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sexta-feira, 4 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)

Navio Portugal, propriedade da Sociedade Comercial Ultramarina


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Entrámos na década de 1950 e socorri-me de um trabalho do investigador António Duarte Silva para procurar situar as transformações operadas na colónia-modelo, no exato momento em que se iniciam as hostilidades anticoloniais, a partir das Nações Unidas e é bem percetível que está em curso a reivindicação da União Indiana para pôr termo ao Estado Português da Índia.
É nesse contexto que a agricultura guineense dá inequívocos sinais de prosperidade e começam as experiências com a cultura do caju. Está em curso o recenseamento agrícola conduzido por Amílcar Cabral e por sua mulher. Não há uma só referência a qualquer tensão étnica e também o comércio prospera.
É nesse contexto que começa a progredir o interesse do BNU pelo domínio absoluto da Sociedade Comercial Ultramarina.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33)

Beja Santos

Julga-se do maior interesse, agora que chegámos ao dealbar da década de 1950, situar o pano de fundo em que decorre a vida da província. Serve-nos de orientador António E. Duarte Silva e a sua obra "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Edições Almedina, 2010. Começa por nos dizer que a década de 1940 se caraterizou não só pela reorganização e expansão do aparelho administrativo como pela promoção dos assimilados e cabo-verdianos enquanto se dá, em simultâneo, o alargamento da atividade comercial e a chegada das etnias muçulmanas ao litoral povoado pelos animistas; entretanto, o crioulo ia-se impondo como língua franca. Ao tempo, começa a identificar-se uma forma social bissau-guineense, distinta das colónias fronteiras do Senegal e da Guiné Conacri. O recenseamento de 1950 procurou determinar com rigor a população, foi dirigido por António Carreira, um dos nomes incontornáveis da historiografia guineense. Atenda-se aos números apresentados:  
“As distinções fundamentais eram entre civilizados (dotados de cidadania portuguesa) e indígenas, por um lado, e entre portugueses e estrangeiros, por outro. Civilizados seriam 8320 residentes – dos quais 1501 eram originários da metrópole, 1703 provinham de Cabo Verde e os restantes 4644 da própria Guiné. Acresciam 366 estrangeiros, a maioria libaneses. A taxa de analfabetismo dos civilizados ultrapassava os 43%. Quanto à restante população, contaram-se aproximadamente meio milhão de indígenas, distribuídos por 30 grupos étnicos”.

Já se viu como Sarmento Rodrigues apostou na Guiné como colónia modelo, vinha motivado para incrementar o progresso da colónia: transportes, estradas, rios e canais, portos, aviação, assistência sanitária e águas, agropecuária, comunicações, urbanização, rede telefónica e radiodifusão, promoção missionária, cultural e desportiva. Como observa Duarte Silva, inaugurou o seu programa com dois atos emblemáticos na legitimação da colonização, a criação da “Missão de Estudo e Combate à Doença no Sono na Guiné”, as “Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné”. Intensificaram-se as relações com o Instituto Francês da África Negra, procurava-se uma duradoura parceria nas investigações etnológicas e “inquéritos de franca utilidade prática sobre a situação biológica, alimentar, sanitária e demográfica das populações, e as suas psicologias e capacidades”. Vale a pena de novo referir a criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e a sua obra de referência o Boletim Cultural. O mandato de Sarmento Rodrigues correspondeu a um período particular de coesão e progresso na história colonial da Guiné, correspondeu também ao apogeu do sistema colonial português, o Governador manteve a política de aliança com os muçulmanos, desenvolveu o aparelho administrativo mediante o preenchimento do quadro de dirigentes com uma elite metropolitana e a entrega da administração intermédia a cabo-verdianos e mestiços. É neste quadro ascensional que irão decorrer as primeiras hostilidades e ameaças de um movimento anticolonial que tem a sua sede nas Nações Unidas.

É tempo de regressar aos relatórios do BNU em Bissau, sente-se que a mudança de gerente torna as análises mais frias e formais, tecem-se comentários dirigidos para uma apreciação de números, dá-se conta do que está a acontecer na agricultura e faz-se a análise da praça. Estamos em 1953, o relator informa que houve uma importante redução nos preços das oleaginosas, quebra essa fortemente compensada com um apreciável aumento da produção. E aparece uma observação em tom lisonjeador, para nos mostrar que os tempos são outros:  
“Este bem marcado progresso da filial no novo importante impulso recebeu – o maior, sem dúvida, desde a sua fundação, – já no início do corrente exercício, com os muitos e vultuosos créditos que, em consequência da extraordinária actividade que aqui desenvolveu, nos poucos dias que durou a sua recente visita a esta província, foram concedidos à praça pelo nosso Excelentíssimo Administrador Senhor Capitão Teófilo Duarte, visita que ficou também assinalada por um rasto de forte e geral simpatia que perdura e cimentará o ambiente favorável que criou a actuação da nossa instituição, objectivos que Vossas Excelências tiveram, como se dignaram a informar-nos, ao aproveitarem a vinda de Sua Excelência a esta província e que constituiu um verdadeiro triunfo”.

Quanto à situação da Praça, não havia praticamente nada de novo:
“Como também sucedeu no anterior, o comércio vendeu, no ano findo, muito menos do que esperava e para que se preparara, pois ao nulo comércio que se continua a registar com os territórios franceses vizinhos e da falta de ouro em pó dessas proveniências, veio juntar-se, logo no início do ano, uma redução de $20 no preço da mancarra e por outro lado o agravamento, que se diz no dobro, do imposto de capitação em que foi convertido o de palhota, diminuíram grandemente o poder de compra do indígena”.

A situação das colheitas é outra preocupação que se espelha neste relatório de 1953:
“Não é possível determinar com rigor a produção agrícola desta província, que as estimativas oficiais avaliam, em amplos limites, entre 119 mil a 143 mil toneladas dos 4 mais importantes produtos. Assim, servindo-nos dos dados respeitantes à exportação e estes com base em elementos colhidos na Filial, pois os oficiais, infelizmente, estão longe de ser coordenados, verifica-se que a produção da mancarra no ano findo foi superior em 3 mil toneladas, a do coconote foi inferior em 6800 toneladas.

Encontra-se em execução o recenseamento agrícola, trabalho que constituiu uma realização dos Serviços Agrícola e Florestais, tendo isso encarregado de planifica-lo e de dirigir a sua execução o Engenheiro Agrónomo Amílcar Cabral. Visa a obtenção de elementos essenciais, qualitativos e quantitativos, tanto a agricultura indígena como da dos não indígenas. Acha-se quase finalizado o trabalho de campo relativo ao recenseamento da agricultura indígena. É executado pelo método de amostragem, através do estudo das explorações familiares em povoações tipo. Assim, obter-se-á uma estimativa dos elementos essenciais da agricultura indígena, aliás a única informação possível nas actuais condições económicas e culturais do agricultor nativo.

O apuramento dos elementos escolhidos será levado a efeito por todo este ano. Entretanto, pode afirmar-se o seguinte:
a) De uma maneira geral as porções são boas, tanto no que se refere às culturas alimentares como às industriais.
b) No sul da província as produções unitárias são geralmente superiores às verificadas noutras regiões, em especial no que se refere ao arroz e à mancarra.
c) Devido à intensificação da cultura da mancarra, as queimadas atingem proporções alarmantes, nomeadamente as praticadas pelos Fulas e pelos Mancanhas.
d) Alguns parasitas prejudicam de maneira sensível as produções das espécies conhecidas por “milho brasil”, “milho cavalo” e “milho preto”.
e) No Quínara, principalmente a produção de arroz foi prejudicada pelas águas vivas.
f) No ano findo, esteve nesta Província o senhor Jean David Bruce, de nacionalidade holandesa, técnico de óleos, que, a convite do ministério do Ultramar, se deslocou à Guiné para estudar as possibilidades da província nos novos métodos de culturas e exportação, as espécies mais recomendáveis às condições ecológicas, com o objectivo de uma produção dirigida mais consentânea com as ricas possibilidades da Província.
g) Foi feita a cultura, em grande escala, por toda a província de sementes de caju importadas de Moçambique, que germinaram bem e em alguns pontos se desenvolveram rapidamente. Essa sementeira foi precedida da vinda a esta Província do professor do Instituto Superior de Agronomia Dr. Carlos Rebelo Marques da Silva que, em missão do Ministério do Ultramar, veio estudar as suas possibilidades económico-culturais”.


Instalações da Sociedade Comercial Ultramarina em Bafatá

Entre Maio e Junho desse ano decorre uma inspeção do BNU na Guiné e aparece um importante documento do seu responsável endereçado à administração da Sociedade Comercial Ultramarina, com a qual gradualmente o BNU vai aumentando a sua participação. Iremos seguidamente tomar nota do seu conteúdo e conhecer a situação de 1954 designadamente do que se estava a passar na agricultura.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 27 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18568: Notas de leitura (1061): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (32) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19395: Notas de leitura (1140): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (68) (Mário Beja Santos)

Sede do BNU na Avenida 5 de Outubro - Lisboa.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me fora dado ler um documento onde se transmite o estado de transtorno e de desconfiança a que chegam as relações entre militares e civis, no quadro da eclosão da subversão no Sul. O documento, não datado, constante do Arquivo Histórico do BNU, saiu seguramente do punho do gerente da Sociedade Comercial Ultramarina, foi despachado pelo Administrador Castro Fernandes no início de junho de 1963, dá conta do desmantelamento económico rapidamente ocorrido nos primeiros meses de 1963 e na crispação e estado de suspeição entre os militares de Catió e os encarregados da Sociedade Comercial Ultramarina.
É o horror da guerra, parece gritar este relato com parágrafos tão pungentes.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (68)

Beja Santos

Na documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU encontra-se um documento não assinado mas que foi visto por Castro Fernandes em 27 de junho, intitulado “Situação Política da Guiné”, pelo seu teor percebe-se rapidamente que é um relatório que saiu da mão do responsável da Sociedade Comercial Ultramarina na Província. Começa por dizer que estavam a ser levadas a efeito na região Sul diversas ações de repressão que, segundo opinião geral da população civil, serviam apenas para dificultar as relações com os naturais, assumiam o aspeto de ações esporádicas com caráter de represália, em face da descontinuidade de atuação graças à falta de efetivos. Havia muita gente afetada do ponto de vista económico, considerava-se como perdida a atual safra de arroz por falta de colheita, de debulha e de comercialização.

A repressão atingia muitos operadores económicos, assumia também o caráter de confrontos militares, e o relator procede minuciosamente à descrição dos acontecimentos:

“ – Assalto a Jabadá à casa de Jamil Heneni e na sequência assalto às embarcações que ali foram para fazer o rescaldo. Desaparecimento do empregado; 

- Assalto a uma propriedade na mesma área onde trabalhava Carolino Barbosa de Andrade, irmão do nosso encarregado de Bolama e que desapareceu; 

- Assalto em S. João ao pessoal enviado de Bissau pela Casa Gouveia para carregar uma lancha; 

- Assalto a uma propriedade do comerciante Lourenço Marques Duarte, perto de Catió, onde o sobrinho pereceu, tendo sido encontrado barbaramente retalhado; 

- Tentativa de assalto a um ou dois pontos isolados nas cercarias de Catió. Num deles retalharam um Fula; 

- Duas tentativas de assalto à guarnição de Cabedu; 

- Emboscada a uma patrulha militar perto de Cafine. Ao que parece, as viaturas ficaram incapazes e os soldados conseguiram regressar a pé a Bedanda; 

- Emboscada a uma patrulha militar em local que desconhecemos por um grande grupo armado de catanas que se atiravam das árvores para cima das viaturas, e que teve grandes baixas; 

- Armadilha preparada entre S. Domingos e a fronteira onde pereceu o Capitão Carmo; 

- Assalto a Darsalame aos cipaios aquartelados na casa do comerciante Sr. José Castro Fernandes, os quais abriram fogo sobre os atacantes que pegaram fogo à casa. O nosso empregado parece ter fugido na confusão para o mato e tanto quanto sabemos a nossa casa não foi tocada, mas não conseguimos mais notícias; 

- Assalto a Bambaiã ao barco da carreira do Lourenço Marques Duarte, que foi destruído; 

- Tiros feitos sob o barco do Estudo em carreira de Catió para Bolama e Bissau”.

O relator desfia um corolário de queixumes quanto à falta de cobertura militar que permitisse a retirada de valores:

“O que se tem feito, fez-se com nosso pessoal, necessariamente com risco, pois do Chequal retirou-se arroz por três vezes e na segunda o auxiliar de Banta que ali foi fazer o carregamento foi avisado de que lá não deveria voltar, pois poderia sofrer e a embarcação também. No entanto, retornaram lá para retirar apenas mais 25 toneladas, entretanto apareceram terroristas que intimaram o mestre do Santa Comba a largar imediatamente, dizendo que o produto ficaria ali para a população compensar o que a tropa tinha queimado. Em Unal, o empregado, após o encerramento inicial, tentou lá voltar mais duas vezes, na segunda das quais regressou de canoa ao Xugué conduzida por ele próprio. Mais recentemente foi lá com o motor para tentar retirar tudo e caiu nas mãos dos terroristas e bem assim o mestre do motor Bandim”.

O documento tem outra relevante dimensão quanto ao estado crescente de suspeições e até arbitrariedades. O relator estivera em Catió e falara com o tenente-coronel Delgado que lhe referiu que o empregado de Banta, Augusto Lopes Pereira, que fora deixado em liberdade condicional naquela povoação como “isca”, estaria envolvido em acontecimentos de sublevação e em estreita ligação com o PAI (designação anterior do PAIGC).

E escreve:

“Tendo-nos o empregado referido os interrogatórios a que foi sujeito por aquele oficial, e depois pela PIDE, aquele oficial perguntou-lhe se conhecia um agitador de nome Cusselima, que o empregado na realidade conheceu e que desaparecera de Banta há muito, estando preso na Ilha das Galinhas, e aquele oficial fez então uma referência a uma fotografia ao que o empregado lhe disse que se o Cusselima só poderia ter uma fotografia sua se acaso lha tivesse roubado. Posteriormente, porém, ao agente da PIDE disse que três meliantes, em Outubro do ano passado, de pistolas apontadas entraram-lhe em casa e exigiram dele uma fotografia sua que estava sobre o móvel e que o ameaçaram de morte se porventura referisse a visita às autoridades e outra anterior em que o tinham convidado a aderir, e que em qualquer sítio da Guiné onde estivesse, seria apanhado. A ser verdade o que ora conta, o seu erro foi, como lhe dissemos, não ter vindo expor a situação para se proceder a uma transferência para que pudesse contar os factos às autoridades”.

O estado a que chegara a guerra no Sul, segundo o relator, justificava que se fechassem todas as casas do Sul, incluindo as que estavam em centros militares, paralisando todas as embarcações e dispensando todo o pessoal. No relatório faz-se menção que o Quartel-General encarava agora uma atuação que visasse uma melhor proteção das atividades económicas. Refere-se igualmente no relatório que era percetível a existência de atritos entre o Governo e o Quartel-General.
Atenda-se agora à seguinte observação:

“Certos e determinados aspectos da actuação militar com um carácter de terrorismo às populações nativas, de que aliás só tenho conhecimento verbal e portanto delas não podemos tomar a responsabilidade, ainda que verbalmente transmitidas a Sua Ex.ª , não foram referidas no memorial entregue ao Governo dado que quem mais sofre com a repressão serão os que directamente nada têm com os incidentes e que alguns, senão muitos, dos factos ocorridos são avolumados e multiplicados pela opinião pública que está a criar a impressão de que queimar tabancas e arroz aí armazenado e a morte eventual de mulheres e crianças trará um ódio ao europeu que não mais poderá ser sanado, uma vez que o terrorismo de início afectou a população nativa e depois foi dirigido contra a ocupação militar e só mais recentemente evoluiu no sentido de ataque económico. Do memorial consta uma posição actual do arroz em casca. O Governo da Província encara a necessidade de importar arroz mas não sabemos se tenciona fazê-lo por sua conta e risco ou através do comércio”.

E continua a dar informações sobre a atividade da guerrilha no Sul:

“Já com o memorial pronto, o encarregado de Catió chamou-nos ao telefone pois o encarregado José Saldanha, de Unal, de onde teve de fugir três vezes, fora preso pelas forças militares, e estava no quartel de Catió onde já tinha sido maltratado… Pusemo-nos em contacto imediato com o Quartel-General, onde o Subchefe do Estado-Maior não pareceu gostar muito da ideia. Hoje de manhã, de Catió, disseram-nos que o empregado tinha sido libertado e do Quartel-General disseram-nos que de Catió chegara um rádio em que se dizia que o nosso empregado do Unal tinha sido interceptado naquele local por terroristas armados por seis pistolas-metralhadoras, pelo que iam proceder imediatamente a uma operação naquela área e apoiar o carregamento dos valores que ainda lá estão”.

O relatório não deixa margem para dúvidas, os trabalhadores da Sociedade Comercial Ultramarina do Sul estavam em polvorosa, e o relator assim escreve:

“Da parte dos empregados do Sul, a impressão que nos foi transmitida pelo encarregado de Catió é que se continuarem a ser tratados como colaboracionistas pelas autoridades militares, deixarão os locais onde trabalham, pelo que a suspeita representa e a estranheza da sua situação de terem talvez a vida arriscada pelo terrorismo e passarem a ter a desconfiança das autoridades militares apesar do muito auxílio e informações que lhes têm prestado, sempre prontos a uma colaboração efectiva.
A decisão que tomámos, de forçar o assunto e de sair a terreiro pelos empregados, principalmente de Catió e de Unal, pode ser mal interpretada, mas porque não era assunto que telefonicamente fosse exposto, entendemos que a devíamos tomar mesmo com os riscos inerentes à dureza actual das autoridades na apreciação dos actos dos civis, mas não podemos de qualquer dos modos deixar de estar preocupados com o facto, até porque fizemos a ameaça velada de fechar os estabelecimentos do Sul, desarmar as embarcações para reparação em estaleiro e reduzir os quadros de pessoal, sem esperar para tanto o acordo do Governo da Província, e depois de acordar com V. Exas. para o que bastaria pintar a situação mais negra do que na realidade é. 

"Assim muito agradecíamos os vossos comentários e se possível, em face do vosso conhecimento da situação e do que melhor convém à firma, nos fosse dada uma linha de orientação que permita que esta gerência possa ter a noção de estar com os pés o mais assentes possível sobre um terreno que se normalmente é escorregadio na presente situação é completamente movediço, mas sentimos que há necessidade de um pouco de terreno firme onde pousar, mas por enquanto ainda não o conseguimos encontrar”.

(Continua)

Passagem submersível do Saltinho, 

Do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
 
A Farmácia do Estado em Bissau.

Fotografia do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
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Notas do editor

Poste anterior de 4 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19361: Notas de leitura (1137): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19377: Notas de leitura (1139): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins e os entrevistados dos três teatros de operações foram Carlos de Matos Gomes, José Villalobos Filipe e Nuno Lousada, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18622: Notas de leitura (1065): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34) (Mário Beja Santos)

BNU - Bissau


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
A Guiné não é só uma colónia-modelo na conceção imperial, a produção agrícola de um salto. O BNU, já um grande proprietário, também sonha com a expansão, imiscuiu-se desde a produção até à exportação agrícola, vai lançando os olhos à Sociedade Comercial Ultramarina, a empresa competidora dos interesses da CUF. Se até agora os relatórios mostravam uma impressionante desafetação ao poder político, a agulha mudou de rumo, bajula-se o poder instituído, basta ler aqui a louvaminha totalmente despropositada do gerente à viagem do General Craveiro Lopes.

Um abraço do
Mário

BNU - Bissau


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34)

Beja Santos

A década de 1950 é marcante na vida do BNU da Guiné: na colónia sopram ventos de desenvolvimento, e por isso a Sociedade Comercial Ultramarina é cada vez mais atrativa para investimento. O património do Banco é gradualmente mais valioso, composto de prédios, de propriedades, não esqueçamos que inicialmente funcionou como casa de penhores, o aliciante agrícola é indisfarçável, será assim até ao período da independência. Em Maio/Junho de 1953 há uma nova inspeção ao Banco, determinada por Lisboa, no relatório subsequente aparece um documento revelador dessa aproximação entre a banca e os investimentos abarcando a produção, a transformação, o transporte, a exportação, nomeadamente para a metrópole. É do seguinte o documento que surge solto dentro do relatório da inspeção:

“Exma. Administração da Sociedade Comercial Ultramarina
Exmos. Senhores:

A Sociedade é uma grande organização, espalhada por toda a Guiné, é bem administrada.
Tive ocasião de visitar as suas actividades comerciais e industriais e fiquei com a impressão de que é organismo que pode viver e expandir-se mais. A Guiné é rica, está a desenvolver-se, não fica longe de Portugal e portanto da Europa, importante vantagem para os fretes, por isso as actividades podem seguramente, com a prudência necessária, encarar com confiança o futuro.

Ainda que a cotação das oleaginosas venha um dia a cair fortemente, como se supõe, é certo que fica o recurso da exploração orizícola, cuja produção é hoje insuficiente para as necessidades internas da Província e para a exportação, e pode ser muitíssimo aumentada, dada a extensão de regiões próprias para a sua cultura. Haverá apenas que preparar tais regiões e mecanizar a cultura.
Ainda outros recursos existem que podem ser explorados; portanto, não há motivos para desanimar, antes pelo contrário para, com entusiasmo, se explorarem. O clima da Guiné tão mortífero há algumas dezenas de anos, e raros eram os que pensavam em se fixar aqui, está profundamente alterado para melhor. Isto também é um factor importante pois mais fácil é o concurso de europeus.
Não obstante o que deixo dito do clima, ele não é bom e há muitos pontos da Província em que a modificação não é tão acentuada.

Se V. Exas. pensarem, um dia, em virem até aqui, e ainda que seja na época melhor, devem contar com violento calor principalmente em Farim e Bafatá, poeira vermelha e incómoda, e, por vezes, grandes vespas a entrarem no carro e há que ter atenção à mosca transmissora da doença do sono, já não falando nos incómodos mosquitos.
Não vi a mosca do sono, posto que um médico da respectiva missão me dissesse que ela estava muito espalhada e havia muitos casos.

Os vapores que daqui vão para a metrópole ficam ao largo e não atracam, dizem que por causa da febre-amarela, todavia pergunto se há casos e ninguém os conhece. Parece que não missão médica especial para esta doença.
Nos desembarques nas margens dos rios, se a maré está em baixo ou ainda pouco alta, a grande extensão de lodo só pode ser atravessada dentro de pirogas deslocadas à força de braços dos pretos e às vezes até é necessário aceitar a ‘cadeirinha’ que fazem com os braços para pequenas travessias, ou onde não há pirogas.
Na navegação dos rios é necessário, contar por vezes, com os encalhes, e esperar que a maré suba, no rio Cumbijã ali estivemos encalhados três horas.

Nas residenciais do interior, onde há instalações para hospedagem, tirando Bafatá, elas deixam muito a desejar quanto a rudimentares comodidades.

As actividades da sociedade estão a ressentir-se com a falta de fundos, não porque não lhes tenham sido concedidos créditos mas pelo desvio destes e das suas disponibilidades para a construção do bloco industrial na Bolola.
Estão já ali investidos 9.500 contos. Esta soma tem saído parte dos créditos concedidos à Sociedade, parte das suas disponibilidades. Representa uma imobilização cuja importância faz falta às operações comerciais e há que atender que os produtos estão mais caros e por isso a sua aquisição demanda maior quantidade de dinheiro.
Em minha opinião devia conseguir-se um crédito especial de 15 mil contos garantido pelo bloco industrial, garantido pelo bloco industrial: edifícios existentes, em construção e a construir, maquinismos existentes e ainda a adquirir.
Com tal importância, creio que tudo se poderia concluir. Dele havia que retirar os 9.500 contos já ali empregados e reverterem para o maneio da sociedade. Se o Banco Nacional Ultramarino o não quiser conceder, poderia tentar-se de outra origem”.

No relatório da gerência de 1954 a análise à situação das colheitas continua a merecer a melhor atenção. Volta a referir-se a mancarra como o pilar em que assenta a vida económica bem como todo o comércio da Guiné. Por grau de importância, a seguir às oleaginosas é o arroz, mantém-se como o produto base da alimentação dos guineenses. Não é esquecido o óleo de palma, o relator diz que é extraído dos palmares de cultura espontânea em toda a Província, predomina nos Bijagós e na circunscrição de Cacheu, cobrindo uma área de cerca de 90 mil hectares.

“Uma das primeiras medidas tomadas pelo novo governador foi convocar todos os régulos e ‘grandes’ de maior prestígio e tendo-os com ele reunido em Bissau, expôs-lhes as suas ideias quanto ao problema da produção, mostrando-lhes a necessidade de aumentarem as áreas agricultáveis e procurando, assim, interessar mais a massa indígena nos trabalhos agrícolas e implicitamente no aumento da produção desta província, pois é preciso que ela modifique as suas estatísticas que há dezenas de anos acusam os mesmos índices, sem animadoras oscilações, denotando o marasmo e rotina que, à primeira vista, se não explica, embora se creia que a produção tenha aumentado, dados os esforços desenvolvidos nos últimos anos. O que é certo, porém, é que o movimento da exportação, o único meio de que se dispõe, ainda que sem rigor, para se avaliar a produção agrícola, continua a não apresentar alterações que correspondam ao interesse e cuidados havidos.

Assim, servindo-nos dos dados respeitantes às exportações do ano findo de 1954, verifica-se que a produção da mancarra foi inferior em tonelagem. Declínio também se verificou na exportação do coconote, mas este resultante apenas de não ter sido possível a exportação de toda a produção, não só por desinteresse dos mercados estrangeiros como porque foi atingido o contingente destinado à metrópole.
Contudo, e tendo em consideração não só os quantitativos de mancarra exportados em anos anteriores, como a boa produção de arroz que, sem dúvida, foi superior à do ano anterior, pode-se afirmar que foi bom o ano agrícola que findou”.

Imagem extraída da revista "O Mundo Português"

O discurso do relator mudou radicalmente de agulha, aquilo que até agora era uma observação profunda e independente, quer na análise do mercado quer na observação socioeconómica e política, entra em sintonia com a mística do Estado Novo. Basta ler esta introdução à primeira parte do relatório de 1955:

“O facto de maior transcendência e importância, ocorrido na vida desta Província no ano findo, e pode dizer-se que em toda a sua História, foi, conforme toda a imprensa metropolitana e ultramarina o noticiou, a visita a esta Província de Sua Excelência o Senhor Presidente de República que, acompanhado do Senhor Ministro do Ultramar e das respectivas comitivas, aqui chegou no dia 2 de Maio e foi recebido com delirante patriotismo e entusiástica vibração.
Em cinco séculos de existência, foi esta a primeira vez que a Província da Guiné recebeu a visita do chefe de Estado.

Como em Bissau, o Senhor Presidente da República foi alvo de carinhosas manifestações patrióticas no interior da Província, que percorreu durante alguns dias e onde visitou grandes obras em curso, como seja a nova ponte sobre o rio Corubal, e inaugurou o importante melhoramento que constituiu a construção da ponte Salazar, em Bafatá, no rio Geba.
Várias foram as grandiosas cerimónias e festas realizadas em homenagem ao Senhor Presidente da República durante a sua estadia na capital da Província, tendo em, todas elas o nosso Banco sido representado pelo nosso Ilustre Administrador, Excelentíssimo Senhor Doutor António Júlio Castro Fernandes, e também pelo gerente desta Filial.
Porque muito bem se enquadrou no esplendor dessa visita presidencial, não queremos deixar de aqui fazer referência especial à cerimónia da inauguração em Bissau da nova estátua de Teixeira Pinto, pois constitui uma impressionante homenagem ao heróico e valente pacificador da Guiné”.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 4 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18614: Notas de leitura (1064): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19313: Notas de leitura (1133): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65) (Mário Beja Santos)

Depósito de água, em Bolama, recorre a uma tipologia comum noutras regiões da Guiné-Bissau.
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2018:

Queridos amigos,

Permitam-me uma nota pessoal. Aí por novembro de 1968, numa das minhas continuadas idas de Missirá a Mato de Cão, já na estrada de terra batida, que dista cerca de 5 quilómetros do local onde montávamos segurança, em Mato de Cão, o soldado Queta Baldé, natural de Amedalai, observou-me que logo no início da guerra tinha havido um massacre em Finete, toda a região vivia em barafunda, Bambadinca dividia-se entre quem partia para o mato e quem se matinha fiel aos portugueses. Nunca encontrei qualquer documento de valor histórico que asseverasse a observação de Queta. Ela aqui está, numa carta do gerente do BNU, revela que enquanto o Sul entrara imediatamente em ebulição, também o Leste, com Domingos Ramos à frente das operações, era a segunda frente do PAIGC.
Fica posta em causa a mitologia de que tudo começou no Sul e a seguir no Morés.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (65)

Beja Santos

A 13 de fevereiro de 1963, qual repórter de guerra, o gerente traz novas informações:

“Os assaltos a objectivos militares, já revelados a V. Exas, em correspondência anterior, vieram nos últimos dias a intensificarem-se de uma forma que não pode deixar de dar preocupações muito sérias mesmo aos responsáveis pela defesa militar da Província.

Os constantes e sucessivos acontecimentos que chegam ao nosso conhecimento através de fontes oficiais ou por simples notícias particulares não confirmadas, indicam claramente que se não houver uma acção enérgica de repressão estaremos muito próximos dos casos que tiveram lugar em Angola.
Toda a parte Sul da Província encontra-se infestada de grupos armados terroristas que à luz do dia circulam com a maior das liberdades, sem depararem com oposição.

Camiões carregados de arroz chegam a ser interceptados por bandos, para depois voltarem a circular sem que nada lhes suceda.

Até quando esta atitude de passividade para com os sectores económicos se irá manter, não sabemos. Um dia, certamente, ela se modificará, com graves e tremendas consequências para a economia e para a vida das populações.

Diz-se que são insuficientes os efectivos militares que operam no Sul, e deficiente o material que utilizam.

Diz-se que, para grupos numerosos e bem municiados em armas de recente fabrico e material explosivo como bombas, granadas, petardos, etc. etc, se antepõe a tropa com armas de inferior poder de fogo e com bombas que, por vezes, não chegam a deflagrar. Contam que uma patrulha militar, numa operação de limpeza, de cinco granadas de mão que lançou só uma deflagrou.

Só uma entidade comercial da Província, a Sociedade Comercial Ultramarina, tem sido compreendida nos ataques feitos pelos terroristas, que alguns estragos já registaram em haveres e vidas.

Além do incidente de Brandão já referido na nossa carta de 30 de Janeiro, as propriedades exploradas pela Sociedade de Bantael Sila, Chacoal e Unal, foram assaltadas, registando-se a morte de um empregado europeu em Chacoal.

No centro comercial de Salancaur, foi também assaltada a sucursal da Sociedade, e um pequeno pelotão militar que se aquartelava num dos anexos foi atacado, havendo a registar a morte de um furriel e um soldado, e três feridos de certa gravidade.

Às 8,30 horas do dia 11, a povoação de S. João, fronteira de Bolama, foi assaltada, sendo incendiadas algumas palhotas de nativos, sofrendo estragos as instalações da Sociedade.
Digno de nota, o facto de no centro comercial de Salancaur, além da Sociedade estarem representadas, também, a Casa Gouveia e Mário Lima, que nada sofreram com o assalto.

Atribuem-se os assaltos às instalações da Sociedade à circunstância de ser esta empresa aquela que mais estreitamente vem colaborando com as autoridades militares, facultando aquartelamentos para os seus efectivos, e proporcionando-lhes transportes terrestres e fluviais para munições e tropas.
Há, ainda, quem atribua os ataques a meros actos de vingança exercidos sobre os encarregados das sucursais, em consequência da exploração a que esteve sujeito durante longos anos o indígena das referidas propriedades.

Devemos informar que se trata de uma exploração em proveito do próprio encarregado, nunca autorizada nem aproveitada pela Sociedade Comercial Ultramarina.

Espera-se, para breve, a chegada à Província de dois batalhões, em reforço aos já existentes.
Bem necessários são, para que seja impedida, o mais rápido possível, qualquer infiltração às restantes zonas da Província, que felizmente continua alheia aos acontecimentos que se vão sucedendo no Sul".

O ofício de 1 de março de 1963 é de uma grande importância histórica, tenho para mim que é o primeiro documento em que refere que o Leste começa a ser subvertido, como se pode ser:

“Dando continuidade à transmissão a V. Exas. de informes até nós chegados e apelativos aos acontecimentos anormais de que esta Província vem sendo teatro, cumpre-nos informar o seguinte:
No setor Leste (Bafatá) tem havido certa actividade nas nossas tropas contra elementos terroristas radicados na área de Xime, posto de Bambadinca, cujas populações aderiram ao movimento, em quase todas as tabancas.

Na referida área actua um tal Domingos Gomes Ramos, estagiou numa escola militar de Pequim, na especialidade de guerra subversiva, que a despeito de intensas diligências levadas a cabo não foi ainda capturado, não obstante por diversas vezes ter sido localizado, pois o serviço de alerta de que dispõe facilita-lhe a fuga à aproximação dos nossos soldados.

No sector Sul (Catió e Fulacunda) tem-se verificado intensa actividade dos elementos terroristas nas regiões de Quínara e Tombali, onde estão presentemente em curso várias acções militares em grande escala, com a participação de fuzileiros navais e das forças aéreas e navais, com vista à eliminação de numerosos focos infecciosos conhecidos pelas nossas autoridades.

No sector Oeste (Fronteira Norte) tem havido por vezes pequenas incursões de elementos fixados ao longo da nossa fronteira e em território senegalês, têm sido reprimidas.

Consta-nos que as autoridades do Senegal, nomeadamente as do distrito de Casamansa, têm agido contra os chamados nacionalistas, não permitindo que o seu território sirva de base para ataques a esta Província.”

A 18 de março, o gerente de Bissau relata as operações militares no setor Sul, diz que são notícias que lhe chegaram através de fonte de origem oficial:

“A situação na referida situação da Província não é, de certo modo, tranquilizadora.
Os comerciantes estabelecidos no mato, de todas as raças, estão a abandonar as suas actividades procurando refúgio nas localidades onde se encontram sediadas as tropas que fazem a cobertura militar das suas áreas. De noite, dado que os nossos soldados recolhem aos aquartelamentos para organizarem a sua defesa, os terroristas têm campo livre para o desenvolvimento das suas nefastas actividades.

Ajudados pela configuração do terreno, conhecimento dos cursos de água e ocultos em densas, diríamos até impenetráveis florestas, de arriscado acesso e propícias a emboscadas, são inimigos invisíveis que só muito dificilmente e a troco de elevadas perdas, poderão ser desalojados dos seus esconderijos, mesmo, como ultimamente tem sucedido, com emprego de aviação militar em apoio das forças de terra, uma vez que sistematicamente se exime ao combate em campo aberto, onde certamente seriam desbaratados pelos elementos do nosso exército, inferiores em número ao que se diz.

Todavia, sempre que se lhes depara oportunidade, os nossos soldados dão-lhe caça e, como tal, em pequenos recontros têm infligido severas baixas.

Assim, damos nota de algumas acções do nosso exército:

28/2 – Abatidos 72 terroristas na região de Bambadinca – Bafatá, por tentativa de fuga à aproximação das nossas tropas;

3/3 – Um ataque conjunto das 3 armas encurralou um numeroso grupo de terroristas nas tabancas Gantongo e Ganfodé Mussa, tendo sido liquidados 160 nessa operação de limpeza;

9/3 – Em Finete – Bambadinca foram mortos 20 terroristas.

Infelizmente, noutras operações realizadas, houve perdas, ainda que ligeiras, do nosso lado.
Com efeito, em 1 de Março uma patrulha nossa da guarnição de Cabedu foi atacada entre Cafine e Cafal Balanta, resultando 1 morto e 1 ferido.

Também em 14 do corrente um grupo de terroristas atacou a camioneta da carreira Ziguinchor – S. Domingos, acerca de 1 km da nossa fronteira Norte. As nossas forças aquarteladas naquela localidade atacaram os assaltantes que atingiram mortalmente o Capitão António Lopo Machado Carmo, comandante da coluna, e ferindo 4 soldados sem gravidade.

A terminar, informamos que em 10 de Março, um pelotão sofreu uma emboscada perto de Empada. Não houve baixas da nossa parte, tendo infligido bastantes aos nossos adversários. Foi apreendida uma pistola-metralhadora russa.”

No acervo do Arquivo Histórico do BNU aparece um documento confidencial correspondente à deslocação do adjunto da administração da Sociedade Comercial Ultramarina à Guiné, entre 1 e 13 de abril de 1963, é uma preciosidade, como iremos ver.

(Continua)

Obras do Palácio do Governo, ainda numa fase inicial.
Imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim.

Máscara LUMBE.
Inserida no livro “Esculturas e Objetos Decorados da Guiné Portuguesa”, por Fernando Galhano, Junta de Investigações do Ultramar, 1971.
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Notas do editor

Poste anterior de 14 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19291: Notas de leitura (1131): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (64) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19300: Notas de leitura (1132): “O Homem do Cinema, A la Manel Djoquim i na bim”, por Lucinda Aranha Antunes; edição da Alfarroba, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19361: Notas de leitura (1137): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67) (Mário Beja Santos)


Edifício da Agência do BNU de Bissau e zonas circundantes, 1921.
Por amável deferência do Arquivo Histórico do BNU.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Não subsistem dúvidas que entre 1962 e 1963 o gerente de Bissau teve acesso privilegiado a informações que lhe eram fornecidas a título sigiloso pelo inspetor da PIDE, daí o manancial informativo que extravasava os comunicados oficiais, assim será até ao início de 1964 em que por razões que escapam à investigação o gerente se irá confinar aos comunicados oficiais.
Em meados de 1963, agravara-se a situação do Sul e a guerrilha estendera-se às vizinhanças de Bissau e era a sigla entre Bissorã e Mansabá, o PAIGC organizava-se no Oio e preparava o seu santuário na região do Morés.

Com as informações que nos irá chegar do gerente de Bissau, no final do ano também o PAIGC marcará presença na região de Bambadinca, a subversão também se organizava para lá do Corubal, as forças portuguesas eram diminutas, estavam então sediadas em Fá Mandinga, o aquartelamento de Bambadinca será posterior.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67)

Beja Santos

Tinham crescido, notoriamente, as dificuldades económicas, a desagregação que a guerrilha estava a operar no Sul motivara o comentário do gerente de Bissau em 31 de maio de 1963:  “A actividade comercial está hoje muito reduzida e acha-se quase circunscrita às operações da Sociedade Ultramarina e da Casa Gouveia” e é neste preciso contexto que o gerente, sabe-se lá se premeditadamente ou não, lança uma insinuação da maior gravidade:

“Certamente por instruções superiores, o pessoal da Sociedade Comercial Ultramarina tem colaborado com as autoridades na repressão do terrorismo.

Ao contrário, a Casa Gouveia, não só tem negado o seu auxílio dando ordens terminantes nesse sentido, como ainda despede os empregados que ajudem as nossas forças, tendo até demitido o encarregado da sua operação do Xugué, de apelido Barros, que lutou na defesa da povoação.

Por tal motivo, o citado indivíduo vai ser condecorado com a Cruz de Guerra de 3.ª Classe, consta que em 10 de Junho próximo, por actos de bravura praticados.

Como resultado de tal política, poucos prejuízos têm sofrido, ao passo que a Sociedade Comercial Ultramarina, em represália da colaboração prestada, foi obrigada a encerrar algumas operações.
Estamos habilitados a informar que a fábrica de descasque de arroz da nossa cliente Camacho & Correia, sita em Cufar, a cerca de 15 quilómetros de Catió, cremos que a única unidade industrial localizada no Sul e até agora protegida pela tropa instalada no próprio recinto fabril, vai ser desmontada e transferida para Bissau logo que termine a operação de descasque do cereal ainda existente nos seus armazéns.

Nota-se que os indígenas da região sublevada estão a aparecer vindos dos seus refúgios no mato e, caso significativo, dispostos a liquidar o imposto.

Será com o receio das chuvas, este ano muito retardadas, que de novo se aproximam do europeu? Ou do espectro da fome, esperada em face da destruição das colheitas de arroz, seu secular alimento?
Os próximos meses nos darão a resposta!

Como a V. Ex.ª. foi dado conhecimento por nosso telegrama de 25 do corrente, devido à escassez de arroz da produção local, uma vez que no Sul, tradicional celeiro da Guiné, pouco se colheu, vai o Governo da Província importar aquele cereal do estrangeiro. À primeira partida de 4 mil toneladas autorizaram outra igual, que se seguirá. Deste modo, será o habitual défice da balança comercial da Província agravado com mais este encargo da ordem das três dezenas de milhões de escudos”.

O discurso agora é orientado para informações sobre o evoluir da luta:

“A actividade terrorista manifesta-se em pequenas acções mais para marcar a sua presença, na opinião das nossas autoridades, que pelos efeitos destrutivos de que se revestem.

No prosseguimento desta táctica, na madrugada de 16, perto da fronteira senegalesa, foi atacada e em seguida incendiada a camioneta da carreira Bissau-São Domingos, presos os passageiros e pessoal de condução, todos indígenas, que não foram molestados, levados para Zinguinchor e mais tarde libertados.

Também em 4 de maio, um pequeno grupo de 15 a 20 indivíduos que se supõem pertencerem ao Movimento de Libertação da Guiné atacou a povoação de Bigene. Repelidos, deixaram rastos de sangue.

O facto mais saliente da acção militar foi a perda em 22 de maio de dois aviões ‘Harvard’, que em missão de rotina sobrevoando a ilha de Como, se despenharam por motivos ainda ignorados. O corpo do piloto de um deles, cujos destroços foram mais tarde localizados pelas brigadas de socorro saídas em seu auxílio numa bolanha situada na área de Tombali, foi encontrado fora da carlinga, desarmado, nu e coberto de palha. Crê-se que foi retirado já sem vida do aparelho sinistrado por elementos rebeldes. O outro avião, descoberto também pelas brigadas na mesma região, foi incendiado depois de uma aterragem normal. Do piloto, Sargento Lobato, não se encontraram vestígios. Corre aqui com certa insistência que está prisioneiro dos rebeldes na ilha do Como. Porém, concreta e oficialmente, nada pudemos saber. Há informações da existência de bandos armados nos territórios vizinhos das Repúblicas do Senegal e Guiné com o beneplácito dos governos respectivos”.

O gerente de Bissau regressa à escrita em 6 de julho, toda a temática se prende com a evolução da guerra. O gerente revela que a sua habitual fonte informativa é o inspetor da PIDE, demorou algumas semanas a poder estabelecer contacto e diz mesmo: “Ainda esta manhã nos deslocámos novamente ao seu gabinete com o mesmo objectivo, sem resultado positivo, não tinha comparecido ao serviço” e pede desculpa pela insuficiência de detalhes nas informações que vai prestar:

“Na semana que hoje termina, a situação atingiu uma fase muito delicada que dia-a-dia se vai tornando cada vez mais grave.

As nossas tropas aqui estacionadas são comprovadamente insuficientes para a manutenção de uma cobertura militar capaz de proteger bens e vidas dos habitantes guineenses.

Os elementos terroristas vindos dos campos de treino existentes em territórios vizinhos do Senegal e Guiné infiltram-se pelas nossas extensas e desguarnecidas fronteiras, disseminando-se pelas terras do Interior, onde praticam os ensinamentos colhidos e fazem o aliciamento das populações nativas.
Os seus últimos e violentos ataques a forças do Exército caracterizaram-se por uma ousadia e conhecimentos de táctica de guerrilhas fruto por certo de aturado treino, que causam espanto e em contraste absoluto com o seu anterior procedimento.

Nalguns sítios do Sul, caso da ilha do Como, onde estão instalados, de pedra e cal como se costuma dizer, possuem mesmo armas pesadas.

Nas margens do rio, entre Cacine e Cabedu, instalaram metralhadoras pesadas que alvejam comboios de navios de transporte de arroz, não obstante a escolta de lanchas da Marinha.

De meados de Junho a esta parte, os seus ataques recrudesceram num ritmo que está a causar perturbações e, nalguns casos mesmo, alarme na população menos calma, alargando as suas actividades a zonas onde até há pouco ainda não tinham feito a sua aparição.

Deste modo registou-se um ataque a uma coluna militar na estrada Mansoa-Bissorã. 
A três quilómetros de Farim, a caminho de Binta, foi atacado um carro particular ocupado por indígenas e feridos gravemente os seus dois passageiros.

O Sr. João Herculano Graça, sócio-gerente da Guimal, de que a Sociedade Industrial  [ou Comercial ?] Ultramarina também faz parte, ao saber da presença de elementos terroristas nas imediações da fábrica de serração daquela firma, descolou-se a Mansabá, distante poucos quilómetros, para avisar o pelotão militar ali sediado, sendo no regresso alvejado a tiro de arma automática, felizmente não foi atingido, todavia o jipe que conduzia ficou danificado.

Houve, também, uma tentativa de destruição de um pontão na estrada Nhacra-Mansoa, a 5 quilómetros desta localidade, presumindo-se pelo buraco encontrado pretendiam utilizar cargas de plástico.

Foi ainda tentado, na mesma estrada, o incêndio de uma pequena ponte de madeira com emprego de gasolina.

Os prejuízos causados, quer em homens, quer em material, a destruição por deflagração de uma mina colocada na estrada São João-Fulacunda, nos primeiros dias deste mês, de um veículo militar com novos ocupantes, foi ocorrência de maior relevo dos últimos tempos. Há a lamentar neste acidente a morte instantânea de dois militares e, mais tarde, de um terceiro que expirou a caminho do Hospital Militar desta cidade, segundo nos foi dito por médicos do Exército por queimaduras provocadas por gasolina derramada pelo depósito do veículo. Os outros quatro feridos, com queimaduras em elevado grau, seguiram para a Metrópole, de avião militar, em estado desesperado.
Chega-nos também a notícia da morte de um alferes em combate, na área de Cabedu.

As nossas autoridades procuram eliminar elementos nativos afectos ao inimigo, mas deparam com inúmeras dificuldades, avultando entre elas o mutismo a que os prisioneiros se remetem, preferindo, muitas vezes, serem maltratados a denunciarem os seus correligionários.

No entanto, consta que há dias foi apanhado o chefe da tabanca de Nhacra e os componentes da sua célula. Tal indivíduo era considerado fiel à nossa bandeira!

Outros acontecimentos se registaram, tais como: ataque a Catió com a população refugiada na igreja; bombardeamento de objectivos em Jabadá, com artilharia de bordo dos navios de guerra em comissão nas águas da Guiné; tentativas de fuga de nativos para se juntarem aos ‘libertadores’.

Do piloto-aviador, Sargento Lobato, que, como dissemos a V. Ex.ª, em 31 de Maio findo, se suponha estar prisioneiro dos rebeldes na ilha do Como, sabe-se que se acha em poder dos terroristas em território vizinho.

Temos ainda a lastimar a morte por acidente do nosso colega metropolitano Furriel Miliciano João Nunes Redondo, vítima do deflagrar de uma mina em Catió.

Não há dúvida que com a proximidade dos acontecimentos, se vive presentemente em Bissau um momento difícil.

É opinião geral que se as nossas forças não forem reforçadas com urgência de modo a abandonarem a táctica defensiva até agora adoptada em face da carência de efectivos, a situação tomará uma feição com tendência a agravar-se”.

No acervo do Arquivo Histórico do BNU encontra-se um importante documento intitulado “Situação Política na Guiné”, provavelmente redigido em maio de 1963 e que é visão do gerente da Sociedade Comercial Ultramarina, trata-se de uma peça que carreia mais informações que permitem melhor compreender o evoluir da guerra e a desagregação do tecido económico e social.

(Continua)

Vista do interior do Cineteatro Bolama, fotografia de Francisco Nogueira.
Retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.

Guarda de polícia numa recepção ao Comandante Mello e Alvim, Governador da Guiné.
Imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954.
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Nota do editor

Poste anterior de 28 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19341: Notas de leitura (1135): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (66) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de31 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19348: Notas de leitura (1136): “Cabo Verde e Guiné-Bissau, As Relações entre a Sociedade Civil e o Estado”, por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira; Editora UFPE, Recife, 2015 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24338: Historiografia da presença portuguesa em África (369): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Sendo inviável fazer uma pesquisa com uma certa diacronia entre António da Silva Gouveia e Alfredo da Silva/Sociedade Geral, socorro-me do que vem na literatura sobre esta empresa em obras centradas nas atividades daquele que foi um dos mais ousados industriais portugueses, Alfredo da Silva. Não há nenhuma literatura sobre a Casa Gouveia, no entanto ela teve um papel preponderante e impôs-se dentro da lógica da exploração agrícola, do comércio, indústria e transportes, estava praticamente disseminada pela Guiné, havia armazéns nas principais povoações e mesmo lojas. Recordo que nos relatos enviados pelo responsável do BNU da Guiné a partir de 1962 a subversão irá também incidir sobre a apreensão de matérias-primas no Sul pertencentes à Casa Gouveia, serão capturadas embarcações, os negócios da Casa Gouveia ficarão seriamente afetados nesta região. Vamos agora saber um pouco mais dos papéis existentes sobre António da Silva Gouveia nos primórdios da I República, tentar-se-á seguidamente ver nos arquivos da Assembleia da República como usou da palavra como deputado.

Um abraço do
Mário


Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF:
Uma viagem interminável (2)

Mário Beja Santos

Sempre questionei onde parava o acervo da Casa Gouveia, a principal empresa da Guiné, envolvida em explorações agrícolas, compras sobretudo de oleaginosas, algum tratamento industrial e transporte para a metrópole. Começam agora a aparecer papéis sobre António da Silva Gouveia, comerciante na Guiné e deputado, a este assunto voltaremos.

Batendo à porta da Fundação Amélia de Mello, encontrei acolhimento por parte do seu secretário-geral, dr. Jorge Quintas, que esteve profundamente ligado ao processo terminal dos Armazéns do Povo (que, como se sabe, integrava os Armazéns do Povo criados durante a luta armada e o acervo da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita), cedeu-me um conjunto de publicações donde extraio hoje elementos que poderão ser úteis para entender como Alfredo da Silva, através da Sociedade Geral de Comércio Indústria e Transportes, incluiu no seu património a Casa Gouveia. O professor Miguel Figueira de Faria é o responsável por 3 livros editados por Publicações Dom Quixote em 2021 com os respetivos títulos: "Alfredo da Silva Biografia", "Alfredo da Silva e Salazar" e "Alfredo da Silva e a I República". É dessas publicações que procuraremos extrair algumas informações sobre a Sociedade Geral e como esta se veio articular com a Casa Gouveia.

Inesperadamente, dei com o livro de apologia de defesa da Guerra do Ultramar saído do punho do jornalista do Diário de Notícias Martinho Simões, "Nas Três Frentes Durante Três Meses", artigos publicados no DN em 1965 e editados pela Empresa Nacional de Publicidade no ano seguinte. Visita a Guiné e elogia o portuguesismo dos seus comerciantes. Começa por um comentário que não corresponde à verdade dizendo que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, isto em 1920. Refere as três casas grandes que dominam o vasto complexo mercantil: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e a Barbosas & Comandita. “As duas primeiras, alargando o âmbito das suas atividades, detêm e orientam importantes setores industriais, essencialmente constituídos por centros de transformação das matérias-primas, os mais representativos dos quais se ocupam do descasque do amendoim e do arroz, dos óleos vegetais e dos sabões; a última, mantendo-se, essencialmente, no campo comercial, dispõe de um conjunto de estabelecimentos, cujo primordial objetivo é a compra de amendoim.”

E dá-nos conta das obras sociais dessas empresas, destaco o que diz sobre a Casa Gouveia:
“A par de constantes gastos na ampliação das suas instalações, concede maiores regalias aos seus empregados: bolsas de estudo a naturais da província, para frequentarem cursos universitários na metrópole; assistência médica e cirúrgica, frequentes vezes prestada na metrópole, quando os recursos locais são insuficientes; pensões de reforma por velhice ou invalidez, orçadas em 550 contos anuais; visitas à metrópole dos empregados naturais da Guiné com certo número de anos de casa, a fim de lhe proporcionar melhor conhecimento da comunidade portuguesa; cursos práticos para formação, entre os naturais da Província, de técnicos de mecânica, metalomecânica, eletricidade, química orgânica, marcenaria e outros, abrangendo preparação complementar em organizações industriais da metrópole.”

E visita com satisfação um centro industrial modelar, no Ilhéu do Rei, como escreve:
“Visitei o centro industrial da Casa Gouveia servido por ponte-cais privativa, devidamente equipada para cargas e descargas e cujas ligações são asseguradas por transportes fluviais próprios. Perfeitamente montado, dispõe de centrais diesel-elétrica e de vapor; de fábrica de descasque de mancarra com capacidade para setenta toneladas em oito horas de laboração; de fábrica de extração, por expellers, de óleo de amendoim, com capacidade de laboração de vinte e duas toneladas diárias de matéria-prima e de refinação, com controlo laboratorial; de instalações automáticas de lavagem, enchimento e pesagem e um grupo fixo de armazenagem para quatrocentas toneladas, bem como para farinação de bagaços; de um estaleiro, com plano inclinado, para recondicionamento de embarcações; e de um sistema de captação de água potável a grande profundidade.”

Em texto anterior, aludimos a duas obras de Miguel Figueira de Faria [foto à direita] sobre Alfredo da Silva, volumes dedicados à biografia e à sua atividade na I República. No volume dedicado a Alfredo da Silva e Salazar, volta-se a mencionar a Sociedade Geral e o seu avanço para a carreira de África. Alfredo da Silva, refere o autor, geria a Sociedade Geral, a sua frota era responsável pelo transporte de matérias-primas importadas que alimentavam as fábricas da CUF, frota fundamental na exportação dos produtos prontos a comercializar. E teve duras batalhas durante os anos 1930, a Sociedade Geral era temida pela concorrência e em 1932, embora a crise mundial desse sinais de abrandar houvera diminuição do comércio internacional e os preços dos serviços caíam a pique, a Sociedade Geral acumulava prejuízo nas suas carreiras.

É nesta atmosfera que Alfredo da Silva se dirige a Salazar, recém-chegado à Presidência do Conselho, dá-lhe a saber que recorrera a um empréstimo pessoal que se não pudesse solver prontamente teria de hipotecar a própria casa de habitação, pede apoio ao Governo. Acresce que a ida dos navios da Sociedade Geral para a exploração do comércio colonial só era praticável com autorização do chefe do Governo. Alfredo da Silva tenta uma vez mais adquirir a Companhia Nacional de Navegação, segue-se uma assembleia-geral desta empresa em grande agitação, acaba em tumulto, continua no dia seguinte, e no dia depois, e por aí fora, Alfredo da Silva afasta-se, deu como falhada a segunda tentativa de aquisição da CNN. E lança-se na carreira de África, faz requerimentos ao ministro da Marinha, procura rentabilizar alguns dos seus barcos. A 6 de abril de 1933, a Sociedade Geral transmitiu ao diretor da marinha mercante que o vapor Maria Amélia sairia a 21 do corrente até a Angola, a notícia deixa alarmados os administrados da Companhia Colonial, Alfredo da Silva verá as suas pretensões aprovadas, a Sociedade Geral pôde alargar as suas carreiras até Angola, limitadas até então à Guiné.

A CUF vai recuperando do pior período da sua história, a Sociedade Geral obtém permissão para continuar com os seus quatro navios na carreira de Angola, Alfredo da Silva estava autorizado a fazer o tráfego sem restrições entre a Guiné e a metrópole. Vão começar os diferendos entre Alfredo da Silva e Salazar. Este envia um convite ao industrial para integrar a Câmara Corporativa. Entrara-se numa nova era, vem a guerra civil de Espanha, haverá a conceção de estaleiros navais do porto de Lisboa à CUF. Em 1942, Alfredo da Silva falece em Sintra, a CUF entrará numa nova era sobre a égide do seu genro Manuel de Mello.

Como não disponho nesta altura mais nada sobre a Casa Gouveia vou ver o que se pode encontrar em António da Silva Gouveia, membro do Partido Republicano na Guiné.


(continua)
Navio Silva Gouveia, no porto de Lisboa, em 1941
Ilhéu do Rei, vista parcial do complexo da Casa Gouveia, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24322: Historiografia da presença portuguesa em África (368): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19496: Notas de leitura (1150): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Duas razões para mim de muito peso seguem com este apontamento que submeto à vossa leitura. Não conheço nenhum texto de índole política, social e económica tão influente como estas notas elaboradas em 1957 pelo administrador Castro Fernandes, figura gradíssima do regime de Salazar. No fundo, é uma solene advertência de que tudo tem de mudar, estão a acontecer coisas na emancipação de África, mesmo ali à volta da Guiné, atenda-se à franqueza do diagnóstico e atue-se, antes que seja tarde.
A outra razão é de caráter muito pessoal, e pode abranger todos os camaradas da Guiné que porventura tenham conhecido Mato de Cão. Veja-se a imagem da estação no rio Geba, com ela convivi de agosto de 1968 a novembro de 1969, com uma frequência inusitada, uma regularidade quase diária. Montava-se a segurança num ponto alto, e em certas ocasiões subia a passagem, para que os barcos, civis ou militares, me identificassem, era ali que pedia boleia para Bambadinca, para mim e para os meus. Que impressão tão forte me provoca esta imagem!

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes, a propósito da sua visita à Guiné Portuguesa entre 9 de março e 8 de abril de 1957 são uma peça de indiscutível importância não só pelo leque dos assuntos versados, a crueza de opiniões e a formulação de conceitos coloniais, a análise económica e o punhado de sugestões que apresenta para revigoramento da Sociedade Comercial Ultramarina. Iniciou a apreciação dos recursos económicos dando prioridade, como era óbvio, à mancarra. Segue-se agora uma apreciação do coconote.

A palmeira de azeite produz óleo de palma, coconote e vinho de palma. E é minucioso ao dizer que “o óleo de palma é extraído da polpa que envolve a amêndoa, o coconote é a amêndoa, o vinho é extraído da ferida feita junto ao cacho”. Diz mais: “A palmeira abunda na zona do Litoral. Maciços mais extensos: Arquipélago dos Bijagós, Cacheu e S. Domingos. Cobre uma área aproximada de 90 mil hectares”. Fala sobre a tonelagem exportada de óleo de coconote e de óleo de palma. E fala concretamente do que viu: “Tive ocasião de em diversas tabancas e moranças assistir à preparação do óleo de palma. Entre Teixeira Pinto e Cacheu, vi uma das instalações administrativas para o descasque do coconote e esmagamento da polpa. O indígena utiliza o descascador mas recusa o esmagamento ou trituração da polpa”.

A única fábrica de óleo de palma que existe é a de Bubaque, diz adiante e lança números sobre a mesa, não descurando comentários próprios:
“O coconote ocupa o segundo lugar na exportação da Província. O descasque é feito, geralmente, pelo indígena – é mal feito e à custa de um esforço perfeitamente estúpido. Além da fábrica de Bubaque, existem algumas britadeiras (umas administrativas, por utilizar quase todas; outras particulares). O desinteresse por parte do indígena na utilização destas britadeiras tem sempre a mesma causa – paga-se por preço inferior ao razoável o coconote bruto adquirido ao indígena (os detentores das britadeiras querem lucros elevados para a rapidíssima amortização do capital investido nas maquinetas).”
A única produtora de óleo de coconote já estava fechada, mas entrara em negociações com o BNU. E tece um comentário final:  
“O comércio do coconote faz-se como o da mancarra. Os mesmos processos, a mesma técnica. O coconote compra-se através de todo o ano, o indígena tem as suas reservas para ocorrer às necessidades mais prementes. As pontas são de maio a Outubro. Neste negócio do coconote, a grande vantagem está ao lado dos que possuem descasques de arroz.”

Entrando na apreciação do alimento preferido pela população guineense, esclarece:  
“Reputa-se em 70% da superfície total os terrenos susceptíveis de serem aproveitados para o cultivo do arroz.
É impossível determinar com rigor a produção, sobretudo em virtude do contrabando para o Senegal, Guiné Francesa e Gâmbia. Calculando-a pelo rendimento por hectare, admite-se uma produção de 90 mil toneladas”.
E enumera a produção pelas diferentes regiões da Guiné. Havia fábricas de descasque, eram três: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e Mário Lima. E informa que “Os donos do descasque são também comerciantes que, por intermédio das suas redes de lojas ou por contratos com os comerciantes – intermediários, adquirem a maioria da produção não exportável por contrabando. Todo o arroz descascado fica, assim, em seu poder, sendo vendido em Bissau, nas suas próprias lojas”. E dá conta de um outro pormenor, além do arroz descascado há o arroz de pilão, este não pode ser misturado com o arroz descascado mecanicamente.

Vê-se que Castro Fernandes está seriamente documentado e possui informação atualizada:
“Segundo o Governador, a cultura do arroz é uma cultura colectiva que não pode ser levada a efeito em pequenas propriedades individuais. O arranjo das terras, a construção dos diques, exige o trabalho de toda uma organização. É o trabalho das tribos que é exercido, principalmente pelos Balantas. Diversas causas têm desorganizado o trabalho tribal, tornando impossível, quando tal se dá, o cultivo do arroz. É o caso dos Papéis da Ilha de Bissau. Solicitado para toda a espécie de trabalhos, foi-se desorganizando, desarticulando a tribo e não são as mulheres e as crianças que podem proceder aos amanhos e cultivo dos terrenos. O problema consiste em recuperar terrenos, pondo-os em condições de se fazer a respectiva cultura e, ao mesmo tempo, em não desorganizar a tribo, só recrutando homens para o coconote e outros trabalhos, na fase da cultura que as mulheres podem fazer. É esta a orientação que o Governo da Província está a imprimir aos milhares e milhares de hectares que se estão recuperando. Ao Estado compete fomentar a cultura, criando os meios necessários para tal: recuperação de terrenos, organização e defesa do trabalho tribal, obras de rega e de defesa, auxílio ao indígena (tractores, plantas, etc.). O indígena – acrescentou o Governador – tem a compreensão exacta do problema. Os velhos queixam-se de que lhe vêm buscar os rapazes, desorganizando por completo a única forma de exploração possível do arroz.
O caso do Sr. Álvaro Boaventura Camacho funciona estupendamente porque, justamente ele é verdadeiramente o régulo, fazendo os indígenas nas suas propriedades um trabalho tribal.
As propriedades do Sr. Álvaro Camacho – em casa de quem estive hospedado – estão situadas na região de Tombali, circunscrição de Catió. É chão de Nalus, mas – graças à fixação operada através de 30 anos pelo Sr. Camacho – predominam os Balantas. A produção do arroz nesta circunscrição estima-se em 20 mil toneladas. Em Cufar (a 15 quilómetros de Catió) tem a residência e em Cantone os armazéns de arroz, fazendo-se daqui o respectivo embarque. Os indígenas cultivam o arroz nas propriedades do Sr. Camacho que lhes compra o produto, vendendo-lhes os que necessitam”.

O Administrador Castro Fernandes irá ainda debruçar-se sobre os produtos têxteis, a cana sacarina, o gergelim e purgueira, o rícino, o cajueiro, as plantas alimentares, a exploração florestal, a borracha, a pecuária, a cera e o mel, a pesca e as indústrias. Há observações relevantes: até agora, a cultura algodoeira tinha sido um fracasso, bem como a sumaúma; acreditava-se que a cana sacarina tinha viabilidade económica, o Governador não parecia particularmente entusiasmado, seria de atender ao gravíssimo problema do fabrico e consumo de aguardente (“O Balanta, que só trabalha 4 meses por ano, anda bêbado os outros 8 meses. As mulheres já dão aguardente às crianças”), o Governador dissera a Castro Fernandes estar a procurar por formas indiretas diminuir sucessivamente a produção de aguardente; o gergelim e a purgueira tinham largas possibilidades de expansão na Guiné; o cajueiro constituía pela proteção do solo um conectivo à desmedida agricultura de sesmeiro; a Guiné, reconhecia-se, tem condições francamente boas para uma eficiente exploração florestal, mas era indispensável um esforço de repovoamento ordenado com espécies úteis; as possibilidades da pesca eram ainda desconhecidas e dizia-se no relatório que a tentativa de J. da Silva Peralta era, por enquanto, extremamente tímida e limitada; quanto às indústrias, à parte das instalações da Sociedade Comercial Ultramarina e da Casa Gouveia e da instalação da Sofuil em Bubaque, pouco havia a assinalar. Em síntese, uma indústria extremamente rudimentar.

No capítulo dedicado às perspetivas, o conjunto de observações merece todo o destaque:
“Conseguirá a Guiné Portuguesa passar do estado de colónia-feitoria?
Existe uma certa evolução, ao menos nas ideias, no sentido de passar da simples exploração do existente para a criação de verdadeira riqueza.
Há hoje um interesse, todos os dias crescente, pela Guiné havendo sinais de que não só as grandes firmas (refiro-me à CUF) se preparam para investir capitais em explorações tecnicamente bem estudadas, como se anunciam certas tentativas interessantes. Receio, porém, que algumas delas fracassem (tenho sérias dúvidas, por exemplo, quanto à fábrica de borracha) e que tal fracasso desencoraje os outros.
Mas não nos fiquem dúvidas de que o que está, como está, se não poderá manter por muito mais tempo.

Os Serviços Agrícolas locais têm uma missão extraordinariamente importante, mesmo decisiva, a cumprir. Mas organizar-se como estão – servem menos do que para nada.
Além de não haver bom pessoal (tecnicamente), o quadro é mais do que exíguo e pessimamente dotado. Ainda por cima a terra é pouco desejada, os que vão para a Guiné têm um único objectivo – sair da Guiné, serem transferidos para outra Província (conquanto que não seja para Cabo Verde). De modo que não há, nem pode haver, continuidade. Um estudo, uma experiência iniciada hoje, é interrompido, fica pelo caminho, perdendo-se o que porventura se tinha obtido.
Os nossos vizinhos do Senegal conseguiram já, quer na mancarra, quer no arroz, resultados apreciáveis, tanto na selecção, como no aumento do rendimento, como na obtenção de variedades apropriadas às diferentes características de solos e climas.

Mas não basta organizar capazmente os Serviços Agrícolas – embora seja essencial e urgente fazê-lo – é necessária, para que se obtenham os resultados que importa obter, uma perfeita cooperação do produtor e do comerciante. Educação do indígena (que tem de começar por o não roubar), disciplina do comércio (que hoje facilita as fraudes e desleixe do indígena – comprando tudo quanto apresenta, por mais inferior que seja o produto). A justificada má fama da mancarra e do coconote guineenses no mercado mundial é apenas o resultado da nossa incapacidade em comerciar com decência – incapacidade que advém, ao fim e ao cabo, do regime de monopólio em que vivem as empresas compradoras da Metrópole. Como os lucros dão para tudo – para comprar pelo mesmo preço a mancarra e as impurezas que contém – os importadores da Metrópole não fazem questão. Como assim é, os pequenos comerciantes não discutem com o indígena, aceitam o que este lhe trouxer. Por outro lado, rouba-o quanto pode o que, por si, justifica as fraudes que o indígena – em legítima defesa – pratica. É uma cadeia, uma pouca-vergonha, é uma verdadeira praga, uma autêntica calamidade…

Que as coisas melhoram, sente-se. Que têm de melhorar é axiomático – a menos que queiramos estar, dentro em breve, a braços com as maiores dificuldades.
A Guiné já não é hoje inteiramente uma quinta da CUF. Para tanto, em muito contribuiu o crescimento da Sociedade Comercial Ultramarina, obra do nosso Banco a que é de inteira justiça ligar o nome do Sr. Visconde de Merceana. Oxalá o enfraquecimento, ou mesmo a queda, desta empresa não venha fazer-nos andar para trás. O BNU nada ganharia com isso – muito pelo contrário – e a Guiné também não.
A consciência dos problemas – que é por agora o resultado verdadeiramente positivo da evolução económica da Guiné – obrigará a CUF se quiser manter a sua posição, a investir dinheiro da Guiné e a pôr ao serviço do progresso da Província a sua técnica e os seus quadros. De contrário, terá – a curto prazo – desgosto e desgosto sério. O mesmo se põe para os outros grandes, cada um dentro da sua escala.

A Guiné, repete-se, continua ainda no estado de colónia-feitoria. Mas tudo indica que as coisas se vão modificar.
Não pode o Estado arcar sozinho com o peso de transformar a Guiné – mas para que se saia da pura ‘economia de resgate’ tem de, por processos indirectos, obrigar os que querem a carne a terem o seu contrapeso de osso.”

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.


Imagens tiradas de As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique, Agência-Geral do Ultramar, 1961.
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Nota do editor

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Último poste da série de 11 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19490: Notas de leitura (1149): O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva; Revista Análise Social, n.º 130, 1995 (Mário Beja Santos)