quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3666: O meu Natal no mato (19): Spínola, as meninas do MNF, o bispo de Madarsuma e um jornalista, em Gandembel, 1968 (Idálio Reis)

Guiné > Região de Tombali > Gandembel > Natal de 1968 > Missa de Natal capelão-mor dad Forças Armada. A este respeito escreveu o jornalista , Césa da Silva, em reportagem publicada no Diário Popular, de 17 de Março de 1969 (*):

"Gandembel foi a última posição avançada da Guiné que visitei durante a minha estadia nesta Província. Cheguei ali de helicóptero com o bispo de Madarsuma, Vigário Castrense das Forças Armadas, no dia de Natal. Recebeu-nos o comandante da sub-unidade, e, pouco depois comparecia também o governador e comandante chefe das Forças Armadas da Guiné. Assistimos à missa campal em ambiente de fervorosa fé. O prelado e o Governador partiram. Eu quis ficar. Era o meu adeus à guerra e queria portar-me com dignidade perante aqueles jovens soldados que me olhavam risonhamente, talvez comentando o facto de à nossa chegada (a do bispo de Madarsuma e a minha) ter sido festejada pelos 'turras' com algumas descargas de morteiro e de metralhadoras pesadas. Julgo até, que eles comentavam entre si o facto de os normais habitantes de certo abrigo me terem ali, quando estes entraram (…) ao explodirem as primeiras granadas. Eu pensava que 'gato escaldado de água fria tem medo ...' e tentava adivinhar a sensação do bispo de Madarsuma, que subitamente se sentiu agarrado por um braço no meio da parada e levado para o mesmo abrigo, onde eu já me encontrava"


Foto: ©
Idálio Reis (2007). Direitos reservados

1. Mensagem do Idálio Reis (*), ex-Alf Mil da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69), engenheiro agrónoma reformado, residente em Cantanhede:


ASSUNTO: Em Gandembel/Ponte Balana, apenas se celebrou um único Natal, precisamente há 40 anos (**).


Naquele plaino, qual clareira decorrente do derrube de uma pequena parte de uma verdejante e luxuriante floresta, para aí se sitiar um acampamento militar, pairava por aqueles dias uma certa acalmia. E esta morna tranquilidade, de todo não era usual.

E os silêncios circundantes, de tão esquisitos na sua serenidade, contribuíam paradoxalmente para uma ambiência de desconfiança, mais tensa e pesada, onde transparecia um agastamento que se tornava difícil intentar esbater.

O PAIGC vinha diminuindo gradativamente o seu fulgor belicista, no que provocava uma situação bonançosa inesperada. E esta alteração de comportamento não nos agradava sobremaneira.

Quem ousaria predizer as suas razões? Talvez nos quisesse brindar com um período de tréguas mais ou menos dilatado, ou então estivesse a urdir alguma estratégia ardilosa de forma a aproveitar uma melhor ocasião para desencadear um dos seus terríveis ataques.

Tínhamos porém, uma forçada e prolongada tarimba, para encarar cuidadamente tais situações, para o que bastava que o estado de alerta se mantivesse prudente e vigilante.

No início da semana de Natal, foi-nos dado a conhecer que o capelão-mor das Forças Armadas viria celebrar uma missa campal.

Os preparativos para esse dia não poderiam ser de grande monta, mercê das circunstâncias que nos eram impostas, mas houve a alegria bastante para se proceder a uma limpeza mais esmerada da pequena parada, que serviria de lugar de culto. Assim, numa quarta-feira, dia 25 de Dezembro, como habitualmente fomo-nos levantando aos primeiros raios do alvor. Era dia de Natal, e muito certamente o único que a Companhia passaria em Gandembel/Ponte Balana, e talvez mesmo em terras da Guiné, já que do tempo de comissão decorrido, tudo indiciava que a próxima Natividade seria passada no tão desejado aconchego familiar.

Bastante cedo, fomos procedendo às tarefas de rotina, e com um efectivo redobrado, seguimos até ao rio Balana buscar água; tudo haveria de correr de feição. O almoço, haveria de ser mais avantajado e suculento, já que tínhamos recebido determinados víveres que deram azo a que a ementa fosse das melhores que durante esta longa estada nos fora proporcionado.

E ao princípio da tarde, vestidos a preceito (onde a camisa era indumentária de gala), esperámos o séquito que haveria de vir ao nosso encontro. E pouco tempo passado, irrompiam nos ares do horizonte, um conjunto de helicópteros, que aterravam celeremente no centro de Gandembel, donde iam saindo diversas personalidades. E logo, aquelas singulares máquinas alares - as únicas que nos puderam tantas e tantas vezes socorrer-, levantavam.

Recordo os que pisaram este chão térreo: uma comitiva do Movimento Nacional Feminino, onde pontificava a sua Presidente, D. Ana Supico Pinto; presbíteros liderados pelo Bispo de Madarsuma; o Comandante-Chefe António de Spínola com alguns militares do seu Estado Maior; um jornalista do Diário Popular.

A Companhia postou-se junto a uma das casernas-abrigo e aprestou-se a dar as boas-vindas. Em silêncio (não em sentido), Spínola aproximou-se de nós e durante alguns momentos fitou-nos de frente [apresentava um fácies de olhar lânguido] e profere uma alocução muito breve em que abordando o tema do Natal, deu particular ênfase aos conceitos de Deus, Pátria e Família. Muito seguramente já havia tomado a decisão pela evacuação daquele aquartelamento, mas nada exteriorizou. De todo o modo, julgo que ao findar as suas palavras, parece ter-lhe perpassado um frémito de emoção, e repentinamente manda descer o seu helicóptero e segue um outro caminho, porventura menos ínvio e liberto que este.

As senhoras do MNF, em atitude bastante contida, simpaticamente fizeram uma pequena oferta a cada um de nós. O Natal de 1968 também nos obsequiara com o maior número de mulheres que Gandembel jamais tivera oportunidade de agregar, e ”nas conversas de caserna” referia-se que talvez fosse a maior prenda que o Pai Natal nos aportara.
Também se retiraram rapidamente.

Ficavam os membros do Clero, para a concelebração da missa. Um altar improvisado e uma Companhia em que a maioria dos seus homens eram católicos praticantes, sentida e contemplativamente ouvem e rezam em murmúrio dolente e fervoroso.

Mas, mal a missa acabou, começam a detonar uma série de granadas de morteiro 82, lançadas junto à fronteira. O bispo e seus acólitos ficam atónitos ante tal quadro e num relance meia dúzia de soldados vão em seu socorro, pegam-lhes nos braços e conduzem-nos para uma das casernas-abrigo. Passaram-se cerca de 10 minutos, terminam as deflagrações, e o helicóptero que devia estar em Aldeia Formosa é chamado, e os membros da Cúria também seguirão outros destinos.

Restou ente nós, o jornalista do extinto Diário Popular, que haveria de escrever um belo artigo sobre a guerra de Gandembel/Ponte Balana, e que o Blogue já o divulgou na sua quase generalidade.

O Sol, entretanto começa a empalidecer, e como havia conhecimento que no dia seguinte viria um helicóptero, cada um reconheceu que era o momento ideal para se escreverem algumas letras de saudade.

E a vida, felizmente para a maioria de nós, foi continuando. Em Gandembel/Ponte Balana, um Natal único, muito provavelmente o aquartelamento com um efectivo de Companhia, de todas as Províncias, em que se celebrou uma só vez.

E o tempo de hoje, vai-nos devorando, quando procuramos tactear as sensibilidades daquele dia ou de um qualquer outro similar.

Há recordações imorredouras…!

A toda a Tertúlia e seus familiares, veementes desejos de Boas-Festas.

Um forte abraço do Idálio Reis (***).

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Notas de L.G.:

(*) Vd.poste de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3404: Recortes de imprensa (9): Em Gandembel - O adeus à Guerra (José Teixeira/César da Silva)

(**) Vd. últimpo poste da série O Meu Natal no Mato > 21 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)

Vd.postes anteriores:

20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)

18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3550: O meu Natal no Mato (16): Os meus Natais na Guiné (Luís Dias)

16 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3636: O meu Natal no mato (15): Salsichas com arroz na messe de Sargentos, na Consoada de 1968... (Jorge Teixeira)

12 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3609: O meu Natal no mato (14): Numa tabanca fula em autodefesa (Torcato Mendonça)

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3597: O meu Natal no mato (13): De Cutia (1970) ao CAOP1, em Teixeira Pinto (1971) (Jorge Picado, ex-Cap Mil)

24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2379: O meu Natal no mato (12): Mansoa, 1971: Uma de caixão à cova... para esquecer o horror (Germano Santos)

24 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2378: O meu Natal no mato (11): Saltinho, 1972: O melhor bolo rei que comi até hoje, o da avó Clementina (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2374: O meu Natal no mato (10): Bissau, 1968: Nosso Cabo, não, meu alferes, sou o Marco Paulo (Hugo Guerra)

22 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2373: O meu Natal no mato (9): Embarquei no N/M Niassa a 21 de Dezembro de 1971... Que maldade! (João Lima Rodrigues)

21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - 2372: O meu Natal no mato (8): Bissorã, 1964 (João Parreira, CART 730)

21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2370: O meu Natal no mato (7): Destacamento do Rio Udunduma, 1969, Pel Caç Nat 52 (Beja Santos)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2366: O meu Natal no Mato (6): Peluda, 1969: a Fátria, Manel (Torcato Mendonça)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)

18 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2361: O meu Natal no mato (4): Cachil, 1966: A morte do Condeço e do Boneca, CCAÇ 1423 (Hugo Moura Ferreira / Guimarães do Carmo )

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2357: O meu Natal no mato (3): Banjara, 1965 e 1966: um sítio aonde não chegavam as senhoras da Cruz Vermelha (Fernando Chapouto)

17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2356: O meu Natal no mato (2): Bissorã, 1973: O Milagre (Henrique Cerqueira, CCAÇ 13)

16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)



(***) Vd. poste de 19 de Julho de 2007 Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

Guiné 63/74 - P3665: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (10): Mensagens de camaradas que se nos dirigiram (Carlos Vinhal)

Mais mensagens de camaradas que se nos dirigiram com votos de Boas-Festas dirigidas a todos os tertulianos


1. Retribui e agradece em dobro com paz amor e saúde acima de tudo
Assim como para todos os Guineenses

Um grande abraço para todos
F Chapouto
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2. Feliz Natal. Bom Ano Novo

José Pedrosa
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3. Amigo Carlos:
Para ti, e por teu intermédio para todos os restantes camaradas da Tertúlia, os meus profundos desejos de umas Festas Felizes em família, com paz, saúde e em harmonia.

Um abraço do
J. Armando Almeida
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4.

Para todos um
BOM NATAL E UM 2009 CHEIO DE SUCESSOS

Benito Neves
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5.

A todos os Tertulianos e camaradas da Guiné desejo um Natal muito feliz
e um novo Ano com muita saúde, paz e amor.
Como é fácil perceber nem todos estarão na sua melhor forma.
Para esses, desejo que recuperem o mais rápido possível, e que nunca percam a esperança.
Deus vos acompanhará.

Um grande abraço para todos
Artur Conceição
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6.

Desejo a todos um Natal Feliz, cheio de paz, amor, amizade, sorte, felicidade, e tudo, tudo de bom. Próspero Ano de 2009.

Artur Soares
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7.

Para:
Luís Graça, Carlos Vinhal, Virginio Briote e
restante pessoal camarada da Tabanca Grande, com os votos de Feliz Natal e um próspero Ano Novo

Tino Neves
Almada
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8.

Amigos
Boa Festas e Bom ano
Jorge Teixeira
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9. A todos os amigos e camaradas da Tabanca Grande e suas famílias desejo um BOM NATAL e um PRÓSPERO 2009.

Luís R. C. Moreira
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10. Neste Natal e por teu intermédio quero desejar a todos camaradas da Tertúlia e suas famílias... Festas Felizes, super 2009.

Abraço
FIRMINO
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11.

Todos os anos nesta época, somos convidados a fazer Natal - criar ambientes de paz. amor. fraternidade, solidariedade . . .
Como é Natal, quando o homem quer, e, porque o Menino Deus nos desafia, tentemos fazer Natal todos os dias.


Para ti, e para tdos quantos te são queridos, os melhores votos de um Santo Natal
José Teixeira
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12. Manuel Vieira Moreira,
ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, BISSORÃ 67 e XIME 68-69, envia a toda a Tertulia, através do nosso amigo e companheiro Carlos Esteves Vinhal, votos de um SANTO NATAL e o 2009 cheio de SAÚDE
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13.

Pessoal da "Tabanca Grande":

Para todos vós, e vossos familiares e amigos, sinceros desejos de um Natal cheio de paz e saúde, e que o ano de 2009 seja de esperança e concretização dos vossos sonhos.

Festas felizes
Jorge Santos
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14.

Manuel Lema Santos
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15.

SINCEROS VOTOS DE BOAS FESTAS

Francisco Palma
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16. Feliz Natal para todos vós amigos tertulianos, junto daqueles que vos são são mais queridos!!!

Anexo uma mensagem diferente... (*)

do Pira de Mansoa
Eduardo M.R.
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Notas de CV:

(*) Qualquer trabalho enviado em Power Point, não pode, como é lógico, ser editado para publicação no Blogue. Dá uma trabalheira, copiar os slides e convertá-los em formato jpeg... Façam isso por nós, pobres editores, atarefadíssimos com o movimento natalício...

Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3653: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (11) : Pepito e Isabel, do Quelélé com muito amor... e muita esperança

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3664: O meu Pelotão (António Matos)

Mensagem de António Matos, de 16 de Dezembro de 2008

África tem em Portugal o seu interlocutor privilegiado. Eu testemunho-o!

Um dia, na tranquilidade de um fim de tarde de canícula africana, estirado numa chaise longue que ameaçava desintegrar-se devido à sua artesanal concepção, à conversa com meia dúzia dos meus soldados, recordávamos, à laia de flashback, o que já tínhamos passado de mau e de menos bom naquela guerra, sem sentimentos patrióticos mas com um querer imenso de sobrevivência, contando os dias que faltavam riscando num calendário feito de propósito, numa cartolina preta escrita a marcador branco, entretendo-nos a entregar a roupa às bajudas lavadeiras na convicção absoluta de que mais tarde, à noite, seríamos, uma vez mais, perturbados na paz que tanto desejávamos por um inimigo inculto, ainda que aguerrido, e impossibilitado de compeender a ineficiência daquele conflito, prendando-nos com algumas rajadas de metralhadora.<

O sentimento com que o soldado português era automática e imediatamente tocado à chegada à Guiné era de uma afabilidade incomensurável, sem ideias bélicas pré-concebidas, sem azedumes de qualquer espécie, sem qualquer nesga de racismo, e a demonstrá-lo aí estavam as relações travadas desde logo com as populações no que às actividades normais do dia-a-dia diziam respeito.

No dia da chegada a Bula logo se deram a amizades que durariam aqueles dois anos e algumas delas, provavelmente, enraizaram-se com o nascimento de alguma criança não programada ...

Nem os combates nem a imponderabilidade da vida lhes afectava aquela intimidade espontânea ...

Hoje percebe-se porque é tão fácil o relacionamento de África com Portugal ...

Mas, voltando àquele dia, arrisquei a pergunta ao Moniz se já tinha esquecido um grande acidente que o nosso grupo tivera e no qual faleceram 3 camaradas. O Moniz tinha nas mãos um pássaro muito bonito, colorido, onde o azul sobressaía.
O seu semblante modificou-se profundamente e respondeu-me com muita serenidade:
- Meu alferes, se eu apanhasse um daqueles turras, fazia-lhe isto! - Acto contínuo, com os dedos indicador e polegar, puxou a cabeça do bicho tendo-o decapitado! Pura e simplesmente!
Ficámos por ali, sem recriminações, mas ainda hoje recordo com bastante assiduidade esta cena tão selvática quanto compreensível.
Como açoreano, acredito que o Moniz tenha emigrado e nunca mais ouvi falar dele.

O Pelotão.



Encetei há uns tempos a procura dos meus soldados que ainda se encontrem entre nós. Já "descobri" 4 deles!

Proponho-me reuni-los todos de uma só vez tendo a noção da homérica acção que isso será uma vez que, na sua maioria, são açoreanos.

Fica prometida a "fotografia de família" se a tanto conseguir chegar!

António Matos

BCaç 2928/CCaç 2790

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Nota de vb: Último artigo do António Matos em

14 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3621: Em busca de... (57): Ex-combatentes do BCaç 2928 (Bula...1970/72) (António Matos)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3663: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (14): Jubi, bô tem dos ôbo na mão?


FEITIÇO

No pátio junto às instalações dos alferes, estava sentado um garoto de sete ou oito anos, com um ovo em cada mão.

Passou o furriel Pinto, viu o garoto, reparou nos ovos e lembrou-se da bola de pingue-pongue que tinha no bolso dos calções. Perguntou-lhe:
- Jubi, bô têm dos ôbo na mão?
- É. É p’ra noss’ alfero Silva. Num ‘stá lá.

O furriel Pinto retirou do bolso, com a mão direita, a bola de pingue-pongue, deixando entrever grande parte da bola entre o indicador e o polegar. Perguntou ao garoto:
- Esso é ôbo?
- Sim.
- Suma esso?
- Sim.

Então, arremessou a bola contra o chão de cimento, voltando a agarrá-la. O rapaz levantou-se num repente, olhando o furriel com grande espanto.
- Ué!!!!
- Jubi, bô faz cum ôbo suma esso! – e atirou a bola ao chão repetidas vezes, agarrando-a a seguir.
- Nega! Nega! – gritou o rapaz, entre espanto e medo.
- Bô faz suma esso! Bô faz suma esso! – repetia o furriel, batendo a bola no chão .
- Nega! Nega! Nega! – berrava o rapaz, desesperado, mantendo os ovos bem agarrados nas mãos. Ao mesmo tempo, dizia “não” com o corpo todo – abanando a cabeça, batendo (repetidas vezes) com os cotovelos contra o tronco e com um joelho contra o outro joelho.
- Bô faz suma esso! Bô faz suma esso! – repetia o furriel.
- NEGA! NEGA! NEGA! – berrava o garoto, enquanto fugia.

Já longe, passou por uma mulher, que o interpelou. Parou, apontou para o furriel e, assustado, berrou:
- Feitiço!!! Tem feitiço!!!

E refugiou-se na tabanca.
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Nota de vb:


Último artigo da série em

11 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3603: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (13): Quatro actos para um ponto de vista...

Guiné 63/74 - P3662: As Nossas Mulheres (4): As que casaram com a...Guiné (Virgínio Briote)



À minha Mulher, às nossas Mulheres

por Virgínio Briote (*)

Em Santa Luzia, QG, Bissau


O aroma dela nas cartas, falta pouco, um mês só, não vou a Lisboa esperar-te, mas quando puseres os pés em terra, lembra-te, estou contigo. Em Bissau, a noite quente não lhe trazia ideias. Uma folha toda em branco, enorme, com tanto espaço para responder, nem sabia como começar. Quero estar contigo, sem mais ninguém por perto. Uma frase só numa carta. Não tenho mais para dizer, não sei o que escrever.

Vinte e quatro meses de cartas para lá e para cá. Escritas de coisas a encher papel, que de guerra não havia que dizer. Tinha cumprido, sem um desvio, o que tinha prometido a ele próprio, não falar de coisas de um mundo que se vivia longe. Que havia de dizer aos Pais e à namorada? De bazucas, de morteiros, de costureirinhas, de feridos, de estropiados, de evacuações? De uma guerra que se discutia? Não, não à namorada e aos Pais nem pensar.

Quando falava da Guiné, era do tempo que escrevia. Do calor e da humidade que nunca sentira. Vê lá tu, acabo de tomar banho e só de me limpar com a toalha estou outra vez a suar. E do tempo que falta, já estou aqui há quatro meses, falta-me pouco para ir de férias. Umas férias que também nunca vieram, por culpa dele. Quem havia de se meter em sarilhos na Associação Comercial de Bissau? Quem havia de fazer frente a um coronel, na ordem de batalha, dizer-lhe nas trombas, com oficiais presentes, que ele, senhor coronel, estava errado na vocação?

Não posso ir de férias, fui castigado, na tropa diz-se punido, por falta de respeito a um senhor coronel. Já passou um ano, só falta o outro. Vai passar num rápido. Estou bem, em descanso, não tenho nada para fazer, limito-me a esperar pelo dia em que te vou abraçar. Não é preciso testemunhas, só quero estar contigo, os dois sós.

E foi assim, a descontar num calendário riscado dia a dia, que o regresso se foi fazendo, até Janeiro de 1967. Tinha embarcado para a Guiné em 10 de Janeiro de 1965 e, exactamente no mesmo mês e dois anos depois, estava no Uíge, de volta.

Não acreditava, a ponte Salazar acabada, a Conde de Óbidos na mesma, tantas cerimónias de idas e vindas depois. E o ar de Lisboa, o frio de Janeiro, as pessoas enroupadas e ele ainda cheio de calor, da reserva que trazia das terras quentes.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, já que estava cheio de pressa. Só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil Gil da Silva Duarte, indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, se em casa dos pais, se na da madrinha. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

Um dia frio de finais de Janeiro. O Porto era o Porto do Sol escondido, o eléctrico chiava pela Carvalhosa e Cedofeita abaixo até aos Aliados. Os olhos nem sabiam para onde se virarem, o cheiro era o mesmo Lancôme. Dois anos depois e quase tudo na mesma.

Ao lado dele, Ela linda, de sobretudo azul escuro de botões prateados, os olhos levemente pintados, a cara lisa e redonda, os olhos magníficos. Ele, ainda cheio de calor, de blaizer azul escuro e calças cinzentas, camisa branca e gravata de tons vermelhos como gostava, Atrix nas mãos dadas, rua 31 de Janeiro, de nome mudado para Santo António, acima até à Batalha, muito mais silêncio que palavras de ocasião. Um embaraço, tanto tempo depois, tantas palavras para dizer e tanto silêncio.

Porque não dizes nada? Mais perguntas, maior a vontade de se fechar. Um mundo diferente passava-lhe à frente. Pessoas nas ruas, sorridentes, a vida a correr e as recordações não despegavam. Bolanhas, camaradas, trilhos, coladeras, cerveja, tiros, uísque, terra a ferver, pés queimados, noites escuras e logo a seguir brilhantes como se dia fosse. Outro mundo, uma semana e pouco depois.

As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.

As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.

As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.


Em 1971, quatro anos depois da Guerra e ainda à procura da paz.

Foto: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados


As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.

Às nossas Mulheres, às que estiveram nos Terreiros do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.

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Nota dos editores LG/CV:

(*) Vd. poste de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1943: Virgínio Briote, novo co-editor do blogue

(i) Virgínio António Briote, 63 anos, nascido em Cascais.


(ii) Asp mil em Set de 1964, no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira.


(iii) Mobilizado para Cabo Verde, dois dias depois para a Guiné. Engano, disse-lhe o Comandante do BII17.

(iv) Em rendição individual, foi para Cuntima, onde permaneceu de Janeiro até Maio de 1965 na CCAV 489, do BCAV 490.

(v) No final da comissão do Batalhão, esteve nos Comandos, onde fez o 2º curso de Instrução.

(vi) Comandante do Grupo Diabólicos, de Setembro de 1965 até Junho de 1966.

(vii) Extinta a CCmds da Guiné nessa data, foi destacado com o remanescente dos grupos para reforço do sector de Mansoa, onde se manteve até Set do mesmo ano.

(viii) Até à data de embarque em finais de Janeiro de 1967, prestou serviço na CCS do QG em Bissau.

(ix) Na vida civil, ingressou na Indústria Farmacêutica, tendo trabalhado em várias multinacionais, como responsável pelos departamentos comerciais.

(x) Motivos de saúde obrigaram-no a reformar-se aos 60 anos. Dá colaboração a empresas farmacêuticas, em colaboração com empresas de recursos humanos.

(xi) Vive em Lisboa e é casado com a Mria Irene, professora do ensino secundário, ainda activíssima. É pai e avô... babado.


Vd. também o blogue do Virgínio Briote > Guiné, Ir e Voltar - Tantas Vidas> Guiné. Ir e voltar. 1965 e 1967. Histórias baseadas em factos reais, mas vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu . (...).

Guiné 63/74 - P3661: Blogoterapia (84): Vai-te embora, tuga dum carago! (José Teixeira)

1.Mensagem do José Teixeira, com data de 21 de Dezembro:


Querido amigo Luís.

És um chatarrão (não sei se vem no dicionário) do carago, mas amigo de coração (*).

Então, desde que tive o grato prazer de conhecer a tua Alice no QG de Bissau, agora com o nome pomposo de hotel 24 de Setembro (nem de propósito), ainda mais preso a vocês, fiquei.

Admiro a tua garra e teimosia e agora a tua /vossa (os três bloguistas mor) em manterem esta chama blogosférica acesa, contra alguns ventos e marés (poucos, felizmente). É um ninho permanente de novidades verdadeiramente vividas e sentidas. São histórias de arrepiar, que muitas vezes fazem o coração tremer e as lágrimas teimosas descerem pela face, apesar de tantos anos se terem passado, já. São um reviver da nossa própria história, quando ouvíamos o estrondo da saída, lá longe. reflexo de alguém que me gritava no mato:
- Tuga, vai-te embora !

Vou tentando dar o meu singelo contributo. Sou só e apenas, alguém, que esforça para que a nossa história seja contada pelos nós próprios. A história dos combatentes por uma Guiné que os senhores do poder de então queriam que fosse portuguesa à força das armas e se serviam do melhor tesouro de Portugal (o verdadeiro, com mais de 900 anos de história),a juventude para abafar a força da razão de um povo - o direito a ser livre e condutor do seu próprio destino, nem que esse destino fosse o caminhar para um inferno. Seria correcto, sim, procurar dar-lhe condições para eles, os naturais da Guiné, evoluirem culturalmente, política e economicamente para o grande passo, tal com nós, os que somos pais, fazemos com muito amor, dedicação, carinho e sacrificio para com os nossos filhos.

Essa história foi vivida por nós, é nossa (**).

É urgente que a contemos antes de passarmos para o outro lado da vida e já faltou mais do o que falta agora. Assim estamos a evitar que a nossa história a verdadeira, porque vivida no terreno e sentida na vida seja construida na base da corrente politica que impere na altura em que algum historiador /inventor, tente passar ao papel a sua interpretação histórica dos nossos gestos e actos.

Será que não os vemos já por aí, a insultar-nos, chamarem-nos cobardes e até a perguntarem porque é que fomos, se não queríamos defender a dita (sua) pátria - Portugal pluri-continental e pluri-racial à força, esquecendo-se que havia um Estado totalitário, que nos impunha um único caminho - Carne para canhão ou fuga para o estrangeiro com o anátema de cobarde ou de traidor à pátria.

Os nosso filhos, os nossos netos e vindouros que irão perpetuar o nosso sangue, não podem ficar a navegar nas águas da mentira histórica que é construída de acordo com os ventos políticos que na altura (data) correrão. Não nos podemos demitir, agora que temos na mão os meios possíveis para o fazer. Bem hajas pela coragem que tiveste em arrancar com este projecto que ficará, não tenho dúvidas na História de Portugal e será no futuro uma fonte grandiosa de pesquisa e estudo. Fonte verdadeira, que não permitirá extrapolações ou deturpações da nossa verdadeira história.

Por tudo isto, vou escrevendo umas asneiras, que vocês dão a lume, com tanto carinho que me deixam deslumbrado e, porque não, um pouco vaidoso.

Luís amigo, espero que tenhais uma boa viagem até à terra dos morcões que o Natal seja verdadeiramente Natal para todos quantos vos são queridos e aguardo o prazer de vos Ver na Madalena nos próximos dias.

AS melhoras da Alice para que possa comer umas rabanaditas, carago !

Fraternal abraço do
José Teixeira

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 19 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3652: Blogoterapia (83): Voltamos a pôr a Ana (e o José...) a sorrir, na nossa fotogaleria (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3651: Estórias do Zé Teixeira (31): Um Pide, um marabu e um balanta de Bula que se converte ao Islamismo (José Teixeira)


(...) Comentário de L.G.:

Grande Zé! Que em 2009 a gente possa fazer uma festinha, na Tabanca de Matosinhos, para comemorar o lançamento do teu primeiro livro de contos!Quem te deu esse talento, meu morcão ?Hoje não vou estar aí, com muita pena minha, mas olha, dá uma cópia do meu "Poemombro ou um ombro amigo" a quem sentires mais em baixo, mais triste ou mais cansado da vida... São os meus dois cêntimos para a festa da Tabanca de Matosinhos. Diz à malta que eu fico a roer as unhas de pena (e de inveja) por não poder estar aí vocês todos, como ainda planeei...Alice tem estado adoentada... Devo chegar só à tarde, no sábado, e vou primeiro direito à aldeia (Candoz)... Passo o Natal na Madalena. A gente há-de se ver...Luís

domingo, 21 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3660: O meu Natal no mato (18): Olossato, 1966 (Rui Silva)

1. Mensagem do Rui Silva;

Uma história (verdadeira) de Natal

O Natal da 816 no Olossato (Dezembro de 1966)
Das minhas memórias: “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa”-


... Entretanto chega o Natal. O Capitão reúne o pessoal mais graduado, lembra e propõe um programa festivo assinalando tão interessante data e, claro está, a que o pessoal, por doutrina própria, é sensível. Sabíamos que estávamos longe, muito longe dos outros santos do nosso presépio (família) e que também estávamos num sítio errado.

No programa salientava-se um espectáculo de teatro com peças mais ou menos rápidas: cenas de humor, canções, fados, poesia, coro, etc. Só esperávamos era que não houvesse foguetes, presentes do inimigo.

Apareceram habilidosos para tudo. Tudo isto culminava com um jantar de rancho melhorado no dia seguinte, dia de Natal, aonde se reuniu, no refeitório dos soldados, toda a família 816.

Quanto ao espectáculo teatral este começou antes de o ser, pois o bom amigo do Moreira que entretanto tinha improvisado um pequeno palco, de formato quadrado, com tábuas apoiadas em pequenos troços de troncos de palmeiras, ao qual aplicou, nos dois vértices posteriores, dois potentes faróis de viatura militar originando um foco luminoso dirigido aos actores… de ocasião, dando assim mais vida ao espectáculo e até a dar um ar de teatro profissional.

Lembra-se, e aqui é que começa o circo, da sua louvável ideia de arranjar um sistema de cordas e roldanas que permitiam um movimento de puxar esta ou aquela corda, consoante o interesse em abrir ou fechar as cortinas (cortinas mesmo, de alto a baixo) que escondiam o palco aquando da mudança de número e tarecos e à boa maneira dos verdadeiros teatros. O engenho foi testado várias vezes e não havia dúvida, para garbo do Moreira, e a boa surpresa dos outros, a coisa estava funcional. Puxava-se uma ponta da corda e o cortinado abria. Puxava-se a outra ponta e o cortinado fechava. O Moreira sorria com o evento. Estava um primor!, e até parecia um teatro a sério! Por ali já havia sucesso.

Mas o melhor ia sair: logo ao começar do espectáculo o sistema… AVARIOU!

As cordas emaranharam-se de tal maneira que o pano, uma vez fechado, não mais abriu, para nossa desolação e maior frustração do Moreira. No entanto, acabou por o melhor remédio ser uma grande risota. Houve também quem as não poupasse ao diligente e agora desolado Moreira, mas o teatro prosseguiu na mesma, ... de cortina aberta. Tudo afinal contava para uma alegre e boa disposição.

Os cenários e outros adereços, que faziam parte dos diversos números, eram então mudados e montados mas agora mesmo à vista dos espectadores, isto é, ao vivo, o que tirava um certo valor ao programa, mas tudo se compôs com a compreensão e a boa disposição da plateia.

Entre os diversos números destacava-se “A barbearia dos surdos-mudos”, no qual fazia de barbeiro o corpulento Barrumas. O próprio barbeiro era também, claro, surdo-mudo.

Então o barbeiro esperava que se juntassem três fregueses. Logo que chegasse o terceiro freguês sentava-os em outras tantas cadeiras que estavam alinhadas. E então ia trabalhar em série.

Pegava então numa corda que tinha também 3 rolhas fixas a espaços regulares, espaços esses iguais aos de cadeira a cadeira e então com os 3 clientes já sentados, ele punha uma rolha na boca de cada um deles e de forma que a corda ficasse bem esticada.

Depois de afiar a sua grande navalha, que mais parecia uma faca de cortar bacalhau na mercearia, ele puxa a ponta da corda que fazia com que as 3 caras virassem todas ao mesmo tempo e para o mesmo lado. Puxava em seguida por a outra ponta e agora as 3 caras viravam para o lado oposto. Assim o barbeiro barbeava ora as faces esquerdas ora as faces direitas dos clientes no mesmo movimento. Era um trabalho em série e bem sincronizado.

O que acontece é que o dia não estava para as cordas, pois quando ele pega na corda que tem as três rolhas (tantas como os clientes a barbear) para pôr as rolhas nas bocas dos clientes, já sentados, a corda das rolhas enriça-se de tal maneira que faz com que duas das rolhas ficassem muito chegadas. Com isto 2 dos clientes ficaram com as caras quase encostadas, na circunstância o Cowboy e o Vizela. O Cowboy então, por pouco não aguentava a situação, pois ia rebentando com o riso.

Os clientes da barbearia, ou sejam os fregueses, foram escolhidos a dedo, para tornar o número mais aliciante e assim, aos dois fregueses atrás referidos juntou-se o Fonsequinha. Que trio!!

O Fonsequinha, como era pequeno, mal disse, pelos gestos –não nos esqueçamos que os clientes eles eram todos surdos-mudos- ao que vinha, o Barrumas pega nele por a gola do casaco e assim suspenso, senta-o numa das cadeiras. O Fonsequinha com o seu bigode à Hitler, estava mesmo a calhar para a cena.

O número acabou por se fazer, mas o problema da corda embaraçou barbeiro e barbeados, que à mistura com os risos dificilmente suportados perderam assim alguma serenidade para desempenharem bem o seu papel. Ao fim e ao cabo a malta acabou na mesma por se rir, mais até com o inesperado episódio da corda, e como estávamos ali para nos rirmos…

O barbeamento foi no entanto feito com qualidade, ainda que com algum sacrifício e alguma ginástica de Barbeiro e barbeados. Se o número era já de rir a história das cordas aumentou aquele.

Eu que estava na parte de trás do palco -nos bastidores- quando aconteceu ver o Cowboy quase em cima do Vizela e o embaraço do Barrumas, não mais me interessei ver a peça e foi dar largas à minha enorme vontade de rir, pois a peça era agora outra.

Entre outros números, o Piedade cantou, o Correia apresentou os seus fados de Coimbra, entre eles o seu “Mar eterno”. O Ludgero foi figura principal num número em que o Belchior, então espectador, saiu bem molhado com água.

Por sua vez o Belchior saiu-se com poesia, e bem, ou ele não tivesse pinta para isto. Eu e o Carneiro fomos os apresentadores e houve também um coro –que abriu o espectáculo - muito bem ensaiado pelo Alferes Esteves. A coisa não foi má e aquele alegre convívio fez-nos esquecer a mágoa que porventura sentíamos de nos vermos naquele dia distante da família e num clima de guerra.

O Natal passou. Entretanto toda a malta recebeu do MNF (Movimento Nacional Feminino) um isqueiro e alguns maços de tabaco como lembranças de Natal.

Pela passagem de ano também se fez festa. Dançou-se e cantou-se na cantina dos soldados. O Pele-e-osso foi figura preponderante a dançar, pois ficou-se ali a saber que ele era elemento de um grupo de folclore. Que bem ele dançava! O Capitão apareceu depois e também cantou “O meu menino é d’oiro” e, pronto, o passar do ano também não passou sem festa. Uns copitos e danças (daquelas ao Deus dará –ninguém rachou a tola-) e eis-nos no dia 1 do ano de 1967.

A página da quadra do Natal foi virada e tudo voltou à rotina do dia-a-dia.

A operação seguinte…..

Rui Silva
Ex-Fur Mil
CCAÇ 816
(Guiné 1965/67)
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste > 20 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P3659: Tabanca de Matosinhos (8): Natal 2008: Memorável convívio no Milho Rei (Carlos Vinhal, texto; Jorge Teixeira, imagem)

NATAL 2008 DA TABANCA DE MATOSINHOS

Em Matosinhos, sexta-feira à noite, foi Natal

Cinquenta a 60 pessoas, entre ex-combatentes da Guiné e respectivos acompanhantes, confraternizaram num ambiente extarordinário de camaradagem e amizade, no Restaurante Milho Rei.

Desde Torre de Moncorvo a Lisboa, passando pela Régua, Gaia, Espinho e Aguada de Cima, a Tabanca de Matosinhos reuniu camaradas e famíliares. Muitos mais gostariam de estar presentes, mas motivos vários forçaram a ausência.

Já durante o jantar, e apesar do enorme ruído na sala, consegui ouvir e registar palavras amigas e solidárias do Editor Luís Graça e do tertuliano Jorge Picado que bem gostariam de estar connosco naquele momento. Agradecemos retribuímos os votos recebidos. Contamos convosco para o próximo Natal.

Aproveito para entregar ao Luís uma mensagem especial do senhor Basto, pai do nosso tertuliano Álvaro Basto. Confidenciou-me ter ficado triste por o Luís não poder estar presente, pois gostava de lhe dar um abraço. Envia-lhe os melhores votos de Boas-Festas e um Novo Ano em pleno de saúde.

De registar uma mensagem enviada para Matosinhos pelo Doutor Julião Soares Sousa, Presidente da Direcção da Casa da Guiné-Bissau de Coimbra, agradecendo o que alguns camaradas da Tabanca de Matosinhos têm feito em prol da Guiné-Bissau.

O bacalhau estava óptimo, assim como a perna de porco assada. Bom vinho branco e tinto (conforme o gosto), óptimo digestivo do Zé Manel, alguns doces (rabanadas e bolo-rei incluídos) e café. Melhor não podia ser.

O ponto alto da noite estava para vir com a actuação dos músicos privativos da Tabanca de Matosinhos, a saber: David Guimarães, Jorge Félix, Álvaro Basto e mais dois cavaquinhos dos quais lamentavelmente não sei o nome. António Pimentel andou muito tempo com o instrumento na mão, mas não sei se se fez ouvir.

Alguns dos presentes resolveram estragar a actuação dos instrumentistas, tentado e conseguindo, não raras vezes, cantar ao som da música.

Quando se olhou para o relógio, já o dia era outro e as ruas de Matosinhos apresentavam um movimento reduzido.

Basta de palavras e passemos aos melhores momentos registados pelo nosso camarada Jorge Teixeira que passei a conhecer pessoalmente desde ontem.

Texto (incluindo legendas): © Carlos Vinhal, editor (2008)
Fotos: © Jorge Teixeira (2008). Direitos reservados.


Ala esquerda da mesa, onde se destaca o Silva em primeiro plano. O nosso médico veio de Lisboa especialmente para o convívio.

O cantinho da família Marques Lopes. Batista prova o tinto.

O nosso Pira de Mansoa, o bom camarada Eduardo Magalhães, procura o melhor ângulo para a foto da noite. Na tela passa um filme feito em Março, na Guiné-Bissau.

O nosso camarada Jorge Teixeira contempla uma bela travessa de bacalhau, enquanto mão marota rapta uma indefesa rodela de batata frita. Que cheirinho!!! Almeida parece dizer: - Não perdes pela demora.

Na ponta da mesa, Lobo, David Guimarães e esposa em conversa com outros camaradas

Está-se mesmo a ver que quando cheguei junto da mesa... já outros por lá tinham passado.

Marques Lopes e Zé Manel parecem disputar a pomada. Ao fundo, David Guimarães observa a contenda.

Ala direita da mesa onde pontuam Xico Allen, João Rocha, Barroso, família Marques Lopes, Batista, Senhor Basto e Joaquim Almeida (Custóias), entre outros.

Novamente a pomada é motivo de alguma tensão. Os semblantes de José Teixeira e Paulo Santiago enganam. O momento é mesmo grave.

Nesta foto, o Zé Teixeira confere as contas, não vá o diabo tecê-las.

Neste momento já os músicos se faziam ouvir, embora a amplificação sonora parecesse ter sido comprada em alguma loja dos trezentos. Ou dos chineses?

O nosso jovem companheiro, senhor Basto, pai do camarada Álvaro Basto, circula pela sala. Como ex-militar que é, procura a melhor estratégia para defesa e para o ataque.

Não acham o tamanho do instrumento desproporcionado ao tamanho do tocador.

As senhoras não deixaram os seus créditos por mãos alheias e toca a fazerem-se ouvir.

Carlos Silva e Xico Allen trocam impressões. Como vamos atacar as rabanadas?

Como se pode observar, concordância é coisa que não existe. Cada dedo, um objectivo. E efectivos para tantos golpes de mão?

Álvaro Basto ataca o instrumento, enquanto Pimentel parece perguntar se as cordas são todas para usar. Batista pensa, mas não pode ajudar.

A esposa do Carlos Silva dá umas ideias ao Jorge Félix, quanto ao alinhamento do concerto.


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Notas de CV:

Podem também ver reportagem do acontecimento na Tabanca de Matosinhos, em:
http://tabancapequenadematosinhos.blogspot.com/2008/12/tabanca-encheu.html

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3591: Tabanca de Matosinhos (7): Jantar de Natal, sexta-feira, 19 de Dezembro de 2008, no Milho Rei, em Matosinhos (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P3658: Historiografia da presença portuguesa em África (14): Postais antigos, um relicário de João Loureiro (Beja Santos)

Imagem da capa da publicação Postais antigos da Guiné, da autoria de João Loureiro.


Foto: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados


1. Mensagem do Beja Santos:

Assunto - Um relicário dos postais que enviámos aos nosso entes queridos!
Malta, telefonou-me há dias o Dr. João Loureiro, autor destes esgotadíssimos postais da Guiné, felicitando-me pelos 2 livros meus sobre o meu diário de guerra que ele muito apreciou e pedindo-me para nos encontrarmos.

Aqui está o lindo presente de Natal que acabo de receber. A obra divide-se em quatro secções:

(i) Bissau no primeiro quartel do século XX;
(ii) Bissau dos anos 40 aos inícios da década de 70;
(iii) Aspectos do interior;
(iv) O Povo e os Costumes.

Prometeu-me entregar em Janeiro ou Fevereiro outro exemplar para o Luís Graça, que ele tanto admira. O título da colecção é: Memória Portuguesa de África e do Oriente (*). É uma edição de 2000.

Vou enviar, mais tarde, imagens sugestivas dos postais que escrevemos a quem tinha saudades nossas. Ambiciono que o nosso blogue possa juntar os documentos mais importantes da nossa história comum (**).

Um abraço do Mário

___________

Notas de L.G.:

(*) Nesta colecção, há outras publicações de João Loureiro: postais antigos de Macau (1995), de Moçambique (1997), de Angola (1997), de São Tomé e Príncipe (1997) e de Cabo Verde (1998).

Vd. Memória de África

Autor - LOUREIRO, João
Título - Postais antigos da Guiné
Local - Lisboa
Editor - João Loureiro e Associados
Ano - 1997
Nº pp - 143
Preço - c. 35 €

"Os 248 exemplares que seleccionei para estes 'Postais Antigos da Guiné' , destacados de um lote superior de 550 que constitui a respectiva 'caixa' de arquivo, procuram documentar a génese e a evolução da cidade de Bissau, aspectos relevantes das vilas do interior e, com alguma ênfase que é natural num território com uma enorme variedade étnica e cultural, tópicos da vida e dos costumes do povo guineense.» (Fonte: ACVL On Line)

(**) Vd. último poste desta série > 17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3642: Historiografia da presença portuguesa (14): A exótica Bissau do Séc. XVII e o papel de D. Frei Vitoriano Portuense (Beja Santos)

sábado, 20 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3657: (Ex)citações (8): As lágrimas e os amigos (Ana Mendonça)

1. Mensagem de ontem, da nossa amiga Ana Lourdes Mendonça, esposa do nosso camarada Torcato Mendonça, e que passou recentemente por uma prova de fogo (*):

Obrigada, amigos (**).

Parafraseando um grande poeta:

“Amigos verdadeiros não são os que nos secam as lágrimas..
são sim os que não nos as deixam cair…”

BOAS FESTAS, FELIZ ANO 2009


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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3652: Blogoterapia (72): Voltamos a pôr a Ana (e o José...) a sorrir, na nossa fotogaleria (Luís Graça)

(**) Vd. último poste da série (Ex)citações > 28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3533: (Ex)citações (7): A reciclagem das garrafas de cerveja na Ponta do Inglês (José Nunes / Manuel Moreira)

Guiné 63/74 - P3656: Tabanca Grande (105): Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71)

1. Mensagem de Luís Nascimento, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71, com data de 31 de Julho de 2008:

Nome - Luís Nascimento (ASSASSAN)
Posto - 1.º Cabo OP Cripto
Companhia - CCAÇ 2533
Localidade - Canjambari/Farim
Ano - 1969/71


2. Mensagem dirigida ao nosso novo camarada em 17 de Dezembro de 2008:

Caro Luís Nascimento

As nossas desculpas por só agora estarmos a responder à tua mensagem que esteve perdida este tempo todo no mail profissional do Luís Graça, autor e editor-chefe do Blogue.

O endereço que deves utilizar é: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com que é o mail onde todos os três editores têm acesso.

Julgo que a tua mensagem é para aderires à nossa Tabanca Grande. Vou tomar na melhor consideração a tua vontade, logo considera-te desde já membro do nosso Blogue.

Em contrapartida esperamos de ti algumas histórias passadas com a tua Companhia, já que no nosso Blogue só há umas leves referências a ela.

Aguardamos notícias tuas, esperando que nos desculpes.

Um abraço do teu camarada
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

______________

Notas de CV:

Vd. Sítio Leste de Angola > 15 de Março de 2008

CCaç 2533 (Guiné) convive a 29 de Março [de 2008] em Santa Marta de Portuzelo.

Os ex-militares da Companhia de Caçadores 2533, que estiveram na Guiné, em 69/71, realizam o Convívio, dia 29 de Março, na "Quinta do Carvalho", em Santa Marta de Portuzelo.

Contacto: 1.º cabo Silva,  919 326 354 – (trabalho: 229 441 603) Fax 229 416 362 (229 448 012 depois das 20h e fins-de-semana).

Guiné - História > CCAÇ 14 (1969/74)

(...) Após ter deslocado um pelotão para Farim, a partir de finais de Dez70, foi transferida para Farim em 20Fev71, depois de ter sido substituída, por troca, pela CArt 3331. Rendeu, na função de intervenção e reserva do sector, a CCaç 2533, com vista a realizar acções de contrapenetração no corredor de Lamel. Destacou ainda pelotões para reforço temporário de outras guarnições, nomeadamente de Binta, de 25Abr71 a 12Jun71, Jumbembém e Canjambari. (...)

Vd. também a página Guerra da Guiné 1963/74, por Carlos Silva > 69/71 CCAÇ 2533 Canjambari

Vd. último poste de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3644: Tabanca Grande (105): António Cunha, Radiotelegracista da CART 1613 (Teixeira Pinto e Guileje, 1966/68)

Guiné 63/74 - P3655: Estórias do Zé Teixeira (33): Histórias de Natal (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, datada de 19 de Dezembro de 2008, com quatro pequenas histórias de Natal e não Natal, nas suas sentidas palavras:

Carlos
Junto o texto sobre o Natal.
José Teixeira




HISTÓRIAS DE NATAL, OU... TALVEZ NÃO

1. Reencontro com a Djuvae

No Natal de 1968 a Djuvae de Mampatá Foreá, prestou-se para ser postal de mensagem de Natal. Não era propriamente uma beleza em termos físicos. Era sim, uma rapariga, perdão, uma bajuda muito alegre e comunicativa. Tenho gravados na memória bons momentos passados juntos, sobretudo ao principio da noite, quando nos juntávamos, eu, ela, a Fátma Ió, a Auá e a Mariema à porta da sua morança. Desde contarmos histórias, cantarem para mim lindas canções fulas e outras brincadeiras, até que surgia o Hamadú, o Sargento do Pelotão de Milícias, o zelador pela segurança da população que acumulava com a função de marabu na pequena Mesquita local. Obrigava-nos a seguir cada um para sua casa ou abrigo sem ruído, estragando assim a festa.

Quando voltei a Mampatá em Março de 2008, esqueci-me de a procurar e não a reconheci, quando se abeirou de mim. Para me obrigar a ir ao caixote mais fundo da minha memória, dirigiu-se-me e com o seu sorriso característico, recordou-me a maneira como eu a cumprimentava naquele tempo da nossa juventude:

- Tissera, bó ka na lembra ! Mama garandi, mama piquena, apalpando os seus próprios seios.

Creio que basta aos camaradas que tiverem a coragem de lerem estes apontamentos, apreciarem a foto junta, para tirarem conclusões.

- Tu és a Djuvae ?

- É mesmo! - Enquanto se pendurava no meu pescoço num fraterno e demorado abraço.

Nesse dia, àquela hora foi Natal para mim.

A Djuvae, em 2008 quis tirar uma fotografia comigo, sentada na minha perna, tal como antigamente


2. Desencontro de Hamadú

O Hamadú, acabada a guerra foi viver para Buba. Procurei-o em 2005, mas não o consegui ver. Estive com uma das filhas e com uma neta. Ele, como sempre, estava na Mesquita a exercer a sua missão de Marabu.

Em 2008 tinha como objectivo, voltar a procurá-lo. Logo em Guiledge, soube que tinha falecido em Dezembro.

Nesse momento não houve Natal.


3. Reencontro com Ádama

Quando voltei a Mampatá, veio ao meu encontro a Ádama, a mãe da nha mindjer, a bebé que me foi apresentada com 42 graus de temperatura e desenganada pelo doctor de Bissau.

Ia morrer, com paludismo agudo, mas eu salvei-a administrando-lhe um anti-palúdico num acto médico que hoje me levaria à prisão. Como prémio foi-me oferecida pela mãe, para nha mindjer.

A menina, hoje mulher, não vive em Mampatá, logo não a pude ver, mas a mãe, essa ajudou-me a recordar alguns dos momentos que mais me marcaram: a sua vinda todas as manhãs com a bebé ao colo, parte mantenhas a Fermero e trazer uma cantara de água fresca que ia buscar à fonte de Ieroel (o local de onde o IN nos atacava ao cair da noite) ou então o pequeno cacho de bananas – tua mindjer parte agua para tu na bibe,ou, parte banana.

Se à noite ao passar pela morança onde viviam não ia dar um beijinho à bebé, logo a mãe me chamava: - Fermero vem parte mantenhas a mindjer di bó . E, quando vindo da Chamarra com destino a Buba, passei por Mampatá, aquela mãe, veio a correr depositar-me nos braços a bebé: - Toma, leva minina, mindjer di bó.

Tão belos momentos, quer no antigamente, quer em Março de 2008 foram Natal para mim.

A Ádama e a Djuvae no dia em que sendo Março, foi Natal para mim


4. O encontro com o filho de Binta Bobo

Também a Binta Bobo, irmã mais nova da Ádama, ainda uma criança, foi mensageira da paz naquele Natal de 1968. Às costas levava nha mindjer, a bebé, filha de sua irmã mais velha a Ádama,

A Binta Bobo (a mais alta)com a bebé. A seu lado, a companheira de brincadeiras, filha mais novas do Hamadú com a maninha às costas

A Binta Bobo, cresceu, fez-se mulher. Em 1974, devia estar uma garota linda! Creio que ainda não tinha casado, mas já estava destinada, ou prometida, ou negociada desde pequenina.

Da relação com um militar português engravidou e teve um filho. Foi repudiada e a sua vida a partir de então não foi nada fácil, até que a morte a veio buscar prematuramente.

Seu filho, procurou-me em 2005 no Saltinho. Queria conhecer o pai. Pensava ele que eu o conhecia, mas não. Quando deixei Mampatá a Binta era uma criança.

O filho da Binta Bobo quer conhecer o pai

Afinal a vida é feita assim de retalhos. Uns são de alegria, afecto, paz e amor. Tudo somado dá origem ao Natal, que se quer todos os dias. Outros, pela sua crueza provocam sofrimento e dor. Então não há Natal.

Que cada um de nós, tenha, nesta quadra em especial, a coragem de construir o Natal e se possível o faça em todos os dias da sua vida, pois Natal é sempre que o HOMEM QUER.

Zé Teixeira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3651: Estórias do Zé Teixeira (32): Um Pide, um marabu e um balanta de Bula que se converte ao Islamismo (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Guiné 63/74 - P3654: O meu Natal no mato (17): Cufar, 1973, o Cantanhez a ferro e fogo (António Graça de Abreu)


Um exemplar autografado do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e ÁguiA Pura (Lisboa: Guerra e Paz. 2007. 220 pp)... O autor, António Graça de Abreu , foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74). A dedicatória do nosso amigo e camarada reza assim:

"Ao Luís Graça, camarada, amigo deste nosso tempo por terras da Guiné, ontem, hoje, sempre, a bater ao compasso dos nossos delapidados e ternos e jovens coraçõs, com um forte abraço do António Graça de Abreu. Estoril, Março de 2007"


Extracto das pp. 174-16 (com a devida vénia...)

Cufar, 24 de Dezembro de 1973

Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné e na guerra.

Fui a Cadique com o meu coronel [, Joaquim Curado Leitão, comandante do CAOP1], de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã.

Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão (**) que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.

A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?

Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.


Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente, presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressamos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca Vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38º fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade.

Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves, entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata (***) com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros...

No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os hélis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato.

Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um héli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação este tipo de operações era impossível. Durante estes dias, os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. E impressionante o potencial de fogo de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí, as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3550: O meu Natal no Mato (16): Os meus Natais na Guiné (Luís Dias)

(**) Vd. poste de 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2167: Breve história da CCAÇ 4540 (Bigene, Cadique e Nhacra, 1972/74) (Vasco Ferreira)

(...) "No dia 22 de Julho de 1973 chegou a Cadique a 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72 que veio render a CCAÇ 4540, Cadique a partir desta altura ficou a constituir Sede de Batalhão, 'O Batalhão do Cantanhez'.

"Foi a 17 de Agosto de 1973 que a CCAÇ 4540/72 disse adeus a Cadique no meio de copiosa chuva, que não quis colaborar na despedida, embarcando a bordo da LDG 'Montante', rumo a Bissau.

"A nossa homenagem aos Gr COMB da CCP 121, que permitiram aos nossos militares a observação do modo de comportamento e da preparação com que a tropa especial pára-quedista foi dotada para este tipo de operações. Muito se aprendeu no convívio estabelecido dentro e fora do Aquartelamento entre os militares de ambas Companhias" (...).

(***) Nota do autor, António Graça de Abreu:

"Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, coord., Os Últimos Guerreiros do Império, Editora Erasmos, Amadora, 1995, pp. 195-213".