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terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)


Capa de Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira, 3ª ed. ervista. Lisboa: Portugália Editora. 1963. (Contemporâena, 46). Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > "A uma mes de café, junto das docas de Bissau. Barbosa, o herói das emboscadas, o condutopr Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de garto convívio de gente que partilhava com ressignação os mesmos sacrifícios. A ver se tomamos uma bica nesta mesma mesa daqui a 2 meses" (Beja Santos, que aparece na foto, em primeiro plano, do lado direito. O Barbosa faz-se acompanhar da sua inseparável boina...verde).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados

Texto recebido em 8 de Novembro de 2006.


Caro Luís, conforme prometido, aqui vai mais uma contribuição semanal. Estou a escrever sobre Novembro de 1968. Começou o derramamento de sangue no Cuor. Mas há peripécias fartas, muito barro do quotidiano e começo a ter o pelotão fisicamente esgotado. Não me peças sugestões para ilustrações, pois não tenho mais nada a não ser a capa do livro Uma Abelha na Chuva que hoje vai seguir pelo correio. Contudo, faço referência a uma fotografia que está em teu poder, com o furriel Ferreira, o Adão enfermeiro e o Barbosa da boina verde, entre outros. Tudo farei para nos encontrarmos no princípio de Dezembro e festejarmos precocemente o Natal (um bom Natal festeja-se todos os dias). A minha prenda será o meu livro Este consumo que nos consome que entretanto já estará editado (Porto, Campo das Letras, 2006) (1).

Nada mais por hoje e recebe um grande abraço do Mário.

Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, o Tigre de Missirá - como era conhecido entre os as chefias militares e os seus camaradas de Bambadinca-, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).


Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

por Beja Santos

À saída de Finete, onde vim depois de patrulhamento de Mato de Cão acompanhar as obras em dois abrigos, sou apresentado a Braima Mané. É um homem sorridente que me vem oferecer pepinos e ovos, nos trinta anos, de bigodinho bem aparado e, reparo, um braço tolhido. Bacari Soncó dá-me explicações. Braima foi uma das grandes vítimas do ataque a Missirá, em Maio de 1966, uma infelicidade monumental aconteceu-lhe: uma granada de morteiro destrui-lhe a morança e matou-lhe duas mulheres e dois filhos. A desgraça não ficou por aqui, pois Braima enquanto procurava salvar a família foi atingido no peito com estilhaços e um outro maior rasgou-lhe os nervos da mão e do braço, agora em irremediável imobilidade. Braima, que estava nas milícias, foi dado como incapaz para servir nas fileiras, e preferiu viver em Finete.

Combinámos que ele vai ser visto por David Payne, o novo médico de Bambadinca. E, na semana seguinte, ele irá a uma consulta a Bissau, e um dia ele regressará ao Cuor mostrando como os seus braços mexem e estão igualmente ágeis.

Cherno Suane, o novo guarda-costa do nosso alfero

Ieró, o meu precioso guarda costas, parte de férias e sugere substituto, Cherno Suane. Mal sei eu que vai nascer a mais gratíssima das amizades. Até agora, Cherno era o herói do morteiro 60, na noite de 6 de Setembro [de 1968]. A partir de amanhã será ele que me vai arrumar a morança com absoluto desvelo, lavar as botas de lona, engraxar as de cabedal, sacudir as esteiras e o folhelho do meu colchão, arrumar os livros, dobrar a roupa, remover as teias de aranha e sacudir a mosquitada.

Falamos do mesmo Cherno que, a 15 de Março próximo, se quer atirar para dentro de casa para salvar as coisas de alfero (felizmente, foi impedido de se imolar nas chamas e nos rebentamentos subsequentes), se vai salvar milagrosamente na mina anticarro de Canturé, que me acompanhará em todas as operações, ombro a ombro. Este mesmo Cherno, não caberá nesta história, conhecerá o inferno com a independência e virá comigo para Portugal em 1991. É hoje cidadão português, passa temporadas na Guiné e trabalha como a segurança num armazém de electrodomésticos no Bairro Angola, em Camarate.

Casanova e o pequeno Braima, uma história de amor

Quero falar de uma outra história de amor e que envolve outro Braima. Este é raquítico e filho de Galem e Mariá. O furriel Casanova tomou a iniciativa de o alimentar. Um dia fomos a Bambadinca, a pretexto de termos de ir a Bafatá buscar os vencimentos dos caçadores nativos e dos milícias, o Casanova foi a uma farmácia comprar um biberão e uma lata de Nestogeno. Não vai ser invulgar o Casanova olhar para o relógio, chamar um miúdo que passa pela parada e dizer-lhe:
- Vai ali a casa da Mariá e dizer-lhe que são horas de o Braima comer. Serão meses de idílio, o Braima ganhará peso, ninguém se atreverá a brincar com os sentimentos do Casanova.


Tenho o pelotão exausto, muita gente doente, faço o possível para manter os patrulhamentos, pedi mesmo ajuda aos milícias de Finete, a escola funciona bem, com a intervenção do professor que fui buscar a Bambadincazinho mas também com o Ferreira, o Casanova e o Zé Pereira.

Sempre que posso, a meio da tarde, convido o Malã e Lansanâ para tomarmos chá. Lânsana mostra-me as suas poesias religiosas que ele desenha em árabe em tábuas de pau sangue e vai-me dando explicações:
- Esta oração quer dizer Deus abençoe a bianda (refeição); aqui está escrito alarramano melafo (obrigado Deus pelas boas chuvas que nos dão a comida deste dia) - . Mas quanto perguntei ao Abudu Soncó o verdadeiro significado desta expressão, ele disse-me que esta frase não existe... mas como a registei, peço a todos que aceitem com o mesmo sentido como me pareceu ter interpretado).

Escrevo para Lisboa a pedir a todos que mandem pelos oficiais, sargentos e praças que foram de férias comida natalícia, o que vai acontecer e será um bálsamo no nosso Natal desolador.

Aumentámos as medidas de prevenção pois a guerrilha tem-se intensificado e há flagelações por toda a parte. Amanhã, a mulher grande de Missirá, Jaira, a octogenária mãe de Quebá Soncó, vai à consulta e peço ao David Payne para ver o que se pode fazer do seu corpo esquelético. Em sua companhia seguirá Sari, a mulher de Bacari Soncó, hoje régulo do Cuor. Sari está grávida de três meses e sofre de paludismo.

A morte, emboscada, em Chicri


Acaba de chegar o Teixeira com uma mensagem que diz "Cavalgue Berlim", o que significa "Pelo meio dia amanhã esteja em Mato de Cão". Informo os furriéis que, depois de pôr os doentes em Finete, sigo para Mato de Cão e depois vou fazer uma emboscada nocturna em Chicri. Saio de Mato de Cão pela uma da tarde, comemos o nosso farnel e seguimos para Chicri. Está um céu de chumbo, tem chovido muito, percorremos a velha tabanca à procura de indícios de passagem recente da gente de Madina/Belel.

À saída da tabanca, perto de uma estrutura rochosa, encontra-se um caminho bem pronunciado com marcas de pés calçados e recente. Anoitece e organizo com Bacari Soncó e Fodé Dahaba uma emboscada em meia lua, uma bazuca e um morteiro nos extremos, a meio eu, dois apontadores de dilagrama e de pé um vigia, para poder avistar uma eventual chegada a partir de Gambaná do grupo rebelde, e assim termos tempo de inverter o grupo emboscado.

É uma noite sem lua, não há o piar das aves, ao fundo o bruxulear das luzes do porto de Bambadinca. Depois de instalado o grupo, com auxílio do Domingos Silva explico aos 20 e tal homens (e Domingos precisa tudo em crioulo) que a ordem de atirar partirá de mim, que o primeiro fogo será de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, que a retirada será igualmente decidida por mim e que o itinerário a seguir passará por Gambaná, Canturé e Missirá, ninguém poderá ficar para trás, de meia em meia hora far-se-à uma paragem e a verificação dos presentes.

Todos a postos, o silêncio adensa-se, e pelas 7:30 da tarde Mamadu Camará avisa-me ao ouvido: - Está gente a aproximar-se, vejo sombras a sair da mata -. E de facto, um grupo de mais de uma dezena de pessoas avança de uma forma despreocupada (ou fui eu que pensei que a coluna rebelde não vinha com muita precaução).

Quando estão a cerca de 20 metros de nós, exactamente no trilho onde estava ajoelhado, levanto-me sem ruído e grito:
- Fogo, muito fogo! - E o fogo foi atordoador, logo com a bazuca, o morteiro e os dilagramas que alvejam quem ainda vem dentro da mata, aterrorizando, desbaratando, impedindo qualquer reacção. E assim como o fogo teve uma cadência infernal, assim se silenciou quando decretei a retirada.

A boina verde do Barbosa

Lestos, correndo pela picada, alcançámos a estrada de Mato de Cão, aqui fez-se a contagem dos homens, o grupo estava coeso e arfante. Em passada rápida rumámos para Canturé, por dentro do mato, por sinal usando um trilho alternativo quando íamos para Mato de Cão. É aqui que se vai passar um episódio insólito. O Barbosa (que consta de uma fotografia ao lado do Quim motorista, do furriel Ferreira e do Adão enfermeiro), chega ao pé de mim e diz-me com voz trémula e quase ciciando:
- Meu alferes, perdi a minha boina verde em Chicri, não sei viver sem ela, vou voltar para a recuperar.

Seguiram-se alguns minutos amalucados em que eu procurava lembrar ao Barbosa que ele não podia comprometer mais de 20 vidas por causa de uma boina. Na noite escura, ele abanava a cabeça e insistia que não saía dali:
- Ou volto convosco ou vou lá sozinho!

Debalde os camaradas insistiam na insignificância da boina. A conversa arrastava-se num círculo delirante e tive que jogar o mais mirabolante dos acordos possíveis:
- Barbosa, nós vamos regressar todos a Missirá, e garanto-te sob palavra de honra que amanhã eu e os mesmos homens que aqui estão viremos contigo buscar a boina.

E assim foi. Só numa guerra daquelas é que era possível fazer um contrato de mais 25 km de perigos para ir procurar um objecto fetiche. Nessa noite converso com Lânsana e peço-lhe que reze por nós. O que ele respondeu eu não percebi, mas o Cherno explicou-me:
- O que o Marabu acaba de dizer é que Deus é grande. Ele vai rezar para que nada nos aconteça.

E de facto, nada aconteceu. A aproximação de Chicri foi penosa, à procura de qualquer sinal onde encontrássemos uma cilada à nossa espera. O terror que infringimos fora poderoso. Dois cadáveres jaziam a céu aberto. Foram enterrados mesmo com o ar contrafeito de tropa. A boina apareceu no local onde tínhamos estado emboscados e regressámos sem beliscadura.

Uma abelha na chuva.. em Missirá

Continua a chover a cântaros, andamos enlameados e procuro estar atento ao sofrimento físico dos militares. O Ramadão caminha para o auge e fui convidado para a cerimónia da mesquita. O irmão de Braima Mané, um alfaiate exímio, está a fazer-me uma sabadora com um belo bordado em azul e fio dourado. Irei usá-la (aliás, como todo o traje de cerimónia) nesse dia e tirarei uma fotografia ao lado de Malã e o seu séquito.

É muito importante que vos fale das minhas leituras, nesse momento. A razão é muito simples: acabei de ler um dos livros mais influentes da minha vida, Uma abelha na chuva, do Carlos de Oliveira.

Este escritor neo-realista era um operário da escrita. A minha mãe tinha a primeira edição desta obra, li as outras duas edições seguintes, tudo diferente, o estilo cada vez mais castigado, as imagens mais ricas, o ritmo avassalador. A abelha é uma história de timbre ultra-romântico e talvez o mais significativo romance com história rural até aos anos 60, em contexto modernista. É uma escrita que vai directa ao fim, mostrando a decadência de uma fidalguia provinciana obrigada a alianças de conveniência com os negociantes. Maria dos Prazeres é figura dessa fidalguia obrigada a suportar um marido cobarde, Álvaro Silvestre. A trama inclui uma paixão destruída pelo vingativo Álvaro Silvestre que, cavilosamente, desperta o ódio do pai de Clara que vai matar Jacinto numa das cenas mais empolgantes do romance (2).

Eu leio e releio a obra de Carlos de Oliveira nessas noites de Missirá, é o prazer da escrita é o saber pelos ambientes de fatalidade, é o saber que aquele mundo ainda existe mas que está em vias de extinção. Um dia de província asfixiante que arrasta todos os sonhos e projectos. E assim termina a obra:

"A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a ferirem-lhe o voo; sacolojões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra e a chuva espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas".

A ironia do destino é que a Cristina me mandou outra obra prima que a partir de agora vai andar sempre comigo, como se de uma nova pele se tratasse: O Delfim, do José Cardoso Pires, publicado neste ano. Leio e degusto. Finalizo um capítulo e recomeço como se a emoção cheia fosse segura por uma cabeça vazia.

É uma história marialva passada na Lagoa que faz parte da Gafeira. Lá longe há um oceano, há dunas e até um mouchão, a vila estará a mais de 100 km de Lisboa. Personagens principais: o Engenheiro, Maria das Mercês, o narrador disfarçado de caçador e o maneta, uma espécie de escudeiro desse marialva que dá pelo nome de Tomás da Palma Bravo. O Delfim é a agonia de uma ruralidade mesclada pelas incursões de uma industrialização e de um ciclo de progresso que está a asfixiar a velha ordem personificada por esse engenheiro culto, tradicionalista e amigo da sua gente que teme e repudia os novos valores que começam a chegar à Gafeira.

Não será a última vez que iremos falar aqui desta obra prima. Só depois, já em Lisboa, me vou render à escrita de Nuno Bragança e Maria Velho da Costa. Com os anos 80, irei admirar Saramago e Lobo Antunes. Mas naquela Guiné este livrinho que ainda hoje guardo apodrecido por tantas andanças e sacolejos foi bálsamo e revelação definitiva do mundo que vai morrer em 25 de Abril de 74.

Daqui até Dezembro iremos viver outras atribulações. Aproxima-se o Natal e eu vou viver o presépio de Chicri. Não sei se terei a coragem de contar.

_________

Notas de L.G.:

(1) Nota da editor, Campo das Letras, Porto:

"Este consumo que nos consome / Mário Beja Santos [ver biografia]

"O mais recente livro do professor universitário Mário Beja Santos, pioneiro da defesa dos direitos do consumidor em Portugal, Assessor Principal do Instituto do Consumidor, editor do Jornal dos Consumidores e fundador da Plataforma Saúde em Diálogo. Este livro não é um ensaio nem um manual prático dos direitos dos consumidores. Trata-se de um compêndio de diferentes olhares em torno das realidades do consumo no mundo actual. O funcionamento da sociedade de consumo mudou radicalmente, e é preciso dizer como, onde e em quê. O principal desafio a que me propus foi oferecer a todos os interessados pelo consumo uma explicação abrangente e não alinhada acerca das transformações a que este fenómeno aparece associado no nosso tempo (Beja Santos).

(2) Vd. último post desta série > 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(...) "Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego" (...).

(3) Extractos de Uma abelha na chuva, de Carlosd e Oliveira, 3ª ed. rev. Lisboa, Portug´+alia Editora, 1963, pp. 136-139:


Saíram-lhe no rasto, cautelosos como dois ladrões. E foram acoitar-se entre o arvoredo, ao pé da fonte.
- Quem é que está com ela ? – quis saber o velho.
- Nãos e vê quase nada, mas penso que é o ruivo.
- O cocheiro do Silvestre ?
- parece-me que sim.
- Parece-te ou é mesmo ?
Marcelo firmopu a vista no crepúsculo:
- É ele.
O cego puxou-lhe pela manga:
- Toca para a azinhaga.
- Fazer o quê, mestre António ?
- Há-de por lá passar o cão no regresso da fonte.
A chuva engrossava pouco a pouco. Ao longe, o céu abriu-se ao fogo dum relâmpago.
- Aí vem a trovoada, mestre. Sente-a?
- Não.
Rodearam a fonte e, cortando pelas terras de cultivo, caíram na azinhaga.
- Já é noite cerrada ?
- Quase.
Estiveram em silêncio algum tempo, abrigados nas moitas. E depois, Marcelo perguntou, um pouco receoso:
- Que vamos nós fazer ao ruivo?
O velho perdeu a paciência:
- Estás a roer a corda, malandro? Queres ou não queres a rapariga?
E Marcelo calou-se. A chuva, cada vez mais pesada, ia ajoujando os sillvedos. O vento crescia e arrastou da distância o marulho dum trovão maior.
- Ouviu agora, mestre ?
Mas o cego deu-lhe uma cotovelada rápida:
- Cala-te, ladrão. O que eu oiço são passos.
Ficaram alerta, de respiração suspensa. O velho ciciou:
- Vai agarrando no cacete, Marcelo.
O vulto surgia ao topo da azinhaga. Uma sombra móvel entre montões de espinheiros derreados de água. Cantarolava. Reconheceram-lhe a voz e mestre António segredou ao moço:
- Arreia-lhe a matar.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anónima e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas. Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia.
A cajadada de Marcelo apanhou Jacinto pela cabeça:
-Ai!
Abriu os braços e foi de escantilhão aninhar-se no lamaçal da estrada. Chape. Inerte como um pedregulho.
Mestre António ordenou:
- Temos de o deixar escondido no silvado e dar um pulo a casa, não vá a rapariga suspeitar da ausência. Come-se o caldo e, mal ela disser as boas-noites, saltamos ao palheiro. Traz-se o jumento, como quem não quer a coisa, põe-se-lhe o corpo em cima e ala para o mar. As águas lá se encarregam de lhe dar sumiço.

E assim fizeram.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3091: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (40): Operação Beringela Doce: Da cabeça não me sai aquela mulher morta...

"O relatório de Vasco Calvet de Magalhães, administrador da Circuncrição de Geba, datado de 1914, é, a diferentes títulos, um documento excepcional: afoita-se por domínios até então inexplorados ou mal ventilados; propõe estradas e fala do respectivo traçado; queixa-se e denuncia funcionários corruptos;abalança-se a falar da origem dos fulas,apresenta soluções para o assoreamento do Geba,é uma incursão com pretensões literárias e algumas ambições políticas.Foi neste documento que encontrei esta preciosidade,um porto de Bambadinca que nenhum de nós conheceu..." (BS)




Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 24 de Abril de 2008:





Operação macaréu à vista > Episódio XL > OPERAÇÃO BERINGELA DOCE
por Beja Santos (2)



(i) O Ring, de Wagner, em Bafatá e uma nova conversa com D. Violete


Caminhamos para o fim de Maio [de 1970], sinto-me mais velho pois vou fazer em breve vinte e cinco anos, o major Herberto Sampaio já me avisou que amanhã tenho de apresentar o projecto do patrulhamento ofensivo em que vamos bater a região entre Amedalai, Demba Taco, Moricanhe, depois subimos pela antiga tabanca de Chicamiel, passamos pela palmar de Gundaguê Futa-Fula, contornamos o Baio e o rio Buruntoni, montamos uma emboscada entre Gundaguê Beafada e Ponta Varela, iremos percorrer Ponta Varela até à região onde habitualmente as forças do Buruntoni atacam as embarcações que entram no Geba estreito, atravessamos Madina Colhido e finalizamos no Xime. Qualquer coisa como trinta quilómetros, se não mais, tudo a pé entre Amedalai e Xime. É-me sugerido que leve todas as milícias da região, precisam de ser moralizadas depois das flagelações que todas estas tabancas sofreram, em Março e Abril, ficarão lá pelotões da Companhia do Xime, posso levar carregadores e devo organizar um plano de ajuda com os artilheiros do Xime.

Fica igualmente combinado que haverá um dia de descanso na véspera, é uma caminhada enorme, o calor não abranda, há muitos riscos à nossa espera, é indispensável boas transmissões, telas, discutir um plano de retirada no caso de sermos surpreendidos a partir de Moricanhe, o que não é improvável.

A história do BCaç 2852 não nos concede qualquer referência, embora fale nas operações Gato Irritado, Arroz Cozido e a Rã Teimosa, nesta última andaram dois grupos de combate da CArt 2520 entre Ponta Varela e Baio, dias antes, não houve quaisquer contactos e vestígios.

O BArt 2917 chegou a Bambadinca entre 29 e 31 de Maio [de 1970], iniciou-se a sobreposição com o BCaç 2852, que partiu na segunda semana de Junho. A Beringela Doce ocorreu na data da sobreposição, uns estão a chegar e outros na euforia de partir, não houve tempo que passássemos a constar na história de ninguém. O que é estranho, pelo que adiante se vai descrever.

Continua a ser uma das gravações de referência do Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner. Tinha extractos do Crepúsculo dos Deuses, que arderam em Missirá.Em finais de Maio de 1970,recebo uma mensagem da Casa Teixeira, de Bafatá: tem aqui uma preciosidade à sua espera.

Aparvalhado com a surpresa, abri um estojo com ,talvez, uma dúzia de discos com toda a tetralogia.Naquela idade, tinha só visto A Valquíria, de pé 5 horas mas feliz por ver umas das mais belas óperas de Wagner.Ouvi alguns trechos na companhia do Cherno Suane, o Valente das transmissões, na Casa Teixeira. Mas não tinha dinheiro para adquirir a preciosidade. Para me compensar, comprei há alguns anos estas grandes cenas onde posso recordar algumas das vozes sublimes daquele tempo, como Birgit Nilsson, Régine Crespin, Wolfgang Windgassen, Hans Hotter,entre outros. E a recordação daquela audição em Bafatá é inesquecível. O maestro Sir Georg Solti acabou o projecto do Ring do princípio ao fim, com a Filarmónica de Viena.

Entretanto, chega uma mensagem da Casa Teixeira, de Bafatá, o meu prestimoso fornecedor local de discos e livros. Que me apresente rapidamente, há uma grande surpresa à minha espera. E lá vou, numa daquelas manhãs de estafeta e recovagem com viagens por Madina Bonco e Samba Juli, ir buscar correio a Bafatá e passar por Bantajã Assá e trazer doentes. Foi mesmo uma grande surpresa. Era um estojo enorme com as quatro óperas do Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, ao todo quinze horas de música repartidas por O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses. Tinha desta última um disco com excertos, que desapareceu na voragem de 19 de Março, em Missirá. Era uma versão fabulosa do Ring, um projecto de anos que envolveu para além de Sir George Solti e a Filarmónica de Viena algumas das grandes sumidades wagnerianas do tempo como Birgit Nilsson, Régine Crespin, Hans Hotter, Wolfgang Windgassen, James King, entre outros.

Pelintra, não me dei por achado, pedi para ouvir ali alguns trechos, caso do prelúdio do Ouro do Reno, a entrada dos deuses no Walhala, da mesma obra, e a área final de Brünnhilda, no Crepúsculo dos Deuses. O gira-discos da Casa Teixeira era muitíssimo bom, não me fiz esquisito com o volume, a clientela estava espavorida com aqueles gritos bárbaros, aquelas cadências marciais, o tom apoteótico e dilacerante da filha de Wotan, o grande deus, que se precipita no Walhala, pondo fim ao Ring, depois da imolação de Siegfried. Agradeci muito, não tinha dinheiro para aquela empreitada, nem mesmo a prestações suaves. Cherno e o Valente das transmissões aguentaram estoicamente toda aquela ira dos deuses germânicos, suspiraram de alívio quando me despedi sem nada comprar. É que corriam o risco de ver o silêncio perturbado naqueles dias passados na ponte de Udunduma, como já não bastasse os mosquitos sanguinolentos...

No regresso, D. Violete vê-me da escola e acena-me com entusiasmo. Lá fui, mordido de curiosidade:
- Fui cumprimentar a minha amiga ao Sonaco, a neta de régulo Mamadu Sissé, e trago mais livros, não imagina as raridades que lhe vou emprestar. Olhe, tem aqui um relatório de um administrador de Geba, Vasco Calvet de Magalhães, com quem Mamadu Sissé combateu, refere-se a 1914. O meu pai nunca falou dele, li o documento, ó, senhor alferes, que franqueza, que verdades duras como punhos! Creio que vai gostar muito, há mesmo aqui coisas que eu nem sabia, e traz fotografias muito interessantes.



Folheio no meu quarto este precioso documento, é desassombrado e cru, quase literário, sente-se um profundo entusiasmo pela descrição dos usos e costumes, com os seus recursos limitados traça um vigoroso registo de culturas para conhecimento dos brancos, que tudo ignoram desse Geba longínquo, uma área onde cabem o Oio, o Cuor, o Corubal, Badora, Cossé, Forreá. Fico a saber que o régulo do Cuor, na época, se chama Abdul Jujaz. Vou procurar tomar nota de tudo, depois conto-vos.

(ii) Os preparativos da “Beringela Doce”: o que sabe recear sabe os riscos a evitar



À sorrelfa, falo com o Augusto e com o Calado. Preciso de concentrar em Amedalai parte dos pelotões de milícias 241, 242 e 243, ter depois viaturas no Xime para regressar a Amedalai e daqui fazer seguir para Taibatá e Demba Taco as forças da operação e recolher mais tarde os contingentes da CArt 2520. Com o Calado discuto os rádios e as telas. Com a CCS, falámos depois das nossas necessidades em munições e equipamento, o morteiro 81 e dois morteiros 60 são indispensáveis.



Preciso igualmente de verbas para pagar a dez carregadores e dois guias. A pretexto de um patrulhamento entre os Nhabijões e Samba Silate, fui a Amedalai e informei o comandante do pelotão, Cherno Baldé, que falasse com os seus camaradas de Taibatá e Demba Taco para estarem nos seus respectivos quartéis à nossa espera, ao nível de duas secções, incluindo metralhadoras ligeiras e dilagramas. Desapareceu o relatório da operação, conversei recentemente com Queta Baldé e Cherno Suane acerca do que aconteceu. Ambos confirmaram que as forças de operação eram predominantemente tropa africana.

O picador do Xime Seco Indjai foi o nosso guia, ambos consideraram que tivemos muita sorte com esta escolha, Seco conhecia bem todo o terreno entre Moricanhe e as imediações do Baio, sabia perfeitamente que podíamos encontrar armadilhas tanto nos caminhos para Ponta Varela como na estrada Xime-Ponta do Inglês, e mais ou menos onde.

Na tarde de 27, converso com o major Herberto Sampaio, ele aceita o plano e os preparativos, promete acompanhar-me no ar na manhã de 29. Desloco-me ao Xime, aproveitando uma coluna de reabastecimento da CArt 2520, discuto com os artilheiros o plano de fogo à semelhança do que fizéramos nas operações Rinoceronte Temível e Jaqueta Lisa. Hesitei muito, era a primeira vez que percorria o mato entre Moricanhe-Chicamiel-Gundaguê Futa-Fula, as distâncias para mim eram pouco compreensíveis e por isso acertámos o mínimo de referências para fogo das peças do Xime, no caso de sermos emboscados.


No regresso, convoquei Nhaga Macque e Benjamim Lopes da Costa, informei que o Pel Caç Nat 52 iria sair ao fim da tarde, queria que todos viessem com cartucheiras e dois cantis, com alimentos para dois dias, quero chegar a Amedalai antes do lusco-fusco, iremos dormir aqui, nessa altura já lá estarão dois pelotões do Xime. Falei depois com o Cascalheira e o Ocante, repartimos tarefas e o posicionamento dentro da coluna, a partir de Demba Taco. A operação estava em movimento.

(iii) As reviravoltas da Beringela Doce

Ao amanhecer, já com as estradas picadas entre Amedalai, Taibatá e Demba Taco, fomos largando e recolhendo tropas nestas três importantes tabancas em autodefesa, onde se concentrava a maior parte da população do regulado do Xime. Clareava quando a coluna a pé partiu de Demba Taco flanqueando a velha picada abandonada até Moricanhe.



Queta Baldé sempre me disse que fora um erro não ter dado meios militares a Moricanhe, pela sua importância entre Mansambo e Xime, o seu abandono deu muito mais força ao PAIGC, tornou tudo mais fácil na fixação das suas populações entre Fiofioli, Mina, Gã Júlio, Galo Corubal e Biro, deu-lhes a possibilidade de pressionarem o regulado de Badora, pensarem mesmo em destruir a linha defensiva entre Samba Juli, Sinchã Mamajã, Sansacuta e Sare Adé. Moricanhe custara sangue, suor e lágrimas, mas a população não aguentou a persistência das terríveis flagelações com canhões sem recuo, abandonou as ricas culturas da região, refugiou-se em Amedalai e em Bambadinca.

Verificámos que a velha tabanca estava abandonada, a Natureza progredia a olhos vistos, tomava conta do terreno da velha tabanca e dos seus acessos. Nem vestígios de trilhos novos, não havia sinais de presença alguma. Progredimos para o palmar de Sinchã Seluel e depois Madina, uma lala riquíssima, nada, não havia indícios de presença humana. Seguimos para Chicamiel, e contornámos os frondosos palmares até Gidemo.



Aqui fizemos um auto e acordou-se com Seco Indjai e o seu companheiro (penso que se chamava Samba) que fôssemos a corta-mato até junto de Gundaguê Futa-Fula. É neste caminho que ouvimos disparos oriundos do Baio-Buruntoni, rebentamentos lá mais longe, talvez mesmo na foz do Corubal. Mas sentíamos que era praticamente impossível estarmos referenciados, marchávamos sempre no interior da mata. Porém, antes de Gundaguê Futa-Fula encontrámos um trilho bem simulado em direcção à velha tabanca do Buruntoni, as forças do PAIGC já não estavam longe. Pela rádio, informámos a nossa posição tanto para o Xime como para Bambadinca.

Contornando os palmares de Gundaguê Futa-Fula, avançámos para perto de Gundaguê Beafada, encontrámos uma antiga barraca do PAIGC abandonada, a preocupação era de fugir de trilhos armadilhados, o sol caminhava para a fornalha, fez-se um novo alto para comer e repousar uma hora, dentro da floresta fechada.



Conversando com os sargentos e os comandantes das milícias, estes consideraram importante aproveitar toda a luz para referenciar Gundaguê Beafada e depois cruzar a estrada Xime-Ponta do Inglês para a zona de Ponta Varela, ver se havia indícios da presença das populações que cultivam o Poindom e, a seguir, pernoitar entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido. Pois bem, detectámos dois trilhos pronunciados, um que saía da região de Gundaguê Beafada em direcção ao Baio e outro, bem dissimulado, em direcção a Ponta Varela.



De Gundaguê Beafada seguimos cautelosamente em corta-mato em direcção a Ponta Varela e não havia dúvidas que esta região, a cerca de quatro quilómetros do Xime, estava cultivada e tinha a presença assídua das forças do PAIGC: caminhos em todas as direcções, tudo lavrado, corredores em direcção ao rio, certamente frequentados pelas forças que procuravam atacar as embarcações. O sol enfraqueceu, lá longe ouviam-se disparos, talvez de caçadores, bem seguros da sua impunidade.



Sempre com todas as cautelas, passámos para Madina Colhido e aqui se montou uma emboscada com vários sentinelas atentas às direcções do Buruntoni e Ponta Varela. Para nossa surpresa, a noite decorreu silenciosamente, sem fogo de artilharia do Xime, sem tiros isolados ou morteiradas dos territórios inegavelmente controlados pelo PAIGC. Nem o barulho das embarcações se ouviu, só o piar das árvores e a passagem dos animais.

É quando começa a alvorocer que os acontecimentos se precipitam: estamos dormentes pela noite insone, ninguém é capaz de dormitar num sítio tão arriscado como Madina Colhido, de repente, a voz de Mamadu Camará lança um brado, quebra o silêncio, seguem-se tiros e uma correnteza de rajadas curtas. É tudo inesperado, ninguém sabe o que é que se está a passar. Precipito-me com o sargento Cascalheira para o local do burburinho, há soldados em perseguição não se sabe do quê, uma mulher jaz caída golfando sangue do peito, o solo está juncado de sacos, peças de roupa, folhas de tabaco, material de cozinha, passeio-me atónito, tudo isto me parece inacreditável. Afinal, a coluna vinha do Xime, era um grupo de populares com abastecimento!

Peço para falar com Seco Indjai no meio deste arranzel. Seco dá várias explicações, nenhuma passa pela cumplicidade das populações do Xime, é efectivamente uma coluna de abastecimento, gente que terá pernoitado em Samba Silate, vindo por Taliuará, surpreendemo-los totalmente. Muitos dos meus soldados e milícias discutem vivamente com Seco, não acreditam nesta versão, para eles o centro de apoio está na tabanca do Xime.

Faz-se uma padiola, pela rádio pedimos uma evacuação Y a partir do Xime, embora não houvesse dúvidas que só um milagre salvaria aquela pobre mulher. E rapidamente chegámos ao Xime onde pouco depois um helicóptero a levou para Bissau. É nessa altura que o PCV começa a sobrevoar Madina Colhido e Ponta Varela, informo os resultados, é impossível continuar, as forças do Poindom e em Ponta Varela estão alertadas, vão emboscar, perdeu-se o factor surpresa.

É incompreensível a degradação a que chegou a nossa presença nesta região, é um inimigo forte, motivado e profundamente conhecedor das nossas fraquezas que se assenhoreou de tudo à volta do Xime. O que se vive aqui não é diferente do que presenciei no Cuor.

As viaturas põem-se em andamento, trouxemos todas as mercadorias apanhadas para serem analisadas, os Unimog com uma equipa de picadores à frente avançam para Amedalai, daqui para as outras tabancas em autodefesa para se fazerem as trocas de efectivos.

A Beringela Doce terminara com resultados minguados, o comando de Bambadinca extraia agora os respectivos ensinamentos. Encontro Bambadinca em alvoroço, a chegada dos periquitos que vêm render o BCaç 2852 vai começar esta tarde. Com o corpo moído mas desperto, acompanho a arrumação das munições, vou conhecer as tarefas dos próximos dias, é agora que me vai cair em cima o acompanhamento dos trabalhos dos Nhabijões.



Aproveito as últimas energias para começar a fazer o relatório, entretanto passei pelo gabinete de Jovelino Corte Real e contei-lhe aquilo que ele não quer ouvir: o Xime está cercado, as colunas de reabastecimento para o Buruntoni passam ali perto, impõe-se rever toda a estratégia, talvez melhorar os efectivos nas tabancas em autodefesa, afinal pode-se ir ao Buruntoni mais facilmente a partir de Moricanhe. Mas Jovelino Corte Real já não me ouve, o que lhe estou a dizer só terá sentido para o seu substituto.

Maio está a chegar ao fim. Sei muito bem que começa um período de adaptação para o novo batalhão e nós iremos colaborar. Vou fazer vinte e cinco anos, tenho pelo menos mais dois, três meses de guerra. Da cabeça não me sai aquela mulher morta. Sempre ouvi falar em soldados desconhecidos, não conheço uma só referência a monumentos dedicados a mulheres mortas durante as guerras.

Nº51 da Colecção Vampiro, tradução de Álvaro Cardoso, capa de Cândido da Costa Pinto.


É uma estória contada em bom ritmo, envolvendo uma das duplas mais pândegas da literatura policial: Johnny Fletcher e Sam Cragg,uma associação sem rival de cérebro e músculos .Esta dupla de vendedores de livros em que se ensina a ter um físico de Sansão está nas lonas, são expulsos do hotel mas no seu quarto está um homem esquartejado com uma moeda valiosíssima numa das mãos. Começa uma estória bem imaginada com um desfecho surpreendente. Era uma literatura típica dos tempos da recessão em que se exaltava o desenrascanço e o pícaro.




(iv) Viva Hemingway!

Li Paris é uma festa, um livro póstumo de Hemingway, de quem já lera Por quem os sinos dobram, Adeus às armas e O Velho e o Mar. A obra situa-se em Paris e abrange os anos de 1921 a 1926. O jovem Hemingway é já um jornalista com cotação internacional, tem novelas publicadas, aspira a escrever romances.

É um livro de memórias onde ele nos fala do entusiasmo que lhe provoca Paris, os cafés onde escreve, a livraria de Sylvia Beach, os seus encontros com Gertrude Stein, Scott Fitzgerald, Ernest Walsh ou Ezra Pound, nem todos felizes. Estas memórias são um fascínio de um paraíso perdido, de alguém que teve a dita de conhecer Picasso e Miró, saborear a boa comida francesa, de percorrer as ruas e os locais onde estiveram Braque e Verlaine.

É em Paris que decorre a primeira parte da vida profissional de Ernst Hemingway que se despede das suas recordações dessa cidade amorável escrevendo: “Paris é imortal e as recordações das pessoas que lá vivem diferem de umas para as outras. Acabamos sempre por voltar, sejamos nós quem formos, ou mude Paris no que mudar, ou sejam quais forem as dificuldades ou as facilidades que, ao regressarmos, se nos deparem. Paris era assim nos velhos tempos em que nós éramos muito pobres e muito felizes”.


É o primeiro livro póstumo de Hemingway. Foi editado entre nós por Livros do Brasil,tradução de Virgínia Motta, capa de Infante do Carmo, anos 60.

Este livro de memórias tem Paris como cenário e abrange os anos de 1921 e 1926. O jovem Hemingway fala deslumbrado ou desiludido de personalidades como Gertrude Stein, Scott Fitzgerald, Ford Madox Ford ou James Joyce. São os sonhos de um jornalista já com alguma reputação internacional que aspira vir a ser um grande escritor.Anos depois,surgem as obras que o tornaram famoso em todo o mundo:Por quem os sinos dobram,O velho e o mar, Adeus às armas,por exemplo.Mas como ele escreveu,«Paris é imortal e as recordações das pessoas que lá vivem diferem de umas para as outras.Acabamos sempre por voltar,sejamos nós quem formos,ou mude Paris no que mudar,ou sejam quais forem as dificuldades ou as facilidades que, ao regressarmos, se nos deparem .»



O Enigma do quarto fechado, de Frank Gruber, fez-me companhia antes e após a Beringela Doce. Johnny Fletcher e Sam Cragg são a dupla mais hilariante de toda a literatura policial . Personagens típicas da Grande Depressão, vivem permanentemente na pelintrice e têm momentos, bem raros, de alguma fartura. Vendem livros na rua, atraindo pessoas que querem ter um físico do tipo Sansão. Desta vez, andam sem um cêntimo e foram corridos do hotel da rua 45, em Nova Iorque. Montaram um esquema para dormir às escondidas no quarto desse hotel onde descobrem que está um morto com as goelas cortadas. Inicia-se aqui um enredo que passa por minas de ouro, moedas da melhor numismática, Johnny vai desvendar uma história sombria de cupidez e corrupção, tudo num camarim de teatro da Broadway.

É divertido, tem uma estrutura escorreita e imaginativa, percebe-se qual foi a chave do sucesso de Gruber, como ele insistiu, tantas vezes com bons resultados, nesta dupla de cérebro e músculos.

Agora vou ler o relatório de Vasco Calvet de Magalhães, que é um baú de surpresas. Ora oiçam.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3078: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (39): Adeus, até ao meu regresso

(2) Por razões que se prendem com o período de férias dos editores (pelo mneos, dos privilegiados que ainda têm direito a férias pagas...), esta série poderá não sair com a regularidade semanal a que habituámos o autor e os seus leitores. Em geral, sai à sexta-feira.
Em contrapartida, temos uma dupla boa notícia a dar à gente da nossa blogosfera, pela boca do nosso tertuliano Beja Santos (com quem almocei ontem, no Institut Franco-Portugais): (i) o primeiro livro, o Diário da Guiné, 1968/69- Na Terra dos Soncó, está praticamente esgotado; (ii) O 2º (e último) livro da série, que se irá chamar O Tigre Vadio, está terminado e já está no prelo...
Aqui fica, para a petite histoire da nossa Tabanca Grande, o mail que ele mandou em 18 de Julho último, juntando em anexo o episódio nº 50, o último, da Operação Macaréu à Vista - II parte (que, curiosamente mas certamente por lapso, ainda não recebi...):
Luís, neste preciso instante lembro-me de uma conversa que tivemos em Junho de 2006, aí na Escola Nacional de Saúde Pública. Assumi contigo e com o blogue o compromisso de contar os dois anos da minha comissão. Este episódio que te envio é o último e assim termina tanto a Operação Macaréu à vista como o livro “O Tigre Vadio”, que será lançado em 11 de Novembro, no Museu da Farmácia, na ocasião da apresentação pública de três núcleos referentes à guerra que travámos em África: os medicamentos do Laboratório Militar, o equipamento das enfermeiras pára-quedistas e os primeiros socorros da Força Aérea.
Foi uma alegria imensa ter podido cumprir o compromisso assumido nesse dia de Junho de 2006, contei com todo o teu apoio e de muitíssima malta do blogue. Estou a sofrer as consequências, todas elas benignas, vou na rua e alguém que nunca vi agradece eu ter escrito o que escrevi sobre a minha comissão.
Agradeço igualmente aos co-editores e a todos aqueles que me estimularam. Em breve, vamos falar de um novo projecto. Para já, vou concluir um livro sobre cosméticos e preparar outro sobre medicamentos. Está descansado, não me vou encostar às boxes, vais continuar a ter notícias minhas. Estou muito emocionado neste momento pela dedicação que tributámos uns aos outros. Recebe um abraço de gratidão, Mário.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2270: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (9): E de súbito uma explosão, uma emboscada, um caos...

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 examinam o estado em que ficou a viatura Unimog em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé. O accionamento da mina foi seguido de emboscada.

A NT, que seguiam em coluna de reabastecimento ao destacamento de Missirá, sofreram um morto (sold condutor Manuel Guerreiro Jorge, da CCS do BCAÇ 2852) e quatro feridos (1º cabo Alcino Barbosa e o sold Cherno Suabe, ambos do Pel Caç Nat 52; 2º Sarg Milícia Albino Mamadu Baldé, do Pel Mil 101; Sold Trms Arlindo Guiomar Bairrada, do Pel Mort 2106/CCS do BCAÇ 2852).

O Pel Caç Nat 52 será transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Pel Caç Nat 52 > O Beja Santos mais alguns militares da sua unidade, num burrinho conduzido por um dos condutores da CCS do BCAÇ 2852, o Manuel Guerreiro Jorge ou o Setúbal (não posso precisar) (LG).
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.


Envelope de luto, com a carta que enviou ao Beja Santos em 10 de Novembro de 1970 o pai do infortunado soldado condutor Manuel Guerreiro Jorge, morto em Canturé - "o Sr. Jesuíno Jorge que tanto esperou por uma visita que nunca lhe fiz" (BS).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.



Mensagem do Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2007:

Luis, estou para saber como é que ganhei coragem para estas confissões. Felizmente, foi a única mina anticarro que tive com tão trágicas consequências. Tens aí várias fotografias da mina de Canturé, vou juntar o relatório, o louvor do Mamadu Djau, e acho que é um bom momento para mostrares a carta do Sr. Jesuino Jorge, que tanto esperou por uma visita que nunca lhe fiz. Pareceu-me descabido falar de leituras num episódio como este. Não há problema, em Bissau li e li muito, estava tão triste que não queria ver ninguém. Haverá muitas leituras para a semana. Recebe um abraço do Mário.

PS - Luis, esta é a versão definitiva. O texto que te enviei ontem tinha gralhas imperdoáveis. Para a semana haverá mais um episódio. Recebe um abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista - Parte II > Seis da tarde quando a formiga sacode a pólvora
por Beja Santos (1)


Este seria o nosso último abastecimento em Bambadinca

A 16 de Outubro [de 1969], a coluna que parte de Missirá para Bambadinca vai à procura de mantimentos e combustível, para que não haja problemas logísticos momentosos para quem nos vem substituir. Prevê-se a chegada iminente do Pel Caç Nat 54, um grupo de combate da CCaç 12 vai nesse dia a Mato de Cão, as populações civis de Missirá e Finete estão sem arroz, muitos dos soldados do Pel Caç Nat 52 andam à procura de quartos em moranças na tabanca de Bambadinca, passo horas a apresentar-me junto dos senhorios e dos comerciantes locais como fiador na compra de camas e colchões.

Como que por milagre, arrebito das minhas mazelas, está a desaparecer-me o líquen das costas, secam as feridas dos pés, durmo melhor, vou digerindo o colapso nervoso do Casanova, atiro-me com energia à contabilidade, aos autos, aos livros de abate, aos cadernos onde registamos todas as munições. Fazemos gala, o Pires e eu, em entregarmos toda a escrita em dia, toda a transparência no deve e haver, seja nas folhas de pagamentos seja nos abastecimentos que deixamos nos armazéns de víveres.

É uma manhã que pronuncia o fim das chuvas, um céu azul de cobalto e despido de quaisquer nuvens caindo ao fundo na cobertura vegetal cor garrafa escuro, as picadas estão secas, o capim ergue-se louro como se fosse trigo. O meu estado de espírito renovou-se com optimismo.

No entanto, antes de partir, enquanto engulo um leite achocolatado com pão e marmelada, oiço um pouco de “Um Requiem Alemão”, de Brahms, o coro da RIAS de Berlim entoa “Bem aventurados os que estão em aflição, porque eles serão consolados”. É um requiem profano, muito plangente, e é quando eu desligo o gira-discos que tenho a primeira premonição da tragédia que se avizinha. Mas a azáfama é tanta e tantas andanças nos esperam em Bambadinca que a mente saúda e esvoaça na bela manhã, rendendo-se à serenidade envolvente.

Passa-se por Canturé, há árvores em flor, os picadores estão prudentes tal a densidade da vegetação, tal a poeira que se levanta no estradão. Em Finete, há dois dedos de conversa sobre as obras, os mais feridos sobem para a caixa do 404, Bacari Soncó apresenta a lista dos sacos de arroz que urge comprar. O alvoroço do mercado de Bambadinca está no auge, toda a estridência dos encontros nota-se nos tons que se elevam a volumes quase impossíveis. Paro sempre impressionado com a alegria esfuziante desses encontros, as mãos dadas, as perguntas, os olhos cheios de contentamento.

Passamos a manhã numa roda viva, sou fiador não sei quantas vezes, subo ao quartel, há conversas na engenharia, requisitam-se peças para o burrinho, discute-se a substituição do radiotelegrafista, os bidões de petróleo e gasóleo sobem para uma viatura e daqui são transportados para o cais de Bambadinca, depois é a compra de comida, deixo o Alcino Barbosa a regatear com os vagomestres, sigo para a secretaria onde deixo ofícios assinados, passo pelo serviço de justiça e entrego ao Valentim vários autos.

Logo a seguir ao almoço vou a Afiá comprar arroz, regresso com oito sacos. Junto do paiol, pegamos em vários cunhetes de munições, as nossas operações logísticas estão finalmente concluídas. Levo a promessa que na próxima semana haverá a transferência. O comandante não me deixa de avisar:
-Você fica mais uma semana em Missirá, até porque vão chegar as duas secções de milícias. Não se esqueça de patrulhar tudo, não quero tropa instalada só dentro do arame farpado. Procure melhorar as relações entre as autoridades civis que não vêem com bons olhos o regresso do Pel Caç Nat 54 a Missirá.

A travessia da bolanha é penosa, o 404 vai ajoujado com bidões, sacos de arroz, caixas de tudo, desde cerveja a esparguete. O entardecer encaminha-se perigosamente para o ocaso. O condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que veio esbaforido desde o Geba até Finete, sempre a fintar os buracões da bolanha com um peso anormal de mercadorias, fuma nervosamente um cigarro e pede-me para partirmos cedo, estamos mesmo a entrar no lusco-fusco.

A energia renascida leva-me a comportamentos impulsivos de distribuir recomendações e ver as obras em curso. A viatura vai tão pesada que sobe a resfolegar a rampa íngreme, toda a gente a pé até lá acima, depois é a paródia de nos anicharmos nos espaços possíveis e impossíveis. Estou descansado com a segurança da estrada, duas secções da milícia passaram por aqui perto do meio dia.


A explosão, a emboscada, a reacção, o caos, de novo a reacção


No guincho à frente está Cherno Suane, sigo ao lado de Manuel Guerreiro Jorge,[o condutor,] estamos ladeados por Alcino Barbosa e Arlindo Bairrada. No alto, sentado no bidão mais protuberante vai Mamadu Djau com a bazuca nas pernas. Levamos quatro crianças, Mazaqueu quer vir a meu lado, mando-o para o pé de Albino Amadu Baldé, o comandante da milícia de Missirá.

O condutor está cada vez mais nervoso com a semiescuridão que desce, inexoravelmente. Apaga o último cigarro e pergunta-me:
-A que velocidade vamos, meu alferes?

Peço-lhe, atendendo à segurança que julgo existir, que vá a toda a velocidade até um pouco depois de Canturé, a seguir é que temos problemas, a picada está escorregadia até ao pontão de Caranquecunda. E a viatura parte à desfilada. Não se ouve o piar das aves, a lua recorta-se dentro do arvoredo que se vai sumindo rapidamente. É um anoitecer suave onde o rodado do 404 se sobrepõe à vozearia de quem vai na caixa. Exactamente quando a recta de Canturé está no fim, um estrondo medonho levanta o 404, os fios eléctricos silvam, a viatura afocinha na agonia, oiço o primeiro urro do condutor que pisou a mina anticarro, há a surpresa dos transportados, sou cuspido, sinto os óculos voarem, uma massa quente e ácida cega-me o olho direito, quer o destino que eu salte de escantilhão com a G3 na mão direita.

Tive muita sorte, os emboscados não dimensionaram devidamente a zona de morte, o 404 entrou de roldão fora da picada, terão recuado espavoridos, limitei-me a despejar rajadas, o que também terá surpreendido quem esperava uma carnificina fácil. E mais sorte tive porque Mamadu Djau deu novo sinal da sua valentia, do seu destemor, desferindo duas bazucadas que troaram naquela floresta em reboliço.

Manda o pudor que vamos encerrar por aqui a descrição desta emboscada incongruente e até pensar que um homem vestido de caqui amarelo que avançou para mim como que para me esganar e a quem enfiei o tapa-chamas da G3 no frontal não existiu, se bem que tenha deixado a arma ensanguentada. O importante era reagir um pouco mais, medir o desastre e ir pedir auxílio, passado o perigo de vida para todos nós.

Os acontecimentos sucedem-se em catadupa, lembro avulsamente que o guincho estava retorcido e que logo pensei que o Cherno ficara pulverizado, as crianças estavam estiradas na berma da picada, o tiroteiro, os dilagramas e as granadas defensivas eram a resposta da sobrevivência. Depois, o fogo arrefeceu, aquela estranhíssima emboscada deixou de dar sinal de vida, o que se ouvia até ferir os tímpanos eram os gritos lancinantes de Manuel Guerreiro Jorge que perdera as pernas e entrara em estado de choque. O Alcino queixa-se, há mais feridos, a caixa do 404 cedeu, como num naufrágio os bidões e todas as mercadorias estão espalhadas à nossa volta.

Se existe inimigo perto, penso, está a reagrupar-se. Falo com Mamadu Djau, dando-lhe a saber que ele vai ficar ali com todos os homens e que vou até Finete e levo as crianças, vou buscar reforços e mesmo auxílio a Bambadinca. Nunca mais esquecerei a resposta de Mamadu:
-Pode confiar, não me entrego, juro-lhe que vamos aguentar até regressar.

A cambalear, agradecendo a Deus só ter perdido o olho direito, como suposera, rodeado de crianças que me seguem no mais absoluto silêncio, demoro menos de uma hora até chegar a Finete. A povoação espera-me na porta de armas, naquela mesma rampa por onde há pouco passei com uma viatura carregada, nós desejosos de chegar a Missirá, tomar banho, jantar, dormir um pouco para, pelas quatro da manhã, partirmos para Mato de Cão.

Bacari Soncó recua quando me vê com o rosto escurecido. Peço-lhe um balde água que ele me atira brutalmente sobre os olhos. Afinal não ceguei, mesmo com o olho cheio de dores vejo ao longe o bruxulear das luzes no porto de Bambadinca. Estou especado, ergo a cabeça para os céus, rezo o Credo. Seguem-se as ordens, os civis acompanham os milícias, eu parto para Bambadinca. Peço insistentemente a Bacari que me lave o tapa-chamas. Ele não faz perguntas.


Aqueles grandes momentos de solidariedade (2)


Mesmo com a noite enluarada, atravesso a bolanha aos trambolhões, não fora aquele recuperar de energias dos últimos dias e o suplício da caminhada não teria chegado ao fim. Mufali Iafai atravessa-me de novo para Bambadinca, não faz perguntas, ouviu o suficiente à distância de seis quilómetros para saber que houve uma grande desgraça. É o Zé Maria quem me leva até ao quartel e também não faz perguntas, limita-se a olhar a minha cara queimada e a roupa desfeita.

O Ismael Augusto e o Fernando Calado, décadas depois, lembraram a minha entrada na messe de oficiais, nessa noite de 16 de Outubro, à hora do jantar:
-Mal se abriu a parte de vai-vem e tu apareceste completamente chamuscado, percebemos a desgraça. Toda a gente se levantou, tu falaste na mina anticarro e numa emboscada, disseste que havia feridos graves, o major Cunha Ribeiro tomou imediatamente as decisões necessárias. Parecia que o desastre era completamente nosso.

E assim foi. O Reis partiu com um pelotão, veio o David Payne com ajudantes, aparecerem rapidamente as viaturas, Bambadinca actuava em uníssono. Teve aqui lugar um gesto afectivo inesquecível. O major Cunha Ribeiro sentiu que os meus nervos estavam á beira de rebentar. Pegou-me num braço e disse-me ao ouvido:
-Tigre, vamos lavar a cara, tem que fazer pela noite inteira, o Gomes vai preparar-lhe umas coisas para comer e beber, uma boa parte do nosso jantar segue consigo.

Quando nos reencontrámos em 1994, em Fão, ele tinha esquecido o seu gesto e até mesmo a organização daquela emergência. Foram momentos inesquecíveis de solidariedade que me fizeram suportar a dor física e moral.

Estávamos a chegar a Finete quando a coluna de milícias e civis descia a rampa com os feridos, à luz de archotes. Não sei porquê, voltei a recordar os sons que ouvira ao amanhecer de “Um Requiem Alemão” e sempre que oiço esta obra-prima regresso a Finete e ao sofrimento dos meus homens. O Manuel Guerreiro Jorge morreu nos braços do David. O Alcino Barbosa coxeava, e ainda não sabíamos que era uma fractura de calcâneo. O Arlindo Bairrada tinha estilhaços num saco lacrimal. Albino Amadu Baldé tinha várias fracturas nas pernas.

O caso mais grave era o de Cherno. Ele foi descoberto milagrosamente perto de um morro de baga-baga, com o deflagrar da explosão fora atirado pelo sopro a vários metros de distância. Estava deformado, ensanguentado, irreconhecível. Com o maqueiro, lavamo-lo até aparecer um rosto tumefacto, sulcado de feridas, lábios rasgados, sangue a escorrer dos ouvidos, sempre a gemer, a suplicar água, a denunciar o calvário das dores. De madrugada, deitado a seu lado, procurando-o acalmar, ele disse baixinho:
-Alfero, agradeço a Deus morrer depois de o ter visto.

E pela primeira vez na minha vida vi o Cherno a chorar em silêncio. Na manhã seguinte, morto e feridos foram resgatados por um helicóptero. Como se sabe, Cherno não morreu, teve um traumatismo craniano profundo, é hoje um deficiente das forças armadas portuguesas. Despeço-me do Reis e David Payne, eles regressam a Bambadinca e eu a Missirá.
De Missirá a Bissau

Queta Baldé ficara em Missirá e contou-me depois:
-A minha secção estava de faxina, tínhamos que apanhar lenha, ir buscar água, dois quilómetros para lá e dois quilómetros para cá a rebolar os bidões, três horas no reforço, três horas a descansar, três horas no reforço. Ouvimos a explosão e os tiros, pressentimos uma grande desgraça. Estávamos em Missirá com os furriéis Pires e Pina. Esperámos toda a noite, os homens foram à mesquita pedir a Deus para que ninguém tivesse morrido. Ao amanhecer viemos com o segundo comandante da milícia de Missirá, Bubacar Baldé, em direcção a Finete. Quando vimos a viatura desfeita, tudo espalhado, muitas marcas de sangue, suspeitámos o pior. Não pode imaginar a nossa alegria quando vimos uma coluna vinda de Finete e nosso alfero a mancar à frente.
Em Missirá, fui lacónico na descrição dos acontecimentos mas prolífico na resposta. Combinara com o alferes Reis que a viatura ficaria armadilhada, depois de se trazer os víveres e os combustíveis. Tínhamos que nos preparar para tempos sem viatura já que o 404 ficara completamente destruído (felizmente não foi assim, a solidariedade dos desempanadores mostrou-se logo, o burrinho recuperou forças a 18 de Outubro, fez serviço à água e até Gã Joaquim, onde vinha receber os abastecimentos do Sintex).


Carta do pai do Manuel Guerreio Jorge, com data de 10 de Novembro de 1970, já com o Bej Santos a viver na Metrópole.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


O Pires foi fazer o patrulhamento à volta de Canturé, os resultados foram inconclusivos quanto à força emboscada, encontraram-se cartuchos, granadas de RPG2, pensou-se que terão retirado por Canturé até Chicri. Segundo relataram os que estavam em Missirá a 16 de Outubro, foram ouvidos tiros de pistola, pelas duas da tarde, ali perto, poderá ter sido uma força que estava à espera do grupo emboscado ou montara emboscada perto de Morocunda. Não interessava, tratava-se de um grande desastre, eu tinha o sentimento de culpa, houvera várias negligências, baixara irresponsavelmente as guardas, as gentes de Madina foram extremamente hábeis, aproveitaram-se bem dos nossos gestos automatizados, as nossas idas diárias a Mato de Cão, talvez a euforia da transferência.

Tenho que ir a Bissau a vários médicos. Perdi os óculos, seguramente que aconteceu alguma coisa ao meu olho direito, o ouvido dói-me e não há analgésico que abrande a dor, o David Payne sugere que eu vá amanhã.

Estou derreado, Ussumane Baldé veio prontamente avisar-me que é o substituto temporário do Cherno. O régulo pede para ser recebido, abraça-me com calor, longamente e a custo retenho as lágrimas. A seguir ao jantar, depois de ter ido buscar a morada dos pais do Manuel Guerreiro Jorge, escrevo uma carta onde, de forma abreviada, falo da mina anticarro e da morte do condutor que não queria viajar de noite.

Mal sabia eu que se iria iniciar uma troca de correspondência que durou largos meses. O que me surpreendeu na carta que recebi, dias depois, do Sr. Jesuino Jorge, do Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique, era a pretensão que me pareceu mórbida: o pai pedia-me insistentemente que lhe descrevesse o sofrimento e os últimos momentos do seu filho, sem faltar à verdade. Vim a aprender que é um pedido natural de quem não viu, não acompanhou, o desaparecimento físico do ente querido. Prometi visitá-lo um dia, faltei à promessa, a essa e a outras ainda mais graves: por exemplo, nunca visitei, nunca mais soube do paradeiro do Alcino Barbosa, que me fora tão devotado.

Estou no meu abrigo, é mais uma noite suave onde os coágulos de sangue nos meus joelhos e nos braços me impedem de dormir. Arrastando-me até à secretária, a pretexto de escrever ao Carlos Sampaio, arremedo uma prosa poética:

Efeméride: seis da tarde quando a formiga sacode a pólvora.
No fragor, sangue e alabastro nos olhos espalmados, vazos.
Seis da tarde à medida de um potro selvagem que soube ludibriar
o corno da morte. Ao sacudir a pólvora, abriu-se uma cratera
que engoliu feridos e mortos, todos inocentes.
Assim chegou o Outono da doce vinha, aqui uma época seca.
Aprendi com esta efeméride: pelas seis da tarde, Deus estava na lua,
para uns, a fortuna era uma rosa de betão, momentos de perdição,
para mim a fortuna tornou-se vida quando Cherno Suane
regressou à vida nestes trópicos de fúria e fetos aborígenes.
Deus seja louvado.


Fecho o aerograma, venho à porta do abrigo ver o céu, todo estrelado. Depois parto para Bissau. Ainda não sei, vou ser tratado por um médico oftalmologista açoriano, que se tornará num grande amigo. E até irei estudar um pouco da história da Guiné. Por favor, sigam comigo até Bissau.

______________

Notas de L.G.:

(1) Vd.posts de 9 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2251: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (8): Cartas que levam saudade(s) das terras e das gentes do Cuor

(2) Vd. também sobre este episódio, os seguintes posts:

24 de Junho de 2006> Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio (Luís Graça)

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)

(...) Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o tigre de Missirá, tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto (...) (Vd. post de 24 de Junho de 2006):

A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos (...).

Mário: Não foi a 15, mas sim a 16 de Outubro de 1969, como já ficou esclarecido entre nós. Na lista dos mortos do Ultramar, da Liga dos Combatentes, é também esta a data da morta do Manuel Guerreiro Jorge.

Na história da CCAÇ 12, também consta essa data:

"Registe-se ainda a intervenção do 2º GR Comb que, com o Pel Rec Inf da CCS [do BCAÇ 2852], foi em socorro duma coluna do Pel Caç Nat 52 que em 16 [de Outubro de 1969], já ao anoitecer, caiu numa emboscada com mina A/C comandada, no itinerário Finete-Missirá, próximo de Canturé, sofrendo um morto e três feridos graves".

O mais importante é que o Corca Só não te levou para Madina/Belel o teu escalpe. E hoje estás vivo, e está entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos... Mas sei do que falas: ser vítima da explosão de uma mina anticarro é uma situação-limite por que nem todos passaram:
2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)
23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21369: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (19): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux, a paixão do Paulo Guilherme, é muito mais do que uma fiel depositária das memórias do antigo combatente. Estuda, inteira-se sobre aquele meio e aquelas populações, procura livros nas bibliotecas e livrarias belgas sobre aquela luta de libertação. Paulo dá respostas, neste texto faz uma súmula dos primeiros cinco meses. Esconde-lhe muitas coisas, as dores que sente no joelho direito, que obrigarão a intervenção cirúrgica em março; as dermatites recorrentes, tornou-se um cliente da pomada Fenergan, tem os pés inchados, até ulcerados. O sono alterou-se completamente, daí ter aprendido a dormir numa cadeira, todos os minutos de descanso contam. Vive em formação contínua com os seus Caçadores Nativos e Milícias, é forçado a praticar justiça em conivência com o régulo, aprendeu a trabalhar com um Morteiro 81, já levou um moribundo às costas e dentro em breve irá meter uma massa encefálica numa caixa de sapatos. Sempre que passa pela messe de oficiais em Bambadinca rouba jornais há três ou quatro meses, é um pretexto para pôr toda a gente a ler em Missirá e Finete. Já conhece as principais etnias da Guiné, sabe o que é uma lala, um cipó, um poilão. Comprou mesmo uma indumentária muçulmana para se juntar ao Ramadão, teve uma acesa discussão religiosa com o almani, Lânsana Soncó, mostrou como o Alcorão dispensa que quem combate pratique jejum.
Annette Cantinaux está deslumbrada por se integrar neste romance onde curiosamente a ficção é mínima.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (19): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureuse, fico feliz por saber que o teu filho vai trabalhar em boas condições numa organização não-governamental de proteção aos imigrantes. Ainda não tenho data marcada para a minha viagem, vê se podes sensibilizar os teus filhos para passares o Natal comigo, se vieres antes de 16 de dezembro conseguirás preços mais abordáveis, regressarias a 3 ou 4 de janeiro, creio que este período é coincidente com a falta de reuniões organizadas pela Comissão Europeia. Estou muitíssimo entusiasmado por voltares a Lisboa, desta vez por minha causa e pela nossa felicidade, entre Lisboa e Bruxelas iremos descobrir onde deitar a âncora. Seguiu uma carta volumosa, conforme me tinhas pedido, fiz uma síntese dos primeiros cinco meses da minha vida na Guiné. É bastante sumário, mas estão aí os aspetos capitais de acordo com o que a memória retém, do que ficou das fotografias e dos aerogramas.

A minha chegada a Bissau e a partida num barco civil do porto do Pidjiquiti para Bambadinca. O logo ter percebido existir o imperativo das seguranças na região de Mato de Cão à navegabilidade do Geba, passarão a ser patrulhamentos quase à escala diária e casos haverá em que está a chegar uma patrulha a Missirá e prontamente segue outra para o mesmo destino. Chego ao Cuor e cai-me a alma aos pés, não é só a pobreza e as condições deploráveis em que vivem os militares e civis, vive-se em condições degradantes e altamente inseguras. Havia que encontrar respostas para melhorar tudo, até as artes da culinária, o balneário era primitivo, não havia sanitários, os abrigos tinham palmeiras podres, a escola não funcionava, não havia visitas regulares ao médico. Surgiram confrontos com o furriel mais antigo, sobretudo quando ele verificou que eu não me limitaria a fazer colunas de reabastecimento a Bambadinca ou patrulhas a Mato de Cão, passei a ir com alguma frequência a Finete, a vedação de arame farpado estava praticamente caída e as valas imprestráveis. Novo confronto com o comandante da milícia local, um Soncó vaidosão e pretensioso, encontrei felizmente dois sargentos de mão-cheia, ainda não sei que estão a nascer amizades para toda a vida, Fodé Dahaba e Bacari Soncó, em escassos meses encontram-se provas físicas da presença de colunas do PAIGC nos mesmos caminhos que nós percorremos. Três meses depois de estar no Cuor, já percorri quatro quintos do território, o quinto sobrante é onde estão as populações em locais que dão pelo nome de Madina e Belel, quase tudo mata hermética. Estou a ser oficial averiguante de um processo tétrico, uma granada incendiária deixada em Finete, ao tempo da presença de um pelotão de caçadores, num atrelado, uma criança curiosa retirou a cavilha, tem as costas e as pernas retalhadas. O insólito bateu à porta, uma noite entrou quartel adentro um soldado que fora apanhado perto de Mansoa, escapuliu-se, terá andado vários dias a correr pelas matas, descobriu a nossa estrada, nunca saberemos porque é que não foi baleado pelas sentinelas. Passei a receber com a maior das regularidades bilhetinhos com inúmeros pedidos, um deles chega-me a 20 de dezembro, o soldado Mamadu Camará terá ditado a um escriba este conteúdo: “Agradecia-lhe o obséquio por amor de tudo o que é mais sagrado neste mundo e especialmente a sua excelentíssima esposa. O pedido é o seguinte: como o meu alferes disse que tenho de ir gozar licença no mês de janeiro, gostaria de ir mas peço a vossa excelência para me ajudar, pois tenho alguns colegas que me devem dinheiro desde o ano passado e até agora não me pagaram, e para ir gozar licença preciso deste dinheiro comigo para os meus assuntos particulares que tenho de realizar na minha terra. A razão é essa que quero para que o meu senhor alferes lhes faça desconto no fim do mês, é uma importância de 900 escudos”. Chamado a esclarecer os devedores, apurou-se que ele tinha uns bons calotes pregados a outros entre Missirá, Finete e Bambadinca. Já sei o que são flagelações, já sei fazer autos de abate, em Bambadinca pediram-me para ir pondo nos meus autos de abate mantas, capacetes, lençóis, panos de tenda, botas de lona, até tesouras de corta-arame. Ainda não conheço as consequências de tantos abates apocalíticos, só mais tarde há-de chegar um helicóptero com um coronel responsável pelo inquérito, não tive rebuço de contar-lhe a verdade, será tudo arquivado. Encontrei professor, vou conseguindo cimento, chapas onduladas para os telhados dos abrigos, consegui um atrelado, fui integrado em duas operações, ambas na região do Xime, ninguém me explicou coisíssima nenhuma daquelas marchas infernais onde os guias não atinaram com qualquer objetivo.

Cherno Suane
Chegou um novo batalhão, relaciono-me muito bem com os Comandos e os meus camaradas. Um soldado autopropôs-se ser meu guarda-costas, de nome Ieró Baldé, revelou-se estimável e cordial, aproveitando as suas férias apresentou-se outro, um soldado do pelotão de Caçadores Nativos, de nome Cherno Suane, ele virá para Portugal em 1992, temos uma amizade fraterna. O régulo Malan Soncó pediu-me para eu intermediar um desejo dos Mandingas, dar novamente vida à tabanca de Canturé, não obterei acolhimento por parte dos meus superiores. Haverá também flagelação a Finete, felizmente sem consequências. Entre alguns melhoramentos, idas diárias a Mato de Cão, com a escola a funcionar, com colunas a lavar civis a Bambadinca, pois instituiu-se a visita semanal ao posto de enfermagem onde o médico dá consulta, foi uma iniciativa que calou fundo na população, dá-se o episódio que já te contei, tem o título “O Presépio de Chicri”, sou incapaz de pôr em palavras o sofrimento vivido por matar e por quase ter visto morrer o Paulo Ribeiro de Semedo naquela horrível marcha à procura de um helicóptero bendito me pedia insistentemente que lhe desse um tiro de misericórdia. Tudo em cima do Natal, fez-se festa a pensar na população de Missirá, guardei numa folha que não desapareceu um poema alusivo ao Natal de Tomaz Kin, nome literário do professor Monteiro Grilo:
“Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Tumba de carne viva em ódio amortalhada,
Anunciando sangue e pranto e morte.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.”


Annette, também pude sobreviver graças à música que trouxe de Lisboa e às centenas de livros que guardo dentro da minha morança. Começo a conhecer a história deste povo, a guerrilha chegou cedo ao Cuor, o régulo Malan repudiou todos os convites do PAIGC. Sei que nesse ano de 1963 houve um massacre em Gambaná, dizem-me ter morrido bastante gente indefesa arrebanhada pelo PAIGC, mas não consegui apurar quem massacrou quem. Chegou um novo furriel, de nome Casanova, é hábil a aproveitar equipamentos antigos, traz tudo para Missirá, velhas casas abandonadas entre Finete e Mato de Cão. Contenho-me agora quando é necessário falar de uma descoberta horrível, o ressentimento que existe entre guineenses e cabo-verdianos. Não te quero incomodar mais com episódios dolorosos, muitos deles incompreensíveis para uma belga, do que pode levar gente habitando o mesmo solo a estarem envolvidos numa guerra de libertação da componente da guerra civil aparece habilmente camuflada.
Vou telefonar esta noite, só penso em ti, só penso na tua companhia, agora e sempre, tenho aqui a tua fotografia a meu lado, é a compensação que me alivia da distância a que estamos sujeitos, não sei por quanto tempo. Mas um dia estaremos sempre juntos, é esse o teu e o meu sonho. Gosto da maneira como tu dizes “besinhos”, encanta-me. Querias dizer “beijinhos” mas prefiro que digas “besinhos”, é mais terno e é mais teu, meu amor adorável. Teu, Paulo.

(continua)

Casal guineense sénior sentados à porta da morança

Junto da ponte de Sansão, já reconstruida, da esquerda para a direita: Mamadu Camará, Usumane Baldé, Serifo Candé, Seco Seidi, Domingos da Silva, Tunca Sanhá e Nhaga Maque

A festa do fanado em Bambadinca, 1968

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21348: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (18): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Rasgam-se cartas cujo significado é nulo. Mas foi uma experiência excitante, este serviço cívico em Bissau, entregue aos cuidados da Avó Berta, lendo a “História do Cerco de Lisboa”, de José Saramago, no silêncio que as instalações da CICER proporcionava, fazendo planos para Conselho Interministerial de Defesa do Consumidor que nunca viu a luz do dia.
A despeito dos insucessos, houve um enorme entusiasmo pela obra. Era o tempo em que se criavam partidos, na esperança de reconduzir a Guiné ao nível dos países menos atrasados. Foi esse tempo que se cruzou na minha vida e só resta a sensação de que o dever se cumpriu, mesmo não tendo ficado nenhuma memória daquele projeto de cooperação.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2)

Beja Santos

No final de Outubro de 1991, registavam-se progressos nos preparativos de um serviço para os consumidores guineenses, e todos nós estávamos de acordo com o crisma proposto, Comissão Interministerial de Defesa do Consumidor. Antes de sair de Lisboa, os meus superiores tinham sido categóricos quanto ao nível da ajuda, para pôr de pé esta célula, pagar honrosamente ao coordenador e a um funcionário administrativo, senhas de presença para cerca de 6 reuniões anuais, pagamento de impressos e uma ou outra brochura, eu que não excedesse os 8 mil contos na proposta.

Obtivera por parte do ministro a cedência de um espaço, dentro do antigo Quartel-General, destinado a sala de reuniões e um gabinete para o coordenador e serviço de apoio, tudo numa decadência absoluta, levei lá um técnico da Soares da Costa que fez um orçamento realista para tornar aquele espaço acolhedor, funcional. É no meio destas atividades que recebi a visita de Quebá Soncó, o primogénito do régulo Malã, Cuor. Vinha convidar-me a assistir à tomada de posse do novo régulo, de nome Mamadi. Este estivera hesitante em aceitar, já tinha passado a fase de perseguição aos régulos, agora havia aceitação do poder tradicional, mas ficara por definir qual o poder efetivo que o PAIGC autorizava aos régulos. Também pelo Quebá soube que no Leste, um pouco à semelhança do que se passava por todo o país, se formavam novos partidos, o que estava a ganhar grande popularidade na região era o Movimento de Bafatá, inequivocamente tribalista, pois circunscrito a Fulas e Mandingas.

Fui a Missirá e houve grandes alegrias. E depois seguimos para a povoação de Geba, em franca ruína. O ponto mais tocante desta viagem foi a ida a Biana, no regulado de Badora, onde visitei o meu querido amigo Serifo Candé. Abraçou-me e disse-me: “Sabia que me vinhas buscar, sei que me vais dar trabalho em Portugal, estive nos Comandos, aqui tratam-me mal, embora esta seja a minha terra, tem paciência leva-me contigo”.

Felizmente que vivia absorvido pelo meu trabalho, este suavizava-me de todas aquelas dores antigas, persistentes. E apareceram dois juristas que iam dando apoio à elaboração dos documentos de competências e da regulamentação interna do Conselho. No início de Novembro, aparecia o primeiro programa televisivo “1 Milhão de Consumidores”, foi para o ar antes do episódio da telenovela “Sinhá Moça”, o grande êxito do momento, o conteúdo de 10 minutos prendia-se com as escolhas alimentares e a higiene dos alimentos, senti-me muito feliz por ver a minha proposta de texto do guião passada para crioulo.

Por esse tempo, comecei a questionar os quadros dos diferentes ministérios acerca de possíveis candidatos para o cargo de secretário coordenador do Conselho, indicaram-me uma jurista que era mulher do chefe de Estado-Maior da Armada e uma socióloga que vinha da Sorbonne (no entanto, fizeram-me o reparo que tinha sido companheira de um altíssimo dirigente que caíra em desgraça ao tempo do chamado golpe de Paulo Correia, de 1985, talvez o presidente Nino não apreciasse muito ver a dita senhora em tais funções…).

Prometera em 1990 trazer o Cherno Suane para Portugal, o seu processo seguia de vento em poupa na embaixada de Portugal, ele viria em Fevereiro de 1992, nacionalizou-se português e ficou como grande deficiente das Forças Armadas. Continuava os contactos com várias agências das Nações Unidas, organizações não-governamentais, todos me asseguravam que eu não alimentasse grandes esperanças nos apoios governamentais para o meu projeto, aliás essa tal defesa do consumidor iria colidir com interesses instalados. E as notícias que me chegavam de outros projetos eram francamente desanimadoras. Dizia-se à boca cheia que os soviéticos se tinham retirado do empreendimento da central elétrica porque as autoridades guineenses não honravam os seus compromissos, o Banco Mundial recusava-se a mandar mais um dólar pois não havia qualquer empenhamento na redução da dívida externa, que era escandalosa ao tempo.

O dia-a-dia era absorvente e os serões, com o trabalho trazido de Lisboa, atenuavam as saudades, a Joana estava com 20 anos e a encetar, com sucesso, o seu curso de Filosofia, a Locas, com 15 anos, com grandes problemas de entendimento e aproveitamento na área das Ciências.

Preparei os guiões para os próximos 6 programas televisivos, estava encantado por redescobrir o prazer em escrever para a televisão, dela vivia arredado há 11 anos, pois fora afastado da RTP em 1980. O adido para a cooperação da embaixada de Portugal, Domingos Machado, apoiava as minhas diligências para o reforço do projeto da defesa do consumidor. Com o Ministério da Educação pensou-se num curso destinado a professores sobre educação do consumidor, seriam módulos que eu iria organizar para sessões a realizar em Bissau, Bafatá e Bula. Nunca esqueci a reunião com a Diretora-Geral de Educação (que era esposa do ministro Mário Cabral), recebeu-me com os óculos presos com fita gomada, vendo-me o olhar pasmado explicou-me que não havia nenhum oculista em Bissau, estava à espera que uma pessoa amiga viesse até Lisboa.

À porta da Pensão Berta assisti a uma discussão acesa entre partidários do movimento de Bafatá e da Frente Democrática, novidade tão nova não podia haver na Guiné. Ao tempo, o grupo de críticos do PAIGC exprimia-se publicamente nos jornais. E por essa época, junto de um artista que trabalhava batik, de nome Dinis, encomendei para a Joana três peças em batik para aplicar num biombo de bambu.

Novembro caminha para o fim, já existe um plano para as obras das instalações onde funcionará o Conselho, o ministro aprovara uma minuta para o despacho presidencial, parecia ter encontrado um conjunto de quadros dos ministérios com vontade de ser atrelarem às atividades de defesa do consumidor, à cautela preparei um curso intensivo de 3 dias para haver compreensão dos diferentes direitos, dos aspetos legislativos básicos e do que poderiam ser ações eficazes de informação e a preparação de professores numa ótica de apreciação das necessidades básicas do povo guineense. Reencontrei Benício Costa, agora secretário-geral da Assembleia Nacional Popular, fora um aluno exemplar da Cristina até 1973, ano em que fugiu para se encontrar com o PAIGC em Conacri. Deu-me a grata notícia de que tinha estabelecido contato com amigos em Bolama para me dar a pernoita no fim de semana que eu pretendia lá passar.

Entretanto, inclinava-me para a candidatura da secretária coordenadora da socióloga, sentia-a verdadeiramente interessada, Cherno Suane andava entusiasmado com a vinda para Portugal, informava-me cheio de orgulho que iria trabalhar para a construção civil no Algarve, tinha informações que era uma terra com calor, até lembrava a Guiné.

No início de Dezembro, a convite do adido para a cooperação, visitei o complexo hortofrutícola do Quebo, o programa agrícola onde a cooperação portuguesa mais investia. Durante o almoço descobri que os professores de agronomia que ali trabalhavam pertenciam à Junta de Investigações Científicas do Ultramar, inevitavelmente falou-se de Ruy Cinatti e Teixeira da Mota. No regresso, felizmente perto de Bambadinca a viatura do adido para a cooperação pifou, quem veio salvar a situação foi um dos mecânicos que trabalhavam para o Fodé Dahaba. Mas o mais empolgante foi viajar por aquela estrada nova que passava perto de Mato de Cão, havia grandes mudanças, toda aquela região estava povoada, ainda saí da viatura para ver se chegava ao embarcadouro onde esperava as embarcações militares e civis, mas o tarrafo era enorme, limitei-me ao rumorejar do Geba, assim curti saudades.

Era um mercado cheio de vida, lá dentro e cá fora. Hoje é um escombro, nunca se redimiu dos incêndios que o assolaram no conflito político-militar de 1998-1999

É um dos locais mais charmosos de Bissau, em Novembro de 2010 ali voltei a cortar o cabelo. Tenho a certeza que não há barbearia mais portuguesa naquele ponto de África, ainda por cima dali se vê o Bissau Velho irreconhecível.
Fotos ©: Mário Beja Santos. Direitos reservados

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
São os derradeiros episódios em Bambadinca, ou quase. Porque umas boas décadas depois Cherno Suane encarregou-se de me revelar as suas recordações destes últimos tempos da minha comissão, por portas e travessas meteu férias e veio ter comigo a Bissau, que eu não esquecesse que era guarda-costas para toda a vida, como veio a acontecer. Contei a uma fascinada Annette a visita que ele me fez na primeira operação à L4, no Hospital de Santo António dos Capuchos. Apareceu-me com três garrafas de 1,5 L de água e aquilo que me pareceu um cacho de bananas, e quando protestei logo comentou que a água sempre faz falta e que a banana engana a fome, eu estava mesmo com aspecto de que andava a passar fominha, talvez exigências da operação, a banana tudo remedeia. Mas voltando àqueles acontecimentos, diluiu-se aquele primeiro choque da chegada do meu substituto e do protesto da tropa, foi no fundo a última manifestação a que assisti dos graves problemas raciais que não iludiam que a apregoada unidade Guiné-Cabo Verde não passava de um expediente de ocasião. Annette lá vai organizando metodicamente o final da comissão mas já por duas vezes perguntou a Paulo o depois, o que aconteceu depois, aquelas amizades inquebrantáveis, aquele fascínio pela Guiné era impossível extinguir-se. Paulo, meio a sorrir, perguntou-lhe se ela queria exercer o papel de Sherazade, fazer umas mil e uma noites de um afeto interminável e ela prontamente respondeu que se há amores para toda a vida eles merecem ser registados.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon adorée infiniment, de posse do último alinhamento que fizeste para aqueles últimos tempos de Bambadinca, imagina tu que me ocorreram, inopinadamente, imagens dolorosas da derradeira visita que fiz àquele local onde vivi em permanência de novembro de 1969 a agosto de 1970, o aquartelamento, incluindo a capela, a escola, a mãe de água, a residência do administrador, a messe e o refeitório dos soldados, a rampa para o rio, o edifício dos CTT onde até conseguia telefonar para Lisboa, o estanco do Rendeiro, o estanco do Zé Maria Tavares, onde se realizou o meu almoço de despedida com os meus soldados na véspera de partir para Bissau. Imagens dolorosas, explico porquê. Não vinha à espera de encontrar as instalações cuidadas que tinham sido as dos oficiais e sargentos, mas era um equipamento tão funcional que para mim era inimaginável encontrá-lo em derrocada, ainda por cima estava ocupado por uma unidade militar. Houve um coronel que fez questão de me acompanhar na visita, penso que este senhor a certa altura julgou que eu ia ter um enfarte, foi crescendo uma lancinante crise de choro, soltaram-se impropérios, uns quase uivos ao presenciar aquela inusitada degradação de que trouxe fotografias que te enviei, casas de banho destruídas, canalizações roubadas, a messe e a cozinha em estado escalavrado, toda a ira se avermelhou de cólera no meu rosto, era inacreditável ter-se votado ao abandalhamento um espaço que era aprazível, quartos dignos, boas salas e a comodidade higiénica que dava aquela casa-de-banho. Era uma memória um tanto diacrónica, eu estava a rever aquelas imagens de destruição e a recordar as instalações em que vivi, o quanto suspirava chegar do fornecimento de munições a Taibatá e Demba Taco e ter este aconchego à minha espera, ou do regresso de uma coluna ao Xitole, e depois de termos levado à arrecadação os cunhetes das munições poder limpar a pele e vestir roupa lavada.

E a memória ainda foi mais longe, naquele fim de julho, quando regressei de algures a Bambadinca e alguém me anunciou que chegara o substituto e qual o meu espanto quando encontrei no quarto um jovial cabo-verdiano que não deve ter percebido muito bem a minha inquietação, seguiram-se aqueles momentos que já descrevi, a gente guineense em fúria, propagara-se como rastilho a notícia de quem me vinha substituir, depois de mudar de roupa desci a rampa do quartel e fui com o Nelson Wahnon Reis até à loja do Rendeiro, ali ficámos a bebericar um uísque e a formular as primeiras perguntas e a receber com avidez as primeiras respostas. Era um homem de formação europeia, quis saber quem iria comandar e eu fiz-lhe o gosto, não regateando que iria ter pela frente homens destemidos, a primeira água do valor militar. Tal como eu, tinha estudos interrompidos, quis depois saber o tipo de atividades que nos estavam destinadas, ouviu atentamente os tais destacamentos que havia no Cuor, os aquartelamentos do Xitole e do Xime e Mansambo, desfiei o nome das tabancas em autodefesa, as idas a locais que davam pelo nome de Samba Juli ou Sinchã Mamajã ou Saré Adè, regulados como o Cossé ou Badora, havia também as emboscadas no Bambadincazinho, as noites na ponte do rio Undunduma e as vigilâncias nos Nhabijões e, claro está, de vez em quando uma operação dentro deste vasto setor.

Ouvia-me atentamente, com leveza e discrição levantei o véu dos problemas raciais e ele respondeu com gentileza: “Gostaria muito de ser bem recebido, vê se me podes ajudar junto do pelotão, procurarei fazer o meu melhor, sabendo que há desconfiança da minha origem. Tenho que aceitar a decisão de me terem posto aqui. O que não tem remédio, remediado está”. Seguiu-se mais um uísque, era para desejarmos as maiores felicidades um ao outro. Irei acompanhar nos primeiros meses da nossa separação a vida daquela minha gente. Foram para Fá, não era propriamente um merecido descanso, ali ao lado formavam-se fornadas de Comandos africanos, havia que lhes prestar segurança. Escrevi várias vezes ao Nelson, fez-me a vontade de um pedido especial, que festejasse o Natal, foi cumpridor, enviou mesmo fotografia, enviei-te com o último maço de documentos. Conseguiu-se quebrar naquela última semana de sobreposição o pior das reticências dos soldados, pelas informações colhidas acabaram por se dar bem embora em março de 1971 por razões que nunca alguém me explicou, o Nelson partiu de Fá, com paradeiro incerto.

Adorada Annette, segue também uma folha com uma visita que ocorreu, eu penso que a 24 ou 25 de julho, apareceram em Bambadinca deputados da Assembleia Nacional, quando entrei no bar estava ali sentado e com um copo na mão José Pedro Pinto Leite que eu tinha conhecido nas minhas andanças da Juventude Universitária Católica. A sala completamente vazia, pediu-me para eu me sentar e responder a algumas questões. Com frontalidade, disse-me que queria absoluta franqueza, o governador dera-lhe conta da gravidade da situação, pedia o meu ponto de vista sobre a guerra em curso, falei-lhe do que tinha vivido, lembro-me que até quis saber se havia por ali regiões libertadas, pedi licença e fui buscar vários mapas, mostrei-lhe em concreto onde vivia a população e atuavam as milícias e a tropa da PAIGC na região de Madina e Belel, bem como a partir da mata do Poidom e descendo o Corubal era impensável desalojar civis e guerrilheiros daqueles pontos para nós quase inatingíveis, uma coisa era chegar àqueles abarrancamentos e deitar-lhes fogo, outra coisa ali estacionar, esta era a lógica da guerrilha; e o que me parecia mais grave é que se via perfeitamente que aqueles guerrilheiros não quebravam e que tinham cada vez mais armamento sofisticado.

Agradeceu-me as informações, por duas vezes me deu a saber que iria informar o Presidente do Conselho da gravidade de tudo quanto lhe fora dado ver. Dias depois, veio a notícia da sua morte, seguia num helicóptero que foi tombado por um tornado sobre o rio Mansoa, morreu ele e outros deputados. E tens aí a narrativa de tudo quanto aconteceu nessa última semana, sempre ao lado do Nelson Reis houve um pouco de tudo em patrulhamentos, visitas a tabancas, vigilâncias. Do novo comandante de Bambadinca recebi a anuência de louvar alguns dos meus bravos, guardo os louvores que me saíram do punho e que foram dados a Benjamim Lopes da Costa, Domingos da Silva, Queta Baldé, Manuel da Costa Victória, Quebá Sissé, Cibo Indjai, António da Silva Queirós, minha adorada, enviei-os também num maço de documentos, para meu orgulho impante vieram todos a ser dados por oficiais-generais.

Rememorando todos estes aspetos da sobreposição, fiquei felicíssimo, como disse atrás, por se ter quebrado tão rapidamente o gelo entre os soldados e o futuro comandante, fiz todo o possível durante essa semana em que andámos todos juntos em apresentar um por um as praças e os sargentos ao Nelson. E assim chegou aquela noite da inevitável despedida, já me foi entregue uma guia de marcha, no princípio da tarde do dia seguinte tomarei a lancha Alfange no Xime. Enternecido, ouvirei cumprimentos de despedida e numa curta cerimónia o segundo comandante leu uma proposta de louvor que seguia para Bissau, ouvi tudo de cabeça baixa e as lágrimas a dançarem-me nos olhos. Tens aí a fotografia daquele jovem, Mamadu Soncó, filho do antigo guia e picador Quebá Soncó, há semanas que montou tenda no nosso quarto-camarata, estranhei não ter havido nenhuma queixa dos outros alferes, creio que eles se aperceberam que o jovem estava plenamente convencido que eu o traria para Lisboa, o Mamadu já conversava com toda a gente, era um dado adquirido que o nosso alfero cumpria as suas obrigações com a família Soncó, a que se vinculara.

Na derradeira manhã em Bambadinca passei o termo de responsabilidade para o Nelson, assinámos a papelada necessária, o mesmo fiz na secretaria. E na hora aprazada a coluna saiu de Bambadinca, já me despedira das famílias dos meus soldados, daquela gentil professora primária que tanto apreciava conversar comigo sobre o passado recente da Guiné, ela fora professora no Cuor, quando me dirijo para a coluna vejo o insólito de levar a bandeira portuguesa hasteada, toda a gente fardada num brinco, tudo solicitude, vieram ao quarto buscar as caixas e as malas que transportarei comigo. Haverá muitos acenos pelo caminho, os que estão na ponte do rio Undunduma exigem abraços, o régulo de Amedalai, toda a milícia, um ror de população, veio cumprimentar-me. O mesmo acontecerá no Xime, estou emocionalmente dividido, a guerra acabou, está a entrar por uma nesga da minha alma a saudade inextinguível, despeço-me de todos, noto que o meu guarda-costas desapareceu e explicam-me que ele está em grande sofrimento, o seu maior amigo vai desaparecer da sua vida, nós, os africanos, nosso alfero, não quero que nos vejam a sofrer e muito menos a chorar. Tomo o meu lugar na Alfange, é o último aceno para terra, a lancha começa a viagem, estou terrivelmente só, espacialmente perdido entre aquele passado turbilhonante, a inquietação do presente, os sonhos ardentes do futuro.

Minha adorada, vou agora contar-te um encontro que tive com o Cherno Suane aqui há uns dias atrás, perto do local onde ele trabalha, almoçámos na Pérola de São Paulo, o Cherno fez-me uma surpresa de ter passado a escrito aqueles últimos tempos em Bambadinca, espero que fiques maravilhada com as recordações deste homem que eu amo como um irmão.

Parto dentro de três dias, estou ansioso por saber o que o destino nos reserva, sem qualquer ponta de exagero acho que merecemos que esta oportunidade de trabalhar em Bruxelas se concretize, a despeito da multitude de problemas que tenho para resolver em Lisboa, só que tu, e a felicidade dos meus filhos, se sobrepõem a estes pequenos obstáculos. Vou telefonar esta noite, para te dizer que sonho viver contigo e, quando tu quiseres, casarmos. Un quilomètre de bisous, Paulo.


Aqui houve o bar da messe de oficiais, estamos em Bambadinca
Aqui houve uma cozinha equipada
Aqui funcionou no espaço da cozinha a zona dos fogões
Imagem do corredor que ligava a entrada para os quartos e que se prolongava até à messe dos oficiais
Aqui houve chuveiros e uma casa-de-banho perfeitamente equipada
Foi neste lugar, no início de agosto de 1970, no estanco do Zé Maria Tavares, que ofereci o almoço de despedida aos bravos do pelotão
Rua Oliveira Salazar. Bilhete Postal, Coleção "Guiné Portuguesa, 135". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte, SARL)
Outra imagem do Bissau Velho, quase na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22712: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória