quarta-feira, 22 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4724: Controvérsias (32): Ainda e sempre os Cabos Milicianos (Jorge Teixeira)

1. Mensagem de Jorge Teixeira (*), ex-Fur Mil Art da CART 2412, Bigene, Guidage, Barro, 1968/70, com data de 15 de Julho de 2009:

Caro Carlos Vinhal
Camarada

Os meus respeitosos cumprimentos.

Ainda a propósito dos milicianos, neste caso os ditos cabos, deixo um texto à vossa consideração para ser publicado ou não, se acharem que tem interesse.

Fica à vossa atenção.
Um abraço



2. Camaradas

Vamos voltar aos milicianos... e não só. Parece que, como sempre, a coisa está a descambar.

O que iniciamente foi posto em causa, foi o porquê da existência, e sua invenção, de um posto no Exército com a designação de CABOS MILICIANOS e não saber se os bons eram os milicianos, ou os maus os permanentes no quadro, ou vice-versa, até porque a medalha tem duas faces e os bons e os maus estão nos... três lados, ou já se esqueceram que também havia o lado chamado IN?

Por este andar qualquer dia chega-se à conclusão que afinal quem fez a guerra foram os marcianos e a culpa foi dos lunáticos.

Mas voltemos aos cabos milicianos que foi assim que começou a polémica. Não há dúvida nenhuma que fomos roubados, ou alguém tem dúvidas? Senão vejamos:

Os cadetes do COM frequentaram o Curso de Oficiais Milicianos e foram promovídos a Aspirantes a Ofícial Miliciano (classe de Ofíciais)

Os instruendos do CSM frequentaram o Curso de Sargentos Milicianos e foram promovídos a Cabos Milicianos (classe de Praças)

Ah, mas estes são diferentes porque são cabos milicianos. Então, e os outros não eram todos milicianos?

Foi algum inteligente da altura, como alguns que há agora, que teve esta brilhante ideia para poupar uns cobres e cair nas boas graças do Salazar.

Normalmente um cabo miliciano era formado, de base, em 6 meses. Os atiradores eram colocados em unidades de recrutamento e eram, eles, chefiados pelos aspirantes do mesmo curso, que ministravam uma, duas, três ou mais recrutas, conforme eram ou não mobilizados.

Alguns eram colocados a fazer serviços administrativos, como foi o meu caso que fui colocado na "Torre de Controle" do GACA3 (o quartel tem partes do aeroclube local e as casernas são nos hangares) a dar os pareceres para o "Amparo de Pais". Também mandei ou ajudei a mandar alguns para casa mais cedo. Livraram-se da guerra?

Todos faziamos serviços à unidade como se de Sargentos se tratasse, mas éramos cabos para todos os efeitos, e pagos como tal, e aqui é que está o "busílis da questã" (como diz o meu primo d'aldeia).

Já agora, estive de Sargento de Dia à unidade no Natal 67. Foi para me habituar.
As outras especialidades que não atiradores, tinham também o seu tempo de treino devido ao estágio especial.

Mas não se pense que os atiradores ficavam por aqui. Aquando da mobilização tinhamos mais três meses ou de Minas e Armadilhas, ou de Operações Especiais (no duro, não era brincadeira, então quando era no inverno em Lamego, era a habituação ao clima da Guiné).

Alguns conseguiam safar-se das especializações e voltavam às recrutas aos soldados.

Com isto já se passou quase um ano de tropa, e o graveto continua na mesma.

Bom!!! (diz o professor Marcelo) agora, aspirantes e mais uma vez os cabos milicianos estavam prontos para formar a companhia para ir p'ra guerra. Têm 5 meses para isso.

Com a ajuda de altos cargos, diga-se patentes? Especialistas habituados à guerra de guerrilha? NÃO!!! Nem por lá se viam. O aspirante e os cabos que dizem ser milicianos que se desenrasquem, que a isso manda a tropa.

Nem o capitão que também era miliciano, sabia que existiam cabos milicianos, foi preciso o sargento da Companhia chamar-lhe à atenção.
- Oh meu Capitão, olhe que aqueles rapazes com umas divisas esquisitas são cabos, mas chamam-se cabos milicianos.
- No meu tempo não havia nada disso, eram Cabos e Prontos.
- Pois, o meu Capitão já é antigo.
- Antigo não, só sai da tropa há 10 anitos, ainda estou aqui p'rás curvas.
- Pois, mas passe a chamar a esses cabos: Oh nosso Cabo Miliciano... (só para não haver chatices)
- Está bem, mas podia-se poupar nas palavras e na saliva. Complicados!!!

Também não admirava, milicianos? Cabos milicianos? Então e os outros cabos não são? Até parecem milícias, ou pertencemos à milicia?

A Companhia está pronta, passaram-se 16 meses e até aqui o pilim continuava na mesma.

Não é, nosso Cabo Miliciano.

Já se fez o desfile da despedida e há que embarcar, rumo não se sabe a quê.
Antes do desfile e só no dia do desfile fomos promovidos (**), ou por outra trocamos as divisas de cabo miliciano pelas de furriel, e os aspirantes fizeram a mesma coisa para alferes, lógico, sem cerimónias, presidentes ou primeiros-ministros, até porque à época não compareciam nestas manifestações.

Agora sim estava tudo direitinho, apesar de na Caderneta Militar dizer que tinha condições para ser promovido a "Furriel Milº", 10 meses antes, ou seja e sito: "Escola de Recrutas, por equivalência a dois períodos completos de instrução básica", o que quer dizer que inventaram mais um cabo miliciano, e esqueceram-se do furriel.

Agora digam lá se fomos ou não, como se diz: roubados, enganados, vigarizados por um espertinho Salazarento?

Mas a vigarice não fica por aqui, não acabou. Já estou há 6 meses na Guiné.
Na mesma caderneta diz que tinha condições para ser promovido a 2º Sargento Miliciano, (mais um das milicias) e volto a sitar: "Escola de Recrutas, por equivalência a seis meses de serviço consecutivo em Unidade Operacional".

Ora isto também ficou esquecido e nunca se verificou nem mesmo quando passei à peluda passados 15 meses.

Nunca e era tão simples, era só virar as divisas ao contrário. Os carcanhóis é que seriam diferentes, o que era uma chatice, porque iria estragar o orçamento aos gandulos, agora já na era Marcelistas/Salazaristas.

Finalmente passam 21 meses (aí tivemos alguma sorte, outros fizeram 24 ou mais) chega o descanso do guerreiro, e o miliciano que outrora tinha sido cabo, vai deixar de o ser. Agora...feitas as contas deveria ser:

- Instruendo do CSM durante - 6 meses
- Fur Mil - 16 meses
- 2.º Srgt Mil - 15 meses

...mas foram:

- Instruendo - 6 meses, sem cheta
- 1.º Cabo Mil - 10 meses
- Fur Mil - 21 meses

Total de Tropa - 37 meses (16 na Metrópole e 21 na Guiné)... e ainda se queixam, os de agora, coitadinhos, de fazerem 6 meses lá fora como voluntários, heróis a ganhar bem e na maior.

FUI ROUBADO!!!

Isto não era só comigo, passava-se com a generalidade dos ditos cabos milicianos, mais mês, menos mês.

Resta-nos a consolação que, no presente, emendar os erros do passado está fora de questão, ou a gente não estivesse já habituda a isso e muito mais, basta ver a consideração, e principalmente o respeito, que os governos e os políticos têm por nós.

Apesar de tudo, tal como diz o meu amigo,(o outro Jorge Teixeira, o Portojo) bons foram os tempos de amizade e camaradagem que passámos em Espinho no GACA3, como CABOS MILICIANOS, eramos uns Senhores.

Por essa razão ainda agora nos encontramos às segundas Quartas-feiras do mês no café Progresso no Porto para continuar essa amizade e camaradagem. Falta o Canhão... e não só, paciência, só aparece quem quer e quem pode, temos o Bioxene que também é maluco, mas há mais... malucos, claro.

Bando dos Furriéis, assim se chama, a tertúlia/conspiração no café. Designação utilizada muito antes do outro, um tal AB, chamar bando a tudo e a todos. Não tem arame pode aparecer quem quiser. E não se esqueçam da Barreta (tinha que falar nela).

Um abraço a todos os Tertulianos
cumprimento
teix-veterano de guerra
ex-Furriel Mil Art
CART 2412 68/70
Bigene-Guidage-Barro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4417: Tabanca Grande (148): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil da CART 2412, Bigene, Guidage e Barro (1968/70)

(**) Na data de embarque fui graduado em Furriel Miliciano e só em 21 de Outubro de 1971, exactamente ao fim de 18 meses de tropa, fui efectivamente promovido.

Vd. último poste da série de 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4631: Controvérsias (24): Os Milicianos, combatentes de primeira, cidadãos de segunda (Vasco da Gama)

Guiné 63/74 - P4723: Estórias cabralianas (52): Em 20 de Julho de 1969, também eu poisei na Lua... (Jorge Cabral)

1. Mensagem do Jorge Cabral (*), ex-cmdt do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, hoje jurista e professor do ensino superior universitário (*)

Caros Amigos,

Fui à Lua, sim senhor!...

Abraços Grandes.

Jorge Cabral

PS - Claro que lá deixei minha bandeira…



2. Estórias cabralianas (52) > Vinte de Julho de 1969, também eu poisei na Lua



Na Guiné, há mês e meio, mas já em Fá, havia nessa tarde muito calor.

O pessoal dormia e toda a gente procurara a aragem possível. Em silêncio, o Quartel repousava…

Eu porém, em tronco nu, saíra, a caminho da fonte mais pequena. Resolvera isolar-me, para escrever, calculem, um poema… Lá chegado, ainda nem escolhera um poiso confortável, quando vejo surgir, não sei de onde, um vulto de mulher, apenas com uns panos, caindo da cintura.

Eu olhei para ela, ela olhou para mim, e corremos os dois, um para o outro. Junto à água na frescura da sombra, sem uma única palavra, um Adão e uma Eva, cumpriram o destino. Nos dias seguintes, procurei-a em vão. Não, não pertencia à Tabanca, nem seria Mandinga. Quarenta anos passados, acredito, ter encontrado um Espírito da Floresta.

Aconteceu a Vinte de Julho de 1969.

Sim, nesse dia, também eu poisei na Lua. (**)

Jorge Cabral

3. Comentário de L.G.:

Ah! Grande alfero... tão pira e já tão cafrealizado!

É uma história das mil e uma noites, ou melhor dos mil e um dias, de Guiné, quenets e húmidos...E aqui não há presa nem caçador, ou melhor, não se sabe quem foi uma e quem foi outro...

Donde, neste caso, da "ida à lua em Fá", com a tecnologia mais simples e mais velha do mundo, não seria apropriado citar o provérbio (africano): "Tant que les lions n'auront pas leurs propres historiens, les histoires de chasse continueront de glorifier le chasseur"... Traduzido à letra, Enquanto os leões não souberem contar as suas histórias, são as estórias de caça que continuarão a glorificar o caçador"...

Foste à lua em Julho, em 20 de Julho de 1969... Mas, como diz o nosso povo, "Não há luar como o de Janeiro nem amor como o primeiro". Também não sei qual o melhor mês para ir à lua, poisar na lua, estar na lua. Eu, por mim, acho que (quase) todos as horas, dias, semanas, meses, anos, são bons... Mas há quem tenha as suas reservas e superstições:

"Lua de Agosto dá no rosto".
"Lua nova setembrina, sete meses determina".
"Lua de Outubro sete luas cobre, e se chove, nove"...

E há até quem vá mais longe sobre os horários:

"Lua deitada, marinheiro em pé";
"Lua nova calada, porta trancada";
"Quando minguar a lua, não comeces coisa alguma"...

Mas é precisa conhecer a dita... Sabemos que "a Lua é calma e tem vulcões no seu seio"... Que "ilumina mas não aquece"... Ou por outras palavras: "Com os raios da lua, não amadurecem as uvas"... E que mas que também " (...) é mentirosa: quando diz que desce, cresce; quando diz que cresce, desce"...Além disso, "não fica cheia num dia"...

Convenhamos que o teu feito, grande alfero piriquito caferalizado, é digno de ficar registado nos anais do nosso blogue... Dizem os africanos, na sua sabedoria milenar (ou não fora África a mãe de nós todos...) que "a Lua é coisa pouca, mas sem ela o mundo estaria incompleto"... É como as tuas pequenas estórias cabralianas: sem elas o nosso blogue seria mais pobre, quiçá mais triste... Um Alfa Bravo, alfero.
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série Estórias cabralianas > 7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4651. Estórias cabralianas (51): Alfero esfregador entre as balantas (Jorge Cabral)

(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)

Guiné 63/74 - P4722: Depois da guerra, o stresse... da paz (4): Os dois piores anos da minha vida (João Tunes)

Universidade de Lisboa Faculdade de Letras > Reitoria > 28 de Maio de 2007 > Provas Públicas de doutoramento, em História Contemporânea, do Leopoldo Amado que veio defender a sua tese Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (1963-1974): o caso da Guiné-Bissau... Uma delegação da Tabanca Grande esteve lá a ouvi-lo e a apoiá-lo...

Na foto, o João Tunes e o Leopoldo, ou melhor, o João Tunes "transmitindo a Leopoldo Amado aquilo que, nestas situações, pode fazer de melhor um amigo e admirador: absoluta confiança no reconhecimento dos seus esforçados méritos"... O João é assim, um amigo exigente e frontal, mas sempre solidário...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem, com data de 15 do corrente, enviada pelo João Tunes, membro da nossa tertúlia, desde Setembro de 2005 (é, portanto, um histórico). É um colaborador assíduo do nosso blogue, sobretudo até 2007. Costumo apresentá-lo como ex-Alf Mil Trms, tendo andado, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Canchungo (ou Teixeira Pinto), Catió, Guileje, Bissau...Está, todos os dias, mesmo em tempo de pandemia de Gripe A (H1N1) no seu posto de trabalho, o blogue Água Lisa (6).



Caro Luís: Há quanto tempo não conversamos. Mas cá volto com candidatura a publicação no blogue, se o "politicamente correcto" editorial vigente assim o permitir.

Eu acredito e aceito tudo, excepto bruxas que não duvido que existem. Como sabes, para mim e quanto a mim, os meus dois anos na Guiné foram os piores da minha vida. Infelizmente, não apareceu ninguém para se oferecer ir no meu lugar, à minha volta a malta fardada só tinha olhos para ver se tinha prémio de ir para Timor, Macau, Cabo Verde ou o jack pot de não ir para lado algum, e se a canhota tinha de fumegar então fosse em Angola ou Moçambique, Guiné niqueles.

Mas lá, na Guiné, convivi com camaradas que acabaram por gostar, uns tantos até meteram o "chico". E havia, pelo menos, três maneiras de se meter o "chico":

(i) o propriamente dito, isto é, seguir a via profissional das armas e barões assinalados;

(ii) outra que era a assimilação do gosto pela guerra, descobrindo um guerreiro adormecido dentro de si, mas que implicava, explícita ou implicitamente, a justificação histórica e política da presença colonial portuguesa imposta pela força;

(iii) finalmente, a via da cafrealização, adoptando como ronco os costumes de fulas, balantas, mandingas ou manjacos, em carnavais de europeus travestidos de africanos, estereotipando as bajudas de mama rija como objectos eróticos e como se a sexualidade assim obtida fosse resultado do encontro de duas livres escolhas, transformar em prazer estético e folclórico o pôr-do-sol, o poilão, os macacos e os jacarés, uma cafrealização que era uma transmutação aparentemente adaptativa mas que mais não era que a afirmação, por via do poder, de uma pretensa superioridade eurocêntrica através do talento de se ser capaz de imitar o preto (sem que o inverso se pudesse verificar em contra-prova no mesmo plano).

Tudo isso aceitei e aceito. Porque aprendi na guerra que ela é a melhor e mais incontrolável forma de revelar um homem e precisamente por isso tudo se deve fazer para que um homem, todos os homens, não se revelem numa guerra pois as surpresas podem assustar.

Tento não me guiar pelo politicamente correcto de que falas e que não estou certo de sobre isso ter o mesmo entendimento que tu (depois do tanto que leio no blogue, fico com a ideia que o politicamente correcto ou dominante é ter gostado de lá ter estado, que devíamos lá ter estado, foram tempos porreiros, só não ganhámos a guerra porque ela não chegou ao fim) mas não faço questão de eventuais desencontros sobre os termos. A minha ternura solidária para com os meus camaradas da Guiné ensina-me a olhar todos por igual, pois cada homem é o seu mundo. Eu procuro aprender com o meu, os dos outros são gestões privadas em que não me meto. Só quero que sejam todos muito felizes.

Em homenagem aos vários diferentes, proponho a transcrição de uma peça histórica, um memorando enviado em 1960 por Amílcar Cabral e os seus companheiros ao governo de Salazar sobre o futuro da Guiné. Esse documento não teve resposta. E dessa falta de resposta nasceram todas as nossas viagens fardadas até à Guiné, para gosto de uns e desgosto de outros.

Com o habitual e forte abraço, segue o texto, Memorandum enviado ao governo português pelo PAIGC em 1960 (Poste de 9 de Julho de 2009, de Diana Andringa, no blogue Caminhos da Memória, de que o João Tunes é colaborador). [Devido à extensão do documento, não o vou publicar hoje, reservo-o para um próximo poste; fico, em todo o caso, o link, permitindo o acesso imediato ao histórico texto do PAIGC, tão pouco ou nada conhecido entre nós].

2. Comentário de L.G.:

Pois é, João, há quanto tempo não conversamos!... Dantes, eu ainda tinha o bom hábito de te telefonar de vez em quando. Agora falta-me o tempo, e sobretudo o (pre)texto... Mas não vale a pena arranjar desculpas nem alibis.

Pois é, o blogue aproximou-nos desde meados de 2005 e, às vezes, tem-nos separado... Deixa-me dizer que tenho saudades tuas. Da tua poderosa escrita, da tua frontalidade, da tua coerência de pensamento... Agradeço-te muito teres respondido, desta vez, à minha provocação, de resto canhestra ou ambivalente: como não vejo o mundo a preto e negro, e queria ter sol na eira e chuva no nabal, incentivei os tabanqueiros a falar da experiência da Guiné como um todo, embora com um enfoque especial na guerra... Mas também do regresso a casa, logo da paz, e do necessário coping da transição entre a guerra e a paz (sobretudo interior)(**)...

Há sempre que contar, do outro lado da blogosfera, com grandes e talentosas polemistas como tu... Digo do outro lado da blogosfera, como se tu não pertencesses, de pleno direito e de corpo inteiro, à nossa Tabanca Grande (ou tertúlia, como preferires). Mas, como eu também gosto de te dizer, tu tens aqui o estatuto do outlier (em termos estatísticos), ou melhor, do marginal-secante: intersectas dois sistemas de acção, tens o teu próprio blogue, colaboras noutros blogues, tens as tuas outras causas e bandeiras...

Sei que, para além do teu Benfica, não juraste fidelidade a mais ninguém... O nosso blogue (que tu continuas a insistir em chamar blogue do Luís Graça) não tem nem pode ter a veleidade de ser uma tribuna de quem quer que seja, muito menos o porta-estandarte de causas, por muito justas, boas ou necessárias que elas sejam: eu, por exemplo, não publico aqui tudo o que me apetece, da minha lavra e autoria...

Como gostas de dizer, somos amigos mas não tu não és nem nunca fostes um yes sayer... Não temos, felizmente, nenhum acordo de concordância sobre questões política ou ideologicamente (in)correctas. O único acordo (tácito) é o que enferma do espírito com que nasceu o blogue: podemos discordar um(uns) do(s) outro(s), mas respeitamo-nos... Sempre!

Sei que achas que eu abri demais o flanco... e que muito provavelmente deveria ser muito mais directivo e exclusivo como blogmaster. Continuo a pensar que a vida é a arte do possível... e que o nosso maior denominador comum é o facto de termos estado na Guiné, como miliatres, entre 1963 e 1974.

Como poeta, acredito na utopia (o lugar perfeito e ao mesmo tempo que não existe). É a única concessão que faço à ideologia... Sempre fui e continuo a ser um desalinhado, à esquerda... Igrejas, só tive uma, a que me baptizou... Aos quinze, tornei-me orfão, incapaz de me colar aos ismos... Faço um esforço por pensar por mim, e ser independente (que veleidade!), mesmo quando a independência é politicamente inoportuna, incorrecta, socialmente não desejável, etc.

Tudo isto para te dizer, meu caro João, que não sei responder à tua pergunta (tramada!), sobre o politicamente (in)correcto... Não sou capaz de raciocionar nesses termos... Mais importante: adorei o teu regresso ao nosso convívio, mesmo sabendo que não és um tipo fácil (isto é, que não faz fretes a ninguém). A tua lucidez a mim faz-me bem, a outros pode fazer comichão... Je m'en fous...

Posso às vezes discordar do teu estilo comunicacional, mas tu fazes-nos falta... Sei que a nossa Tabanca Grande pode ser, às vezes, demasiado granel e intelectualmete pouco estimulante para pessoas como tu ... Mas, acredita, ela é também o micro-retrato sócio-antropológico do teu e do meu país, um país que, afinal, não escolhemos, mas que amamos, cada um à nossa maneira. Não é o Portugal que tu ou eu ou todos nós gostaríamos de ter... Da minha parte, não tenho ideias definitivas sobre o Portugal que qostaria de ter, só para mim (que egoísta!). E mesmo que as tivesse, não as exporia aqui. Por pudor...

Por outro lado, sei da tua ternura pelos camaradas da Guiné, mesmo quando não estás intelectualmente sintonizado com eles... Tal como os irmãos, os camaradas (na guerra) não se escolhem...

Claro que vou publicar o teu escrito, como sempre o fiz... (Por uma fracção de segundo, fiquei triste só de pensar que tu podias pensar que eu não to publicaria....). Mas sou eu que te levo pela mão, desculpa a metáfora: serei eu o teu editor... É uma honrosa tarefa que fiz questão de ser eu a desempenhar... Até por que te devia a gentileza de um comentário.

Recebe um grande Alfa Bravo de um camarada que te estima e tem apreço pela tua coragem, física e moral... (Não preciso de evocar outros predicados teus para justicar o ABraço). Luís

PS - Não devia, mas não resisto a, comentar o termo cafrealização, que acho uma delícia... Ao fim e ao cabo faz parte do glosssário do meu ofício, de antropólogo e sociólogo... Logo, sinto-me em casa, para fazer uma abordagem sócio-antropológica do conceito ou da ideia...

Há séculos que somos cafres, o que estamos cafrealizados... No Séc. XVI, os nossos homens, os tetravós dos nossos tetravós, andavam embarcados, na aventura do ouro da Mina, da pimenta da Índia, do imaginário do mar sem fim... Abriam a autoestrada da globalização, eram os primeiros europeus a chegar ao longínquo oriente, depois de baterem, milha a milha, toda a costa de África... Éramos um milhão e picos... Tínhamos perdido mais de um terço da população com a peste negra de 1348-1353... Quem cá ficou para cuidar das nossas mulheres e das nossas crianças e cultivar os nossos campos, a partir de meados do Séc. XV e sobretudo depois da euforia das índias e dos brasis ? ... O preto da Guiné (Senegâmbia)... 15 % da população de Lisboa era de origem africana, em pleno do Séc. XVI... A nossa pool genética é também bérbere (e não árabe), judia, africana... Também somos cafres, meu camarada!

Diz o dicionário: (i) Cafre = indivíduo pertencente aos Cafres, povo banto da Cafraria, na África meridional, o qual vive sobretudo da agricultura e da caça e cuja designação tem origem da palavra árabe cafir, que significa «infiel»; por extensão, os africanos subsaharianos, os pretos...

(ii) Cafreal = relativo a negro africano (v.g., frango à cafreal, ou de cafriela)...

(iii) cafrealização (não vem no dicionário) = tornar-se cafre, viver como um cafre, adoptar os usos e costumes dos cafres...

Na Guiné, durante a guerra colonial, vimos de tudo um pouco... Soldados, milicianos, oficiais do quadro cafrealizaram-se... Conhecemos camaradas (oficiais do quadro, a milicianos, soldados do contingente geral) que compraram bajudas para poderem climatizar os seus pesadelos à noite... Ou simplesmente como investimento, obrigando-as a prostituirem-se para os seus camaradas...

Conhecemos homens que se apaixonaram e tiveram belas estórias de amor com a negrinha da Guiné, retintamente preta ou da cor do ébano... Comerciantes brancos (poucos) que fizeram a sua vida em África, constituiram família (numerosa), mas que nunca nos mostraram a sua esposa, fula, mandinga, papel... que fazia um deliciosos chabéu de peixe ou carne, ou o famoso frango à cafreal...

Conheci um, em Bambadinca, cujo casa frequentei... Estava na Guiné desde os 17 anos, tinha um bando de filhos, nunca vi a cara da esposa, que era a cozinheira (não sei se tinha mais do que uma...).

A história do nosso alfero cafrealizado é também a nossa história, a metáfora de um povo que, para sobreviver, soube plasmar-se, adaptar-se, aculturar-se, cafrealizar-se (um termo pejorativo, usado pela elite ocidental para classificar comportamentos regressivos dos civilizados em África: o antropólogo, o missionário, o administrador, o soldado, o comerciante...).

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes do João Tunes, publicados na I e II Séries do nosso blogue:

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo) (João Tunes)

15 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXC: João Tunes, o novo tertuliano

25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXVI: E os patriotas guineenses, torturados e assassinados em nome de Portugal ? (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCI: Todos camaradas, mas uns mais do que outros ? A propósito do assassínio de Amílcar Cabral (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCII: O limpo e o sujo, nós e os pides (João Tunes)

24 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: Fazer a catarse antes de vestir a toga de juiz (João Tunes)

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCV: O 'turra' Luandino Vieira recusa Prémio Camões (João Tunes)

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXVII: A 'legenda' do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1020: Stress pós ou pré-traumático ? (João Tunes)

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1037: Não cuspir no rancho, mas RDM... nunca mais ! (João Tunes)

9 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1088: Pensamento do dia (7): Capitão do Exército Português: 'O filho da p... do Tenente traiu-me miseravelmente' (João Tunes)

20 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1090: Op Mar Verde: O cabo enfermeiro paraquedista que foi no Grupo Sierra, do Capitão Morais e do Tenente Januário (João Tunes)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1245: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)

4 de Dezembro de 2006 >Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1441: Questões politicamente (in)correctas (20): Sempe camaradas, nunca censores (João Tunes)

27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

22 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1619: Questões politicamente (in)correctas (27): Teixeira Pinto, a Coroa e a República (João Tunes)

22 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1621: Questões politicamente (in)correctas (28): Salazar, um dos últimos reis de Portugal (David Guimarães / João Tunes),

24 de Maio de 2007 >Guiné 63/74 - P1783: Tese de doutoramento de Leopoldo Amado: Guerra colonial 'versus' guerra de libertação (João Tunes)

3 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1916: Álbum das Glórias (16): O Doutor Leopoldo Amado... ou a segunda derrota de Spínola (João Tunes)

30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2008: Dando a mão à palmatória (1): A fotografia dos saudosos majores Pereira da Silva, Passos Ramos e Osório (João Tunes / Editores)

3 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2325: Massacre do Chão Manjaco: Todos iguais na morte, mas nos relatórios uns mais iguais do que outros (João Tunes)


10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2516: Blogue-fora-nada: O melhor de...(4): Pedido de desculpas às Senhoras do MNF muitos anos depois (João Tunes, oficial e cavalheiro)

1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3008: O caso do embaixador de Portugal em Bissau (4): Não ao linchamento popular... (João Tunes / J. Mexia Alves)

2 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3962: Nuvens negras sobre Bissau (5): Um adeus a Nino (João Tunes)

(**) Vd. postes de:

15 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4690: Depois da guerra, o stresse... da paz (1): Em Binta, vivi uma experiência única (José Eduardo Oliveira)

17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4698: Depois da guerra, o stresse... da paz(2): Não foi o melhor tempo da minha vida... (João Bonifácio)

17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4704: Depois da guerra, o stresse... da paz (3): José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil, CCAÇ 675, Binta, 1965/66

terça-feira, 21 de julho de 2009

Guiné 64/74 - P4721: Documentos (8): ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica”, Páginas 0 a 4 (Magalhães Ribeiro)

1. Do arquivo pessoal do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974.

Camaradas,
Principalmente para aqueles que coleccionam documentação histórica relacionada com a nossa frente da Guerra do Ultramar, vou começar hoje a publicar as 5 primeiras, dum total de 28 páginas, de um dos meus documentos de arquivo.
Esta peça creio que é rara (não sei se é???), nunca a vi em mais lado nenhum, e consta de um caderno político, com as seguintes inscrições na capa: ” PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.
O motivo de ter que se partir as 28 páginas em parcelas de 5, é o problema dos cerca de 900 KB que ocupa cada uma delas, em formato GIF (Graphics Interchange Format).
Algumas das páginas originais apresentam alguns problemas de qualidade, mas como o conteúdo na generalidade, além da história que regista, está muito interessante e polémico, aqui está.
Assim, mais creio que poderá contribuir sobremodo, para o conjunto da catarse da guerra, que temos vindo a levar a efeito aqui no blogue.
Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro

Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

20 de Maio de 2009 > Guiné 64/74 - P4721: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (5): O nº 48, Dezembro de 1972, dedicado à 'visita da OUA às regiões libertadas no sul'

Guiné 63/74 - P4720: Histórias de José Marques Ferreira (4): Uma estranha emboscada, CCAÇ 462, 1963/65


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 15 de Julho de 2009, mais uma curiosa estória passada com a sua companhia:


UMA EMBOSCADA À… DISTÂNCIA?

Existiam informações que davam conta da possível passagem de um grupo IN (que parece já era habitual), por um caminho já nosso conhecido, que fazia cruzamento com a estrada entre Ingoré e Barro.


Era natural a existência desse corredor, que se situava a sul da margem direita do Cacheu e a norte da estrada Ingoré - Barro.

Passada essa estrada a meia dúzia de quilómetros ficava a fronteira com o Senegal, e Ingorézinho localizava-se a poente.

Era, aquilo a que se designava então em termos militares, um importante corredor…


Face à informação recolhida, foi decidido montar uma emboscada no citado cruzamento, tendo-se previamente, como mandavam as boas regras “emboscadoras”, feito um cuidado e meticuloso reconhecimento ao local.

Já no quartel, delineou-se um plano para montar a emboscada, tendo-se tomado as devidas providências que, incluiu a antecipação da hora do jantar que foi servido mais cedo que o habitual (pouco depois das 16h00), após o que partimos para o local transportados em viaturas.


A certa altura descemos das viaturas, que regressaram à base, e todo o pessoal seguiu apeado, em direcção para o local estipulado.

Nada de anormal até aqui, o que veio a seguir é que “estragou” tudo.


Como já era hábito e conhecido, quando o horizonte se apresentava escuro, era presságio de aproximação de mau tempo. Passada cerca de meia hora, o presságio passou a certeza, pois desabou tamanho temporal em cima de nós, tipicamente tropical, com o consequente e rápido escurecimento da paisagem à nossa volta.

Não se enxergava nada a mais de um metro de distância.

A técnica já velhinha para não nos perdermos, foi seguir o caminho em fila indiana, agarrados aos casacos dos camaradas da frente, com uma das mãos.


A chuva desabou a cântaros, a trovoada era constante e iluminava perfeitamente toda a zona. Nas botas, a lama já pesava mais que as mesmas.

Os trovões ribombavam constantemente, com um ruído mais ensurdecedor que o dos disparos dos canhões e obuses.

Os efeitos luminosos das faíscas e os estrondos dos trovões, à nossa volta, eram mais espectaculares que qualquer fogo-de-artifício de S. João, que algum dia tivesse visto.


Mas lá fomos sempre a andar. Estava decidido que não voltávamos para trás, pois o temporal, tal como os outros anteriores, havia de passar e o nosso capitão estava decidido a levar a bom termo a emboscada.

Até que a certa altura, no meio daquela escuridão, o capitão manda parar, e refere que lhe parece ser ali o local onde a operação sobre o grupo IN devia ser montada.

O dispositivo das forças foi então distribuído, de acordo com o esquema pré-delineado, partindo do princípio que estávamos no local correcto.


Em pequenos grupos ou individualmente, como no meu caso, lá ficamos abrigados nos respectivos esconderijos, esperando pelo momento de entrar em acção.

Vimos as horas a passar e… nada!

Quando a manhã raiou é que constatei bem do local que me coube em sorte. Eu estive a noite toda deitado, debaixo de uma árvore de porte e altura enormes.


“Xiça, que perigo - pensei eu naquele momento -, com aquele temporal e trovoada, e eu debaixo deste “pára-raios”! Meu Deus, que sorte a minha, nenhum raio ter atingido esta árvore. Com esta altura toda… uma faísca por aqui abaixo e lá ia o filho do meu pai desta para melhor, sem apelo nem agravo!

Ao raiar a aurora, o capitão deu ordem de reunião.

Respirei com alívio e fui-me juntar aos meus camaradas na estrada, com lama em cima de medir ao palmo, e passamos a bater a zona periférica à procura de eventuais indícios da presença inimiga.


Grande bronca, pois começamos por constatar que havíamos ficado emboscados a cerca de 150 metros, acima do cruzamento pré-referenciado!

Acercámo-nos do dito local e detectamos várias pegadas humanas fresquinhas, naturalmente de pessoas, que por ali haviam passado.

Conclusão, nós não demos pela passagem do IN e eles não deram pela nossa presença…

Foi assim uma emboscada… fracassada… da CCAÇ 462.




Nota: - Aproveito esta oportunidade para enviar uma foto rara, que mostra com direito a placa identificativa e tudo, a Fonte Longa de Ingoré, onde nos abastecíamos de água salobra. Era a única nascente natural vários quilómetros em redor. Mais tarde, outros camaradas nossos chegaram a ser ali emboscados, com resultados catastróficos. Fui lá muitas vezes buscar abastecimentos aproveitando para tomar umas boas banhocas. Era vulgar encontrarmos lá, também, muitos nativos a fazerem o mesmo.

Para todos um abraço,

J.M. Ferreira

Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4719: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (17): Segundo ataque ao Olossato

1. Mensagem de Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70, com data de 20 de Julho de 2009:

Caros editores,

Não sei quem está de serviço, mas sei que de certeza merecia estar de férias. Aqui vai mais um episódio da história da CCaç 2402, para ser lida por aqueles que não estão na praia a tomar banho.

Um abraço a todos,
Raul Albino



CCaç 2402 - Segundo Ataque ao Olossato

Edifício da administração da companhia destacada no Olossato (nesta altura a CCaç 2402)

Relato sintético do ataque:

A 18 de Janeiro de 1970, pelas 17,00 horas, deu-se o segundo ataque ao aquartelamento do Olossato, efectuado por um numeroso grupo inimigo.

Mais uma vez o nosso Capitão Vargas Cardoso não estava presente, encontrando-se em Bissau, possivelmente a tratar de assuntos da Companhia ou em consulta externa. Estas coincidências não podiam ser acidentais. Era mais que certo que o inimigo tinha informadores bem colocados que transmitiam essas ausências do Comandante da Companhia, procurando o inimigo desencadear os seus ataques nesses períodos, esperando encontrar a guarnição enfraquecida ou pelo menos descoordenada. Nas ausências do nosso Capitão, ficava no comando o alferes mais antigo, nesse dia estava o Alferes Brito a assumir essa função.

O inimigo flagelou o quartel e povoação durante cerca de 50 minutos, utilizando fogo de Canhão S/R, Morteiros 82 e 60, Metralhadora Pesada, Lança Granadas Foguete e armas ligeiras automáticas, das direcções de Mabar, Cansambo e Maca.

As nossas tropas reagiram prontamente pelo fogo de Morteiro 81 e 60, Lança Granadas Foguete e Metralhadora Breda, bem como pela manobra de um grupo de milícias que saiu na perseguição do inimigo. Face a esta reacção o inimigo não conseguiu obter grandes êxitos, embora devido à surpresa ainda tivesse incendiado duas moranças da povoação, ferindo 7 nativos, ficando um deles em estado grave. O inimigo conseguiu ainda raptar 3 homens da população que se encontravam em trabalhos agrícolas.

O aquartelamento sofreu pequenos danos materiais.

O que este ataque teve de original, digno de referência:

Neste ataque ao Olossato deu-se um episódio interessante que vale a pena contar.

Já depois do ataque ter passado, entra-me espavorido no quarto o Alf Brito. Gritava-me ele:

- Anda depressa que está na sala do soldado uma granada de morteiro 82 que não rebentou. Como tu és especialista em minas e armadilhas, vai lá tu resolver o assunto!

Bom, lá fui com ele ver o que se passava e fiquei pasmado quando me deparei com uma granada de morteiro 82, em cima da mesa de ping-pong, com o focinho – parte da frente da granada que contem o detonador – partido, podendo rebentar a qualquer momento.

A espoleta poderia reagir ao mais pequeno toque, rebentando, ou pelo contrário, ter ficado irremediavelmente danificada. Esta granada partiu o focinho porque atingiu o telhado da sala do soldado, que era feito em telha de Marselha. A telha não teve resistência suficiente para provocar a detonação, pelo que a granada fez um buraco no tecto, partiu a parte dianteira e caiu desamparada em cima da mesa de ping-pong.

Mesa de ping-pong onde caiu a granada que não explodiu, danificando ligeiramente o tampo

Vendo aquilo virei-me para o meu colega Brito, que estava um pouco nervoso pela responsabilidade de estar na situação de comandante do quartel, e disse-lhe:

- Olha, eu como especialista de explosivos, fui instruído para em situações de material instável – como era o caso desta granada – esse material deva ser destruído no próprio local, não devendo ser removido por se desconhecer em que estado ficou a munição. Isso, de facto, é uma incumbência minha ou de qualquer outro especialista desta área, mas como não é isso que com certeza tu queres, pois a sala do soldado ia pelos ares, o que tu pretendes é que a granada vá lá para fora para ser então neutralizada, não é?

Tinha-se reunido à nossa volta um conjunto de mirones, militares e nativos, a observarem a situação, cheios de curiosidade temerária. Então continuei:

- Levar a granada para a rua, é uma coisa que não requer especialização e tu próprio o podias fazer. Basta pegar nela ao colo, fazer votos para que não nos rebente nos braços e levá-la lá para fora para a rua, para o especialista tratar do assunto.

O nervosismo dele aumentou, especialmente devido à plateia que ali se reuniu a escutar o nosso diálogo. Aí eu acrescentei:

- OK! Eu levo a granada, mas afasta-te com toda essa gente, porque se a granada explodir que provoque o mínimo de baixas.

Cada vez mais nervoso, ia-me dizendo a tudo que sim. Afastou o pessoal que nos rodeava e qual não foi o meu espanto quando eu, já com a granada no colo, me apercebi que o meu colega Brito não se descolava de mim um segundo, acompanhando-me sempre até ao local onde depositei a granada, alheio aos meus conselhos para se afastar.

Em suma, se a granada explodisse morríamos os dois inutilmente, porque ele, possivelmente depois do que eu lhe disse, não estava bem com a consciência se me deixasse correr aquele risco sozinho.

Devo confessar que eu, no lugar dele, tinha-me afastado mesmo.

2. Comentário de CV

Raul, tenho a certeza absoluta que farias exactamente o mesmo que fez o teu camarada Brito. A solidariedade em tempo de guerra não se compadece com as regras de segurança.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4345: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (16): Emboscada nocturna no Olossato

Guiné 63/74 - P4718: Efemérides (23): Em 20 de Julho de 1969, eu estava no Uíge em pleno oceano, a caminho de Farim... (Carlos Silva, BCAÇ 2879)

Lisboa, 19 de Julho de 1969> Edifício da Estação Marítima Rocha Conde de Óbidos, um típico edifício do Estado Novo, da autoria do Arq Pardal Monteiro (1897-1957), com pinturas murais do Almada Negreiros (1893-1970)(*)... >

Partida, no T/T Uíge, do pessoal do BCAÇ 2879 e do BCAV 2876, com destino à Guiné... Nesse dia a Apolo 11 ia a caminho da Lua (um pouco mais longe que a distância entre Lisboa e Bissau, cerca de 400 mil Km, em números redondos...), aonde chegaria (e alunaria) a 20, domingo... com regresso à Terra, a 24, quinta-feira...

O T/T Uíge, com o pessoal do Batalhão dos Cobras (onde ia incluído o nosso camarada e amigo Carlos Silva) levou um pouco mais de tempo que a Apolo 11... Chegou a Bissau e desembarcou, na sexta-feira, dia 25, diz a história do BCAÇ 2879. Não sei se, ao longo da viagem, os nossos camaradas se aperceberam do feito, que era para a humanidade, este "passo de gigante", parafraseando a célebre frase mstrong, as primeiras palavars do primeiro homem a pôr a pata na lua ("That's one small step for man; one giant leap for mankind": Como há alguém chamou a atenção, o astronauta queria dizer: a small step for a man, um pequeno passo para um homem, ele, Neil Armstrong, mas um salto de gigante para o Homem, a humanidade, a espécie humana: one giant leap for mankind... Tal como os portugueses, há mais de 500 anos, dobrando o Bojador e indo muito para além da dor, do sangue, suor e lágrimas dos pequenos/grandes heróis anónimos que foram os nossos antepassados). (LG)

Foto: © Carlos Silva (2009). Direitos reservados (Com a devida vénia...)


Navio Uíge> c. 20 de Julho de 1969 > De pé, da esquerda para a direita: Alf Sampaio, Cap Vasco Lourenço, Alf Carmo Ferreira, da CCaç 2549; Cap Covas de Lima, da CCaç 2547; de cócoras, da esquerda para a direita: Alf João Casanova e Alf Gil André, da CCaç 2548; Alf Carvalho, da CCaç 2549; e Alf João Rebelo, da CCaç 2548. Foto do Alf Gil André.

Foto (e legenda): © Carlos Silva (2009). Direitos reservados (Com a devida vénia...)

1. Resposta do Carlos Silva à pergunta, "Camaradas, onde é que vocês estavam em 20 de Julho de 1969 ?" (**)... O Carlos é o autor do sítio Guerra na Guiné 63/74, por Carlos Silva... (A página mais completa sobre as unidades que passaram pela Região de Farim, nomeadamente entre 1969 e 1971). Foi Fur Mil na CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71)...

É também conhecido como o Régulo de Farim, um grande amigo da Guiné e dos guineenses. Advogado, é um dos fundadores e dirigentes, com o Carlos Fortunato, da Ajuda Amiga - Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento. (**)


Luís: Aqui vai a resposta à tua pergunta:

Lisboa, sábado, 19-07-69

Embarque do Bat Cav 2876 e do meu Bat Caç 2879

Domingo, 20-07-69, Uíge, em pleno Oceano

Uma das fotos do VL [Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549,] também está no último livro dele, Interior da Revolução.

Também podes ver no Blogue, num dos Postes do Bat Caç 2879, [o Batalhão dos Cobras] (**)

Um abraço
Carlos Silva

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. nota histórica sobre a Gare Marítima Rocha Conde de Óbidos, "o nosso pórtico de entrada na Guiné", no sítio do IPPAR - Instituto Português doPatrimónio Arquitectónico:

"Projectada a partir de 1934 e construída entre 1945 e 1948, a Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos insere-se no programa de modernização dos serviços do Porto de Lisboa.

"Concebida numa estrutura de betão armado, apresenta um primeiro andar reservado aos passageiros e o piso térreo destinado aos serviços do cais. Composta por dois corpos, a Gare apresenta um vestíbulo principal e uma ampla nave. O terraço-varanda prolonga-se na direcção nascente para além das linhas do edifício.

"Como acontecera com a Gare Marítima de Alcântara, também aqui Pardal Monteiro chamou José de Almada Negreiros para animar com pinturas murais as paredes do do grande vestíbulo. Modernamente desenhada, esta Gare apresenta fachadas rasgadas por envidraçados pontuados com pequeno óculos. Aqui as linhas curvas conjugam-se em harmonia com os valores ortogonais de estruturas numa volumetria proporcionada e com sentido de escala. Sandra Vaz Costa, 2001" (...)


(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)

Último poste da série Efemérides: 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)

(***) Vd. postes de:

8 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2417: Tabanca Grande (51): Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem 1969/71) Guiné 63/74 - P1976: Tabanca Grande (27): Carlos Silva, mais um 'apanhado do clima' (CCAÇ 2548, Jumbembem)

Vd. também poste de 23 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4402: Convívios (133): BCAÇ 2879 e Outras Unidades (Farim, 1969/71), convivem em Castelo Branco, 30 de Maio (Carlos Silva)

(****) Vd. postes da série História do BCAÇ 28769, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras:

15 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2440: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes para Farim: O Batalhão dos Cobras (1) (Carlos Silva)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2464: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (2) (Carlos Silva)

24 de Janeiro>Guiné 63/74 - P2477: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim : O Batalhão dos Cobras (3) (Carlos Silva)

30 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2491: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (4) (Carlos Silva)

1 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2496: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (5) (Carlos Silva)

10 de Fevereiro > Guiné 63/74 - P2520: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (6) (Carlos Silva)

11 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2525: História do BCAÇ 2879, 1969/71: De Abrantes a Farim: O Batalhão dos Cobras (7) (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P4717: Efemérides (22): 20 de Julho de 1969, domingo, dia de ronco com manga de chocolate... (José Teixeira, CCAÇ 2381, Buba)


1. Mensagem do José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70 (*):

Luís: Boa noite. Aguçaste-me o apetite para ir consultar o meu diário e deu nisto.

Efectivamente, foi dia 'di ronco, cum manga di sakalata'.

Quanto ao pato que originou este 'encontro', viu-o passar à distância. Outros se banquetearam.

O Texto do encontro com o colega, já passou no blogue e a parte descrita no Diário também, nas primeira série. A ligação ao dia em que o homem pisou a lua, só hoje constatei.

Abraço fraterno .

Resposta à pergunta 'Camarada, onde estavas no dia em que o primeiro homem pisou a Lua ?' (**)


Do meu Diário > Buba, 22 de Julho de 1969 (*)


Domingo, dia 20, saí para o mato pela tarde a patrulhar a estrada nova e emboscar o IN em seguida. De certeza que fomos seguidos pelo IN, que nos deixou montar a emboscada e abriu fogo de seguida. A nossa reacção foi rápida e os indivíduos calaram-se. Uma granada caiu bem perto de mim mas não feriu ninguém, aliás, nenhum dos meus camaradas foi ferido pelo IN. Apenas o homem do morteiro 60 se feriu na mão com o morteiro. Retirámos silenciosamente sem mais novidades e chegámos a Buba pelas 20 horas onde toda a gente esperava ordens para avançar em nosso auxílio.

Este pequeno ataque não foi pera doce para mim. Quando notei que o camarada do morteiro estava ferido(Tinha a mão rasgada por não ter utilizado o prato e o morteiro ao disparar enterrou-se na terra escorregando-lhe pela mão), passei mensagem que não havia feridos graves e dispus-me a tratá-lo para evitar a hemorragia.

O Comandante na sua pressa de se afastar da zona de perigo, mandou retirar e quando nos apercebemos estávamos a 300/400 metros dos companheiros de luta, com o IN na retaguarda o qual também não se tinha apercebido da nossa situação. Iniciámos uma fuga a alta velocidade. Valeu-os o colega do lança-rockets que se apercebeu e fez passar algumas granadas por cima de nós obrigando o IN a manter-se em defesa.


Tarde de Domingo com sorte...

Trinta e sete anos depois do regresso reencontrei o camarada Nuno Rosa. Para além da grande alegria pelo encontro, selada com um forte e comovido “aperta costelas”, surgiram logo de imediato as estórias do costume. Lembras-te daquele ataque … e daquele… das formigas que nos acordaram de noite … das malditas abelhas… etc, etc.

Algumas das estórias já estavam no sótão da memória, provavelmente cheias de pó. Outras, continuam activas a bailar no consciente, só que há pormenores que nos escaparam. Assim as estórias tomam outra dimensão, talvez mais realista e sobretudo, após este desfiar de flashes por vezes bem dolorosos, acabam por se deslocarem para o sótão, até ao descanso eterno do “guerreiro”.

Estávamos em Buba, no fim do Verão de 1969. O Joaquim Agostinho, com 26 anos devorava etapas na Volta A Portugal. Era o ciclista prodígio, o fora de série que tinha sido descoberto em Torres Vedras. Como o grosso do pessoal da CCaç 2381 era Ribatejano, não se falava de outra coisa na caserna. [Vd. vídeo no You Tube]

Era domingo, mais propriamente dia 20 de Julho. Logo após o almoço, depois de um sábado passado em patrulhamento para os lados da bolanha dos passarinhos, surge nova ordem de mobilizar para um patrulhamento para os lados de Sinchã Cherno e emboscar algures na estrada que se andava a construir até Aldeia Formosa (Quebo), muito perto do local onde cerca de um mês antes tínhamos sofrido uma emboscada, junto a um campo de minas, uma das quais roubou a perna ao Miguel. Este, logo após o acalmar do fogo levantou-se e ... descobriu que estávamos a pisar um campo, onde foram levantadas 27 minas A/P e localizados buracos, tipo campas abertas com cruzes e com papéis escritos do género: "Tugas é isto que vos espera”; “Ida para a vossa terra”, etc.

Houve uma, a primeira. A que ele descobriu, roubou-lhe uma perna. Ali muito pertinho da “curva do Vilaça” ( Quem andou por lá na época, sabe de que curva estou a falar)

Bolsa de enfermeiro às costas, cantil cheio. Os efeitos da velhice não só dava, em resultado das experiências vividas, para um redobrar de atenção e um poder de reacção e desenrasque maior, como também, em certas ocasiões para um aventureirismo exagerado com graves riscos para a pele.

Naquele dia, partimos à desportiva, bem dispostos, bem bebidos, quando muito, chateados pelo quebrar da rotina, pois em Portugal ao domingo não se trabalha.

No primeiro local seguro (?) que encontrámos, montámos tenda, quer dizer, a emboscada, e preparámo-nos para ficar ali o resto da tarde. De repente ouve-se um tiro muito perto e o ruído de algo a cair de uma árvore. Como velhinhos ficámos quietos na expectativa, apenas redobrámos de atenção, e eis que surge um dos furriéis com um magestático pato bravo, com seis/sete quilos, que o mesmo tinha abatido a tiro de G3.

A isto chama-se brincar em serviço, pelo que, levantámos de imediato a emboscada e partimos para outro sítio algures mais à frente.

Sem saber que estávamos a cair para a boca do lobo, lá nos colocámos de novo em posição de combate. Agora sim, um pouco abandalhados. O homem que levava o prato do morteiro 60 não ficou junto ao homem que o levava e o municiador do lança-roquetes trocou o lugar por mim. O Nuno com o seu colete de roquetes estava preocupado, pois faltava-lhe o municiador, o qual também trazia uma fornada de granadas. Ao comentar a sua preocupação eu respondi-lhe:
- Não te preocupes que se os turras atacarem eu minicio-te.

O IN que estava emboscado um pouco à frente, deixou-nos pousar e aproximou-se com cuidado (Creio mesmo que se avançássemos mais uns cem metros, tínhamos caído no seu campo de mira).

De repente o ambiente aqueceu com o IN a cair em cima de nós com toda o seu potencial de fogo, ao qual se segui a nossa resposta rápida. Uma das primeiras roquetadas IN foi rebentar numa árvore por cima da minha cabeça. Os seus estilhaços barreram as folhas das árvores e este vosso camarada procurou de imediato um lugar mais seguro. O roqueteiro bem olhou para trás, à minha procura, mas eu tinha voado para junto de uma árvore, mais segura.

Acabado o desafio, um autêntico Porto/ Benfica de que resultou um empate, ambos os contendores pensaram em fugir, o que foi a minha sorte.

Chega-me a informação de que há um ferido. Logo me aproximo e verifico que o homem do morteiro não hesitou em enviar umas morteiradas, colocando o cano do morteiro na terra mole, de que resultou ter ficado com um rasgão na mão, pois o morteiro ao enterrar-se pelo impacto, pela terra dentro deixou marcas. Passo a palavra de que há um ferido ligeiro e logo ali me disponho a fazer o tratamento como era o meu dever, ficando connosco outro camarada, com G3, mas sem munições.

O alferes é que não esteve com meias medidas e decidiu retirar de imediato. Acabado o tratamento, logo verifico que estávamos sozinhos. Duas hipóteses, ou ficar quietos, aguardar algum tempo e depois regressar a Buba, ou correr atrás dos camaradas que iam a 300/400 metros algures na mata!

Como já era fim de tarde, resolvemos procurar seguir os colegas, que entretanto, para mais rapidamente se afastarem, seguiam já na estrada que se avistava ao longe. Até porque ouvíamos ruídos e vozes por perto (penso que era o IN a afastar-se, caso contrário podiam ter feito ronco e apanhar-nos à mão ou enviar-nos para casa no sobretudo de madeira).

O nosso roqueteiro, o Nuno Rosa, relembrou-me agora, que na altura teve um pressentimento de que estava a ser seguido e olhou para trás. Três dos seus camaradas vinham lá longe. Então ajoelhou, colocou as últimas granadas, pois, como bom ex-comando, nunca gastava todas as munições que levava, e, bateu a mata que ficava à nossa retaguarda, impedindo o IN de qualquer veleidade.

Os outros camaradas continuaram apressadamente o seu caminho com o alferes à frente e o Furriel a sonhar com o arroz de pato, que nunca mais largou.

Assim ficaram quatro homens desarmados, no meio da mata; um morteiro sem granadas, um roqueteiro sem roquetes , um atirador sem munições e um enfermeiro sem arma (há muito que a dera a guardar ao quarteleiro) num fim de tarde domingo que toda a gente queria calmo e pacífico.

Quando em 2005 tive oportunidade de voltar à Guiné, estive muito próximo deste lugar, mas confesso que nada me veio à memória.

Obrigado, Nuno, por teres partilhado esta aventura comigo.

Quarenta anos depois, verifico que nesse dia o mundo esteve em festa. Uma festa bem diferente da que eu vivi, que nem pato tive para comemorar e só muito mais tarde soube que os americanos tinham imitado os portugueses de antanho e como, para descobrir já não havia mares, foram aos ares e encontraram a Lua.

Zé Teixeira
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.

Vd. último poste do Zé Teixeira > 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4673: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (15): Ingoré e Gandembel na feira de Custóias, Matosinhos (José Teixeira)

(**) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4713: Efemérides (17): 20 de Julho de 1969... O dia em que o primeiro homem pisou a Lua (Rui Felício, CCAÇ 2405, Samba Cumbera)

Guiné 63/74 - P4716: Em busca de... (80): CCP 121 - Apelo vindo do Brasil (Cassiano Rocha da Costa, natural de Castro Daire)


1. Mensagem de Pedro Neves, que foi Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745 - Águias de Binta, Binta, 1972/74, com data de 20 de Julho de 2009:

Camaradas,

Junto e-mail enviado ao Sr. Eric Duffort, no Brasil, onde peço para informar o nosso camarada Cassiano Rocha da Costa, emigrado no Brasil, e que não tem contactos com a família á mais de 25 anos.

Infelizmente, nem todas as informações recolhidas são as melhores, mas tentei transmitir tudo o que recolhi sobre a familia dele.

Com um abraço Amigo:

Caro Sr. Eric Duffort,

Em resposta ao apelo, publicado no "blogueforanadaevaotres", em que o camarada Cassiano Rocha da Costa procura familiares, com quem não tem contactos à cerca de 25 anos, tenho o prazer de informar o seguinte:

- A morada correcta é Rua de Macau, Nª8 - Porta 3, Prior - Velho, Sacavém (não é Rua Macal);

- Liguei para as informações da PT e com a ajuda do assistente, consegui saber o nº de telefone do Sr. Jacinto de Jesus Albino, marido (já falecido) da meia-irmã do Cassiano, por parte da mãe, D Maria Alice Rocha Albino, com quem falei ao telefone e que tem um filho de nome, Luis Filipe de Jesus Albino, com 50 anos, que é sobrinho do Cassiano. O nº de telefone da D. Maria Alice, é o 219424135 (Lisboa);

- O Irmão do Cassiano, Joaquim da Silva Leandro, trabalha para a empresa Visa Beira, mas está actualmente em França;

- A Irmã do Cassiano, D. Maria Amélia Rocha da Costa, mora na zona de Viseu e o nº de telefone é: 254689269 (Viseu);

- A D. Maria Alice, disse-me que o Cassiano tem uma filha, com cerca de 25 anos, mas não sabe nada dela e que a família, pensava que o Cassiano tinha emigrado para os E.U.A. e não para o Brasil;

- A notícia que estive indeciso para comunicar ao Cassiano, porque não é agradável de dar, é que os pais dele já faleceram segundo informação da D. Maria Alice.

Na expectativa de ter sido útil ao camarada Cassiano Rocha da Costa, na procura dos seus familiares, em Portugal, sou:

Atentamente,
José Pedro Neves
ex-Fur Mil. Operações Especiais
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em: