A poesia é pura liberdade,
liberdade livre, disse outro poeta,
e a liberdade, quando é livremente livre,
é capaz de irritar,
tão ou mais que uma manada de elefantes a pisar a relva do jardim,
quem só vê as coisas através do manual da sua escola
ou do muro do seu quintal.
Ana Luisa Amaral
morreste, aos sessenta e seis anos,
porque eras mortal,
e tinhas medo de andar de avião,
mas gostavas tanto da vida
e das causas e das coisas e dos outros
que fazem a vida valer a pena.
Ficam os teus poemas,
as tuas palavras magicamente concatenadas,
e eles e elas, os teus poemas e as tuas palavras,
serão, afinal, a tua prova de vida,
permanente.
Desculpa-me ter-te descoberto tão tarde
(ou melhor, eu é que me penitencio),
só há dias fui à biblioteca municipal
requisitar o teu último livro, "Mundo".
E não o desgostei,
numa primeira leitura, avulsa, rápida, superficial, em diagonal.
Há demasiado ruído à nossa volta,
Ana Luísa Amaral,
e tanta coisa bela e essencial que nos escapa.
Nunca falariam tanto de ti,
a comunicação social
(e as redes sociais que tu detestavas),
se uma rainha espanhola, Sofia,
não te tivesse chamado ao paço
para te dar um prestigiado prémio... de poesia.
Sofremos, neste pequeno rectângulo ibérico,
da síndrome do estrangeirado.
Que tristeza!
Nunca falariam tanto de ti
se agora não tivesses morrido,
assim tão de repente,
assim tão sem jeito,
sem tempo para gozares a fama e o proveito
de seres uma grande voz, feminina, da poesia em língua portuguesa.
Deixa-me então, reproduzir aqui, poetisa,
o teu "Testamento",
que leste há dias, uma semana antes de morreres, na RTP 3,
no programa Grande Entrevista, do Vitor Gonçalves.
Leste-o, o teu "Testamento",
com grande beleza interior e serenidade e encanto.
E senti que já estavas no Olimpo dos poetas.
Leste-o premonitoriamente,
sem poderes saber ou adivinhar
que o teu coração-avião já te tinha condenado à morte,
e ia falhar ou implodir no dia 5 de agosto.
Ana Luisa Amaral,
nem a tua Ritá nem nós, teus leitores,
te vamos esquecer.
E tu serás a primeira a concordar
que a poesia tem de se partilhar,
e chegar a todo o lado,
sem respeito pelas fronteiras ou outras barreiras
como os semáforos vermelhos.
Precisamos urgentemente do TGV da poesia
a percorrer a autoestrada da vida
mesmo em contramão,
mesmo em contravenção,
excedendo o limite legal dos 120 km/hora de velocidade.
Mas que pachorra, este nosso comboio
que, no seu ramerrame, pouca terra, pouca terra,
mal faz pela vidinha!
E foste tu a dizer, há dias,
que os futuros jovens professores,
saídos das nossas faculdades de artes e letras,
teus alunos, afinal,
mestres e doutores de Bolonha,
sabem quão coisa séria e grave é a poesia
a tal ponto que têm medo de a ensinar e de a dizer....
Por vergonha.
Há fome de poesia no mundo, 'priga'
(como se diz na minha terra natal)
mas, por favor, Ana,
que não nos venham fazer crer, Luísa,
que é tudo tetras,
e que a poesia não enche barriga,
oh poetisa Amaral!
Luís Graça, Lourinhã, 7 de agosto de 2022
por Ana Luisa Amaral (1956-2022)
Vou partir de avião E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos
Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas
Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.
In Ana Luisa Amaral - "Inversos. Poesia 1990-2010" (Lisboa, Dom Quixote, 2010, 656 pp.) (Esgotado)