quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5640: Canjadude, a chegada de um periquito (1): De Lisboa a Gabú (José Corceiro)

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 10 de Janeiro de 2010:

Caro Luís Graça, Carlos Vinhal e Colaboradores, Boa Tarde
Envio este trabalho caso queiram postar.
O título pode ser CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO, este ou outro que achem adequado. Logo que tenha a palavra-chave Canjadude tudo OK.

Boa semana de trabalho, um abraço para vocês e para todos os tertulianos. Haja saúde.
José Corceiro


INTRODUÇÃO

O que escrevi sobre o passado, praticamente foi transcrito dos apontamentos que tenho da época, alterei alguns tempos verbais, algum discurso e adequei alguma adjectivação, de forma a torná-los contextualizados; excluí passagens para não tornar o documento tão maçudo. Já passaram mais de 40 anos desde que escrevi os apontamentos, que serviram de apoio e referência para escrever este artigo. Os apontamentos têm estado arrumados e esquecidos, sem justificação alguma, a não ser desinteresse. Após o meu regresso, excluindo, 3 ou 4 meses, após a minha vinda, que mantive correspondência regular com alguns amigos, que continuaram na Guiné e um telefonema feito há 30 anos, não tive mais contactos (não os tinha) com camaradas do meu tempo embora não tenha havido razão e motivação para este comportamento. Ainda não há um mês é que acidentalmente, na “Net”, descobri o José Martins.


CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO (1)

Somos obra moldada por diversas condicionantes, meio sócio-económico, família, ambiente, amigos, experiências… e hereditariedade. Porém, acho que o meu Genoma humano, não trouxe mapeado o código belicista, eu tenho os 46 cromossomas, sendo um emparelhamento XY, como todo homem tem, mas predicados armíferos e destreza militar, não me cativam, não nasci para ser combatente guerreiro, embora saiba que todos somos por natureza animais selvagens à nascença. Mesmo assim, fui parar a uma guerra e não sei onde nem como, arranjei forças para levar a minha missão até ao fim, ainda que não tivesse tido necessidade de disparar uma arma no teatro de guerra.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a sobrevivência

Contrariando o psíquico e o somático consegui força e aprumo para chegar a bom porto e estar agora aqui.
Estava a meio da especialidade de transmissões, BC 5, quando recebo a notícia (08-02-1969) a dizer que no dia 4 de Fevereiro de 1969, o meu tio, Francisco Vaz Silva, irmão da minha mãe, praticamente com a minha idade, tombou em combate em Angola, Zala, BCAV 2854/CCAV 2431. O meu tio veio de França, voluntariamente, para cumprir o serviço militar. Da minha terra tombaram dois mancebos em combate no Ultramar, meu tio foi o primeiro. Era tio, amigo e companheiro, fomos criados juntos, até andámos na mesma escola, brincámos à xoina e ao pião.

Em 2 de Maio 1969, recebi a reconfortante notícia que estava mobilizado, rendição individual, para a Província da Guiné.
Fui para a minha terra, gozar os 10 dias da praxe devido à mobilização. Por recear que a minha família viesse a saber, não tive coragem de contar, a quem quer que fosse, que estava mobilizado para o Ultramar, pode não ter sido a melhor opção, eu é que estava no palco, e ponderando, pareceu-me a mais razoável. Tinha a família toda de luto e destroçada. A minha avó passado meia dúzia de meses faleceu, relativamente nova, com menos idade do que eu tenho agora, tendo contribuído a morte do filho para esse fim. O meu avô, sentia uma certa culpa por ter incentivado o filho a regressar de França, para cumprir o serviço militar, ainda que, para tentar ocultar e minimizar o seu sofrimento, dissesse que ele tinha morrido em defesa da Pátria.

O funeral, do meu tio, só se realizou em 23 de Junho de 1969, já eu estava na Guiné. Passaram mais de quatro meses, após a sua morte até se realizar o funeral, sem que entidade alguma tivesse tido a amabilidade de dar uma justificação para esta dilação de tempo, embora tenha havido esforços do lado da família, para obter informações; a família continuava a sofrer em lume brando!

Campa de meu tio na sua terra natal, Vale de Espinho, Sabugal.

Em 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixo o Porto de Lisboa no N/M Niassa, rumo à Guiné. Foi emocionante e comovente, ver aquela moldura humana de familiares e amigos a despedirem-se. No cais, eram uns com lenços nas mãos a acenar, outros com lenços nos olhos, no nariz, na boca, outros deitavam as mãos à cabeça, enquanto outros apertavam a barriga, cada familiar e amigo expressava queixume e desespero com o sentimento de gesto diferenciado. Um quadro impressionante que me fez cogitar e questionei-me:

- Será, que é a atitude mais acertada, eu empenhar-me a defender a Pátria e a Bandeira neste caso?

- Será, que têm razão os que desertam, como fizeram alguns da minha terra?

Fiquei confuso, ao ver tanto rosto carregado de tristeza, fisionomias que transpiravam sofrimento e mágoa e, pensava:

- Não será esta expressão de dor uma manifestação de revolta colectiva amordaçada, e estão aqui os familiares a despedir-se dos seus ente queridos, como que a implorar, alertar e sensibilizar, os responsáveis do País, para ver o que estão a fazer à "mocidade"…?

- Se a minha família soubesse que eu estava de partida, também estariam aqui com este pranto? Estas e outras dúvidas apoderaram-se do meu pensamento…
Fiquei esmagado, senti-me qual neutrão, quando se dá a explosão da bomba atómica, insignificante!

Como era rendição individual, no barco, não tinha laços de proximidade com ninguém. Não havia conhecidos. Fui escalado para ficar responsável, por um grupo de dez homens para juntamente com dois, irmos buscar a alimentação à hora das refeições. Após a distribuição da mesma, cada um arranjava o melhor local onde podia comer, era no chão, nas escadas, onde houvesse um buraquinho, era a lei do desenrasca, mais parecíamos uns indigentes. Quanto a dormir e higiene, o mínimo que se podia dizer é que eram condições desumanas, era uma promiscuidade!

Antes de passar pelo Funchal, segundo dia de viagem, comecei a enjoar, era o conflito do meu sistema nervoso para-simpático com o simpático, estava instalada a guerrilha, durou até à Guiné.

Dia 29 de Maio 1969, por volta das 21.00 horas, cheguei ao Porto de Pidjiguiti em Bissau, só desembarquei dia 30. Levaram-me para o DGA, onde logo que cheguei, quis a minha fada madrinha que encontrasse, por mero acaso um amigo, tínhamos estudado juntos. Não me deixou mais. Escrevi, e pedi desculpa aos meus Pais pelo que tinha acontecido, assim como a outras pessoas a quem devia esclarecer e informei que estava tudo bem. Nestes três ou quatro dias, que estive em Bissau, tinha que estar presente na parte da manhã para responder à chamada e saber se havia transporte para o meu destino. O meu amigo, arranjou-me lugar para dormir, sossegadamente, senão tinha que dormir ou numa viatura ou no chão, servindo a bagagem de cabeceira, como muitos estavam a fazer, aparecendo quase todos cheios de edemas das picadas dos mosquitos, eram aos milhares e não resistiam à tentação de uma sugadela de sangue fresquinho de periquito.

Nestes dias, praticamente, não dei despesa ao Exército, só os transportes, do DGA para Bissau e regresso. Para descomprimir e fazer uma purgação de exultação, assim como libertar energias negativas, o meu amigo e outro amigo dele, levaram-me a ver, e não só, umas lavadeiras, numa bolanha, relativamente perto do DGA, não sei bem o local exacto, quando se ia de Bissau para lá, era lado direito.

Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem a floresta, fiquei surpreendido, havia contraste com o espaço árido entre o DGA e Bissau. Além disso, foi agradável ver as lavadeiras, algumas completamente nuas, uma mais atrevida e desinibida, vendo o nosso olhar maroto e malicioso, aveludado de concupiscência, dirigiu-se ao meu amigo nestes termos:

- Bu mamé é puta, sinon bu cá tinha nascido.

Não sei se será algum provérbio guineense, mas foi oportuno, nunca o esqueci. Para o meu íntimo, estes momentos a que vinha assistindo, já eram reveladores do fosso cultural entre nativos e metropolitanos, começava-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim era pureza, esplendor natural, como que um ode à criação. Logo ali, se iniciou mais um despertar, por um lado a intuição, por outro o raciocínio, comecei a ficar sobressaltado e a entender que era outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, eles estavam no seu habitat. Só havia que aceitar e respeitar eu estava desintegrado, sou invasor!

A descontracção, um pouco libertina com o meu amigo e amigos dele, coisas de mocidade, mas nada demais, foi salutar, foram pequenos nadas mas muito tonificantes e reconfortantes para o meu ego, deram-me um certo alento e ânimo, os pólos das baterias ficaram desequilibrados. No organismo vivo, tem que haver desequilíbrio para haver reacção química. Equilíbrio é morte, é parar. Assim, o meu sistema nervoso, para-simpático e simpático anuíram em assinaram um armistício. O conflito não levava a nada estava-me a descompensar e depauperar.

Dia 3 de Junho 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCaç 5 em Canjadude e nesse dia deixei Bissau, estrada rio Geba, rumo Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis como sardinha em lata. Além da massa humana, havia muita mercadoria e os civis levavam de tudo, desde alfaias agrícolas, produtos alimentares, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais, que confusão, até cabras iam. Sol abrasador, sombra ou lugar para sentar não havia, isto tornou-se fatigante, se ao menos houvesse um mínimo de conforto, para quem gosta de Natureza como eu, isto era um mimo, pois a paisagem parecia-me deslumbrante, só que nestas condições maçantes, não havia serenidade e predisposição para apreciar e desfrutar o meio circundante. O Geba era bastante largo e o barco deslocava-se na parte central. As margens estavam praticamente ladeadas, em toda a sua extensão, por arvoredo compacto, pareciam ser matas virgens encantadoras, eram, para mim, matas onde a pata do homem nunca tinha posto a mão, familiar, para os meus olhos, só as palmeiras, de espaço a espaço viam-se habitações.

Numa altura do percurso, começo a notar uma movimentação algo precipitada nos militares de protecção e segurança da LDG, posicionam-se em locais estratégicos, com armas apontadas para as margens, o rio era mais estreito e sinuoso. Eu conversava com o meu imaginário e o olho de soslaio, sempre atento a divisar onde me poderia escudar, não fosse o diabo tece-las, e, ia pensando:

- Será que vou ser já baptizado sem me darem a oportunidade de aprender a saltar nos galhos, pois sou periquito, tenham dó de mim, porra… deixem-me debicar alguma mancarra.

O meu pensamento, em turbilhão, viajava pelo etéreo e comecei a magicar tácticas de guerrilha e a compreender o quão fácil seria para a tropa inimiga disparar um roquete das margens e provocar uma tragédia, ou quiçá afundar isto tudo, caso tivessem a sorte para eles e azar para nós, de acertar num ponto crítico mais fragilizado; não era guerra de guerrilha?! Felizmente cheguei a Bambadinca sem que nada de maior acontecesse.

Estive dois dias em Bambadinca, (nunca mais lá passei) tive que dormir no chão, ainda não estava habituado, tinha que zelar pelos meus haveres, não viesse algum abutre mais atrevido e pensasse que aquilo estava abandonado, foi tarefa complicada, não estava integrado em nenhuma estrutura. Como alimentação, quando cheguei, deram-me uma ração de combate sem pão, no dia seguinte o comer pouco melhorou, não havia comércio onde comprar, tive que passar fome. Um militar, não sei posto, devia estar aquartelado em Bambadinca, só sei que se chamava, Azevedo, repartiu alimento do pouco que tinha comigo.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a manutenção

Ao longo de toda a comissão na Guiné, o dilema e busílis da questão, para mim, foi sempre a alimentação, o meu físico ressentiu-se, tive momentos delicados, ainda que me empenhasse para minimizar o problema sem que os outros percebessem; não sentia apelativo pelo comer militar! Confesso que sou adepto da teoria comer para viver e não viver para comer, porém, aprecio os comeres mais simples, não sou esquisito nem difícil com alimentação, sou exigente sim na higiene e estado de conservação, não há um alimento que eu possa dizer não gosto, sou omnívoro completo, não me repugna por exemplo comer carne de equídeo crua, sem sal, mas temperada com vinho ou limão e alho. Já o fiz muitas vezes, na minha juventude, quando os guardas-fiscais, na minha terra, matavam algum cavalo ao perseguirem os contrabandistas. Não encontro pois, razão para toda esta repugnância à alimentação militar à época. Continua a ser intrigante, quando faço viagens ao passado e psico-analiso esse período e me vem à mente esse passado, difícil, em que existia um conflito, entre o meu psíquico e somático, com o comer militar, pondo em risco a minha manutenção, desafiando uma das necessidades primárias dos seres vivos. Tinha alimento na mesa, precisava do comer, mas não conseguia comer. Sei que são muito complexas as sinapses, nos canais infindáveis, do subconsciente com o consciente mas eu tentava compensar através da sugestão, mas os resultados foram pouco palpáveis. Acho que o comer, não era bom, mas não seria assim tão mau, pois os outros militares comiam!?

Dia 5 de Junho, saí de Bambadinca em coluna militar rumo a Bafatá, é dia de Corpo Deus, logo, Quinta-feira e feriado nacional. Durante a viagem foi sempre a cair água da grossa, a cântaros, até os cães bebiam em pé, cheguei a Bafatá, parecia um pinto, todo repassado e encharcado, até ao tutano dos ossinhos, felizmente está calor. Mais uma ração de combate, só que aqui, há onde comer fora e lá me orientei, dormir, mais uma noite no chão e ao relento.

De manhã, por volta das 6.00 horas, dia 6 de Junho 1969, sem me darem nada para comer deixei Bafatá (não voltei aqui mais) em coluna militar, rumo Nova Lamego “Gabu”. Chegado a Nova Lamego apresentei-me e encaminharam-me para uma Delegação da CCAÇ 5, onde fui recebido pelo 1.º cabo Camilo Amaro (Natural de Murça), boa pessoa, que representa a Companhia em Nova Lamego e disse-me, que em Bissau também há uma Delegação da Companhia, com um furriel e um condutor, para tratar de assuntos da mesma, mormente dos frescos alimentícios. As instalações da Delegação aqui, são simpáticas e funcionais, são fora do quartel, separados por uma rua, é uma vivenda integrada no conjunto das outras habitações, não se pode, dentro do contexto, exigir mais. A habitação, dá acesso, pelo seu interior ou por um corredor lateral exterior, a um quintal a tardoz, onde há muitas lagartixas, que sobretudo quando está calor, o sol incide nos seus corpos e o sangue aquece, digladiam-se afincada e competitivamente para alcançar a presa, essencialmente insectos ou alguma migalha que esteja ao alcance; já os machos, distinguem-se das fêmeas, pela diferença melânica (pigmento na pele, melanina), envolvem-se em confrontos e lutas fratricidas pelas conquistas das fêmeas e domínio territorial.

Para todos um Abraço.
José Corceiro

(continua)
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5592: Memória dos lugares (64): Civis e militares em Canjadude (José Corceiro)

Guiné 63/74 - P5639: Dossiê Guileje / Gadamael (22): Construção dos abrigos, minas AP tipo Claymore, viaturas blindadas BRDM 2, as NT, o PAIGC, o nosso blogue... (Nuno Rubim)






Viatura blindada BRDM-2, utilizada pelo PAIGC em meados de 1973 no sul da Guiné: Desenho e especificações... Cortesia de Nuno Rubim (2009)


1. O Nuno Rubim, Cor Art Ref, é  um dos membros mais antigos do nosso blogue. Ele chegou até nós, no último trimestre de 2005,  por mão do Virgínio Briote. Estiveram ambos nos comandos, na Guiné, em 1966. 

O projecto museológico de Guileje acabou por se tornar numa paixão. Além de autor do diorama do quartel de Guileje, o Nuno Rubim foi também um dos oradores do Simpósio Interncional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). Esteve duas meses na Guiné em missão de serviço, durante a guerra colonial.

É um especialista em museologia militar e em história da artilharia. É neste momento o maior investigador da história militar da guerra colonial na Guiné (1963/74) e, espera-se, que dentro em breve possa publicar, em livro, alguns dos resultados do seu trabalho científico. Congratulamo-nos por já haver editores interessados nesse trabalho (que aparentemente só interessa uma público potencialmente restrito).

Diga-se, só a talhe de foice, que ele já identificou pelos nomes mais de 3 mil guerrilheiros do PAIG, mais de três centenas de acampamentos; e que tem mais de 90 GB de informação, em texto e imagens, sobre a guerra colonial na Guiné, em geral, e sobre a região de Tombali, em particular. É um frequentador assíduo do Arquivo Histórico-Militar, que conhece como ninguém, e tem na Guiné-Bissau  fontes privilegiadas de informação (oral). É casado com a Júlia, guineense, professora, e que é um encanto de pessoa (tive o privilégio, eu e a Alice, de conviver durante uma semana com o casal Rubim, em Bissau e no Cantanhez, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje).

Tenho, pelo Nuno Rubim, um grande admiração, na sua qualidade de  investigador, metódico, rigoroso, crítico, incansável, E uma grande ternura pelo amigo e camarada. É, informalmente, sem nunca me pedir nada em troca (nem sequer o retrato na coluna do lado esquerdo do blogue, ao lado dos nossos editores!), o meu/nosso assessor para as questões técnico-miliatres. Tem, neste domínio, um conhecimento enciclopédico avassalador.

Reconheço que não tem um feitio fácil: não é homem para fazer fretes a ninguém, tem um elevado conceito da artilharia e dos artilheiros, não aparece nos nossos convívios, detesta que o distraiam das tarefas que ele leva, quotidianamente, a peito, que é o seu trabalho de investigação. Estoicamente, todos os dias, com gripe ou sem gripe. Arduamente, como um monge da Alta Idade Média, no seu retiro do Seixal... Donde só sai para ir ao Arquivo ou dar um conferência...

O Nuno reconhece o trabalho único, meritório, do nosso blogue para produção e reprodução da memória da guerra colonial ("Não há ninguém com este repositório colectivo de memórias no mundo, nem os Amercianos com o Vietname, ou os franceses comn a a Argélia"),,,, mas confessa que passa dias e dias sem nos visitar... O que não é grave: tem coisas muito mais importantes para fazer... De tempos a tempo é alertado, por amigos, para postes que lhe possam interessar. E nisso ele tem um enorme sexto sentido, um excepcional faro de rato de biblioteca, a intuição que é própria dos grandes investigadores...



Lisboa > Universidade Nova de Lisboa > Escola Nacional de Saúde Pública > 13 de Julho de 2006 > Visita de cortesia e reunião de trabalho do Pepito (AD - Acção para o Desenvolvimento) - na foto, ao centro - e dois dos amigos que o apoiam no seu Projecto Guiledje: O capitão Zé Neto (à esquerda) e o coronel art ref Nuno Rubim, especialista em história da artilharia (à direita). Os três eram membros da nossa tertúlia. O anfitrião fui eu. 

O Zé Neto , infeleizmente, já não está entre nós. O nosso querido Zé Neto (ex-2º sargento da CART 1613, Guileje, 1967/68, e na altura capitão reformado, com 10 anos de Macau), era o veterano da nossa tertúlia, dotado de uma invejável energia e de uma memória fabulosa. Na altura, eu só  conhecia pessoalmente o Pepito, o dinâmico e entusiástcio fundador e director executivo da AD, embora já tivesse falado ao telefone com o Zé Neto e o Nuno Rubim. E sobre este escrevei, na legenda de uma das fotos que tirei: "Nuno Rubim, ex-capitão da CCAÇ 726, Guileje, 1964/74, um dos oficiais mais condecorados da Guiné (onde fez duas comissões), hoje coronel na reforma e historiador militar. Teve a gentileza de me oferecer um das suas publicações, além de um CD-ROm com os seus trabalhos. Um dia destes prometo falar um pouco mais do currículo académico deste homem que é um poço de estórias e de cultura"...(*)


Foto: © Luís Graça (2006). Direitos reservados.


2. Contrinuando: Mandei-lhe, ao Nuno,  há dias cópias das fotos do Luís Guerreira, ex-Fur Mil da CART 2410, que também passou por Guileje (e Gadamael) (**). E isso foi um pretexto para uma troca de telefonemas e de mails.  Falaámos das viaturas blindadas, de origem soviética, BRDM que o PAIGC estava em condições de começar a utilizar em 1973 nos ataques aos nossos aquartelamentos fronteiriços, da existência (e do estranho cancelamento da produção em série, pela Engenharia) das temíveis minas AP de tipo Claymore (haveria 30 ou 40 à volta de Guileje...), da estranha retirada em 1969 do quartel de Mejo e de outros no corredor de Guileje, por decisão de Spínola, desguarnecendo completamente a defesa da fronteira sul, da impossibilidade de uma vitória militar clássica do PAIGC em 1973 (9 mil homens contra 40 mil), da tábua de salvação que foi para o Amílcar Cabral o aparecimento da artilharia pesada (dado o esgotamento da infantaria, a sangria em homens, provocada pelo prolongamento da guerra), etc., etc.

Falámos ainda da dificuldade, para os leigos, em distinguir, nas fotos, a peça 11,4 e o obus 14 que, em dada altura, guarneceram em simultâneo Guileje: a peça 11,4 tinha um cano mais comprido, e os seu alcance era maior: chegava por exemplo a Kandiafara (base do PAIGC na Guiné-Coancri). O Nuno falou ainda do papel heróico dos nossos artilheiros, completamente expostos - nos seus espaldões, desguarnecidos - contra o tiro traiçoeiro e certeiro dos morteiros... Da desregulação do obus 14, cujas tiros nunca incomodaram os homens do PAIGC que eestva em redor de Guileje... O Nuno manifestou ainda a vontade de falar com o Alf Mil Barros Moura, da CART 2410, bem como com o Fur Mil do Pel Art 15, Luís Paiva (vive em Lamego, e é membro do nosso blogue).

Aproveitou a circunstância  para lhe dizer que já andávamos com saudades dele e dos seus escritos... Prometeu-me vir cá mais vezes "assinar o ponto" ou, como se diz agora, "deixar a dedada"... Para mim é uma honra, um privilégio e um prazer publicar os pequenos/grandes apontamentos do Nuno. Como este, por exemplo, que a seguir se reproduz, com a sua devida autorização. Espero que ele nunca esqueça o endereço da nossa Tabanca Grande, o trajecto, a picada, que vai do seu retiro no Seixal até ao nosso blogue... Também sei que o temos de merecer e acarinhar. Um Alfa Bravo, Capitão Fula!... Do teu amigo e camarada, Luís Graça.


3. Mensagem do Nuno Rubim, de 12 do corrente:

Assunto - Mais noticias da Cart 2410

Caros Luís Graça e Luís Guerreiro

Obrigado pelas fotografias que agora já apresentam resolução suficiente para um melhor estudo da minha parte.

Continuo interessado em saber quando se iniciou a construção dos abrigos em cimento armado [, em Guileje,] que, a meu ver, estará relacionada com o aparecimentos dos Grad e sobretudo dos morteiros de 120 mm.

Em Gadembel os trabalhos começaram logo após a ocupação, Abril de 68. E,  de acordo com os dados que tenho (oficiais) os primeiros bombardeamentos com o 120 iniciaram-se no final de Agosto, mas é assunto ainda em aberto.
Infelizmente não encontrei nada, até agora no AHM [, Arquivo Histórico Militar]. O "processo" do BEng 447 não existe. O Cmdt da altura já faleceu ! ! ! Tenho contactado com  camaradas meus de Engenharia, também sem sucesso.

Julgo que em Guileje a construção terá começado pouco antes de Jun 69, de acordo com o que me disse o camarada José Barros Rocha.

Está também ainda em aberto a problemática da instalação das minas AP tipo Claymore, na periferia do aquartelamento, orientadas para Leste.

Luís, junto te envio cópia de um documento emanado pela 2ª Rep / Com-Chefe Guiné sobre os BRDM 2. Também existem no AHM referências ao modelo 1.

Há uma carta do A. Cabral para o Pedro Pires (Dez 72 ) a "sugerir" a utilização dos blindados nos ataques a alguns dos nossos aquartelamentos fronteiriços  no Sul. Na Net encontrarás farta documentação sobre essas viaturas.

Quanto ao abandono de Guileje,  a minha opinião já está de há bastante tempo formada: face ao manifesto e provado desinteresse sobre a gravidade da situação local (só falta apurar as razões...) do Com-Chefe, o Cor Coutinho e Lima não teve  outra alternativa senão a que tomou. Acrescento até que ainda encontrei mais documentos, inéditos até agora, que de alguma forma reforçam essa tese. (**)

Abraços aos dois camaradas,

Nuno Rubim

_______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 14 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1174: Três homens de Guileje: Nuno Rubim, Zé Neto e Pepito (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5637: Dossiê Guileje / Gadamael (21): Uma especial e pública saudação cordial ao Coronel Coutinho e Lima, a quem pessoalmente ficarei grato até ao final dos meus dias (Luís Paiva, ex-Fur Mil, 15º Pel Art, Guileje, Gadamael e Bula, 1972/74)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5638: Banco do Afecto contra a Solidão (8): Humberto Duarte, ex-Fur Mil Op Esp, BCAÇ 4514/72, 1973/74, trava o seu último combate (Ana Duarte)

1. No passado dia 1 de Janeiro, recebi da Ana Duarte, esposa do nosso Camarada Humberto Duarte, ex-Furriel Miliciano do BCAÇ 4514/72, 1973/74, a seguinte mensagem:
Assunto: Humberto Duarte

Sou a Ana Duarte ou, como costumas chamar-me, Aninhas. Tentei enviar-te um e-mail, pelo site do Luís Graça, mas não tenho a certeza se te foi enviado.
É para te dar conhecimento, e para que tu, por tua vez, dês conhecimento a todos os que conhecem o Humberto Duarte, o Sargento-Mor mais antigo do Exército Português, que o mesmo trava, de momento, a sua última batalha.
Foi-lhe diagnosticado um cancro no pâncreas que, neste momento, já tem ramificações no fígado. De Outubro´até hoje, a evolução da doença tem sido galopante, sendo que a previsão médica no final de Outubro era de muito poucos meses de vida.
Se estou a dar conhecimento da situação é porque sei que o Humberto quer honras militares feitas por Operações Especiais/RANGERS e que tem o desejo que o Filipe e outro (não me lembro o nome), que fizeram o curso de sargentos com ele, em Mafra, tenham conhecimento desta situação.
Também gostávamos de entrar em contacto com o Marcelino da Mata.
Magalhães, ficas assim incumbido da missão de dar conhecimento, não só na Associação, como mesmo no quartel de Lamego e a todos os outros que achares conveniente.
Estou ao lado do Humberto, como sempre estive de há 12 anos para cá. É uma batalha muito dura, ainda mais terrível sabendo qual será o desfecho final.
Desde do início que os dois temos conhecimento de toda a situação e só queremos que haja dignidade até ao fim. No dia 10 de Junho [de 2010] lá estarei em Belém, mas infelizmente já não devo ter companhia.
Não estou a ser pessimista mas realista.

Um abraço e os desejos de um Bom Ano para ti e todos os teus,
Ana
E-mail de contacto: ana.mittermayer@hotmail.com

O RANGER Duarte, ao centro, e, ao lado esquerdo, a sua querida esposa Ana


2. Breves passagens da vida do nosso Camarada Humberto Duarte
O ex-Furriel de Miliciano Operações Especiais/RANGERS Humberto Duarte esteve no C.I.O.E./Lamego, no 4º curso de 1972.
Foi Mobilizado para a Guiné, para onde seguiu integrado no Batalhão de Caçadores 4514, 1973/74.
Tendo sido ferido em combate, foi, muitos anos depois, considerado D.F.A. por stress pós-traumático de guerra, tendo vindo a ser reintegrado nas Forças Armadas em 2002.


O RANGER Duarte (de pé ao centro com uma camisola branca), com o pessoal representativo da A.O.E. (Associação de Operações Especiais), junto ao Monumento aos Combatentes da Guerra do Ultramar, em Belém/Lisboa, num dos últimos 10 de Junho, a que ele nunca faltou, para homenagear os seus Camaradas caídos em combate.


3. Sabendo que tem apenas alguns meses de vida, e vendo a sua saúde a degradar-se dia a dia, pediu-nos que publiquemos, com toda a dignidade, a sua derradeira despedida, enviando um abraço a todos os seus camaradas.
Se alguém quiser entrar em contacto com ele, que o faça o mais rápido possível, porque ele sente que o seu tempo nesta vida está a terminar:
E-mail de contacto: morduarte@hotmail.com

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
_____________

Notas de M.R.:

Guiné 63/74 - P5637: Dossiê Guileje / Gadamael (21): Uma especial e pública saudação cordial ao Coronel Coutinho e Lima, a quem pessoalmente ficarei grato até ao final dos meus dias (Luís Paiva, ex-Fur Mil, 15º Pel Art, Guileje, Gadamael e Bula, 1972/74)






Fotos do Luís Guerreiro, ex-Fur Mil do 4.º Gr Comb da CART 2410  - Os Dráculas (Gadamael, Ganturé e Guileje, 1968/70) e mais tarde do Pel Caç Nat 65 (Bajocunda e Buruntuma,  1970). Desde 1971  reside em Montreal, no Canadá.

Finalmente publicámos algumas das suas magníficas fotos de Gadamael, Ganturé e Guileje que andaram por aí perdidas (*). Legendas das fotos (de cima para baixo):  Foto 16- Guileje, granadas do obus 14; Foto 15- Coluna 19 Março de1969, obus 14 existente em Guileje;  Foto 12- Cruzamento de Guileje, coluna de Gadamael , transporte obus 11.4, em 19 de Março de1969; Foto 14- Coluna, de Gadamael para Guileje, subida depois do cruzamento,  19 Março de 1969; Foto 17- Guileje, junto ao obus 14, eu e Furriel Mourato (já falecido).

Fotos e legendas: © Luís Guerreiro (2009). Direitos reservados.


1. Comentário, com data de hoje, do Luís Paiva ao poste de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5627: Dossiê Guileje / Gadamael (20): Esclarecimentos sobre a retirada, em 22 de Maio de 1973: Parte II (Coutinho e Lima)


Há dois anos redigi, numa longa exposição, a versão dos acontecimentos em Guileje e Gadamael nos quais fui protagonista em 1973 (**). Conjuntamente com o alferes Luís Pinto dos Santos, que infelizmente já se não encontra entre nós, e com mais dois Furriéis (Queirós e Santos), integrei o Pelotão de Artilharia, com o posto de furriel, tendo sido colocado em Guileje em meados de 1972, aquartelamento do qual retirámos para Gadamael, cerca de 1 ano depois.

De Gadamael fui transferido para Bula já em 1974 e foi neste último aquartelamento que terminei a minha comissão em 3 de Abril desse ano.

Há uma parte das intervenções publicadas no blogue sobre o assunto por pessoas que não viveram directamente os acontecimentos, sendo que algumas reproduzem afirmações lamentáveis. Quanto aos protagonistas dos acontecimentos, constata-se que há divergência de opiniões. Todavia não me parece de todo saudável para ninguém - nem se afigura que daí decorra qualquer vantagem seja para quem for - que as opiniões reflictam um exacerbado pendor hostil e até fundamentalista.

Os acontecimentos são velhos de 37 anos (como já alguém aqui lembrou e muito bem), muitos dos protagonistas já não estão entre nós e muitos outros (hoje, pais e avós) estarão envelhecidos, provavelmente precocemente por um conflito que os desgastou e pela vida (também ela factor natural de dramas e tragédias pelos quais, todos nós, vamos paulatinamente passando).

Seria talvez salutar que se utilizassem os elos de camaradagem que se criaram num tempo difícil das nossas vidas para que as relações de sã camaradagem se sobrepusessem a tudo o mais. Muitos dos que estiveram em Guileje, Gadamael, Guidaje e outros locais complexos (sob o ponto de vista militar) da Guiné e das outras ex-colónias viveram situações extremamente dificeis e perderam amigos e companheiros nessas campanhas que são credores de todo o respeito e merecerão certamente que se ponha uma pedra sobre polémicas que só servem para nos dividir. Eu próprio recordo o Faustino, furriel, e alguns dos homens do nosso Pelotão de Artilharia (um cabo e alguns soldados), falecidos em Gadamael.

Por uma questão de consciência, devo porém terminar esta minha intervenção, que vai mais longa do que inicialmente desejaria, com uma especial e pública saudação cordial ao Sr. Coronel Coutinho e Lima, autor do livro "A Retirada de Guileje" (obra que neste momento estou a ler) que consegui rever ao fim de 37 anos e a quem pessoalmente ficarei grato até ao final dos meus dias.

Aproveito a oportunidade para apresentar cordiais saudações a todos os intervenientes no blogue.

Luís Paiva
Ex-Furriel do 15º Pelart

_____________

Notas de L.G.,

(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5541: Memória dos lugares (61): Mais notícias da Cart 2410 (2) (Luís Guerreiro)

(**) Vd. postes de:

30 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5182: Tabanca Grande (183): Luís Paiva, ex-Fur Mil, Pel Art 15, Guileje e Gadamael (1972/73)

27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Caros amigos Editor e Co-Editores
Em anexo envio-vos uma pequena história que tem a ver com a minha ida para o "Centro de Escuta".
Através dela podemos ver como foram diferentes os tempos por mim vividos em 1971 e os que se viviam em 73, a avaliar pelo relato do M. Maia num seu comentário ao artigo do Belarmino sobre o STM.

Como tenho poucas fotos, junto essas duas em trabalhos de radiolocalização.
Numa delas estou a fazer a pesquisa da comunicação do emissor do IN em observação na ocasião e leitura dos elementos obtidos. Na outra estou a fazer a comunicação dos dados para o posto director, trabalhando com a 'chavezinha de morse'.

Um abraço
Hélder Sousa


Hélder Sousa em missão de radiolocalização


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA (8)

COMO FUI PARAR AO “CENTRO DE ESCUTA”


Caros amigos e camaradas,
Já em tempos vos dei a conhecer como ‘fui telegrafista’ ainda antes de a Instituição Militar me indicar para vir a ser TSF, aliás, tendo em conta a excelência do Curso e dos elementos seus constituintes, melhor seria dizer, “Ilustre TSF”.

Também, aquando da minha apresentação na Tabanca, dei conta, de forma resumida é certo, e ao correr da escrita, de qual teria sido o meu desempenho nos diferentes locais e actividades por onde estive destacado.

Pertencendo ao STM, que o nosso camarada Belarmino Sardinha teve a iniciativa de ‘esmiuçar’ em Post relativamente recente, fui, nessa qualidade, enviado para Piche com a missão explícita por indicação do meu Comandante à época, também Comandante do STM, Cap. Oliveira Pinto (infelizmente já falecido) de conseguir do comando da Unidade de Piche, o BCav 2922, a construção de um edifício próprio para a instalação do Posto de Transmissões daquele local, o qual, até àquele momento, funcionava numa viatura especial mas que estava nos planos do Comando enviá-la para outro sítio.

Até aqui, nada de novo em relação ao que já relatei. Acontece ainda que tanto o Cap. Oliveira Pinto, do STM, como o Cap. Cordeiro, Comandante da Companhia de Transmissões, para além do facto curioso de serem cunhados, eram meus contemporâneos do BT (Batalhão de Telegrafistas) em Lisboa, onde fiz a Especialidade de TSF, 2.º Ciclo do CSM e eles estavam, salvo erro, como Tenentes em tirocínio. Havia, naturalmente, um reconhecimento mútuo, até porque essa época ocorreu no último trimestre de 1969, coincidindo com as ‘eleições de 69’…

Então, é preciso que se diga que aquando da nossa apresentação em Bissau (minha e dos outros 6 camaradas TSF que foram então em rendição individual) foi-nos dito que só iríamos para zonas A ou B (não sabíamos o que era, mas explicaram que as zonas C eram as mais perigosas…), daí que o facto de ir para Piche (com a tal missão) fez com que o meu Comandante me chamasse para dizer da importância da missão, da necessidade do seu rápido êxito e que, para compensar essa ida para um tal local C seria, no fim da mesma, contemplado com a colocação provavelmente em Teixeira Pinto ou Bolama.

Das peripécias ocorridas em Piche relacionadas com a missão darei conta posteriormente, importa agora, para chegar ao objectivo do tema de hoje, dizer apenas que cheguei a Piche salvo erro a 10 de Dezembro de 70 e em 1 de Abril de 71 enviei a mensagem “Posto concluído. Solicito autorização ida a Bissau”.

A meio de Abril lá fui, com a tal viagem que nunca se esquece, coluna até Nova Lamego e depois Bafatá, Bambadinca e Xime (com a particularidade de nesta última parte, por ser o mais graduado ‘a bordo’, me terem responsabilizado pela boa entrega de 4 urnas) e depois uma viagem na ‘Bor’ até Bissau, a que já fiz referência em texto anterior.

Ao passar por Bambadinca estive com um dos recentes ‘atabancados’ o Fur Mil TSF Vítor Raposeiro, do curso anterior ao meu, e que me disse que na véspera, 14 de Abril de 71, tinha havido um forte ataque a Catió de que resultou, entre outros, ferimentos no Fur Mil TSF Nélson Batalha.

Regressado a Piche para as tarefas de instalação de equipamento, sobreposição com o meu substituto, etc., voltei finalmente a Bissau com a missão encerrada depois do meio do mês de Maio.

É aqui que entra o meu espanto por aquilo que o nosso ‘bardo do Cantanhez’, Manuel Maia, relata nos comentários que fez ao artigo do Belarmino, em que confessa que esteve quase, por ‘cunha’, a ir parar ao “Centro de Escuta” e só não foi por haver uma ‘cunha mais poderosa’…

Ora bem, para além de também, como ele, me congratular pelo facto de tal não ter ocorrido, pois provavelmente não teria havido inspiração para os magníficos poemas com que já nos brindou, devo dizer que, comigo passou-se praticamente o inverso.

Esclarecendo, digo que o desenvolvimento da “Guerra Electrónica”, com a ‘escuta’ em fonia e grafia das transmissões do IN, bem como acções de radiolocalização, escuta e gravação das emissões das rádios dos países vizinhos (Senegal e Guiné-Conacri), gravação de outras comunicações em francês (ORTF, Voz da América, BBC, etc.), acções de ‘empastelamento’ e controlo do mesmo das emissões do PAIGC, captação de emissões em telex de diversas agências noticiosas, etc., etc., tinha tido o seu grande impulso enquanto estive em Piche.

Por esses tempos os Fur Mil (é claro que só estou a falar destes, porque relativamente ao restante pessoal que dava corpo ao trabalho, não devo adiantar muito por falta de conhecimento de causa directo) Eduardo Pinto e José Fanha, que tinham chegado à Guiné comigo, não foram para o mato e estavam a ter uma vida verdadeiramente difícil nesse desenvolvimento da “Escuta” pois tinham serviço permanente de turnos, do qual saíam para fazer radiolocalização, voltar ao turno da “Escuta”, sair para fazer serviço de Sargento-de-Dia à Unidade, voltar ao turno, etc., etc., mas lá iam aguentando debaixo da ameaça de “vais p’ró mato”.

Como se devem lembrar do que o Belarmino escreveu, nós, STM’s, quando ‘colocados em qualquer quartel ou aquartelamento da Guiné não dependíamos do Comandante do Batalhão, nem de qualquer Comandante de Companhia, éramos ali colocados pelo Agrupamento de Transmissões (quando fui para Piche este Agrupamento ainda não tinha sido criado) e dele ficávamos dependentes, embora sujeitos às normas estabelecidas dentro desse quartel, até sermos substituídos’.

Ora bem, então. Quando terminei a missão e procurei saber junto do meu Comandante qual o destino reservado, se Teixeira Pinto se Bolama, ele, compreensivelmente pouco à vontade, disse-me que me devia apresentar ao Sr. Cap. Cordeiro da Companhia de Transmissões pois estava a fazer falta na “Escuta” e precisavam lá de mim.

Estão a ver a situação?

Por um lado eu ‘vinha do mato, duma tal zona C’, que era um papão para aqueles desgraçados que estavam em Bissau e que de lá não queriam sair. Pelo mesmo lado, eu sabia da ‘qualidade de vida’ que eles tinham em Bissau, na “Escuta”, e sabia da relativa tranquilidade disciplinar que tinha vivido no mato, fora, é claro, das ‘outras coisas’ inerentes à permanência em local sujeito a flagelações, ataques, emboscadas, etc., para além da angústia partilhada com quem tinha tarefas bem mais perigosas. Por outro lado, ainda, tinha a meu favor uma promessa não cumprida, por parte do meu Comandante…

Apesar do meu constante e veemente protesto fui mesmo apresentar-me ao Senhor Capitão Cordeiro (a última vez que o vi era Tenente Coronel mas já lá vão uns bons pares de anos…) sendo que se estabeleceu uma verdadeira conversa surreal.

Vê lá, amigo Maia, as diferenças entre 71 e 73.

O Senhor Capitão diz-me que tenho que ir para a “Escuta”, pois tem pouco pessoal e eu faço lá falta!

Eu respondo-lhe que “quero ir para o mato”, que pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

O Senhor Capitão não se deixa impressionar (obviamente) e diz que tenho que fazer uns testes para poder ir para a “Escuta”.

Respondo-lhe que não vale a pena fazer os testes porque não tenho qualificações e, além disso, “quero ir para o mato”, pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

O Senhor Capitão diz que os testes consistiam essencialmente em saber o que eu sabia de francês e inglês, pois isso era necessário.

Respondi que, quanto a isso, não sabia nada e que “queria ir para o mato”, pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

Sem se perturbar (garanto que já várias vezes ‘visualizei’ a cena e não deixo de gabar a paciência que ele teve) o Senhor Capitão inquiriu:

- Aqui na tua ficha diz que tens a frequência do 2.º ano do Instituto Industrial…
E eu disse:

- É verdade, mas “quero ir para o mato”, pois pertenço ao STM…”

Interrompeu-me e em jeito de consequência do que tinha dito antes adiantou:

- Então, isso quer dizer que, para entrares no Instituto Industrial, tiveste que ter dado francês e inglês…”

- Pois, - disse eu, - mas isso foram só umas noções escolares, não tenho prática” e além disso “quero ir para o mato”.

O Senhor Cap. Cordeiro arrematou:

- Está feito o teste. Vais para a “Escuta”.

Bem, aqui já não me podia recusar, estaria sob alçada disciplinar por desobediência a ordens mas, dadas as circunstâncias envolventes e o facto de comigo não poder resultar a ameaça de ‘vais p’ró mato’, foi possível ‘negociar’ condições para essa ida para a “Escuta”, em que a mais importante foi a de que não haveria serviços à Unidade, só “Centro de Escuta”, o que foi aceite para bem de todos os que os por lá desempenhavam funções.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5568: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (25): 'Ousemos lutar para ousar vencer' (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5296: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (7): Mascotes e animais de estimação e/ou companhia - Os gatos….

Guiné 63/74 - P5635: Agenda cultural (54): Convite para o lançamento do livro O Ninho, de Alexandra Almeida Reis (Manuel Reis)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), com data de 10 de Janeiro de 2009:

Caro Vinhal:
Quero agradecer-te o teu comentário elogioso em meu nome e em nome da minha filha sobre o livro que ela vai lançar no dia 16.
Já agradeci ao Vasco esta brincadeira agradável*.

Aqui vai o convite extensivo a toda a tertúlia que, desde já, agradeço a sua publicação.

Um abraço.
Manuel Reis


CONVITE PARA O LANÇAMENTO DO LIVRO "O NINHO", DE ALEXANDRA ALMEIDA REIS



O lançamento do livro terá lugar no Restaurante Bar Capitão Gancho, em Esmoriz, dia 16 de Janeiro de 2010, pelas 17:00 horas.

Editora - Chiado Editora

Apresentador, Rui Moço


Bar Capitão Gancho
Travessa da Barrinha, 195
Esmoriz

__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5620: Agenda cultural (53): Lançamento do romance O Ninho, de autoria de Alexandra Almeida Reis (Vasco da Gama)

Guiné 63/74 - P5634: Blogues da Nossa Blogosfera (31): Tabanca dos Melros - Ex-Combatentes do Ultramar Português de Gondomar (Jorge Teixeira/Portojo)

O nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo) (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos notícias do segundo encontro de camaradas (primeiro deste ano), da recentemente criada Tabanca dos Melros, ECUS's - Encontro de Ex-Combatentes do Ultramar Português, sediada no Restaurante Choupal do Melros, em Fânzeres, Concelho de Gondomar.

Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, 
Jumbembem, 1969/71

Esta Tabanca foi criada em Dezembro de 2009, impulsionada pela ideia do outro nosso camarada Carlos Silva, advogado, natural de Gondomar, que mesmo vivendo na grande Capital, não esquece o seu concelho natal e os amigos/camaradas que por lá tem.

A referida reunião teve lugar no dia 10 de Janeiro passado e deu origem ao Poste 8* do Blogue desta Tabanca.

No aconchego quente de ambiente e de camaradagem, realizamos o segundo encontro dos Ecu's na bela Tabanca do Choupal dos Melros, do nosso mestre de cerimónias e camarada Gil Neves, a quem pusemos a cabeça à roda, pois não sabia com que contar. Fêz-lhe lembrar tempos antigos quando sobrevoava as bolanhas da Guiné e o famoso slogan da EPA "Nunca se sabe"...

Um aspecto da sala de convívio.

Blogue Tabanca dos Melros que pode ser visitada em http://tabancadosmelros.blogspot.com/

Fotos retiradas da Tabanca do Melros

__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2010 do Blogue Tabanca dos Melros > P.8 - 10.1.2010 - A nossa primeira reunião do ano.

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5556: Blogues da Nossa Blogosfera (30): Do caos ao cosmos, extensão de Reflexos e interferências (Regina Gouveia)

Guiné 63/74 - P5633: Núcleo museológico Memória de Guiledje (2): Inauguração no próximo dia 20 de Janeiro, com a Júlia Neto a representar o nosso blogue



1. Reprodução, com a devida vénia, de documento da AD - Acção para o Desenvolvimento (Agradeço ao Filipe Santos, da Escola Superior de Educação de Leiria, o envio do ficheiro em formato compatível com o html; o Filipe Santos é o webmaster da página dos nos nossos amigos da AD - Bissau. Ao Pepito, agradeço a autorização, para a reprodução, no nosso blogue, do texto e de uma selecção de imagens).


Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje > 20 DE JANEIRO DE 2010

A recuperação e transmissão da História, quando as testemunhas vivas começam a desaparecer, deve ser considerada como uma missão, um dever e uma obrigação. É preciso contribuir para que se compreenda o que se passou antes, conhecer os caminhos da história e reforçar os sentimentos que nos unem.



A Guiné-Bissau vive um momento em que um dos maiores desafios que se lhe depara é o de preservar e reforçar a sua identidade enquanto Nação, consciente de que o conhecimento e a compreensão da sua História é determinante para uma maior identificação colectiva.

(1) Construção da Capela com a laje de Zé Neto



(2) Colocação da cruz celta
recuperada



(3) Operação de colocação da cantoneira recuperada na Capela



O quartel de Guiledje que foi construído em 1964 no sul da Guiné-Bissau, na actual região de Tombali, a uma dezena de quilómetros da fronteira norte da Guiné-Conakry, é um símbolo nacional.


A luta armada pela independência da Guiné-Bissau tem início em 1963 e, em 1972, Amílcar Cabral, considera o quartel de Guiledje como o mais bem fortificado da frente Sul, afirmando: “Se este quartel cai, tudo à volta também cai”.

(4) Vista exterior do Museu

Em Maio de 1973, Guiledje cai. Quatro meses depois, em Setembro, reúne-se em Boé a primeira Assembleia Nacional Popular que declara a criação da República da Guiné-Bissau. Menos de um ano depois a guerra colonial acaba.

(5, 6, 7, 8, 9) Diversos objectos expostos: quépi e galões de capitão, doadas pelo Cap Mil Abílio Delgado (5, 8); talheres e cantil usado no mato (6, 7); rádio usado pela guerrilha (9)... Trata-se apenas de uma pequena amostra dos objectos expostos...


Porque, como diz um combatente pela independência, trinta e cinco anos depois, foram “estabelecidas as pontes emocionais entre aqueles que, em lados opostos da barricada, viveram com todo o seu ser, momentos de sangue, de sofrimento e de destruição, e que, hoje, se dão as mãos na construção de um mundo feito de compreensão, amizade e respeito mútuo, a história comum pode ser escrita, com objectividade, como legado às gerações vindouras”.


Porque é preciso explicar a História de forma interessante e compreensível é que surge o Núcleo Museológico “Memória de Guiledje” (1, 2, 3, 4).

Do antigo quartel de Guiledje, pouco resta hoje, senão alguns marcos escritos e material de guerra destruído.


Porque é preciso fazer a ligação entre o passado e o futuro é que se iniciou a sua reabilitação a qual, embora respeitando a estrutura e traça original do quartel, irá utilizar as suas diferentes componentes para novas vocações, dinamizando a vida comunitária local e constituindo uma referência histórica nacional.


Para isso muito contribuiu a vontade de todos os que por lá passaram, grande número dos quais foi fazendo doações pessoais de objectos a que estavam muito ligados sentimentalmente, dando fotografias, aerogramas, rádios-telefone, galões, bonés, fardas, colheres, marmitas, relógios, ou contribuindo para o arranjo interior do museu, com o diorama, os grandes posters, etc. (5, 6, 7, 8, 9)


Guiledje – o Futuro

O maior desafio será o de Guiledje se constituir como um pólo de desenvolvimento regional, compreendendo:

(i) O Museu Histórico que perpetuará a história da luta pela independência da Guiné-Bissau, em especial a ligada às zonas libertadas do sul do país, assim como a presença dos militares portugueses que construíram o quartel e nele viveram cerca de 10 anos.

O Museu permitirá aos visitantes o acesso a documentos fotográficos, mapas, textos escritos, vídeos e cartas pessoais dos protagonistas, guineenses, cabo-verdianos, cubanos portugueses, testemunhando e relatando as suas vivências da guerra, às armas e meios logísticos utilizados na altura por um e outro lado, aspectos ligados à religião católica e muçulmana e o acesso a livros sobre a História e Guerra Colonial.


(ii) A Sede da Área Transfronteiriça de Guiledje que irá promover a cooperação das comunidades, agricultores, jovens e mulheres, organizações de base, autoridades tradicionais e administrativas, técnicos e decisores políticos da Guiné-Bissau e da Guiné-Conakry para a conservação e gestão correcta dos recursos naturais e humanos, em especial na preservação dos corredores de animais selvagens, a desmatação e repovoamento florestal, o uso da terra para a agricultura, o cumprimento do regulamento de caça e que irá dinamizar o desenvolvimento comunitário e apoio às iniciativas locais.

(iii) O Centro de Aprendizagem Rural, com o objectivo de formar e capacitar jovens para actividades profissionais, agrícolas e associativas: construção de poços, carpintaria, serralharia, mecânica, construção civil, energia solar, condução de pomares de fruteiras e jardins hortícolas, transformação de produtos agrícolas e criação e liderança de organizações de base

(iv) Um Pólo de Turismo Histórico a partir do qual, todos os ex-miliares que combateram naquela zona poderão aceder aos antigos quartéis de Cacine, Gadamael, Gandembel, Iemberém, Cadique, Cabedú e Bedanda, bem como às barracas da guerrilha nas matas de Cantanhez, praticando um turismo de saudade, trazendo as suas famílias as quais poderão apreciar igualmente outros atractivos naturais, culturais e ambientais, do chamado turismo verde.

Programa do dia 20 de Janeiro de 2010, Dia de Amilcar Cabral

Há cerca de dois anos, em Fevereiro de 2008, o Simpósio Internacional de Guiledje (**) recomendou a criação de um Museu em Guiledje que perpetuasse a memória de todos quantos, guineenses, cabo-verdianos, cubanos e portugueses viveram momentos que marcaram o nascimento da Guiné-Bissau.

É neste contexto que o Governo guineense decidiu que a cerimónia central de evocação desta data se realize em 2010 em Guiledje, com a participação de combatentes da luta pela independência, de um grupo de companheiros cubanos liderados pelo lendário Comandante Móia e de antigos militares portugueses, dos quais salientamos a presença do Dr. Luís Graça, coordenador do mais importante blogue sobre a guerra Luís Graça e Camaradas da Guiné (***), assim como da Senhora Júlia Neto, esposa do Capitão Zé Neto [ 1929-2007], o primeiro militar português a dedicar-se de alma e coração à reconstrução da Memória de Guiledje, acabando por falecer sem ver concretizado o maior sonho que perseguia: regressar à Guiné-Bissau e a Guiledje.

Para os convidados vindos de Bissau prevê-se a sua chegada a Guiledje pelas 10 horas, a que se seguirá uma visita ao Quartel e a inauguração do Museu e da Capela.

Às 11h30 ocorrerão diversas manifestações culturais, protagonizadas pelo grupo de teatro dos combatentes de Cantanhez, pelas antigas lavadeiras do Quartel de Guiledje (Lisboa e Dalandinha) e outros milícias que interpretarão e tocarão em harmónica cantigas portuguesas (****), o grupo coral “Os Fidalgos” com músicas da Luta e grupos locais de danças balanta e fula.

Às 13 horas far-se-ão os discursos oficiais para logo a seguir se passar ao almoço de convívio, na antiga pista de helicópteros.

_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5616: Núcleo museológico Memória de Guiledje (1): Arame farpado e sistema de alerta com garrafas de cerveja (Pepito)


(**) Há um vídeo da TV Massar, a televisão local do Cantanhez, sobre a visita ao sul dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, que ainda não passou aqui no nosso blogue, e que está disponível no sítio da Fundação Mário Soares > Arquivo e Biblioteca > Dossiers > Guiledje (Março de 2008) >

(...) A Fundação Mário Soares participou e apoiou o Simpósio Internacional "Guiledje: Na rota da Independência da Guiné-Bissau", que se realizou em Bissau, de 1 a 7 de Março de 2008.

Neste âmbito, O Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares preparou um conjunto de documentos e fotografias relacionadas com Guiledje, com recurso, designadamente, ao Arquivo Amílcar Cabral.

Links > Apresentação · Textos · Fotografias · Exposição · Documentos · Ficha Técnica · O Simpósio (...)

Sobre o Simpósio > vd. a reportagem realizada pela Televisão Massar acerca do Simpósio Internacional de Guiledje (Vídeo: 4' 10'').

(***) Infelizmente, o fundador e administrador deste blogue não poderá estar presente, em Guiledje, no dia 20 de Janeiro, por razões da sua vida académica. Fez algumas diligências para ser representado eventualmente por membros do blogue (o José Brás, o Xico Allen). Em última caso, estará condignamente representada pela Dª Júlia Neto, que aceitou essa incumbência e, inclusive, fazer para nós um pequeno relato da cerimónia. Aceitou igualmentre o nosso convitre para passar, a partir de agora, a figurar como membro da nossa Tabanca Grande, o que muito nos honra.
(...)
Aproveito para relembrar, aos mais novos, aos periquitos da Tabanca Grande, a história e o significado da capela de Guileje, erigida no tempo da CART 1613 (do Cap Art Corvalho e do 2º Srgt Zé Neto, 1967/68)... Infelizmente, o Zé Neto (com o posto de Cap Ref) foi o primeiro a deixar-nos... A morte levou-o aos 78 anos... Morreu em 2007. Tinha nascido, em Leiria, em 1927.

Em homenagem a este nosso querido camarada, a AD - Acção para o Desenvolvimento convidou a viúva, Júlia Neto, a estar presente na cerimónia oficial da inauguração, a 20 do corrente, do Museu de Guileje (incluindo a Capela, que será consagrada e aberta ao culto). Já falei com ela ao telefone, está muito orgulhosa pelo convite e aceitou representar-nos, a todos nós, blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.... Parte para Bissau no dia 17 (...)

(****) Temos um vídeo com a interpretação de antigas músicas dos tugas, por uma das lavadeiras e por um antigo milícia, exímio tocador de harmónica, que ficará em breve disponível no You Tube > Nhabijao e no nosso blogue... Foi o Pepito que nos mandou através do médico João Graça, em Dezembro passado.

Guiné 63/74 - P5632: Comentando o vídeo do Jorge Félix / Pierre Fargeas, sobre a viagem em LDG entre Bissau e Binta, no Rio Cacheu (Carlos Matos Gomes)


 1. Mensagem do Cor Cav Ref e escritor Carlos Matos Gomes (aqui na foto, à esquerda, na antiga Fortaleza da Amura, Bissau, em 7 de Março de 2008, no último dia do Simpósio Internacional de Guileje):

Assunto - P5609 (*)

 Meu caro Luís

Em primeiro lugar Bom Ano para ti, para a tua família e para todos os que administram e habitam este magnífico condomínio.

Agora aqui vai a minha modestíssima colaboração a propósito do Post 5609 do Jorge Félix, com título adequado Por este Cacheu acima e música à maneira. Com estas imagens voltamos ao tempo e ao local.


Obrigado da minha parte ao Jorge Félix pelo trabalho que me permitiu reviver uma viagem que fiz de Bissau a Ganturé (Bigene) e regresso de Binta a Bissau em Maio de 1973 aquando da expedição a Kumbamori  na operação Ametista Real (que o doutor Manuel Rebocho classificou de mal planeada e executada, sem apresentar nenhuma razão para a classificar assim, porque talvez a sua ciência assente na fé, o que tem não mal nenhum).

Ora aqui vão alguns elementos de entre os que sugeriste em TPC:

(i) A Lancha era uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) e não uma LGD (também dá no mesmo: Lancha Grande de Desembarque – é o que tem de bom a língua portuguesa, a ordem dos factores é quase sempre arbitrária e as excepções são mais que a regra);

(ii) No vídeo aparece 2 vezes o comandante da LDG, uma delas é a última imagem, aquele senhor meio calvo, solitário, é o primeiro-tenente Bilreiro (já falecido) que terminou a sua carreira como capitão de mar e guerra;

(iii) O 1º Tenente Bilreiro comandou a LDG nos anos de 1973/1974, data em que o vídeo deve ter sido feito;

(iv) Relativamente a pessoas citadas por Jorge Félix, o Rebordão e Brito (Capitão de mar e guerra fuzileiro) já faleceu, e também o Benjamim (Benjamim Abreu), dois parceiros de aventuras, dois homens corajosos e divertidos;

(v) A peça que se vê a fazer tiro é uma Bosfors;

(vi) Quanto à duração da viagem de Bissau a Binta,  tenho a ideia de que, dependendo da maré,  era coisa para demorar uma 7/8 horas.

(vii) Ainda quanto a Ganturé, a base dos fuzos. Ganturé ficava antes de Binta, para quem vem do mar. No rio Cacheu os pontos de "abicagem" eram, vindo de Bissau (mar): Cacheu (margem esquerda), Ganturé, Binta e Farim (na margem direita).

Isto são apenas lembranças tiradas da memória de há 35 anos, com as desculpáveis (julgo) imprecisões.

Julgo que o Pedro Lauret pode dar informações mais detalhadas sobre estas navegações fluviais.

Um abraço

Carlos Matos Gomes



2.  Comentário de L.G.:

Dei conhecimento prévio deste mail ao Jorge ("Para teu conhecimento em primeira mão e incentivo para o próximo vídeo")... Quanto ao Carlos, disse-lhe o seguinte:


Carlos: Obrigado pela aplicação no TPC... LDG e não LGD: a culpa é sempre das pressas e da falta de controlo de qualidade... final.

Tudo de bom para ti e para nós em 2010. Já é altura de entrares para a Tabanca Grande, que não tem porta nem janelas...Luís

[Fixação / revisão de texto: L.G.]
 
________________
 
Nota de L.G.:
 
(*) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2010  > Guiné 63/74 - P5609: Vídeos da guerra (9): Viagem de LGD, pelo Rio Cacheu acima, até Binta (Jorge Félix / Pierre Fargeas)


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5631: Notas de leitura (53): Katafaraum é uma nação, de José Martins Garcia (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) , com data de 8 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Junto recensão acerca de uma das mais prodigiosas obras do José Martins Garcia, que foi nosso camarada da Guiné.

Um abraço do
Mário


Katafaraum é uma nação

Beja Santos

José Martins Garcia dominou diferentes modos e géneros discursivos: romance, conto, poesia, dramaturgia, ensaio e crítica. É surpreendente a mestria com que separou estas diferentes intervenções. Isto para dizer que quanto à guerra onde, segundo os seus críticos, teve uma abordagem original na exploração com sucesso do delírio, da derisão, da paródia, fabricando personagens entre a paranóia e demência, é um universo que dominou as suas atenções em livros que escreveu fundamentalmente nos anos 70. “Katafaraum é uma nação” será provavelmente a última das obras do antes do 25 de Abril e a primeira que se publicou logo a seguir à revolução. Não é imaginável esta paródia publicada na segunda edição (em Maio de 1974) a ter fugido ao crivo da PIDE/DGS.

O soldado-cadete Ramalho, e depois alferes Ramalho, é o centro da história. Vem no final do livro que, surpreendentemente, foi encarado como um ajuste de contas com professores universitários, ousadia que lhe terá custado a carreira universitária em Lisboa. Segundo ele escreve em 28 de Abril de 1974, katafaraum ocorreu-lhe depois de ter assistido ao I Encontros dos Professores de Língua e Literatura Portuguesa onde, segundo ele, foram apresentadas algumas das mais ridículas bacoradas que algum mortal pôde escutar. Ele desforrou-se escrevendo um conjunto de crónicas no jornal “República”.

Mas vamos aos feitos da Guiné. Primeiro, o Ramalho anda por Mafra em recruta (recorda-se que alguns parágrafos apareceram na recensão do livro de João de Melo “Os Anos da Guerra”). Destas andanças respiga-se um parágrafo:

“Barbeados, engraxados e seriamente inócuos, marcharam os soldados-cadetes ao longo das bermas, cordões de uniformes número 3, cinzentos, esfiapados, enodoados por rastejos de recruta, enquanto a raça loura fazedora de turístico sorriso abanava germanismos desde velozes descapotáveis, às quais gentilezas respondia por vezes um katafaraónico palavrão... Marcharam longamente, sem avaliarem da tipografia, por que nessa operação de competência contava simplesmente o tempo, nunca o espaço. Talvez marchassem para algum destino marcado pelos deuses, talvez que às voltas cumprissem imperscrutáveis meandros do tempo. E o semideus do jipe, director de tantos e tão secretos desígnios, passava e repassava em seu traje de campanha e sobre seus sólidos pneus, todo baboso de tanto estendal de competência, assim distribuída em dois carreiros de homens-formigas, marchando sem perguntas e sem quererem saber para onde... Ao transitar por entre as filas em que se tornara a primeira companhia, o senhor do jipe ordenou ao serviçal do volante que abrandasse o andamento. Mirou, regozijado, o disciplinado estendal e teve uma palavra amiga na direcção do capitão:

- Então, nosso capitão... os seus doutores hoje ‘stão fodidos”

Quem anda em campanha molha-se, corre o risco de ser abalroado pelo inimigo. Nos preparativos militares o inimigo é uma ficção que nunca mais nos saiu da mente, como José Martins Garcia regista:

“O inimigo guarda um conveniente silêncio. A ponte avizinhava-se escandalosamente. O pelotão tacticamente conduzido pela bravura do seu comandante, encontrava-se a descoberto, à vista de qualquer observador medíocre, a umas dezenas de metros da ponte, numa paródia de guerra, num grande desperdício de atacantes. O bravo alferes mandou fazer alto, para improvisar a vitória. Foi nessa altura que o semideus do jipe, manhosamente silencioso veio inquirir das grandes manobras. O alferes, em sentido, garantiu que ia ganhar. Mas o semideus queria certificar-se do grau de responsabilidade daqueles bravos. E, vendo o idiota do soldado-cadete ramalho muito entretido a observar a paisagem, berrou:

- Você aí! Está a ouvir?

O Ramalho estava, evidentemente, a ouvir. Encarou o semideus e continuou mudo.

- É consigo que estou a falar, ouviu? Ouviu? Estou a fazer-lhe uma pergunta.

Responda. É uma ordem.

- Ouço – resmungou o outro.

- Mais alto, que não ouço...

- Ouço – berrou o Ramalho.

- Ah ouve! Ouve o quê?

- Estou a ouvir Vossa Excelência.

- Ah! E sabe o que vai fazer?

- Com certeza, Excelência. Vou apanhar o inimigo.”

Temos agora o alferes miliciano Ramalho a chegar a Takiá (será Catió?), parece que está a levar a sério a sua entrada em cena na guerra. Do rigor das imagens passa-se para o surrealismo dos comportamentos, a demência anda à solta. O Ramalho pergunta ao médico sobre o estado de saúde dos oficiais, recebe respostas muito reservadas. Ramalho é oficial de transmissões (tal como José Martins Garcia foi na Guiné), vai fazendo perguntas, recebe respostas doidas. A segurança de Takiá é calamitosa:

“Então o alferes Ramalho, em voz baixa, perguntou ao alferes Mike:

- Em casa de ataque, quem é que defende isto?

- Ora ataque... quer dizer... há uma companhia de cavalaria que não está cá...

- Mas costuma estar?

- Às vezes está... outras não...

- E quando não está?...

- Há o alferes Carril, das auto-metralhadoras... aquele do bigode... Há aqui o gerente que tem um canhão...”

É nisto que sobrevém uma flagelação a Takiá, a guarnição entra em delírio, balbúrdia maior não pode haver. Os alferes Ramalho e Trabuco comem pernas de frango, abrem garrafas de cerveja, falam sobre Sartre e envolvem-se à porrada: “As metralhadoras insistiam na sua interminável competência. Bêbedos, incapazes de se susterem nas pernas, o veterano e o novato chafurdavam na lama”.

Afinal, o Jorge Cabral tem aqui um modelo parodiante. Há que reconhecer que esta centelha de talento é desopilante, é verdade que não nasceu agora mas continua a ser uma arma temível para descrever os frenesins de todos os tempos de todas as guerras. Tal como o desenho de humor, por sinal.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)