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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7797: Notas de leitura (203) Estudos Sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
A Tina Kramer, que em tempos pediu a ajuda do blogue por razões do seu doutoramento (em preparação) em que vai abordar as memórias dos ex-combatentes dos dois lados, já chegou a Bissau e procede às primeiras investigações. O seu intérprete é o Abudu Soncó.
A Tina promete escrever mais tarde no blogue as suas impressões de viagem. Oxalá que seja bem sucedida e traga dados inéditos sobre as memórias que ali coligimos no nosso blogue.
Junto fotografias que tirei de um daqueles livros horríveis em que se dissecam ratos à procura de tumores, enquanto folheava o livro na Feira da Ladra até me senti agoniado. Depois veio a recompensa, estas pequenas preciosidades que junto.
O livro para o blogue.
Cada vez que vejo estas imagens muito belas de solidariedade como as da tabanca de Matosinhos, penso sempre que podíamos promover a venda destes livros para fazer mais filantropia com quem tanto precisa. Talvez esta sugestão pegue: às sextas-feiras à noite fazermos leilões de dádivas a pensar num objectivo concreto.

Um abraço do
Mário


O Bairro do Pilum, com Bissau ao fundo, há mais de 60 anos

Beja Santos

O comandante Sarmento Rodrigues é o governador que introduz a viragem naquela Guiné praticamente desconhecida na sede do Império. Não só transforma Bissau numa cidade colonial moderna como imprime a nível do conhecimento transformações que, sem exagero, foram inacreditáveis para o espírito da época. Basta pensar no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nas infra-estruturas abarcando a meteorologia, o combate à doença do sono, o hospital civil, as múltiplas missões científicas, desde as geo-hidrográficas como as zoológicas. Tudo está identificado, António Duarte Silva no seu importante estudo intitulado “A Invenção e a Construção da Guiné-Bissau” documenta inequivocamente esta governação modelar onde se procurou subtrair a Guiné e a sua história do tratamento folclórico e exótico, repondo-a no eixo da civilização.

Foi sobretudo no período do conflito político-militar de 1998-1999 que se perdeu parte significativa do acervo documental que é património do país, tal foi a barbárie da presença senegalesa no INEP (e não só). Várias instituições têm procurado restaurar parte dos danos, pude assistir a uma exposição denominada “Raízes” e onde se mostravam fotografias que antes de intervenção estavam seriamente danificadas e que faziam parte do arquivo fotográfico do INEP.

Dentre os estudos científicos deste período áureo, desencantei na Feira da Ladra um livro que interessa aos especialistas em medicina veterinária “Estudos sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa”, é seu autor um importante cientista da época João Tendeiro. Como é evidente, não vamos aqui analisar o tifo murino, uma doença infecto-contagiosa dos ratos susceptível de atingir o homem. Na época, esta questão de saúde pública era preocupante atendendo à falta de higiene e saneamento básico. O que acontece é que no interior da obra, para além dos cadernos revelando corpos ao microscópio, para além dos gráficos e imagens de ratos infectados, o autor exibe fotografias de inegável interesse como os arredores de Bissau (caso de Intim e Pilum de Baixo), a fotografia do Laboratório de Veterinária e Indústria Animal bem como a Granja Agrícola e Pecuária de Pessubé, na época a vanguarda experimental no domínio agrícola, foi aqui que Amílcar Cabral começou o seu trabalho quando chegou à Guiné, em 1952.

Mostram-se as fotografias que devem ter sido tiradas na época da missão, na segunda metade dos anos 40. O Pilum de Baixo (ou Cupelum) estava fora de Bissau, a Granja tem um aspecto familiar, parece que ao tempo não havia grandes problemas com a densidade demográfica…

Por se tratar de uma pequena raridade, fica a pertencer ao blogue.

Arredores de Bissau – Pilum de Cima

Caminho para o Pilum. Ao fundo, Bissau

Bairro indígena da Granja Pecuária de Pessubé
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Nota de CV:

Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Este ensaio rigoroso e muito bem elaborado de António Duarte Silva será posteriormente reelaborado por este autor e plasmado no livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", uma obra admirável que ainda é possível adquirir.

Traça a conceção da Guiné como colónia-modelo, na visão de Marcello Caetano, refere as cautelas do poder português face à atmosfera anticolonial não só à escala mundial como à volta da região guineense e disseca a fundação do PAI, o massacre de 3 de agosto de 1959 e as decisões da reunião de 19 de setembro desse ano, em Bissau.

Pela sua coesão e objetividade, é um documento de referência, até pelas dúvidas que levanta quanto à reunião de 1956.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC

Beja Santos

Na publicação Cadernos de Estudos Africanos, n.º 9/10, dedicada às Memórias Coloniais, o historiador António E. Duarte Silva, de quem temos feito várias referências aos seus livros, designadamente ao mais recente, publicação da Almedina, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, 2011, que ainda é possível encontrar no mercado, publicou um artigo cujas ideias centrais me parece da maior utilidade aqui reproduzir. É o que se segue.

O autor chama a atenção para a escolha da Guiné como primeiro campo de ensaio da política de Marcello Caetano enquanto Ministro das Colónias, baseada tal política numa progressiva autonomia administrativa com desenvolvimento económico e social e com olhar atento à conjuntura internacional do pós-guerra e ao sentimento anticolonialista. Marcello pretendia uma equipa que saneasse a política colonial do “ambiente de depressão e intriga”. A escolha recaiu em Sarmento Rodrigues, a sua governação ficará inesquecível: reforço da administração colonial, construção de uma rede de infraestruturas, lançamento de uma investigação cultural e científica que ainda hoje é referência. O seu sucessor será Raimundo Serrão, traz novas instruções do novo Ministro, Teófilo Duarte, as preocupações agora centram-se na economia, sobretudo na cultura do arroz e em produtos de exportação. O novo governador não tem a aura do anterior, inaugurou muito e interessou-se verdadeiramente pelo incremento agrícola.

A colónia reposicionava-se com a mudança da capital em 1941. O Subsecretário de Estado Raul Ventura percorre a Província em 1953, visita inclusivamente a Granja do Pessubé “na companhia dos Engenheiros Agrónomos Nobre da Veiga e Amílcar Cabral”. O novo Governador será o Capitão-de-Fragata Diogo Mello e Alvim, então Governador da Zambézia. É Ministro das Colónias Sarmento Rodrigues. Mello e Alvim escreve ao Ministro que a Guiné estava muito diferente daquela que Sarmento Rodrigues deixara em 1948: “todos mandavam e ninguém se entendia. A pouco e pouco, tenho chamado os comandos ao Governo que posso assegurar-lhe que, presentemente, já voltou a haver mais um bocadinho de ordem e tudo; nas despesas, na disciplina e até, perdoe-me o desabafo, na justiça. Os indígenas vêm em mim um continuador da sua obra".


Rafael Barbosa e Amílcar Cabral na Granja de Pessubé, 1952.
Imagem retirada de Casa Comum, Fundação Mário Soares, com a devida vénia.

A PIDE demora a instalar-se, a sua rede só será completada em junho de 1958, mediante a criação de cinco postos em S. Domingos, Catió, Bafatá, Farim e Gabu, todos dependentes da sede em Bissau. É à Polícia de Segurança Pública que devemos as primeiras notas sobre movimentações subversivas em Bissau. A PSP, com data de 3 de maio de 1955, registou as reuniões dirigidas por Amílcar Cabral visando a constituição de uma associação desportiva e recreativa. Os estatutos da associação não foram aprovados e a PSP registava que “o engenheiro Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de atividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade dos direitos dos nativos". Há igualmente referências de várias fontes que terá sido criado em Bissau um Movimento para a Independência Nacional da Guiné, mas não há qualquer prova da atividade nacionalista deste grupo.

Há uma greve dos descarregadores africanos em 6 de março de 1956, a polícia não utiliza a força, Mello e Alvim foi à esquadra libertar os detidos. Em setembro desse ano, Amílcar Cabral chega a Bissau para visitar a família. Chega o momento de referir a reunião de 19 de setembro de 1956 em que Amílcar Cabral interveio num círculo de amigos para propor a constituição de um partido político com o objetivo de alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde, o Partido Africano da Independência (PAI).

Há bastante nevoeiro sobre esta reunião: não há qualquer documento comprovativo, há testemunhos postos em causa, não há sequer consenso quanto ao número de fundadores nem quanto ao alcance efetivo da reunião, para além da intenção de formar um partido político. Para o autor, esta reunião de 19 de setembro e a intervenção de Amílcar Cabral terão sido apenas o momento do lançamento do PAIGC como ideia e organização nacionalista. Anos mais tarde, no seu trabalho de doutoramento, Julião Soares Sousa dirá que era totalmente impossível nesta data Amílcar Cabral estar em Bissau.

Em novembro de 1957, Amílcar Cabral e Viriato da Cruz convocaram a recente “diáspora parisiense” (Mário Pinto de Andrade, Guilherme Espírito Santo e Marcelino dos Santos) para uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas. Serão provados princípios e resoluções e fez-se o lançamento do MAC – Movimento Anti-Colonialista.

Em agosto de 1958, uma dezena de quadros forma em Bissau um Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Diz o autor que era um movimento nacionalista que se pretendia continuador da republicana “Liga Guineense” e defendia que a Guiné se deveria tornar num Estado Federado da República Portuguesa.

Nesse mesmo ano chega à Guiné a “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África”, chefiada por Silva Cunha, aproveito para lembrar ao leitor que se fez uma ampla recensão dos trabalhos desta missão. Silva Cunha não acreditava num perigo imediato de “efeitos de reação antiportuguesa”, mas podia “surgir, de um momento para o outro, em resultado de influências externas”, atendia naturalmente ao que se estava a passar na nova República da Guiné.

O Capitão-Tenente Peixoto Correia é designado Governador da Guiné em outubro de 1958, chegará a Bissau no final do ano. E o autor recorda que também em meados desse ano visitara a Guiné Armando de Castro, estava a preparar um estudo destinado ao Partido Comunista Português, escreveu que se desenvolvia entre os guinéus uma “resistência surda à exploração, e havia repressão policial, comprovada com a recente instalação da PIDE".

António Duarte Silva é dos historiadores que tem mais apurada investigação sobre o chamado Massacre do Pindjiguiti, tive oportunidade de lhe enviar o relatório confidencial do gerente do BNU da época, confirmou-me que as informações batem certo com os elementos de que dispõe e que constam dos seus trabalhos. As consequências serão múltiplas, os acontecimentos serão aproveitados pelo Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas. Logo em 7 de agosto, em carta a Ruth Lara, escrita em Kano (Nigéria), Amílcar Cabral informava-a, de modo telegráfico, que na Guiné houvera “há dias 7 mortos e 5 feridos”. Em carta de 24 de setembro, resume aos seus amigos do MAC a sua ida a Bissau e dá mais pormenores sobre o balanço de mortos, teriam sido 24, mais 35 feridos, alguns muito graves.

Durante a sua estada de uma semana em Bissau, Amílcar Cabral realizara “a mais decisiva reunião” da história do PAIGC, nessa reunião de 19 de setembro o movimento nacionalista adotara várias medidas que se irão revelar estratégicas, tais como: evitar manifestações urbanas e deslocar a ação para o campo, mobilizando e organizando os camponeses; preparar-se o recurso à luta armada; transferir parte da direção para o exterior, indo Amílcar Cabral instalar-se em Conacri.

De acordo com o autor, três documentos testemunham esta importante reunião: um relatório confidencial da autoria de Cabral onde são compulsadas as medidas tomadas e as conclusões; a “Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde”, também assinada por Amílcar Cabral; uma expressiva carta enviada de Conacri, em 16 de junho de 1960, assinada por Cabral onde conclui com incitamentos e pedidos de notícias, identificando-se como Secretário-Geral do PAI. Como diz o autor, o PAI só vai afirmar-se publicamente aquando das intervenções dos representantes do MAC na II Conferência Pan-Africana, realizada em Tunes, em fins de janeiro de 1960. Numa outra conferência realizada em Dacar, em outubro de 1960, o PAI altera definitivamente a sigla para PAIGC.

Perto da conclusão, o autor observa que o massacre do Pindjiguiti se tinha convertido no símbolo da libertação na Guiné-Bissau. O “3 de agosto” passou mesmo a ser o dia da solidariedade internacional com os povos das colónias portuguesas e o dia da proclamação da ação direta, na Guiné, em 1961. A subversão não veio do exterior da Guiné nem foi desencadeada por associações influenciadas pelo Islão. Começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula.

No período subsequente, após as resoluções sobre a descolonização aprovadas pela ONU em dezembro de 1960, os movimentos nacionalistas privilegiarão a defesa da nova legalidade internacional. Esta linha predominará na Guiné-Bissau até aos princípios de 1963, tudo mudará com a luta armada. E assim conclui António Duarte Silva: “O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcançar – libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição – falhou, está em ruínas, desapareceu. Se a libertação viera do campo, Bissau, a cidade, tudo devorou.”
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20298: Notas de leitura (1232): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (30) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Temos o BCAV 490 em Farim, o bardo dá-nos um retrato com alguma pompa e circunstância. Remete-nos a imaginação para um outro nível de preocupações, que Guiné é aquela de que os historiadores tão pouco falam, dito com brusquidão parece que aquele conflito teve um ator de alto coturno chamado António de Spínola, o que aconteceu antes é traçado como história melancólica ou tempo perdido. O triste disto tudo é que no momento presente escreve-se sobre a guerra da Guiné e continua-se a não dar o corpo ao manifesto, isto é, ninguém quer fazer frente às toneladas de papel em arquivo relacionadas com a documentação que saiu de Bissau para os Ministérios do Ultramar e da Defesa. E o que se continua a escrever é baldear o mais do mesmo, a bibliografia conhecida tratada à luz de um olhar pretensamente inovador, ora abóbora!

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (30)

Beja Santos

“A Companhia do Comando
faz um grande servição.
Alferes Pires, nas Transmissões,
orienta todo o Batalhão.

E formada por exploradores
e por muitos electricistas,
temos alguns especialistas,
uns, deles, os estofadores.
Também temos os sapadores
que andam sempre actuando.
As Transmissões vão falando
para qualquer local
e não há outra que igual
a Companhia do Comando.

Temos muito escriturário,
fazendo participações;
nas armas e nas munições
o Alfredo e o Mário.
O Furriel Januário
às armas faz inspecção.
Temos o Lopes e o Ganhão,
Grifo, Caramelo, Ferreira,
Pécurto, Dimas e Oliveira,
fazem grande servição.

Fazendo serviço num pelotão
p’ra Guidage Filipe abalou
e seguidamente alinhou.
Pombo noutra ocasião
pois nesta povoação
comia-se muitas rações
travavam-se comunicações
com o Jorge e o Matias
e orientando as companhias
Alferes Pires nas Transmissões.

Nuno e Horácio, cifradores,
Centro de mensagens, o Armando,
Sargento Pedro vão trabalhando,
com os seus rádio-montadores,
os estafetas transportadores
pertencem à mesma secção.
Temos o nosso capitão:
também leva tudo avante.
E o nosso Comandante,
orienta todo o Batalhão.”

********************

O bardo apresenta-nos o Comando em Farim, e ficamos a pensar qual o delineamento estratégico que lhe está subjacente. A história da guerra da Guiné é uma nebulosa neste período. Quem sobre ela escreve, do Brigadeiro Louro de Sousa ao General Arnaldo Schulz foge como gato das brasas, vai tartamudeando boletins das Forças Armadas, como se não houvesse diretivas, orientações, decisões tomadas sob ordenamentos de população, ação psicossocial, enfim, os investigadores ainda não meteram as mãos na massa nos arquivos dos Ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, seguramente que aqueles jornais oficiais informavam os seus superiores de como pretendiam travar a guerrilha e dar esperança às populações que confiavam na bandeira portuguesa, neste tumultuoso período em que se separavam as águas e o PAIGC procurava afirmar-se designadamente na região Sul e no Morés e redondezas, sem prejuízo de abrir corredores do Senegal e da Guiné Conacri para as suas bases. O que se publicou sobre este período é escasso e não está sistematizado.

Procurando saber como Schulz procurou contra-atacar na ação psicológica, encontrou-se na Revista Africana, N.º 10 de Março de 1992, do Centro de Estudos Africanos da Universidade Portucalense, um elucidativo artigo de José Abílio Lomba Martins, esteve à frente de tais serviços. Começa por nos dizer que em 1965, o Gabinete Militar do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, por determinação de Schulz, decidiu elaborar uma diretiva de ação psicológica adequada ao quadro de subversão em curso, foi designada uma equipa de oficiais, elaborou-se um estudo sobre o meio humano da Guiné, uma diretiva e um plano de ação psicológica, um serviço de radiodifusão e imprensa e propuseram-se diligências quanto ao envio de ordens às unidades territoriais e especiais e recomendações às autoridades civis. Fez-se o estudo do meio humano, o posicionamento das etnias, e em função deste posicionamento elaborou-se um plano de ação psicológica com motivações, slogans e materiais a produzir. Criaram-se programas radiofónicos diários de horário intenso, o Programa das Forças Armadas emitia em crioulo, francês, fula, mandinga, balanta e, eventualmente, noutras línguas. Havia igualmente a emissão de comunicados de informação pública, visitantes, jornalistas e cineastas eram convidados a visitar a Guiné. Folhetos e cartazes foram difundidos profusamente, do tipo “Gente do mato apresenta-se às autoridades, só vive no mato gente enganada, a gente que pensa direito vive na Tabanca, no mato há fome, doença e morte, na Tabanca há alegria, há comida e há visita de médico, vem ter com a tropa”.

Lomba Martins avança informações de grande importância:
“A rarefacção de funcionários civis no Interior era compensada pela existência de uma quantidade apreciável de militares com especialidades como medicina, enfermagem, mecânica, serviço religioso e de oficiais e sargentos que ministravam cuidados médicos, educação escolar e davam apoio social e económico às populações mais carenciadas.
Quer o Ministério do Ultramar quer o Ministério da Defesa concediam à Província meios financeiros importantes, equipamentos, navios e materiais que eram utilizados no desenvolvimento agrícola, no apoio sanitário, na acção social e nos transportes aéreos, rodoviários e fluviais. As estradas eram construídas por Companhias de Engenharia Militar ou por empresas de construção civil, com o apoio e segurança imediata de Companhias de quadrícula”.

Diz o autor que as milícias normais e especiais atingiram 29 Companhias com a missão de colaborar na defesa e proteção das populações e que desde o início os portugueses tiveram sempre controlo sobre a ilha de Bissau, Mansoa e Teixeira Pinto, sobre Bolama e o arquipélago dos Bijagós, sobre o Gabu e Bafatá, o que correspondia, de grosso modo, aos “chãos” dos Papéis, Manjacos, Bijagós, Mandingas e Fulas. E esclarece, ainda: “Os portugueses reforçaram os seus aquartelamentos e estabeleceram uma linha importante de tabancas em autodefesa na região de Bafatá e Gabu”. Dá-nos elementos detalhados sobre o que foi o desenvolvimento económico neste período, refere as prospeções petrolíferas e as prioridades nas ações de fomento desde a metalomecânica, passando pelos curtumes e congelação até aos têxteis e tabaco, entre outros. É igualmente minucioso sobre os serviços de Saúde e o combate às doenças tropicais.

Não se pode igualmente subestimar o que apareceu escrito em obras de propaganda, e aqui se destaca um livro do jornalista e escritor Amândio César intitulado “Em ‘Chão Papel’ na terra da Guiné”, publicado pela Agência-Geral do Ultramar em 1967. Em 1965, Amândio César fora à Guiné e fizera uma reportagem sobre o estado da guerra, mais adiante falaremos dessa obra. Neste segundo livro, o escritor espraia-se pelas realizações do primeiro ano da governação de Schulz: feira do livro em Bissau, a atividade escolar da Guiné, com realce para o Liceu Honório Pereira Barreto, o trabalho do Movimento Nacional Feminino na Guiné, refere o ainda despique entre o PAIGC e a FLING, mas o desenvolvimento de Bissau é onde ele é mais entusiasmante, alude as alterações que a cidade sofreu de um ano para o outro, o alargamento do mercado de Bandim, o fornecimento de eletricidade aos bairros “Chão de Papel” e “Alto Crim”, a valorização do campo de jogos desportivos Estádio Sarmento Rodrigues, estava novo em folha o Bairro da Ajuda que iria albergar, até ao fim do ano de 1966, 3 mil pessoas.

Amândio César
Confiava-se, ao tempo, ainda ser possível a ressurreição de Bolama, Schulz terá animado a criação de uma cooperativa de pesca e uma Escola de Magistério, destinada a criar professores de postos escolares. Bolama tinha um Centro de Instrução Militar onde se formavam as tropas provinciais, o autor diz mesmo que Bolama estava destinada a ser o centro de repouso das Forças Armadas, dadas as qualidades da ilha em clima, boa praia e infraestruturas e caráter turístico. Vai desvelando outras iniciativas sob a égide de Arnado Schulz: a nova mesquita de Bissau, a luta contra o analfabetismo, as preocupações com o desenvolvimento rural e daí as suas longas conversas na Granja do Pessubé sobre as potencialidades das culturas, do gado, da borracha; refere o artesanato, as obras do Porto de Bissau, a pavimentação da estrada Mansoa – Mansabá, a construção da Ponte-Cais de Bambadinca, a melhoria da rede de comunicações internas e externas, conclui a sua extensa digressão esperançado de que aquele desenvolvimento era a melhor forma de descredibilizar Amílcar Cabral e o seu sonho nacionalista.
Proximamente voltaremos a Amândio César e ao seu modo de ver a guerra naqueles primeiros anos em que se demarcaram os campos, em que cada um dos contendores parecia ter condições de esmagar rapidamente o outro.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 25 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20275: Notas de leitura (1229): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (29) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 28 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20284: Notas de leitura (1231): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16552: Notas de leitura (885): Rescaldo de uma ida à Feira da Ladra, 17/9/2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,


Foi uma manhã em cheio, já nem falo de tralha avulsa como chávenas ou molduras, encontrei "Mar, Além Mar, Estudos e Ensaios" de Avelino Teixeira da Mota, publicados entre 1944 e 1947 e editados em 1972 pela junta de investigações do Ultramar, inclui trabalhos fundamentais deste grande mestre da historiografia guineense como é o caso da sua incontornável investigação sobre o descobrimento da Guiné.
V
erdadeira surpresa foi a brochura elaborada em 1969 sobre a Guiné alusiva ao Ano Internacional do Turismo Africano e onde se escreve, candidamente, que há excelentes oportunidades para investir na Guiné.
E continuamos a desfilar fotografias de uma determinada unidade militar que por ali andou entre 1959 e 1961, gozando as delícias da paz.

Um abraço do

Mário




Rescaldo de uma ida à Feira da Ladra, 17/9/2016

por Beja Santos


1969 foi o Ano Internacional do Turismo Africano e a Agência Geral do Ultramar produziu uma brochura alusiva, mostrando as atrações turísticas, comunicações, formalidades para a viagem, onde ficar, onde obter informações, não deixando de mencionar que a província tinha boas perspetivas para investimentos. Não resisto a mostrar-vos a praça Honório Barreto e um belo DS a introduzir um toque de vanguardismo; mais adiante temos o bar da Associação Comercial e Industrial de Bissau, projeto arquitetónico que foi muito acarinhado ao tempo e onde o pintor José Escada andou a trabalhar na decoração; e temos uma imagem da Praia das Escadinhas em Bubaque, seguramente estão ali militares e famílias a deliciar-se em águas tépidas.





Mais algumas fotografias referentes a uma unidade militar que andou pela Guiné entre 1959 e 1961. Impressiona a qualidade da fotografia, trata-se, como é óbvio, de imagens pacíficas, não se vislumbra mais do que curiosidade. Felizmente, as imagens têm datas e alguma explicação. Em 16 de Junho de 1960, temos uma gazela na granja, fica a incógnita se se tratará da Granja de Pessubé, onde trabalhou Amílcar Cabral de finais de 1952 a 1954. Nesse mesmo dia temos dois oficiais com poilões imponentes e escreve-se: “A. J. com o alferes Rui Cardoso junto de duas árvores tipo Guiné, perto da carreira de tiro nova”; estamos agora em Cacheu, a 2 de Fevereiro e diz a legenda que se experimenta remar numa canoa indígena junto ao cais fluvial de Cacheu; dias mais tarde, a 26 de Fevereiro, temos soldados brancos a piscarem à cana enquanto das mulheres indígenas passam por ali transportando garrafões de aguardente de cana; alguns dias antes, a 18, o fotógrafo está em Varela e regista um quadro pintado na sala de jantar do restaurante, menciona-se que a sala se encontra num alpendre género esplanada com largas vistas para o mar; e em 11 de Março temos a vista parcial do barco de guerra francês Le Bourguignon, ancorado no Pidjiquiti; e por último temos um jovem tenente a pôr a sua correspondência na caixa do correio. Subsistem dúvidas se este é o fotógrafo, é um jovem oficial que aparece em repetidas outras imagens, de um modo geral neutras e igualmente o jovem oficial guarda um ar tristonho, e veste um camuflado que, em rigor, não devia ter sido usado entre 1959 e 1961, na Guiné. Bom seria que alguém identificasse esta unidade militar, se bem que eu não escuse ir bater à porta do Arquivo Histórico-Militar.







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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16540: Notas de leitura (884): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 - Testemunho de Carlos de Matos Gomes (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Será porventura a mais recente das biografias de Amílcar Cabral, trabalho mais de ruminação, sem acompanhamento de factos novos. Está bem estruturado, tem uma descrição cronológica relativamente bem montada, cai constantemente na hagiografia, o que significa que o autor cuidou pouco do distanciamento, foge em permanência das questões fracturantes, caso predominante da unidade Guiné - Cabo Verde. Não cuidou de bibliografia recente, esquece trabalhos de Toby Green, Joshua Forrest, Carlos Cardoso ou António Duarte Silva.Talvez útil para alunos das universidades norte-americanas, não traz inspiração para investigações guineenses ou mesmo portuguesas.

Um abraço do
Mário



Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy

Mário Beja Santos

Será porventura a mais recente biografia de Amílcar Cabral, Peter Karibe Mendy é um gambiano filho de guineenses de Bissau, ganhou notoriedade com a sua tese de doutoramento A tradição da resistência na Guiné-Bissau, 1879-1959; é professor de História e de Estudos Africanos no Rhode Island College, Providence, esta biografia foi ditada pela Ohio University Press em 2019.

Há que deplorar não trazer nada de significativo relativamente aos trabalhos mais recentes de Patrick Chabal, Toby Green, Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. Tem-se a sensação de que o investigador leu muito o que já sobre Cabral se escreveu, ficou espartilhado por considerações hagiográficas que não têm o cuidado em depurar, usa pouco o contraditório e sente-se incapaz de nos dar uma observação refrescada sobre a atualidade do legado ideológico de Cabral. Reconheça-se, no entanto, que a biografia goza de uma estrutura bem organizada e acolhe os passos mais significativos da vida e do pensamento de Cabral.

Em Terra Natal, procura contextualizar a colónia da Guiné em que o líder do PAIGC nasceu, fala-nos da sua família, da ancestralidade cabo-verdiana e em Terra Ancestral insere a educação de Cabral em Cabo Verde, entre 1932 e 1945. Observa bem a atmosfera cabo-verdiana e não se esforça por fazer a distinção entre os aspetos radicalmente diferentes que separam duas formas de civilização e cultura, Guiné e Cabo Verde, e deixa no limbo o ressentimento multisecular dos guineenses face aos cabo-verdianos, que virá a ser exacerbado durante o período da governação de Spínola. Segue-se a preparação universitária do fundador do PAIGC em Portugal, a Mãe Pátria, continuamos sem novidades, e bem interessante seria que o autor tivesse invocado a obra de Dalila Mateus que ilumina como nenhuma outra a vida destes estudantes coloniais no pós-guerra do Estado Novo, as suas expetativas, laços de amizade, pois só assim se tornará compreensível a devoção de Cabral numa prática corrente de pan-africanismo com os líderes das outras colónias portuguesas.

E temos o regresso à Terra Natal, chega à Guiné em 1952, irá trabalhar na Granja de Pessubé, entrega-se devotadamente ao recenseamento agrícola, estabelece uma rede de amizades que preparará a ligação dos quadros cabo-verdiano e guineense que despontará formalmente em 1959. Como é sabido, dentro das diferentes desmontagens mitológicas, palavra de Julião Soares Sousa, este põe em causa o significado da reunião de 19 de setembro de 1956 que se tornará a mantra anos depois. O próprio Leopoldo Amado, em entrevistas feitas a dirigentes do PAIGC, a propósito da biografia de Aristides Pereira, encontrará incongruências e profundas hesitações entre aqueles que disseram ter estado no ato fundador do PAIGC em 1956. Como também faz parte da mitologia a expulsão de Amílcar Cabral da Guiné, ele regressou a Lisboa acompanhado da mulher, vinham profundamente doentes.

Peter Mendy dá-nos uma boa síntese da Lisboa da década de 1950 e a emergência provocada pelo desejo de libertação dos países inseridos em impérios coloniais. Cabral irá trabalhar para Angola e estará presente em agosto de 1959 na reunião determinante para a criação do PAI, embrião do PAIGC, de quem só se falará a partir dos anos 1960. Encetada a estratégia por ele delineada, fica um núcleo subversivo no interior da Guiné dirigido por Rafael Barbosa, Cabral parte para o exílio em Conacri, em condições precárias lança uma escola piloto e começa a obter apoios internacionais, o de maior realce é a preparação de jovens quadros na Academia Militar de Nanquim, serão estes que irão irromper em cena a partir do segundo semestre de 1962, o PAIGC procura responder de forma congruente às ações desenvolvidas pelo Movimento de Libertação da Guiné no ano anterior. Escolhe-se a região Sul para desencadear a subversão, a catequização e o ajuntamento de populações apoiantes da independência.

O autor, sem justificar as bases da sua afirmação, considera que as autoridades de Bissau estavam à espera de ações do tipo da UPA em Angola e que por isso começaram a disseminar forças militares pela extensa região fronteiriça, em rigor isso não é verdade, o contingente português ainda é muito pequeno, houve a noção elementar, logo no início da subversão, de que era necessário apoiar os núcleos populacionais que se temiam ser afetados, o êxito do PAIGC na região Sul decorreu da forma como foi bem recebida a subversão e como se isolaram povoações como Cacine, Catió ou Cufar, no Sul, ou Jabadá, no rio Geba. Quínara e Tombali, pela própria natureza do terreno, garantiram uma relativa segurança à presença das forças subversivas.

Quando se diz que Peter Mendy cai na armadilha da hagiografia basta ler a flagrante explicação que ele dá para a Operação Tridente, como se fosse um êxito absoluto do PAIGC. A ilha do Como, como é bem sabido, perdeu rapidamente a importância estratégica que a propaganda do PAIGC lhe atribuiu, encontraram-se outras posições no Sul muito mais influentes.

Chegamos ao Congresso de Cassacá e não se sabe por que carga de água é que aparece o nome de Inocêncio Kani, um dos futuros assassinos de Amílcar Cabral, acusado de ter vendido um motor, coisa que não aconteceu em 1964, mas sim em 1971.

Também a biografia nada traz de novo sobre o apoio cubano, as referências a Schulz é de um comandante-chefe que larga bombas de napalm e fósforo branco por toda a parte e que é obrigado a abandonar a colónia depois de um ataque perto de Bissalanca, onde o autor inventa a destruição de aviões e hangares, mais outra prova que não teve tempo ou interesse em ler o contraditório. Segue-se a descrição do período de Spínola, parece-me formalmente correto, tal como o capítulo subsequente sobre a solidariedade pan-africana e a ascensão mediática do líder do PAIGC. E assim chegamos ao assassinato, novo quadro hagiográfico, mais uma vez a incriminação da PIDE que se teria aproveitado do ressentimento dos guineenses contra os cabo-verdianos.

Peter Mendy esquece-se de referir que não se conhece o teor das sessões dos interrogatórios às centenas de acusados e às dezenas de incriminados, todo o documento escrito e magnético desapareceu. Em nenhum arquivo português se encontrou qualquer dado útil para a implicação das autoridades guineenses ou da PIDE de Bissau ou de Lisboa. Em nenhuma circunstância Peter Mendy manifesta vontade em dissecar a fragilidade da conceção teórica da unidade Guiné – Cabo Verde, ele fala de insurreições dos povos guineenses contra a ocupação portuguesa, nem uma palavra sobre as guerras sanguinolentas desencadeadas no século XIX com a queda do Kaabú e a ascensão dos Fulas que conduziram ao período dramático das guerras do Forreá, está possuído de um raciocínio limitativo de que as etnias guineenses viviam pacificamente entre si e coligavam-se para fazer frente ao opressor colonial português.

O capítulo A Luta Continua descreve a viragem da luta em 1973 e assim chegamos ao legado de Amílcar. Peter Mendy enfatiza documentos da maior importância produzidos por Cabral que denotam o seu génio, o vigor da sua habilidade diplomática, a sua comunicação e inspiração mantêm pertinentes: as suas advertências para o perigo de uma pequena burguesia gananciosa querer aspirar a ganhos pessoais aliando-se ao neocolonialismo; a essência de uma democracia revolucionária, baseada na participação das populações, no idealismo pan-africanista que exigia a descolonização mental. A atualidade do seu pensamento é ainda maior quando toda esta região de África caiu nas mãos de líderes populistas e tirânicos e todo este espaço se tornou uma rota de droga e da ameaça do radicalismo islâmico.

Um livro feito de muita mastigação, de grande candura face ao líder admirado, talvez útil para quem nada conheça sobre a vida e a obra deste gigante do movimento revolucionário.

Amílcar Cabral no gabinete de trabalho em Conacri, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
O “carocha” de Amílcar Cabral, que ele utilizou no dia em que foi assassinado
A devida vénia a Didinho.org
Palestra de Amílcar Cabral em Conacri, dirigindo-se aos seus quadros, com Aristides Pereira ao fundo, do acervo fotográfico de Bruna Polimeni, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24533: Notas de leitura (1603): "Análise de Alguns Tipos de Resistência", por Amílcar Cabral; edição conjunta de Monde Diplomatique e Outro Modo Cooperativa Cultural, 2020 (Mário Beja Santos)

sábado, 29 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8961: Notas de leitura (296): De campo em campo: conversas com o comandante Bobo Keita, de Norberto Tavares de Carvalho (Parte IV): Os 'Portuguis Nara' de Boké e de Conacri (Luís Graça)


Amílcar Cabral, 1966... Fotograma do filme documental Labanta Negro, do realizador italiano Piero Nelli, 1966, a preto e branco, 16 mm, 39' de duração... Passou recentemente no doclisboa2011, na retrospetiva 'Movimentos de Libertação'...


Foto de Luís Graça (2011).


1. Continuação da leitura do livro de memórias do Bobo Keita (BK), da autoria de Norberto Tavares de Carvalho (*)...
 

“Eu não fui mobilizado directamente pelo Partido” – confessa BK ao seu entrevistador, NTC. “Foi graças à minha actividade desportiva e sobretudo à conversa do Nkrumah no Gana [, por ocasião do torneio de futebol de 1959]” (p. 58).

BK sabia da existência do PAIGC, clandestino, mas não tinha contactos diretos com nenhum militante, em Bissau. “(…) Sabia que havia o Rafael Barbosa e que o meu primo Momo Turé fazia propaganda do Partido, mas não conversávamos sobre o assunto” (p. 59).

Já na clandestinidade e sob vigilância da PIDE (, instalada em Bissau desde 1956), Amílcar Cabral tinha estado na capital da província, de 14 a 21 de Setembro de 1959,  para trabalho de organização política, com os seus colaboradores mais próximos (o seu meio-irmão Luís Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa e João Silva Rosa), instalando-se depois em Conacri.

Em todo o caso não se percebe muito bem, pela leitura do livro do NTC, como é que BK decide, uma bela manhã, partir para o sul com o objetivo de chegar a Conacri, e oferecer os seus préstimos a Amílcar Cabral que, em boa verdade, ele mal conhecia. BK, que era o sustento da família, despede-se, com a aparente naturalidade das gentes africanas, da sua querida mãe e dos seus 3 manos (dois dos  quais irão mais tarde ingressar no PAIGC, na fase da luta de guerrilha). Presume-se que BK tenha ocultado à família os seus projetos.  Aparentemente ele ia para o sul fazer a “campanha da costura” (sci), numa altura propícia aos alfaiates, que era a colheita das nozes de cola.

Por outro lado, a sua saída de Bissau não parece ter sido um ato isolado… No dia 26 de Dezembro de 1960, “o primeiro grupo de colegas” (sic)  decide “organizar-se” e parte para o sul  (p. 60). Presume-se que BK se refira aqui a “colegas” do futebol e do Cupelom de Baixo. A 30, “foi a vez do meu grupo sair de Bissau” (p. 60).

Terá sido simples coincidência ou foi mesmo uma “fuga”, planeada e organizada, com a eventual cobertura do PAIGC ? BK  não é claro a este respeito, nem o seu entrevistador aprofundou (ou mostrou interesse em aprofundar) esta questão. 


Do “primeiro grupo” faziam parte craques da bola como o Julião Lopes, o Lino Correio (UDIB) e o João de Deus (primo do BK e também titular da seleção). Do outro grupo, além do BK, fazia parte o Ansumane Mané, “Corona”. Um e outro eram também jogadores da seleção. Ao todo eram apenas três, incluindo um “rapaz de Bissau”, não identificado.

Os três embarcam no porto de Bissau a caminho de Enchudé, frente a Bissau, no outro lado do Rio Geba, mas já na região de Quínara. Aqui apanham uma boleia, de carro, até 
Sangonhá, região de Tombali, já na fronteira com a Guiné-Conacri. 


“Quem nos levou foi um dos condutores do Camacho, um grande comerciante português instalado no sul”… Em Sangonhá, havia duas lojas, “a do Alfa Camará e a de um senhor mestiço que, segundo constava, colaborava com a PIDE” (p. 61).

O Alfa Camará era amigo do pai do BK. Não se se sabe se era simpatizante ou até militante do PAIGC. Muito provavelmente não, já que a mobilização no interior ainda não tinha começado. De qualquer modo, era um dos contactos do BK no sul. Ele já tinha levado, “em segredo”, as bagagens do BK, numa viagem anterior em que viera a Bissau abastecer-se (p. 61).

A escolha da rota do sul, para se chegar a Conacri, era aparentemente mais fácil do que a rota do norte, via Senegal. Para justificar a sua presença, perante as autoridades portugueses, BK apresentava-se sempre como alfaiate que ia fazer a “campanha de costura do sul”. O “Corona” era o seu “ajudante” (p. 60).

O grupo não entrou na Guiné-Conacri através do posto fronteiriço de Sangonhá. Daqui seguiu para Campaeane, na margem esquerda do Rio Cacine, a sul de Cacine. Dormiram na casa  de “um amigo que nos fora recomendado” (p. 61). Esse mesmo amigo levou os três, logo de manhã, para a “outra margem”, que já era território da Guiné-Conacri, a uma hora de distância.

Chegados lá, tiveram uma “agradável surpresa”, foram encontrar o grupo do Julião Lopes, que partira de Bissau a 26 de dezembro de 1960. (Este Julião Lopes será o futuro comandante da Marinha de Guerra da Guiné-Bissau,  depois da independência e até ao golpe de Estado de ‘Nino’Vieira, em 14 de novembro de 1980).

Continuo, no entanto, sem perceber se BK agiu sozinho,  por conta e risco, ou se beneficiou da eventual ajuda da “rede clandestina”  do PAIGC que, na época, ainda deveria ser bastante “incipiente” em Bissau (para não dizer "inexistente" no sul). De qualquer modo, BK chega a Conacri, são e salvo,  a 12 de Janeiro de 1961, doze dias depois de se ter despedido da mãe e dos irmãos em Bissau. Ele e os seus "colegas" da bola...

Antes disso, aos dois grupos (o do BK e do Julião Lopes), reagrupados em Canfandre, junta-se em Boké, um terceiro, também oriundo de Bissau. Formaram um equipa de futebol que ainda disputou algumas partidas. Os “Portuguis Nara” (expressão local, que queria dizer: 'São Portugueses'), com vários titulares da seleção de futebol da província portuguesa da Guiné, foram recebidos com entusiasmo pela população e pelas autoridades  da região de Boké,  não tanto pelo seu ardor nacionalista como sobretudo pelo seu talento futebolístico…

Chegados finalmente a Conacri, foram encaminhados para os serviços de imigração a fim de legalizarem a sua situação. Recorde-se que a Guiné-Conacri tinha-se tornado independente da França em 2 de Outubro de 1958, quase dois anos mais cedo que o Senegal (, que chegará à independência apenas a 20 de Agosto de 1960).

“Comunicaram então ao Cabral a nossa presença na capital guineense” (p.65)… 

BK conhecera o “senhor engenheiro” uns anos antes,  “quando era ainda muito jovem”… [ou seja, entre 1952 e 1956, quando Cabral trabalhou na sua terra como engenheiro agrónomo, com a sua esposa, Helena, portuguesa]. BK lembra-se de ele lhe oferecer “uma bola” e de organizar “pequenos torneios na Granja do Pessubé para os mais jovens” (p. 65).

Em Conacri, BK e os seus amigos passaram a ficar no “lar do Partido”, que ficava no bairro de Almame-La. Nessa época Cabral preparava os primeiros combatentes da futura “luta de libertação”. Ele próprio vai à China, em Agosto de 1960, pedir apoio, à frente de uma delegação que integra o Luciano N’Dau, o Dauda Bangura e o Joseph Turpin. 

Um segundo grupo segue, no 2º semestre de 1960,  para a China,  para formação político-militar, do qual faziam parte 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão os seus nomes, por or ordem alfabética: 

(i) Constantino dos Santos Teixeira (“Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);

(iii) Domingos Ramos (morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966);

(iv) Hilário  Rodrigues “Loló” (, comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé);

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009) (natural de Bissau; ex-Presidente da República);

(vi) Manuel Saturnino da Costa (será 1º ministro entre 1994 e 1997; ainda é vivo);

(vii) Pedro Ramos (fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro");  

(viii) Rui Djassi (comandante da base de Gampará, morreu em 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas);

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral; ironicamente repousam os dois, lado a lado,  na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra);

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada em 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; era irmão de Manuel Saturnino da Costa).

“Quinze ou vinte dias  depois da nossa chegada a Conacri  regressou da China este segundo grupo”, esclarece BK  (p. 66).

Os primeiros tempos em Conacri – estadia que se vai prolongar até Outubro de 1961 – foram passados com aulas de “preparação política de base”, dadas pelo próprio Amílcar Cabral … As aulas chegavam a prolongar-se até às tantas da noite. Cabral utilizava, para o efeito, a garagem da casa onde vivia. 

"Aí é que começamos a vida dura de militantes. Cabral dava aulas de conhecimento geral sobre a nossa terra, sobre os motivos porque resolvera lutar contra os Tugas, as injustiças, e dava exemplos práticos que toda a gente compreendia. Falava muito de independência e de liberdade" (p. 66).


À pergunta de NTC sobre se alguma vez o BK teve dúvidas ou quis voltar para trás (“e entregar-se aos tugas”), BK é firme e peremtório, mas sobretudo "politicamente correto" (aos olhos do seu entrevistador, também ele antigo militante do PAIGC, e também ele vítima do golpe de Estado de 'Nino' Vieira), como seria de esperar, de resto, de um homem que passou mais de 13 anos na dura luta de guerrilha:

“Houve momentos de incertezas, felizmente esses momentos foram passageiros. De dúvidas não posso falar. Sabe que eu tenho um princípio que é o seguinte: palavra dada é coisa sagrada. A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67).

Não tenho dúvidas que Bobo Keita, sendo um homem coerente, se tivesse jurado bandeira, nas fileiras do exército português e não se tivesse sentido injustiçado (como aconteceu com o 1º Cabo Miliciano Domingos Ramos, vítima de racismo, segundo o depoimento do seu amigo Mário Dias), nunca teria chegado a comandante do PAIGC... Bobo Keita, por outro lado - é bom recordá-lo - foi dos poucos guineenses que, opondo-se ao golpe de Estado do guineense 'Nino' Vieira contra o caboverdiano Luís Cabral, se exilou voluntariamente, em Cabo Verde, em 1998, para vir morrer no país dos  tugas, em 2009...

Luís Graça,

Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 27/10/2011

(Continua)

[ L.G. segue a nova ortografia. Respeita, no entanto, a ortografia antiga nas citações de outros autores ou fontes]

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16995: Notas de leitura (924): Os primeiros documentos de Amílcar Cabral na Guiné, 1952 (Mário Beja Santos)

Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues
Com a devida vénia a Casa Comum


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Folheava os "Ecos da Guiné", publicação oficial que teve audiência nos anos 1950, e deparou-se-me uma série de boletins informativos que saíram do punho de Cabral, quando ele estava à frente do Posto Agrícola Experimental dos Serviços Agrícolas e Florestais.
Tendo saído menino e moço para Cabo Verde, regressa a sua terra-natal depois de diplomado em Engenharia Agronómica, especialidade de erosão de solos. Vem acompanhado pela mulher, aqui chegam em Setembro de 1952. É um período sobre o qual se teceram algumas lendas: que teria sido expulso, o que se dá como não provado; que graças ao recenseamento agrícola a que procedeu entre 1953 e 1954, ganhou a confiança das populações, o que é manifesto exagero, Cabral percorreu território muito rapidamente, mas é certo e seguro que ficou a conhecer a natureza dos solos e sobretudo as reais capacidades do uso de certas regiões para constituir bases de guerrilha, no interior da Guiné. Escrevia com precisão e rigor, com um domínio absoluto da língua, como estes excertos comprovam.
Os especialistas já conhecem estes documentos, mas é bom que eles venham até ao nosso auditório.

Um abraço do
Mário


Os primeiros documentos de Amílcar Cabral na Guiné, 1952 

Beja Santos 

Em Setembro de 1952, Amílcar Lopes Cabral está à frente do Posto Agrícola Experimental dos Serviços Agrícolas e Florestais da Província. Introduz um novo método de comunicação, redige boletins informativos que irão ser publicados em “Ecos da Guiné”, uma publicação oficial que era seguramente lida pelo funcionalismo da Administração e um vasto público ledor da região.

No número 30, com data de 1 de Janeiro de 1953, é publicado o Boletim Informativo n.º 1. Escreve Cabral (não vem assinado, mas é inequivocamente prosa sua): “Constitui um lugar-comum a afirmação que a agricultura é a base da economia da Guiné. Daí o caráter de ‘problema central’ de que se revestem ou devem revestir-se todos os assuntos referentes a esse ramo de produção. Ao posto agrícola experimental está, ou deve estar, reservado o papel de concorrer efetivamente para o melhoramento e o progresso da agricultura guineense”. Pouco depois de empossado Cabral apresenta um relatório sobre o estado em que se apresentava o estabelecimento. Abaixo se publicam alguns estratos. “Duas condições, pelo menos, devem estar na base da consecução deste objetivo: a) a competência e dedicação de quem dirige o posto bem como de todos os trabalhadores; b) o apoio (moral e material) não só da Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e Florestais, mas também do próprio Governo da Província. Essas condições, indispensáveis, completam-se. São a mola real que poderá fazer com que o posto saia da letargia e do abandono em que tem vivido”.
“… O Posto não é, nem deve ser, como muitos parecem julgar a ‘granja do Estado’, destinada a satisfazer as necessidades de alguns habitantes da capital, em hortaliças e frutas. Hoje, este organismo deve corresponder à necessidade da existência de uma Estação de Experimentação Agronómica, cujo objetivo seja o melhoramento da agricultura, base da economia da província. Experimentação orientada cientificamente, de molde a conseguir resultados práticos imediatos, que sirvam o progresso da terra e do Homem. Fora deste objetivo, sem a dedicação dos seus trabalhadores e sem o efetivo apoio das entidades superiores, o posto não passará de um permanente motivo de vergonha”.

Sobre este relatório de Cabral, o Chefe da Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e Florestais, despacha do seguinte modo: “Na própria elevação dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, dos quais o Posto Agrícola é uma das suas imagens reais, todo o apoio será uma realidade”. E o Governador da Guiné procede ao seguinte despacho. "Cremos que meios materiais, dentro do possível, não lhe serão regateados”.

Segue-se a descrição do trabalho executado no primeiro trimestre, é minucioso no que se impõe fazer no campo, nas dependências da granja de Pessubé, sobre o estado das culturas, viveiros e experimentação. Sobre esta última matéria, observa o diretor: “Deve dizer-se que não existe atualmente no Posto qualquer trabalho de experimentação, na sua aceção técnico-científica”. Refere amendoins, bananeiras, café, cacau, cana-sacarina, cultura do algodão.

No número de Fevereiro de 1953, “Ecos da Guiné” publicam o Boletim Informativo n.º 2. Fala-se de uma virose chamada Roseta que flagela a cultura do amendoim, volta-se a reportar o trabalho executado quanto ao estudo das culturas, qual o plano de trabalho para a época que se avizinha e quanto à experimentação é referido que “a cultura experimental do algodão tem-se desenvolvido de molde a permitir uma esperança no seu êxito”. E entra também na observação de outras espécies: trigo, sorgo, cânhamo, soja, girassol, algumas variedades de tabaco.

O Boletim Informativo n.º 3 é publicado em “Ecos da Guiné” no número referente a Maio de 1953, fala-se de jutas, dá-se conta do trabalho executado, o estado das culturas, e a narrativa ganha alento quando se fala da experimentação, com os resultados obtidos no algodão, cana-sacarina, cultura do girassol, feijões, soja, trigo, tabaco.

Na edição de Julho e Agosto de “Ecos da Guiné” publicam-se os Boletins Informativos 4 e 5, e temos aqui um texto esclarecedor da personalidade de Cabral: “Há na Guiné escassez de braços aptos a trabalhar a terra? Não há escassez de braços. Acontece apenas que o agricultor indígena tem relutância em trabalhar por conta alheia. Voluntariamente, trabalha por conta própria, integrado nos costumes da sua comunidade. Na base desta atitude existirá por certo, uma razão económica”. E na sequência destas considerações, prevê grandes mudanças devido à mecanização agrícola, que se adivinha.

Acaba aqui o boletim informativo. Cabral e a mulher, Maria Helena Vilhena Rodrigues, vão envolver-se em fins de Setembro no Recenseamento da Agricultura Indígena, por insistência da FAO. Estão nesta altura já recenseadas as circunscrições de Farim, Mansoa e Teixeira Pinto. Estes textos que acabamos de reproduzir virão a ser publicados nas obras agronómicas de Amílcar Cabral, os seus relatórios referentes ao recenseamento agrícola serão primeiramente publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Findo o recenseamento, Cabral e a mulher adoecem com o paludismo (há uma corrente mítica que pretende que Cabral foi expulso da Guiné pelo Governador Mello e Alvim, não há nenhuma prova, o próprio biografo de Cabral, Julião Soares Sousa, contesta) e regressam a Lisboa. A vida de Cabral vai mudar, trabalhará em Portugal e em Angola até 1959, em seguida parte para a clandestinidade, no Norte de África.

Fotografia atual da casa da Granja de Pessubé em que viveram Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, reproduzida no nosso blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16990: Notas de leitura (923): "A presença portuguesa na Guiné : história política e militar 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, Porto, Caminhos Romanos, 2016, muitos anos de pesquisa de arquivo, um milhar de páginas, fotos, mapas e outra documentação preciosa... Uma obra de referência, de grande rigor, incontornável. Pref. do almirante Nuno Vieira Matias, antigo cmdt do DFE 13 (CTIG, 1968/70)

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17729: Notas de leitura (993): “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

A Verdadeira Morte de Amílcar Cabral, por Tomás Medeiros


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Aquando da primeira edição, aqui se fez referência a este trabalho. Esta segunda edição comporta alterações, quem se interessa pela temática tem a ganhar com esta nova leitura.
Temos poucos biógrafos de Amílcar Cabral em língua portuguesa: Julião Soares Sousa (o mais importante), António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros, a despeito de numerosíssimas referências em ensaios, estudos e até trabalhos sobre a história do movimento de libertação na Guiné.
As reflexões de Tomás Medeiros têm uma singularidade: concentram-se num jovem de cultura cabo-verdiana que triunfou nos estudos em Lisboa no exato momento em que a problemática da descolonização preocupava estas jovens elites africanas. E há o pensamento de um líder inflado por um sonho utópico que acabou por matar o seu criador: a unidade Guiné-Cabo Verde, uma bela consigna para juntarem a melhor mão-de-obra revolucionária e o mais destrutivo explosivo para juntar no mesmo país gente que não esqueceu o passado, tantas vezes doloroso.

Um abraço do
Mário


A verdadeira morte de Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

Tomás Medeiros é nome incontornável no movimento anticolonial português. Conviveu de perto com os futuros líderes dos movimentos de libertação e tem sobre os mesmos uma ideia sobre o seu valor e a importância do seu desempenho. Acompanhou e fez um estudo aturado do pensamento e obra de Amílcar Cabral. O seu trabalho intitula-se “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014. Já aqui se fez referência à primeira edição, acabo de comprovar que esta revisão dada a público inclui elementos importantes para a ponderação da vida e obra do mais consagrado dos líderes revolucionários africanos das colónias portuguesas.

Tomás Medeiros começa por enquadrar o tempo histórico após a II Guerra Mundial e traça a emergência da descolonização, da negritude, revela com rigor esse novo estado de espírito das elites africanas a estudar nas universidades europeias. Medeiros vinha de S. Tomé e aproximou-se desses estudantes do Império que ganhavam notoriedade, caso de Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Francisco Tenreiro. Segundo nos diz na introdução, pretendia ir muito mais longe nas suas investigações mas foi apanhado por doença prolongada e diz que o que hoje se publica constitui a síntese de um projeto que precisa de ser desenvolvido a longo prazo.

Recorda que a juventude de Amílcar Cabral ficou indelevelmente associada a Cabo Verde, um ambiente africano arquipelágico particular, com fomes cíclicas, dentro de uma intelectualidade crioula que se exprime sem equívocos na sua iniciação poética, atravessada pelo modernismo e um naturalismo de cariz africano.

Segue-se a descrição de Lisboa em 1945, aonde chega o estudante de agronomia que vem com o firme propósito de ser um bom poeta e de aprender o que for necessário para lutar contra as crises de Cabo Verde, não terá sido por acaso que foi atraído desde cedo pela erosão dos solos. Convive, mas com distâncias, com o MUD Juvenil, lê afincadamente, e discute com o mesmo afinco, o que lhe cai às mãos sobre colonialismo, africanidade e sopros da descolonização. Vai emadurecendo e quando regressa a Cabo Verde em 1949 mostra um grande entusiasmo em palestras radiofónicas sobre soluções para o problema das secas. Enquanto tira a licenciatura no Instituto Superior de Agronomia frequenta os diferentes espaços por onde transitam os estudantes africanos das diferentes colónias. Medeiros refere a Casa dos Estudantes do Império, o Centro de Estudos Africanos, na residência da família Espírito Santo, no primeiro andar do n.º 37 da Rua Actor Vale, ali para os lados da Fonte Luminosa, por ali circulam Alda do Espírito Santo, Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Agostinho Neto, Francisco Tenreiro.

Concluído o curso, parte em 1952 com a mulher para a Guiné, leva na bagagem uma série de trabalhos de agronomia, de valor científico: o problema da erosão dos solos; contribuição para o estudo da região de Cuba (Alentejo); o conceito de erosão – projeto para o estudo dos solos em Cabo Verde. Revela-se um funcionário público metódico e inovador, publica na imprensa local as sínteses das atividades que desenvolve sobretudo em Pessubé, uma estância experimental agrícola onde surgem algumas maravilhas. O seu nome aparece ligado a um projeto da Associação Desportiva e Recreativa dos Africanos, não aceite pelas autoridades. Terá tido encontros com os dirigentes do MING – Movimento de Independência da Guiné, que tinha à frente os nomes de Rafael Barbosa, Aristides Pereira, Fernandes Fortes, Abílio Duarte, e alguns mais. O MING, no dizer de Aristides Pereira era um movimento que não andava. Entretanto, vão crescendo nos países limítrofes organizações políticas que vão sendo conhecidas e discutidas na Guiné Portuguesa.

Em 1955, a sofrer de paludismo, regressa a Lisboa. Tomás Medeiros assegura que Amílcar Cabral esteve na Guiné em 1956 e 1958, o que Julião Soares Sousa contesta, Cabral não terá assistido à fundação do PAI e era impossível em 1958 ele ter passado pela Guiné. Cabral esteve a trabalhar em Angola na cartografia de solos, o seu trabalho foi muitíssimo apreciado, é um trabalho que ele abandona em 1959. Em Angola, escreve propaganda anticolonial e colabora na redação do manifesto que leva à fundação do MPLA. É o tempo em que toma decisões de fundo, parte para a clandestinidade. As diferentes organizações ligadas à luta de libertação criam o MAC – Movimento Anticolonial, o desempenho de Cabral é decisivo. Em Setembro de 1959 regressa a Bissau, no rescaldo dos acontecimentos de 3 de Agosto. Tiram-se ensinamentos de que não há condições para a luta urbana, são fundamentais militantes que precisam de ser recrutados no interior da Guiné. A estratégia do partido fica definida: luta armada para a obtenção da liberdade nacional. Cabe a Cabral desenhar o diagnóstico que irá levar à formulação estratégica: uma parte da direção estará no exílio, em Conacri, a outra parte dirige a sublevação e o envio dos novos quadros para Conacri. Logo no seu primeiro diagnóstico, Cabral enuncia que a vanguarda é caracteristicamente pequeno-burguesa, mais tarde este raciocínio será desenvolvido numa frase ainda com consonância explosiva: a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe para ressuscitar como trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.

Os contornos da luta armada que Medeiros refere acompanham de perto tudo aquilo que é hoje conhecido e considerado. E depois aborda o problema da unidade Guiné-Cabo Verde, e cita Cabral: “Nós na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde somos as mesmas gentes, temos a mesma língua e temos o mesmo partido". Noutro registo, deve-se a Cabral a seguinte apreciação: “Somos pela unidade africana, à escala regional ou continental como meio necessário para a construção do progresso dos povos africanos, para garantir a segurança e a continuidade deste progresso (…) A liquidação total do colonialismo e das suas sequelas, a conquista prévia da independência nacional de cada país ou colónia, a transformação das estruturas económica e sociais e a aproximação das novas estruturas criadas nos países, deverão, na nossa opinião, constituir a base fundamental da realização da unidade africana”.

(Continua)

Em maré de sorte, este achado na Feira da Ladra, um mapa da Guiné, presumivelmente de trabalhos cartográficos aí pelos anos 1930. Envolvida pela Senegâmbia, o que leva a querer que a colónia francesa do Senegal ainda não se distingue da colónia britânica da Gâmbia. Quem vê este mapa é capaz de pensar que mais de metade do país era ocupado por Fulas, vejam com atenção. No Sul, preponderavam os Biafadas, o que não era totalmente incorreto, os Fulas tinham empurrado os Biafadas para o Litoral, os Nalus e os Sossos, por exemplo, tinham pouca expressão. Não há uma só referência a Mandingas nem a Papéis, parece que essas etnias eram puros epifenómenos. E vale a pena estudar a toponímia. Do que me foi dado ver e viver, na região centro-leste Goli corresponde a Porto Gole, Malafo era nome de rio mas não de povoação, Enxalé fica em frente ao Xime. Em frente a Bambadinca vêm referidas povoações inexistentes em 1960: Sambel Nhanta, que fora a sede do régulo do Cuor, tinha desparecido, Caranque Cunda era um pequeno lugar, que fora importante para acantonar as tropas macuas, em 1908, mas rapidamente perdeu importância. E Checibá talvez seja Madina. Podemos questionar se houve tantas migrações em escassas décadas. O ponto assente é que este mapa tem muitíssimo pouco a ver com a Guiné que conhecemos. O mapa terá sido produzido pelo Istituto Geografico de Agostini – Novara: talvez queira significar que os padres italianos já estavam a caminho.

Beja Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17718: Notas de leitura (992): Relatório científico do Aspirante de Artilharia Wilmer Delgado Pinto para o Mestrado em Ciências Militares na Especialidade de Artilharia, Academia Militar, 2014 (Mário Beja Santos)