigaé também o autor do sítio 

1. Transcrição das pp. 89/91 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império de Cabú 
(pp. 89-91)



A história de Cabú começa quando o grande general Tiramakan Traore, às ordens do famoso primeiro Imperador do Mali, Sundiata Keita, cria o Reino de Cabú em 1250 (45), com capital em Cansalá.

O Reino de Cabú começou por ser apenas um Reino vassalo do grande Império do Mali, mas com a queda deste no século XVI, tornou-se um Império, o qual abrangia vários reinos, que iam desde a Gâmbia à Guiné-Bissau, passando pelo Senegal.

A grande migração de fulas para a Guiné nos séculos XVIII e XIX, trouxe as sementes da nova etnia dominante ao Império de Cabú.

Os fulas vinham do norte de África, eram na sua maioria pastores, com uma minoria de agricultores. Muitos deles eram devotos seguidores do islamismo e do modelo de civilização a ele associado.

Constituíam uma sociedade onde existia também uma classe instruída, e por isso, consideravam que tinham uma cultura superior à dos ignorantes mandingas.

Os mandingas eram principalmente agricultores, mas eram também guerreiros orgulhosos e valentes, que olhavam com desprezo para os fulas, pois não passavam de famintos e miseráveis criadores de gado, vestidos de trapos e farrapos.

A crença dos mandingas era animista, mas eram tolerantes com as outras crenças, e aceitavam o islamismo, tendo existido reis e imperadores mandingas no antigo Império do Mali, que se converteram ao islamismo e disseminaram a sua fé.

A chegada dos fulas à Guiné no século XVIII foi pacífica, pois foram bem recebidos pelos mandingas, que os deixaram utilizar as suas terras, em troca do pagamento de um tributo (46).

Os terrenos cedidos aos fulas pelos mandingas eram chamados pelos mandingas de fulacundas (47), ou seja lugares dos fulas.

O aumento de tributos,  por parte dos mandingas, levou os fulas a deslocarem-se para outras zonas mandingas e também para as terras dos biafadas, escolhendo os locais onde as exigências de tributos eram menores.

Nesta altura apareceu um marabu (48), Seiku Umarú, que profetizou que os fulas em breve iriam mudar a sua condição de submissão, passando a ser os novos senhores, o que correspondia às suas aspirações, e os levou a começarem a pensar numa revolta.

Os mandingas, ao terem conhecimento de tal prenúncio, ficaram preocupados, além disso a contínua imigração fula fazia aumentar assustadoramente o seu número (49), e a continuar assim em breve seriam mais numerosos do que os mandingas, o que veio a acontecer mais tarde.

Os mandingas decidiram desincentivar a vinda dos fulas, e afastar os que já estavam nas suas terras. Então fizeram um aumento generalizado dos tributos, mas a resposta não foi a que esperavam, pois os fulas não abandonaram as suas terras e revoltaram-se, pedindo ajuda aos fulas do Reino do Futa Djalon.

A criação do Reino do Futa Djalon fez mudar as relações dos fulas com os seus vizinhos, pois a partir dai iniciaram a sua campanha de levar a luz divina aos pagãos, lançando uma guerra santa contra os seus vizinhos animistas (a jihad), e a conquista do Império de Cabú estava
entre os seus planos.

O momento era propício para os fulas, pois o Império de Cabú estava dividido por conflitos internos, e a sua economia estava em decadência.

Os fulas do Futa Djalon olhavam para esta guerra com agrado, pois ela dava resposta aos seus anseios de levarem a mensagem divina do Islão aos reinos animistas e permitia também poderem responder aos pedidos de ajuda dos seus irmãos fulas do Império de Cabú, além disso esta guerra iria assegurar-lhes escravos para trabalharem nos campos, dar-lhes o acesso aos cereais de que necessitavam, e garantir-lhes a segurança das suas caravanas, quando estas passassem por aquelas regiões.

A primeira grande batalha entre fulas e mandingas é denominada batalha de Berekolong (50) (1850-51), e ocorreu em Sancorla.

Os fulas venceram a batalha de Berekolong, e o Reino de Sancorla passou para o domínio fula, mas o exército fula sofreu grandes perdas, não tendo força suficiente para continuar a conquista.

As revoltas fulas sucederam-se por todo o lado, os biafadas e os nalus foram igualmente atacados pelos fulas revoltosos, os quais com a ajuda dos fulas de Labé e Timbo (51) em 1868 tomaram Bolola (52) aos biafadas.

A região conquistada pelos fulas aos biafadas passou a chamar-se Forreá, terra da liberdade em língua fula.

As forças militares portuguesas, apesar de não se envolverem nas lutas, apoiaram os revoltosos, dando guarida aos mesmos nas suas fortificações.

O poder no Império de Cabú desde o início do século XIV que era dividido entre três clãs da nobreza, um Sané e dois Mané (53), os quais consideravam que apenas eles tinham direito ao título de Mansa Bá, que significa Grande Rei ou Imperador, pois apenas eles possuíam a linhagem real, pelo que o lugar de Imperador rodava entre eles.

O sistema de rotação do lugar de imperador funcionou bem até à morte do Mansa Sibo Mané (54), da província de Same, pois neste caso os s
eus descendentes esconderam a sua morte, e não cederem de imediato o lugar de Imperador na capital ao seu sucessor por direito de rotação, Djanqui Uali Sané. Assim, apenas se retiraram de Cansalá um ano depois, gerando um conflito interno entre os clãs Mané e Sané.

O Império de Cabú estava numa situação difícil, com revoltas internas e invasões fulas, era necessário manter a unidade entre os mandingas, mas aconteceu precisamente o contrário. 

Por outro lado a economia do Império de Cabú estava em decadência, as caravanas que passavam por Cabú eram cada vez menos, e o comércio de escravos era reduzido, na verdade agora existiam novas rotas e outros destinos, devido aos comerciantes estrangeiros e às rotas comerciais marítimas (55).

Os fulas, que tinham vindo progressivamente a conquistar territórios ao Império de Cabú, aproveitaram as divisões internas dos mandingas para darem o golpe final, e assim um poderoso exército do Reino do Futa Djalon (56) invadiu Cabú e destruiu Cansalá (1867) (57), passando os fulas a dominar todo o território.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]
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Notas de CF:

(44) Tiramakan Traore - o nome também surge nalguns textos com a designação Tirmakhan Traore, Tiramong Traoré e Tiramaghan Traore.

(45) Cabú - pag, 83, “Kaabunké - Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de Carlos Lopes.

(46) “Conflitos interétnicos” – Carlos Cardoso.

(47) Fulakunda - lugar fula, a palavra kunda na língua mandinga significa lugar.

(48) Seiku Umaru - este marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar, é referido em vários textos como espalhando a mensagem, que no futuro os fulas serão os novos senhores, por exemplo na pag. 78 de “Fulas do Gabú” de José Mendes Moreira, e na pag. 63 da “Grandeza Africana” de Manuel Belchior.

(49) “Fulas do Gabú” - pag. 79, “Fulas do Gabú” de José Mendes Moreira.

(50) Berekolong - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes.

(51) Forreá - pag. 160 em “Guiné Portuguesa” – A. Teixeira da Mota.

(52) Bolola - pag 147 em “História da Guiné I” - René Pélissier.

(53) Kaabunké - pag. 179, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais - Carlos Lopes.

(54) Mansa Sibo - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes refere, “Quando o Mansa Sibo, da província de Sana morreu, a rotatividade exigia que o Mansa-Bá seguinte fosse Janké Wali, da província de Pakana. Mas os descendentes do primeiro fizeram
“ouvidos de mercador” e mantiveram o poder por mais um ano. Este foi o factor que desencadeou um conflito importante entre os Mané e os Sané de Pakana, numa altura em que as agressões do Futa-Djalon exigiam coesão e não dispersão de forças Kaabunké”.

(55)  Cabú - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes.

(56) Exército do Futa-Djalon - a sua dimensão é referida na pag. 28 de “Mandingas da Guiné Portuguesa” de António Carreiras: “ Os Fulas- Pretos, animados pelos bons resultados das operações do Futa, solicitaram novamente o auxílio do Almami de Timbó para tentarem
a batida definitiva dos Soninkés. Reunidos trinta e dois mil homens de guerra dos quais doze mil cavaleiros, aquele régulo de Timbô fez a concentração de tropas em Kitchar (imediações de Kadé)”.

(57) Cansalá - não existe uma data aceite por todos os historiadores sobre a destruição de Cansalá, eis alguns exemplos: Carlos Lopes na “Resistência Africana ao controlo do território”, indica a data de 1867;  Mamadu Mané,  em “O Kaabu”, indica “por volta de 1865”; Carlos Cardoso,  em “Conflitos interétnico”, indica o ano de 1865;  René Pélissier na “História da Guiné I”, pag. 143, refere que “a grande batalha de Kansala (Cam-sala) data de 19 de Maio de 1864, dando como referência o historiador António Carreira; Joel Frederico Silveira em “O Império Africano 1825-1890”, na pag. 216 refere a data de 1867.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali

(**) Vd. também postes de



Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali


Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das pp. 85/87 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império do Mali



A história do Império do Mali começa com a queda do Império do Gana no Século XI.

O Império do Gana foi um dos mais antigos e poderosos impérios africanos, talvez remonte ao século IV, mas os dados sobre a sua formação são pouco rigorosos; o seu território ia desde o deserto da Mauritânia até ao rio Níger no Mali, mas não incluía os territórios da República do Gana, que apesar de ter o mesmo nome não possui qualquer ligação ao Império do Gana.

O geógrafo Al-Bakri (38)  (século XI), de Córdova, escreveu sobre o Império do Gana e sobre o seu poderio militar, referindo que possuía um exército de 200 mil homens, dos quais 40 mil eram arqueiros.

Este Império, inicialmente designado de Kumbi pelos seus habitantes, foi chamado de Gana pelos árabes.

A crença dominante no Império do Gana era a animista, mas o nascimento do islamismo no século VII, e os seus contactos com ele, irão provocar no século XI a queda do Império, face ao crescimento do islamismo no seu território e aos almorávidas.

Os almorávidas eram uma espécie de monges guerreiros, que em nome do Islão empreenderam no século XI uma “guerra santa”, e nela acabaram por destruir o Império do Gana, libertando muitos povos do jugo dos seus senhores. 

Um deles foi o povo mandinga, originando o Reino do Mali, o qual viria a assumir um papel dominante na nova ordem,  e um outro importante reino que se constituiu, foi o Reino Sosso.

O Reino Sosso, conduzido por Sumanguru Kanté (39) , dominou inicialmente os Reinos vizinhos, entre eles o Reino do Mali, mas depois de várias batalhas acabaria por ser totalmente derrotado na batalha de Kirina por Sundiata, a qual leva à criação do Império Mali.

Os mandingas tornam-se os grandes conquistadores da região, e em 1230 Mari Diata I, também conhecido por Sundiata Keita ou Sundjata Keita ou simplesmente Sundiata, que reinou de 1230 a 125540, funda o  poderoso Império Mali, o qual incluía os territórios do Senegal, Gâmbia, Mali e Guiné-Bissau, e partes da Guiné-Conacri (41), Mauritânia e Níger.

O nome de Sundiata e a história do Império do Mali, são conhecidos pelos povos dos países da África Ocidental, pois a sua história tem sido transmitida até aos dias de hoje.

Apesar da importância e popularidade da figura de Sundiata como fundador do Império do Mali, quem o dá a conhecer ao mundo é o Imperador do Mali, Mansa Bá Mussa, também conhecido apenas por Mansa Mussa ou por Mansa Kankan Mussa, que reinou de 1312 a 1337, devido à imponente peregrinação que fez a Meca em 1324.

Al-Umari, um viajante árabe que no começo do século XIV visitou o Império, descreve a sala do seu trono assim:

“(…) O sultão preside no seu palácio numa grande varanda onde se encontra um enorme trono de ébano feito para uma pessoa alta e corpulenta; o sultão é ladeado por duas presas de elefante viradas uma para a outra, e as suas armas todas em ouro, são colocadas ao pé dele: sabre, lanças, carcás, arco e flechas (…) (42)”.

A famosa peregrinação levada a cabo por Mansa Mussa, seria composta por uma caravana com 60 mil pessoas, entre elas 12 mil servos, e 500 escravos cada um transportando ouro, e 80 camelos carregados com mais de duas toneladas de ouro para serem distribuídas entre os pobres (43).

Apesar de não existir um entendimento consensual entre os historiadores, sobre os números reais da peregrinação de Mansa Mussa, sejam eles quais forem, a verdade é que os árabes ficaram deslumbrados com o poder e riqueza no Império Mali.

A peregrinação colocou literalmente o Mali nos mapas do mundo medieval, pois Mansa Mussa surge com uma pepita de ouro na mão, no mapa do catalão Abraão Cresques, em 1375.

A peregrinação a Meca do Mansa Mussa em 1324, teve também influência na expansão do islamismo, pois deu mais força à sua fé, e gerou mais determinação em o difundir.

Outro homem religioso do Mali, que ainda hoje é lembrado pelo seu fervor religioso, é o Mansa Koy Komboro, que em 1280 impôs o islamismo como religião oficial no seu reino, Djenne, e construiu a enorme Mesquita de Djenne, o maior edifício do Mundo construído com lama. Os habitantes de Djenne ainda hoje lhe chamam “Mesquita de Komboro“, e ela continua a causar admiração aos viajantes que por ali passam.

Em 1545 o Império Songai ocupa Niani,  a capital do Império do Mali, ponto fim a um Império em decadência, dividido com lutas internas pela conquista do trono, e minado com revoltas.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]

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Notas do CF:

(38) Al-Bakri - pag. 69 da “História da África” de J. D. Fage. Al-Bakri escreveu o livro “Descrição de África” em 1087, que serve de fonte a muitas obras literárias.

(39) Sumanguru Kanté - este nome é usado na pag. 86, “História da África” de F. D. Fage, e também em Sundiata – Lion King of Mali de David Wisniewki, e em Sundiata – Uma Lenda Africana de Will Eisner, mas esta figura surge também com outros nomes, como por
exemplo na pag, 167 em História da África Negra, de Joseph Ki-Zerbo, o seu nome é Sumaoro Kanté, na pag, 27 de Sundiata – An Epic of Old Mali, de Djibril Tamsir Niane, o seu nome é Soumaoro Kanté.

(40) Sundiata - 1230-1255, pag. 46 “A Descoberta de África”, de Catherine Coquery - Vidrovitch.

(41) Guiné-Conacri - oficialmente designa-se República da Guiné, mas vulgarmente também é chamada de Guiné-Conacri, para se distinguir da Guiné-Bissau.

(42) Mansa Musa - pag. 24 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

(43)  Mansa Musa - pag. 25 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

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Nota do editor:

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23770: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VI: os primeiros ataques a Farim, em 1963


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Farim (e dos seus bairos  Nema e Morocunda), além de K3 e Bricama. Recorde-se que cada centímetro da carta corresponde a 500 metros no terreno.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022).


1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou em 2015, aos 74 anos. 

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" do livro do Amadu Djaló. Temos vindo a introduzir pequenas correcções toponímicas ao texto  impresso, a ter em conta numa eventual (se bem que pouco provável) 2a. edição. 

Recorde-se, aqui sumariamente, os primerios vinte e poucos anos do Amadú Djaló (1940-2015), a partir dos excertos que já publicámos (**):

(i) o Amadu Djaló era, em 2010, quando o seu livro foi lançado (no Museu Militar en Lisboa) um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, como muito bem lembrou o Virgínio Briote;

(ii) Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, juntando-se a milhares de guineenses; mas o seu pai  que era empregado de balcão de um comerciante libanês, em Bafatá, o Assad,  tivera antes o sonho de o levar até ao Senegal, onde dois sobrinhos-netos eram militares do exército francês, ambos 2º sargentos e antigos combatentes da guerra da Indochina; após consulta a um vidente, passou a sonhar com uma carreira militar brilhante para o filho, coisa que ele na Guiné portuguesa, em sua opinião,  nunca poderia ambicionar:

(iii) recenseado pelo concelho de Bafatá, o Amadu acaba por ser  alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(iv) depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, ponde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas:

(v) é colocado depois em  Bedanda, na 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), em finais de 1962:

(vi) é tranferido, a seu pedido para a 1ª CCaç (mais tarde CCAÇ 3) em Farim, em meados de 1963.

O excerto que hoje publcamos é referente a esse período em Farim   (segundo semestre de 1963, pelas nossas contas). Mantemos a ortografia original.
  



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense,  Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O início da guerra em Farim, no segundo semestre de 1963

(pp. 64-70)

por Amadu Bailo Djaló



Uma coluna de Farim a Susana em cerca de 20 horas

Cerca de um mês depois houve ordem para recolher os pelotões que se encontravam nos destacamentos. A nossa companhia 
[a 1ª CCAÇ]  tinha dois pelotões, um em Porto Gole e outro em Susana.

A minha viatura, depois de descarregada, ficou preparada para fazer parte da coluna com destino a Susana 
[na região de Cacheu]  . Partimos por volta das 08h30, andámos todo esse dia e toda a noite, debaixo de chuva torrencial, numa estrada difícil e lodosa, que exigia muita perícia e um andamento muito cauteloso.

De Farim até Bigene e Barro a estrada não estava muito mal, o pior foi depois, os carros patinavam e atascavam-se a toda a hora.

Quando chegámos a Susana, às 4h00 da madrugada, o pessoal já estava cansado de tanto esperar. Tivemos que carregar tudo rapidamente e por volta das 6h00 iniciámos o regresso a Farim.

Quando passámos pelo Ingoré, vi o alferes Almeida algo preocupado. Andava a ver se arranjava qualquer coisa para dar de comer ao pessoal que estava faminto, já que não comíamos nada desde que tínhamos saído de Farim. Vi-o regressar de mãos vazias. Compreendemos e resignámo-nos, não havia outro remédio.

Para acrescentar, a jangada estava avariada e tivemos que aguardar até às 19h00, que foi quando ficou pronta. Atravessámos o rio 
[Cacheu , seguimos para Bula, onde chegámos à noite, por volta das 21h00.

Aqui, o alferes ganhou esperança em encontrar comida. Mas, tal como no Ingoré,  veio com as mãos a abanar. Não havia nada a fazer e pusemo-nos a caminho de Binar e Bissorã. Em Binar, nem parámos, só quando chegámos a Bissorã descansámos, já passava das 3h00 da madrugada

Refeitos, prosseguimos, primeiro para o Olossato e depois para o K3 e aqui o alferes recebeu uma mensagem para rumar para Mansabá, onde nem parámos e depois para Mansoa.

Desde Susana, trazia de reboque um Unimog “gripado”. Em Mansoa ficámos a aguardar o pelotão que vinha de Porto Gole [1].

Quando chegaram de Porto Gole as duas viaturas, um jipe e um Unimog, a coluna pôs-se finalmente em marcha de regresso a Farim.


Bricama, uma tabanca de pouca confiança


Na tabanca de Bricama, viviam homens válidos para pegar em armas. O comandante da 1ª CCaç, um capitão cujo nome não recordo, era uma pessoa já com certa idade, tratava-me por cunhado, entendeu entregar ao chefe da tabanca dez armas Mauser, para a autodefesa da tabanca. E se tudo corresse bem estava na intenção de entregar, mais tarde, espingardas G-3.

Um mandinga, chamado Malan Injai, também conhecido por Manjai, andava, de tabanca em tabanca, a vender cola e aproveitava para colher informações, que depois passava à tropa. Um dia disse que a tabanca de Bricama não era de confiar e a tropa decidiu recolher as armas.

Um certo dia, Malan Injai entrou no quartel exausto e com ar de sofrimento. Apresentou-se ao oficial de dia e mostrou-lhe as costas em chagas provocadas por chicotadas que lhe tinham dado na mata de Bricama, onde fora preso por uma patrulha do PAIGC, que o acusou de prestar informações à tropa.

Depois de aprisionado e apresentado ao chefe e à população da tabanca, como informador da tropa e traidor, foi levado para um acampamento, onde foi julgado e condenado à morte, por fuzilamento, quando amanhecesse.

Felizmente para o Malan, no grupo que o prendeu, havia um patrício dele que se condoeu e o soltou por volta da meia-noite. Malan pôs-se em fuga e caminhou na mata até Farim, onde chegou mais morto que vivo. Muito emocionado, relatou tudo o que tinha acontecido.

Quando Malan se apresentou ao capitão da 1ª CCaç, em Farim, este, prudentemente, optou por recolher as Mausers que estavam em poder do chefe da tabanca de Bricama.

Para o efeito encarregou o alferes Almeida, do esquadrão de Bafatá 
 [2], para executar a diligência no dia seguinte, na qual eu também participei.

Chegados à tabanca de Bricama fomos acolhidos por pouca gente, ao contrário das outras vezes. O alferes perguntou pelo chefe da tabanca. Veio um filho que informou que o pai se tinha deslocado a Farim, chamado pelo administrador.

– E onde estão as armas?

–  Não posso mostrar. Quando o meu pai sai, fecha a casa e leva as chaves com ele.

–  Por onde passou o teu pai? Não o vimos no caminho!

–   Nós costumamos seguir a corta-mato, que é mais rápido.

Perante esta resposta e como não convinha demorar, o alferes resolveu regressar. Chegados a Farim, fomos directamente à casa do administrador, que informou o alferes Almeida de que o chefe da tabanca tinha ido a casa de Braima Baio, chefe da tabanca de Farim, e que desconhecia se ele ainda regressava naquele dia a Bricama ou se dormia em Farim. O administrador prontificou-se a enviar o motorista a casa de Braima, no bairro de Morocunda, incumbindo-o de trazer o chefe da tabanca, caso ele lá se encontrasse, o que não sucedeu. O motorista, quando regressou, disse que o chefe já tinha regressado à tabanca. E o alferes Almeida prontamente deu a informação ao nosso comandante.

No dia seguinte, de manhã, voltámos a Bricama e encontrámos o chefe da tabanca. Após os cumprimentos, o alferes quis saber dos motivos que o tinham levado a Farim, a casa do administrador, ao que ele respondeu que era devido ao atraso nos pagamentos do imposto. E o alferes continuou:

– Viemos cá, para falarmos sobre esta questão: o chefe tem entre 60 a 80 homens aptos a usarem armas. E, dentro de algum tempo, nós vamos receber mais armas. Assim temos que recolher todas as Mausers, que estão à sua guarda, a fim de serem substituídas por G-3, que são muito superiores. E, logo que seja possível, entregaremos mais algumas.

De imediato, o chefe da tabanca dirigiu-se a casa e, pouco depois, surgiu com nove armas.

– Não são nove. Pela relação que tenho, são dez Mausers!

A arma que faltava tinha já sido recolhida pelo cabo da arrecadação, uma vez que se tinha verificado anteriormente que a arma não estava em condições. Resolvida a questão, regressámos a Farim.


Os dois primeiros  ataques do PAIGC a Farim, no 2ºseemstre de 1963

Quatro ou cinco meses depois de ter sido transferido para Farim, a 1ª CCaç deslocou-se numa coluna de quatro viaturas, à serração de Carés, que ficava perto de Fajonquito, na linha da fronteira com o Senegal. 
[Carés, topónimo que não existe, mais provavelmente trata-se de Caresse]

Quando chegámos arrumei o meu carro junto de outras viaturas. Na minha viatura vinham soldados africanos, nas outras que me seguiam vinham soldados africanos e europeus, que pertenciam ao esquadrão de Bafatá e que estavam destacados na 1ª CCaç, em Farim.

Quando acabámos de estacionar, fui surpreendido por uma voz conhecida. Era o 1º cabo Eurico.

 Eh, pá, não há como na tropa! Um dia separámo-nos em Cacine, junto à fronteira com a Guiné-Conakry, nunca pensei voltar a encontrar-te na Guiné quanto mais neste local, junto à fronteira com o Senegal!

Chamou os colegas [3], fizemos uma grande festa e perguntei onde estavam agora colocados.

 Em Canhamina    responderam.   [Canhamina ,a seguir a Fajonquito, a nordeste, já na carta de Tendinto, que nos falta].

Pouco tempo depois,
 Carès passou a ser terra de ninguém. Num dia, o proprietário da serração, temendo ser atacado, comprou armas e munições para a defender. Mas não resistiram ao ataque do PAIGC. O dono da serração morreu no local e a serração fechou e foi transferida para Bafatá, para um local perto da minha casa [4].

Estava uma noite de luar. Eu tinha-me deslocado ao bairro de Sinchã e estive a divertir-me com alguns colegas. Com a noite já adiantada, resolvi regressar ao quartel. No caminho, quando estava a chegar ao bairro de Nema, vi o pelotão de milícias formado à porta do régulo Made Sissé. Estavam a preparar-se para se dirigirem para os locais de vigilância à segurança do bairro. Passei por eles, sem me dirigir a ninguém, pois estava com pressa de chegar ao quartel, que não ficava a mais de meio quilómetro.

Uns metros andados fui surpreendido por barulho de tiros e de rebentamentos, que me pareceram atingir toda a vila.

– Mas que é isto?  interroguei-me, espantado, sem saber bem o que fazer.

Se tentasse deslocar-me para o quartel, algum militar que me visse a aproximar, baleava-me logo. Por outro lado não me parecia que regressar ao local de onde tinha partido, fosse uma boa solução. As milícias armadas tinham-se espalhado pelo bairro e o perigo para mim era o mesmo. Agachei-me, colei-me ao chão, a pensar no que havia de fazer. O fogo abrandou e a correr alcancei o bairro de Mancanha, já muito próximo do quartel. Vi uma casa e abriguei-me na varanda. O tiroteio recrudesceu e eu bati à porta.

– Quem é?

– Abra a porta!

– Não!

– Se não abrir, vou ter que arrombar!

– Tenho medo!

– Não tem que ter medo, sou militar!

Vendo a porta aberta, entrei precipitadamente, fechei-a e fiquei com a chave na mão. Era um velho que vivia sozinho.

Desconfiados, mantivemo-nos algum tempo a olhar um para o outro. Não me sentia confiante no meu companheiro e, por isso, resolvi não dormir, embora os olhos se me quisessem fechar. Não o deixei sair, nem para urinar, permaneci toda a noite sentado e só resolvi sair, quando as armas se calaram, o que aconteceu por volta das 5 da manhã. Entreguei-lhe a chave, mostrando-lhe que, em mim, não havia qualquer má intenção, apenas queria abrigar-me do tiroteio.

Dirigi-me a um posto de vigilância, próximo dos Correios, e aguardei a viatura que estava a recolher os vários militares dispersos pelos postos de vigilância.

Quando cheguei ao quartel, viviam-se os momentos habituais depois de um ataque. Cada um falava e contava como tinha sido. Emoções e lembranças surgiam a cada passo. As recordações do acontecido duraram poucos dias. Mas estávamos certos que o 1º ataque, de que houve memória, do PAIGC a Farim se iria repetir.

Uma semana depois da recolha das armas em Bricama, o nosso comandante entendeu estar na altura de ver como a população da tabanca estava a reagir. A minha GMC, carregada de soldados,  abria uma pequena coluna de quatro viaturas. Íamos com destino a Bricama, uma localidade atravessada por um ribeiro com muita água e sobre o qual havia uma ponte de troncos de palmeiras.

A tabanca estava na outra margem, a pouco mais de 50 metros. Quando nos aproximámos da ponte, foi com surpresa que verifiquei que tinha sido queimada.

– Siga, continua    gritou-me o alferes Almeida.

– Então e a ponte, meu alferes?

Vendo-me parado a olhar para os restos calcinados da ponte, avançou com o jipe.

– Toca a saltar cá para baixo, menos os condutores    ordenou.

Verificando que a travessia não se podia fazer, mandou o pessoal embarcar novamente e regressámos a Farim.

Esta foi a última saída a Bricama e também o adeus à população da tabanca, que julgávamos nós estava libertada da influência do PAIGC. A partir deste acontecimento, redobrámos a vigilância, as vias de acesso a Farim passaram a ser mais controladas e tivemos consciência que a zona de Farim estava a entrar numa nova fase da guerra.

Não ficámos muito admirados, quando dias depois, Farim voltou a ficar debaixo de fogo. Não foi tão violento, nem tão prolongado como o primeiro. Não houve vítimas do nosso lado, do outro não sei. Também desta vez, me encontrava fora do quartel, estava de serviço aos Correios.

 (Continua)

______________

Notas do autor:

[1] Da CCaç 413, comandado por um alferes que me disseram mais tarde ser sobrinho do Brigadeiro Arnaldo Schulz, nomeado Governador-Geral em 29 março de 1964, quando eu me encontrava ainda em Farim.

[2] ERec 385

[3] Do Pel Caç 870

[4] Depois de 25 de Abril de 1974 a serração acabou por ser abandonada.


[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos /  negritos / parênteses rectos, com ntas adicionais, para efeitos de edição deste poste: LG. ]

__________


(**) Vd. os outros postes anteriores:

22 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência

16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

14 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

22 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)


domingo, 30 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (419): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

1. Comentário de Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23736  (*):

Caros amigos,
Este testemunho de um guerrilheiro que participou na batalha de Como ajuda-nos a compreender um pouco como as coisas se passaram, visto do outro lado, mesmo se ainda continua coberto com uma pequena áurea da mitologia de glorificação das suas acções com que o PAIGC quis cobrir estes acontecimentos do início da guerra na Guiné que foi, de facto, nada mais nada menos que uma das maiores operações militares da chamada guerra do Ultramar português.

De certa forma está pequena crónica simboliza uma justa e sentida homenagem ao enorme sacrifício consentido pelo povo Balanta (Brassa) que, de forma insensata foi quase que empurrada para os braços do PAIGC pelo comportamento pouco prudente das chefias militares portuguesas presentes no terreno nos primeiros anos da guerra aqui contados pelo veterano CMD Amadú Bailo Djaló no seu livro aquando da sua passagem por Bedanda que não souberam gerir da melhor forma os dilemas e as relutâncias em que viviam estas comunidades, apanhadas entre dois fogos.

No mesmo período, no Norte e Nordeste, também acontecia a mesma coisa, com a diferença de que, também os guerrilheiros, perante a recusa de adesão da população à sua causa, sobretudo do povo Fula, estando posicionados maioritariamente do lado português, eram vítimas de actos semelhantes, quando não era a tropa a roubar e matar o gado encontrado no mato.

Quanto ao termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu. Ao império mandinga de Kaabu ou Gabú correspondiam duas províncias ou Farinados governados por um Farim (donde vem a designação da cidade de mesmo nome no rio Cacheu): A de Gabú (Farin-Kabu) e a de (Farin-B'rassu). Dito isso, não é de estranhar que hajam outros povos que viviam na mesma área geográfica também se considerarem como sendo de "B'rassu" ou, como dizem os nossos irmãos Balanta "Brassa". Assim, durante muito tempo, no império mandinga de Gabú, os residentes da província de Gabú eram os chamados "Kaabunkês" e da outra província de "B'rassunkês", termo que assim designava não um grupo étnico em si, mas todos os grupos ali residentes sem excepção, de tal maneira que dentro dos grandes grupos étnicos existiam estas divisões consagradas inclusive numa certa forma de falar (sotaque) que se distinguia claramente da outra província (línguas regionais). No caso do grupo Fula essa distinção ainda hoje é vivida em forma gracejos. Portanto, para dizer aos nossos irmãos Balanta, também nós somos "B'rassa" no sentido geográfico e étno-linguistico.

E eu, toda a nossa família assim como o regulado de Sancorla que constitui a herança de muitas gerações dos nossos antepassados que conviveram e trabalharam sob a dominação imperial dos Farinados mandingas do histórico Braço ou B'rassu, território que se estendia desde o rio Cacheu até às margens do rio Gâmbia, são B'rassunkês ou se quiserem "Brassas".

O nome do meu pai é Tambá que ele herdou do passado e que hoje, na Guiné-Bissau, é reconhecido como um nome tipicamente Balanta, mas que, na verdade, é de raízes mais profundas ou seja do grupo Banhum (em francês Baynunk) que, antes dos mandingas, dominava toda esta área geográfica e grande parte do espaço territorial entre a actual GBissau, a região de Casamansa no Senegal e a Gâmbia.

Tudo isso para dizer que na África Ocidental, a mestiçagem era uma prática corrente e tudo girava a volta do poder e de quem a controlava em benefício de todas as comunidades. No grande Braço ou B'rassu conviviam diferentes comunidades. A par dos mandingas que, na altura, detinham o poder, viviam Banhuns, Padjadincas, Kocolis, Balantas, Biafadas, Fulas, entre outros que, necessariamente, interagiam em diferentes domínios, inclusive no das relações matrimoniais e de consanguinidade.

Convinha a eles e a todos nós guineenses, que pesquisássemos mais ao fundo e assim trazer ao de cima os aspectos que nos uniam no passado e desta forma melhorarmos a nossa convivência actual a fim de construirmos um país onde todos possam viver e trabalhar em paz em vez de criarmos guetos tribais que perpetuam as nossas diferenças e as nossas querelas nos períodos mais recentes.

A este propósito e nesta mesma senda, propunha a mudança da designação do Blogue "Intelectuais Balantas na diáspora..." Para Blogue dos "Intelectuais Guineenses na diáspora..." que, no fundo, é a mesma coisa, mas seria mais abrangente, podendo incluir outras visões e ideários sobre o mesmo país e outras verdades que, também, não deixam de o ser.

Bem hajam
Cherno Baldé


********************

A quem se interessar uma leitura ou pesquisa mais profunda e bem elaborada sobre este assunto da mestiçagem no espaço da Senegâmbia, pode procurar as obras do investigador guineense de Conacry e especialista sobre o império mandinga de Kaabu (Gabau), Djibril Tamsir Niane de quem tenho várias citações e referências na monografia que estou a preparar, há bastane tempo, sobre a minha terra (Fajonquito), donde vos extraio este pequeno excerto para dar uma amostra:

ORIGEM E SIGNIFICADO DO NOME SANCORLA

"(...) Tudo leva a pensar que o nome Sancorla (da grafia portuguesa) vem da palavra Soncoya ou Sonkoya que significa terra dos Sonco ou Sonko. Segundo Djibril Tamsir Niane (Guiné-Concri), investigador e especialista do império mandinga de Gabu, na origem, Sancorla podia ser Sonkolla, quer dizer, terra ou território pertencente à dinastia dos “Sonco/Sonko”, príncipes de origem diversa mas assimilados à cultura mandinga que governavam esta Província mestiça de Birassu/ B’rassu (para mandingas e fulas), Brassá/Brazza (para os balantas) no período áureo do império de Gabú ou Káabu. Ainda, segundo Djibril Tamsir Niane a Provincia de Sonkolla era o domínio do clã Sonko, originários de uma miscigenação de autóctones Banhuns mandiguizados com grupos de fulas pastores vindos de Mali (Macina) e de Boundu (Senegal) que, em ligação com as províncias mandingas iniciais de Gabu - (províncias Nanthiôs de Pathiana/Propana, Djimara e Sama/Manna), formaram as províncias designadas pelo termo mandinga de Kôring (ou seja de origem não mandinga) de Birassu/Brassu (Farin-Ba) de que a região de Sonkolla seria parte integrante, se não mesmo o seu centro. Ainda segundo Tamsir Niane (citando Sekéné Mody Cissoko), o nome de “Farinsangul” na historiografia portuguesa (reinado de D. Joao I), seria a deformação de Farin-Sonkolla, em referência ao poderoso governador de Soncolla em Berécolon.

No séc. XV, os chefes (Farins) de Sonkolla, província habitada por uma população mista e belicosa, se extenderam a Oeste e fundaram muitas aldeias entre as quais Salikénie (situado na fronteira entre o Sénégal e a Guiné-Bissau perto de Cambaju) , Solikoo (em português Solucocum, também na linha da fronteira entre Cambaju e Sitatô), Bantadjam (Bantandjan) e Kagnamina (Canhámina, actual capital do Régulado de Sancorla).**

A capital da província, Bérécolong (Berecolón), situada a norte da actual vila de Fajonquito, onde residiam os chefes da província (Farim) e que desempenhavam um papel preponderante nas relações entre o poder central do império de Mali e o reino de Portugal em meados dos séc. XIV/XV, é uma localidade tão antiga como a velha Kansala, capital do império mandinga de Kaabu, diz-nos Tamsir Niane."


Com um braço amigo,
Cherno Baldé

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(*) - Vd poste de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

domingo, 23 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

1. Comentários do Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23723  (*):

(i) O Amadú Djaló se identifica e se assume como Fula (Futa-Fula), na realidade é um mestiço, fruto do casamento de um Fula de apelido Djaló com uma mulher Maninka de apelido Condé/Kondé (ramo mandinga da região da alta Guiné, "haute Guinée"), mas espalhados um pouco por outras regiões da Guinée, sobretudo pela baixa Guinée na região de Boké e também pelo Sul da Guiné-Bissau. 

Na verdade, quase todos os Fulas (Futa-Fulas),  originários da Guinée-Conakry, são mestiços e com grandes capacidades de integração noutras esferas culturais, o que faz deles, historicamente, excelentes servidores do que se pode classificar como mercenariato militar na região da Senegâmbia. 

Assim, formavam a grande maioria da temida elite guerreira e de cavalaria do Abdul Indjai com o Cão. Teixeira Pinto que devastou o Centro e o Norte do país entre 1912/1915, serviram como Polícias e Sipaios da administração colonial e em alguns casos conseguiram até a nomeação para cargos régios e, salvo raríssimas excepções, todos os Fulas que se distinguiram nas fileiras da luta da libertação com o PAIGC, saíram deste grupo com origens na Guiné-Conakry (Corca Só, Umaro Djaló, Abdulai Barry, Mamadu Alfa Djaló, entre outros).

A explicação para esse facto não é tão simples, mas dever-se-á, fundamentalmente, pela liberdade de acção que detinham, por não estarem muito ligados e dependentes das autoridades tradicionais por onde passam, pela desenvoltura de não serem nem tipicamente camponeses nem criadores de gado, pela facilidade de integração e liberdade de movimento e por um especial gosto das aventuras de alto risco como o serviço militar e/ou paramilitar que lhes restava como opção nos seus percursos de aventura humana, para além do comércio ambulante que era a sua profissão por excelência.

Como diz o Luís Graça, a quase (des)ventura do Amadú por terras de Boké é de natureza a desmentir o alardiado mito da hospitalidade e solidariedade africanas. Mas, em tudo há excepções, e o Amadu Djaló, por ignorância e falta de experiência deixou-se cair numa cilada de desconfiança pela sua presença repentina num meio hostil e de gente, certamente, traumatizada por situações passadas. No mato e em situações idênticas só escapam da natural desconfiança certas personalidades como os Mouros (Marabus), os Djidius (músicos tradicionais) ou Djilas (vendedores ambulantes). Não esquecer que, ingenuamente, ele foi transportado por um branco, provavelmente, não identificado, logo potencialmente suspeito.

Quanto ao nome de "Mari Velo", se a minha compreensão estiver certa deve significar "O homem da bicicleta",  traduzido da língua fula. "Mari" é a conjugação na terceira pessoa do verbo ter e "Velo" é bicleta ou velocípede cooptado da língua francesa, pois que, mesmo vivendo na Guiné dita portuguesa, os originários da Guinée, continuam sob a influência da língua francesa que, aos olhos dos nativos, determina um certo estatuto social de classe, de conhecimento e, logo, de prestígio. Mas, a palavra "Mari" também pode significar "Marido" que é fula, mas também, pode ser uma cooptação da língua francesa.

O longo percurso de 9 dias de Bafatá a Boké, deveu-se certamente, ao facto de que era uma viagem de negócio e o percurso não foi o mais curto possível, pois devem ter seguido a via de Gabu-Fulamori para entrar no território vizinho e seguir até perto de Conakry, descendo depois a Bofa e por fim ao Boké. Se tivessem seguido pela via do Sul através do Forèa (Contabane) o trajecto seria em menos de 3 dias de marcha.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
22 de outubro de 2022 às 13:46 



Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015)

(ii) A mestiçagem entre grupos etnico-culturais é um fenómeno antigo e de longa duração na África Ocidental. Os grandes grupos (mandinga e fula) cresceram numericamente graças a sua capacidade de integração social, de dominação e de transformação pela assimilação cultural de outras áreas geográficas, povos e culturas, processo iniciado desde o século XII/XIII.

Com o início do processo da colonização por forças externas, também apareceu a necessidade do aprofundamento das divisões étnicas, através de contradições, às vezes, artificiais,  de forma a enfraquecer os africanos e perpetuar a dominação.

Sobre o fanado, descrito por Amadú Djaló, posso dizer que é uma experiência única e indescritível. Foi o meu primeiro trauma psicológico e sócio-cultural de que nunca me recuperei completamente. Após o corte cirúrgico, ficamos entregues a bicharada, sem assistência nem qualquer tratamento, a melhor solução que encontramos, a partir da primeira semana, foi enterrar o sexo dorido e inflamado nas areias quentes das estradas a fim de desenfectar, tratamento que era repetido todos os dias quando o sol se encontrava no zénite.

Num dia que nos trouxeram mais perto da aldeia, e ao ouvir a voz da minha irmã mais nova no exterior da barraca, as lágrimas escaparam-se dos meus olhos por causa das saudades e por um triz não desatei aos berros, pois fora a primeira vez que fizera mais de um mês longe da família e nas mãos de desconhecidos que tudo faziam para nos frustar em nome da educação. 

Fazia parte da preparação dos mais novos para a vida futura. Na altura tivemos a visita do enfermeiro auxiliar da companhia estacionada em Fajonquito (em 1970, penso que seria a CCAÇ 2435 comandada pelo Cap Carvalho, pouco antes de ser substituída). Mas a utilização do mercúrio preto numa ferida fresca e numa parte tão sensível do corpo ainda piorou a nossa precária e débil situação. Não se esquece. (**)

Abraços,
Cherno AB 
22 de outubro de 2022 às 20:56

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23719: Historiografia da presença portuguesa em África (339): Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Procurei nos Anais do Clube Militar Naval, no âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, artigos assinados por oficiais da Marinha. Encontrei um texto sobre a definição das fronteiras, a importante comunicação de Teixeira da Mota, logo em janeiro de 1946 dado como certo e seguro que Nuno Tristão fora frechado por Mandingas, mas na região do rio Gâmbia, aquela expedição não chegara a terras da Guiné; e por último uma apreciação muito desgostosa do Contra-Almirante Aprá que participara nas operações na península de Bissau em 1894 e que ficara consternado com a falta de preparativos do Governador, segundo Aprá perdera-se a oportunidade de ficar a dominar os povos residentes na península de Bissau.

Um abraço do
Mário



Três artigos sobre a Guiné nos Anais do Clube Militar Naval (1946 e 1947)

Mário Beja Santos

Compulsando números antigos da prestigiada publicação "Anais do Clube Militar Naval", detive-me nos 76 e 77 anos da publicação, 1946 e 1947, respetivamente. Logo com o artigo intitulado "As Fronteiras", escrito pelo Capitão de Mar-e-Guerra Tancredo de Morais. O oficial começa por referir os limites que André Alvares de Almada, no seu Tratado Breve, tratado de 1594 propõe para a região da Senegâmbia, teoricamente território ocupado pelos portugueses: do rio Senegal à Serra Leoa. Ao tempo, esta Senegâmbia era uma espécie de morgadio de Cabo Verde. Os portugueses reconheciam a soberania dos régulos que lhes vendiam os escravos. A questão dos limites vai complicar-se com a chegada dos holandeses, que não encontraram qualquer resistência, que se estabeleceram em Arguim e depois na Goreia, ilha que ninguém defendia – aqui ficaram até 1677, data em que uma esquadra francesa os expulsou. Os ingleses estabeleceram-se na Serra Leoa, não houve qualquer reivindicação portuguesa. Os nossos diferendos diplomáticos serão com a Grã-Bretanha por causa da questão de Bolama e com a França quando esta procedeu a uma ocupação insidiosa do Casamansa. O autor dá-nos um resumo do envio de protestos para Paris e para o Senegal, a diplomacia francesa chegou ao descaro de informar que tinham sido os primeiros a chegar… Honório Pereira Barreto, sempre franco e leal, não deixou de descrever o que era a presença portuguesa em Ziguinchor: “Ziguinchor tinha 7 soldados, era defendida por uma paliçada e uma artilharia desmontada. Devia a sua conservação à família Carvalho Alvarenga. O seu comércio, que era importante, achava-se nas mãos dos franceses, depois que se havia estabelecido em Selho”.

O autor não deixa de chamar a atenção que a reação diplomática à ocupação britânica foi tíbia e insegura. Em vez de se apresentarem factos da ocupação desde o século XV, o mais que se pôde obter foram documentos que datavam do reinado de D. José. E menciona a sentença arbitral do presidente dos EUA, Ulysses Grant. As fronteiras definitivas vão surgir na Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, mas os franceses ainda irão exigir, no processo de sucessivas retificações, mais algumas porções de terra.

Ainda em 1946, no número de março a abril, merece o devido relevo a referência à conferência que Teixeira da Mota proferiu em Bissau em 6 de janeiro desse ano, na abertura do V Centenário da Descoberta da Guiné. Com subtileza, o autor traça em longo preâmbulo considerações sobre a verdade em História, e a obrigação de ir desmantelando tabus e mitos. Era na época dado como assente que o primeiro descobridor que chegara a Guiné fora Nuno Tristão, aparece agora um oficial da Marinha, um jovem historiador, ainda por cima ajudante do Governador, a dizer que nada se passou assim. Descreve a descida progressiva da costa ocidental africana, a passagem do Cabo Bojador em 1434, no ano seguinte o mesmo Gil Eanes e Gonçalves Baldaia iniciaram a exploração da Mauritânia e chegaram a Angra dos Ruivos; e no ano seguinte o mesmo Baldaia foi ao Rio de Ouro e à Pedra da Galé. Seguem-se expedições em 1441 em que aparece pela primeira vez o nome de Nuno Tristão; em 1443 são descobertas as ilhas de Arguim e das Garças , foi um dado fundamental para o projeto henriquino, ergue-se em Arguim uma feitoria, tudo por causa do negócio do ouro; no ano seguinte, o cavaleiro-navegador Lançarote descobre mais ilhas, chegava-se à costa da Mauritânia, era a Terra dos Negros; em 1444, Diniz Dias avançava ao longo da costa dos Jalofos e descobria o Cabo Verde – os portugueses aproximavam-se das fontes do ouro. No Senegal e no Cabo Verde souberam pelos Jalofos que perto, para o sul, corria um largo rio, o rio Gâmbia, onde também abundava o ouro. Em 1446 larga do Algarve uma caravela capitaneada por Nuno Tristão, leva a bordo 30 homens. Chega ao Cabo dos Mastros, Nuno Tristão e os 30 homens embarcam em dois batéis, são cercados por canoas de indígenas e atingidos por flechas envenenadas, Nuno Tristão é uma das vítimas mortais. E Teixeira da Mota conclui: “Nuno Tristão não passou na realidade do Estuário Salum-Jumbas, que é propriamente um conjunto de braços de mar que se estende por algumas dezenas de milhas um pouco ao norte da foz do Gâmbia. Os indígenas que mataram Nuno Tristão eram Mandingas. Nuno Tristão não esteve, portanto, em 1446 em território atualmente português, mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das etnias que pululam a Guiné Portuguesa. Quis o destino que esse contacto se manifestasse da forma brutal que o caracteriza. Os poderosos imperadores do Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Níger, em Niani, sua capital, dirigiam os vastos domínios, ignoravam talvez a existência daquele chefe mandinga. Enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso levantava-se a portuguesa”.

Temos por último o artigo intitulado "A Companhia de Guerra da Marinha na Campanha da Guiné de 1944", aparece no 77.º ano, número de janeiro e fevereiro de 1947, assina A. Aprá, Contra-Almirante. Ele refere-se à companhia de guerra da Marinha que embarcou em Lisboa no transporte África, isto em fins de março de 1894, passou o mês de abril em Bissau apetrechar-se, havia que comprar chapéus de palha em Cabo Verde, fizeram-se a bordo polainas, bornais de lona e manteve-se a atividade física e os preparativos militares com exercícios diários no ilhéu do Rei. A Guiné era um distrito militar autónomo, quem iria conduzir as operações era o governador, o Coronel de Artilharia Vasconcelos e Sá. A coluna saiu de Bissau a 10 de maio, foram considerados importantes aspetos logísticos como o recrutamento de carregadores para transportar água e munições. O efetivo da companhia era 259 homens; tinha uma seção de metralhadoras com 25 praças e 1 oficial, 1 médico com 3 enfermeiros e 6 maqueiros, participava ainda uma seção de administração naval. E relata que tudo começou numa confusão na distribuição de cargas pelos carregadores, só se pôde partir às 8 da manhã, avançaram sobre Antim, fazendo fogo sobre o objetivo, só perto dele é que se verificou resistência, quando se chegou a Antim a povoação estava completamente vazia. Começou a falta de água, os rebeldes só apareciam dando tiros isolados. Depois das 2 da tarde chegou a ordem de retirar com as devidas precauções, esta companhia de guerra da Marinha veio acompanhada por uma companhia de Angola. Verificou-se uma enorme agitação porque os carregadores procederam a saque, isto quando havia punhetes para transportar, e o contingente militar acusava fadiga, e temia-se que os rebeldes atacassem a qualquer momento. Regressou-se ao acampamento de Antim depois de 7 horas de marcha, não havia a menor provisão de água e a refeição preparada era um autêntico desastre só no dia seguinte é que apareceu água e um rancho decente.

Aguardavam-se ordens para que esta companhia de Marinha saísse do Alto de Antim e avançasse sobre Antula. Houve troca de impressões sobre a ordem de marcha, à tarde veio ordem do governador dizendo que era tarde para começar a marcha sobre Antula e no dia seguinte chegava a notícia de que o mesmo governador considerava ser suficiente o castigo dado ao gentio; mais tarde regressou-se à praça de Bissau onde se embarcou no navio África. E o contra-almirante Aprá termina com uma apreciação altamente crítica:
“Assim terminou a campanha de 1894, mandada acabar por quem direito. Foi incompleto o serviço? Sim. Mas foi a primeira vez que uma força europeia de uma certa importância entrou em operações de guerra na Guiné. Nada estava preparado, não havia planos, organização, nem se pensou em abastecimentos.
Se tivesse havido um verdadeiro Estado-Maior, e serviços administrativos regulares, se tivesse havido um modesto serviço de transportes e não estivessem na mão de carregadores gentios que só marcham com as forças para matar, roubar e incendiar, enchendo-se de despojos e abandonando as nossas cargas, tenho o pressentimento que a companhia de Marinha que, no dia 10 de maio, tinha ganho um verdadeira ascendente sobre o gentio fugia apavorado com o nosso avanço, essa companhia sozinha tinha feito ocupação da ilha de Bissau. Do exposto se concluí que a coluna organizada em 1894 não foi encarregada da ocupação militar da ilha de Bissau, foi como diz o Governador e o Governo Central concordou, um castigo dado ao indígena pelos altos de selvajaria anteriormente praticados. É a este ponto que quero chegar, não pode considerar-se um desastre que em campanha me parece ser sinónimo de derrota”
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E assim termina a colaboração alusiva ao V Centenário da Descoberta da Guiné nos Anais do Clube Militar Naval.


Uma bela fotografia de Andrea Wurzenberger captada na Guiné, com a devida vénia
Um comboio de embarcações comerciais no rio Geba
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23700: Historiografia da presença portuguesa em África (338): Viagens por alguns títulos do Boletim Geral das Colónias (Mário Beja Santos)

sábado, 18 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23362: (Ex)citaçõs (410): O islão na Guiné-Bissau, país laico e tolerante: correntes moderadas e radicais (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 16 de Dezembro de 2009 > O João Graça, médico e músico, posando ao lado do dignitário Braima Sissé. Por cima deste, a foto emodulrada de Fodé Irama Sissé, um importante letrado e membro da confraria quadriyya [, islamismo sunita, seguido pela maior parte dos mandingas da Guiné; tem o seu centro de influência em Jabicunda, a sul de Contuboel; a outra confraria tidjania, é seguida pela maior parte dos fulas].

O Braima Sissé foi apresentado ao João Graça como sendo um estudioso corânico, filho de uma importante personalidade da região, amigo dos portugueses na época colonial [, presume-se que fosse o próprio Fodé Irama Sissé].(*)

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1. Comentário de Cherno Baldé, nosso colaborador permanente para as questões etno-linguisticas,  vive em Bissau, tem formação superior tirada na ex-União Soviética (Universidade de Kiev, Ucrânia) e em Lisboa, ISCTE- IUL

Quanto a questão do véu islâmico... é uma questão religiosa deveras melindrosa, mas também económica e financeira, de quem mais e melhor pode pagar. 

Se nos anos 60/70 os mais cotados representantes eram, em grande maioria, da etnia fula (ver Futa-Fula) que professavam a corrente Sunita da Tidjania, bem moderada, com ligações às correntes religiosas do Magreb e do Egipto (escolas islâmicas de Fez e do Cairo, nomeadamente Universidade de Al-Qarawiyyin e Al-Azhar) que formavam os nossos estudantes em matéria islâmica, actualmente a etnia mandinga/biafada apoderou-se da iniciativa do proselitismo religioso com ligações ao movimento Salafista - Wahabita do Médio Oriente (países do Golfo liderados por Qatar e Arábia Saudita) beneficiando de importantes fundos (doações) para esse efeito.

Durante os últimos anos houve uma espécie de braço de ferro das duas correntes pela liderança das comunidades em Bissau e nas principais cidades do interior, com destaque no Norte e Leste do país, mas, pelos vistos a nova corrente está a levar a melhor e com isso, também, a presença cada vez maior de jovens discípulos desta corrente é Salafista-Wahabita nas mesquitas também por eles construidas tanto nos subúrbios da capital como no resto do país. 

Apesar de tudo, ainda não passa de um fenómeno novo e pouco expressivo, tendo em conta a resistência das correntes mais antigas e tradicionais (Tidjania e Quadryya) na região Oeste africana. 

Ainda convém salientar que não se trata do caso específico de um país,  em particular, mas de toda a nossa subregião africana onde a Guiné Bissau ainda faz boa figura em termos de equidade e tolerância. 

Até quando ? Não se sabe, o mais certo é que a situação tende a piorar e só seria possivel contrariar a tendência com uma oferta maciiça de formação e educação escolar de carácter secular e não religiosa aos mais jovens a nível do pais em larga escala, acompanhada de possibilidades de emprego e/ou iniciativas individuais de auto-emprego.

Cordialmente,

Cherno Baldé (**)

PS - A confraria Xiita (com ligações ao Irão) não tem muitos adeptos na nossa subregião (África do Oeste) e mesmo a nivel do continente é pouco expressivo. Mas, eu não falei desta corrente religiosa e sim da competição dentro da corrente Sunita,  onde existem orientações moderadas (mais antigas) e outras mais radicais (Salafistas / Wahabitas) originárias do Mêdio Oriente cuja influência é cada vez mais sentida nas comunidades muçulmanas do país e da subregião.

E, claro, como qualquer actividade sociocultural, quem tem mais recursos (meios humanos, materiais e financeiros) tem mais vantagens na mobilização social das comunidades no campo religioso também. Se quisermos tomar como elemento de comparação,  direi que a politica Spinolistas "Por uma Guiné melhor" para ser credível tinha em consideração várias dimensões e nas diferentes esferas da vida das comunidades (povos) da Guiné, sem descurar, obviamente, do campo militar. A nossa"tropa-macaca" é que não conseguia entender e acompanhar uma tão repentina mudança de direção e de atitudes para com os pretos indígenas na complicada engrenagem imperial do Estado Novo. (***)

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(**) Último poste da série > 16  de junho de 2022 > Guiné 61/74 – P23357: (Ex)citações (409): Sobre a progressão da coluna no dia 29 de Maio, atentem no seguinte excerto do meu livro "Prece de um Combatente" (Manuel Luís R. Sousa, SAj GNR Ref, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512/72)

(***) Vd. também excerto do livro de Frncisco Proença de Garcia -  Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974). Triplov.com.org

Vd. também postes de:


19 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6762: Antropologia (19): Os muçulmanos face ao poder colonial português e ao PAIGC (Eduardo Costa Dias)