domingo, 4 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10619: Prosas & versos de Ricardo Almeida, ex-1º cabo da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) (1): A morte do quarteleiro

O Ricardo Almeida (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71) pediu-nos para juntar os seus textos (prosa e verso) numa só série... Vamos fazer-lhe a vontade, até por que é um direito que lhe assiste, como membro da Tabanca Grande que nos honra com a sua colaboração ativa e continuada... 

Chamámos à série Prosas & versos do Ricardo Almeida". E aqui vai o primeiro poste, "Heranças de guerra"... O editor, contudo, achou por bem arranjar um título mais concreto e sugestivo: "a morte do quarteleiro". (LG)

1. Prosas & versos > Heranças de guerra (1)
por Ricardo Almeida



Dia inesquecível aquele em que um batalhão de caçadores [, o BCAÇ 2879,]  deixa Portugal a caminho da Guiné (ex- ultramar), já tão calcada e espezinhada por milhares de jovens que,  deixando outrora sua família e seu lar, vão enfrentar o caminho da guerra, que lhes foi predestinado, e que deixa nos rostos de cada um expressões de mágoa, de dor e até de ressentimentos, que transportavam nos seus corações. 

Neste monótono turbilhão de coisas que me deixam atordoado, eis que exprimo toda a minha amargura e desagrado por tudo o que vivi com camaradas excepcionais, com outros mais desonestos, mais desumanos, mas, enfim… é tropa e a nada disto se pode fugir quando se cumpre uma missão.

Perante estes factos, destaco um jovem militar que, pelo seu comportamento, não chegou a conquistar a amizade dos seus companheiros, dada a sua personalidade baixa, modos insuportáveis, desordeiros e irrequietos, mas que cumpria a sua missão como tantos outros.

Dispenso-me de citar o seu nome.  
Com a especialidade de condutor auto, foi destacado para a arrecadação, municiando-nos de material quando saíamos para a mata. 

Valeu-lhe aquela colocação a alcunha de Hipócrita.  
Certo dia tive problemas com ele, mas a crise passou e tudo esqueci. Mais tarde de regresso de uma operação no capim, senti como que uma fraqueza infindável e baixei à enfermaria. Ai estive dez dias, até que fui transferido para o hospital de Bissau e seguidamente evacuado para a metrópole. 

Esperava-me o HMDIC [, Hospital Militar de Doenças Infeto-Contagiosas, em Lisboa, Belém,]  e o Caramulo. Resultado:  
“Tuberculose pulmonar”. Moral: desfeita! 

Já em período de restabelecimento e em data que de momento não recordo, após o jantar, entretia-me a ler um pouco para tentar afogar pensamentos horrorosos que tentavam afluir-me à memória.
Um colega, uma triste noticia, um abraço. 
- Almeida, sabes quem está aqui com a morte quase no goto? 
- Não, quem é? Morre-se todos os dias, na frente, na retaguarda e até no Hospital. -  conclui. 

O colega foi directo e espontâneo e com voz rouca, disse:
- “O Hipócrita”da arrecadação de material! 

Apesar de tudo, considerava-o humano, tal como eu, e desloquei-me à enfermaria onde ele se encontrava. A enfermaria 2 era uma espécie de cubículo, onde os “esqueletos vivos” se amontoavam, jogando-se forte na vida.

Espiei-os e encontrei o que procurava. Estava a oxigénio afim de lhe facilitar a respiração. Pronunciei o seu nome mas ele não me ouviu. Tinha os olhos fechados, a boca um pouco  a
berta e a resposta saiu-lhe dos lábios, como que arrancada lá do fundo: 
- Morro...Água! 

Eu não podia suportar aquele drama doloroso. Um homem a debater-se com a morte apesar de tantas ter visto, mas aquele era diferente. Aproximei-me e perguntei-lhe:
- Queres água? Não me conheces? 

O som das minhas palavras abriu desmesuradamente os olhos e num esgar de dor, respondeu:
- Não! 

Não era para admirar, pois que nem eu, às primeiras impressões, o reconheci. Estendi a mão e disse-lhe quem era. Apesar do choque, já refeito, as lágrimas afloraram-me aos olhos, não podia já olhar aquele corpo já inerte, só com a pele a segurar-lhe os ossos e a recordar como mo conheci: Forte, esbelto e saudável. 

– Água, Almeida. Tem dó de mim! 

Ensopei um bocado de algodão em água e coloquei-lho nos lábios, que já me parecia moribundos. 
Consegui mexê-los e, de repente, tentou suprimir todas as dores naquele bocado de algodão introduzido agora na boca.  Retirei-lho e tentei acalmá-lo, mas inutilmente. As lágrimas apareceram-lhe nos olhos e pediu-me perdão. 
–  Estás perdoado,  amigo. –  respondi. 

Fui-me deitar não consegui conciliar o sono nessa noite.  Os dias iam passando e a minha companhia era inseparável da sua cabeceira. Até que chegou o momento mais doloroso para mim, apesar de viver a guerra e estar habituado a ver coisas que os meus olhos nunca sonharam ver, mas que forçosamente eram obrigados a aceitá-las. 

Dia 21 de Outubro daquele ano de 1970.  
Encarando a realidade e sem coragem de me despedir dele, soube que tinha falecido.  Poucas horas decorridas e inesperadamente, vi-o, pela última vez, envolto num lençol, aquele farrapo humano, transportado em maca, pelo corredor de acesso à casa mortuária, onde deveria entrar naquela maldita “urna”, oferta exclusiva do Exército Português! Envolto nos meus pensamentos e alheio até ao lugar que ocupava, dei uma palmada no caixão, como que a implorar-lhe vida: 
 Acabaram-se as tuas forças, as tuas reguilices, a tua fraca reputação. Apesar de tudo eras humano, por isso te rendo homenagem com o coração destroçado e como teu amigo que era, me despeço até um dia…  – Balbuciei!!! 

Ricardo Marques de Almeida
1.º Cabo 089225/68

Guiné 63/74 - P10618: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (8): 9.º episódio: As confissões de um prisioneiro

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 1 de Novembro de 2012:

Caros camaradas e amigos
Então aí vai mais um episódio, com abraços reconhecidos
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

9.º episódio - As confissões de um prisioneiro

E lá se ia passando o tempo...

Voltámos no dia seguinte, para um provável reencontro com os tipos que nos andavam a querer dificultar a vida e já o haviam feito neste mesmo local. A determinada altura, vindo de dentro da mata e próximo, veio o zurrar dum burro, daqueles com quatro patas. Aqui nesta zona do K3, nunca tal houvera visto, embora conhecesse, um ou outro, mas de duas patas.

Acomodámo-nos melhor, uns atrás das baga-bagas, outros atrás das vetustas árvores, outros ainda deitados na camuflagem natural da selva. O dedo permanecia no pinchavelho, ou seja, naquela coisa que na G3 faz accionar a saída pelo cano, duma pecita que ao encontrar algo, derruba que se farta. Pedi que ao verem o asno, o deixassem para mim, experimentado que era e sou, em engatá-los na nora do meu sogro que também era o proprietário duma mula bem vistosa.

Passado pouco tempo, lá chegaram aqueles por quem amigavelmente esperáramos para uma aterradora surpresazinha e para lhes cantar também os parabéns. Vinham descontraídos... conversando... alegres e bem dispostos... não antevendo, ingénuos, que também sabíamos preparar recepções. A tiracolo traziam, a meu ver e depois confirmei, armas proibidas e para as quais não tinham a necessária e indispensável licença para uso e porte. No final da fila em pirilau, que o caminho era estreito, lá vinha o jumento, que tanta alegria me viria a dar mais tarde.

Tadinho... vinha carregado que "nem um burro", trazendo num dos lados do lombo... espingardões e do outro lado um canhão sem recuo. Tudo, sem sela nem canga.

Imaginei o sofrimento do pobre e pensei:
- Quais selvagens, tratam assim as bestas ???...

Hora da festa... faça-se a festa... e fez-se. Manga de ronco... mesmo... e só tarde se aperceberam do que lhes estava a acontecer. Regressámos depois a penates e de livre vontade, acompanhou-nos com arreata, o prisioneiro que ia entrementes fazendo uma alarvice de zurraria do caraças. Com este eram agora dois, os aprisionados, porque ontem um outro, bem aparamentado e com a fisga e de mãos no ar, havia desertado e entregou-se às NT.

Estava a ser interrogado a fim de vermos se nos cedia quaisquer informações, mas apenas respondia: "Je ne sais pas". Qual crioulo... qual português? Seulement français, dizia. Até que, por caridade, lhe levei o nosso prato do dia, para que se alimentasse, claro. Ao ver a "dobrada liofilizada com feijão branco", pediu em Português correcto:
- Não, não me torturem... eu falo... eu conto... eu denuncio... mas lá comer isso é que não.

E confessou que tinham:
- na bolanha, três submarinos sem portas, apenas com escotilha;
- no Cacheu, um porta aviões, perto de Farim;
- aviões, manga deles escondidos na mata, junto dos helicópteros;
- comida: camarões e lagostas de Quinhamel e ostras do Geba;
- armas de todo o calibre e feitio, morteiros e em mais quantidade, costureirinhas e AK 47, 48, 49 e 50.

K3 > Entrada da suite. Com o Ismael da Secção de Morteiros 60 

(continua)
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Nota de CV :

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10602: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (7): 8.º episódio: Uma emboscada perigosa

Guiné 63/74 - P10617: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (28): Colégio de Oliveira de Azeméis (1) Parte I

1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2012, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias:


Colégio de Oliveira de Azeméis C.O.A.

Parte I 

O colégio de Oliveira de Azeméis, antiga Casa Escola, foi fundado em 1932, pela primeira e única Diretora, Srª Dª. Maria Adília Algria Martins; ela exerceu aquele cargo até 1972, durante precisamente 40 anos. Nesta data, as instalações do vetusto colégio passaram a funcionar como uma extensão do Liceu Nacional de Aveiro, que nos anos 50 substituíra o antigo Liceu José Estêvão, nome de um tribuno afamado, mediante pagamento de volumosa renda-tinha de ser.

O seu crescimento foi lento mas alicerçado, durante vários anos, até que Dª Maria Adília casou com um seu ex-aluno - Sr. António Almeida – que veio dar nova vida, outra dinâmica àquela, já célebre escola. O Sr. António Almeida - ou Sr. Diretor – como lhe chamávamos, porque era marido da srª Diretora-fez aquela escola crescer imenso, diria até quase desmesuradamente, muito em especial a partir do início dos anos cinquenta.

Havia alunos de todos os quadrantes: Guiné, Angola, Trás-os-Montes para citar apenas os de mais long;os distrititos do Porto e Viseu também estavam representados. De várias origens, o sr. Almeida colhia informações sobre hipotéticos candidatos que se preparavam para iniciar os estudos secundários principalmente no interior-centro do país. Ele logo partia ao encontro dos pais destes jovens para os convencer a enviar os filhos para o seu colégio; com frequência levava a água ao seu moinho. Recordo o meu caso. Fiz a 4ª classe; meu pai, confiado nuns cobres acumulados, durante anos, no canto do baú, decidiu pôr-me aos estudos. Voltei no ano seguinte à escola lá da terra ( ficáva a mais dedois km de casa, trilhando caminhos de cabras), onde uma professora bairradina (natural de uma aldeia chamada Fogueira), boa mestra, excelente educadora e soberba condutora de crianças, assumiu levar-me ao exame de admissão ao Liceu. Fiz também exame de admissão à Escola Comercial; se falhasse num tinha outra saída.

Em meados de Janeiro daquele ano lectivo, o director do colégio de Albergaria-a-Velha, acompanhado por um professor apareceu lá em casa a fim de convencer o meu pai a enviar-me para a sua escola. O meu progenitor logo alegou que não tomava naquela hora qualquer decisão; teria de conversar de novo com a professora. Em desespero de causa o professor mandou-me conjugar o presente do indicativo do verbo” remir”; eu não sabia! O professor comentou:- está a ver?! O seu filho está atrasado em relação aos nossos alunos! Meu pai manteve a sua posição.

Obs.: mais à frente falaremos de novo daquele verbo “remir.”

No dia seguinte, meu pai deslocou-se à casa onde a professora residia a fim de colocar os pontos nos “ii”; depois de algumas perguntas e respostas, avanços e recuos ela concluiu: - Já levei vários alunos ao exame de admissão e nenhum reprovou; não posso garantir que o seu filho “vai passar” mas eles também não podem dar essa certeza; a decisão é sua!

De seguida contei-lhe a estória do verbo que eu não soube conjugar; ela comentou que “ainda” não é tarde para aprenderes a conjugar aquele verbo: “ foi uma brincadeira de gosto duvidosos da parte deles! Referiu a professora.
Logo ali meu pai decidiu que eu continuaria ás suas ordens até ao exame final. Como se depreende, naqueles tempos, a luta para conseguir mais alunos era (tinha de ser) dura, persistente e até, por vezes, feroz.

Mais tarde, já depois de ter feito exame de admissão, passei férias em Espinho e, não sei como, fui ali matriculado, no Colégio S. Luis.

Volvido um mês ou perto disso, o director do colégio de Oliveira de Azeméis apareceu em minha casa, já noite escura; vinha acompanhado dum médico (estomatologista) que era um grande amigo do meu pai. Ele foi a arma decisiva. Depois de argumentos vários, o Sr. Almeida assumiu que tratava da anulação da minha matrícula em Espinho e em Outubro seguinte cruzei pela primeira vez o portão “monumental” (o portão de hoje ainda é o mesmo… mas com mais 60 anos )– nunca me arrependi.

Nos tempos que correm, os jovens alunos não sabem, nem sequer imaginam ou sonham como era o dia a dia dum estudante interno metido entre as quatro robustas paredes austeras dum qualquer internato.

Havia escolas cujos alunos eram todos externos: permaneciam intra-muros durante as aulas e também nas horas de estudo mas tomavam as refeições e pernoitavam em casa;. não sofriam com o isolamento forçado em relação à família.

Os alunos internos viviam em autêntica clausura; saíamos do colégio ao sábado depois das 17 horas, quando não eramos obrigados a permanecer na escola durante o fim de semana devido a castigo por más notas ou por atos de indisciplina.Mais tarde saíamos a partir das 13:00 horas. Na 2ª feira de manhã estávamos de volta para mais uma semana fora do conforto do lar; melhor ou pior era sempre diferente; era o nosso lar!

Todos os internatos tinham determinados defeitos mais ou menos comuns a todos, mas também tinham algumas virtudes… uns mais que outros.A maior mazela era “arrancar” crianças, a partir dos nove/dez anos aos afectos da família, “enclausurando-as”, autenticamente entre severas paredes.

Vivi cerca de oito anos lectivos como aluno interno no C.O.A.; ainda recordo com saudade e carinho – apesar de tudo – o tempo e o ambiente daquela casa ,os bons e maus momentos (muitos assim assim); com certeza foram mais aqueles do que estes, até porque eu sempre procuro enviar para as calendas o lado mau da vida ou, no mínimo, não lhe dar relevância, guardando no “disco rígido” da minha cabeça, apenas (ou quase) a parte boa das coisas por que passei.

In illo tempore – no tempo em que frequentei aquele colégio – o internato era uma inevitabilidade; refiro-me aos anos 50 do século passado, época em que muitos jovens do interior, ainda não despovoado, não poderiam estudar se não houvesse internatos.

Havia liceus nas capitais de distrito; os colégios surgiam apenas nas cidades ou em vilas de maior dimensão: na capital do meu concelho não havia ensino para além da primária; surgiu ali um colégio nos fins dos anos 50 ou nos primeiros anos da década seguinte

No meu caso (e no de tantos outros), quando podia ir a casa ao fim de semana, faltava às duas primeiras aulas de 2ª feira; na melhor das hipóteses eram só duas. Saía de casa pelas 7 horas da manhã e chegava ao colégio pelas 11, se tudo corresse bem.A meio do percurso mudava de autocarro. Se houvesse lugares vagos no onibus que vinha de Coimbra, tudo bem; se não houvesse vagas naquele autocarro, chegaria ainda mais tarde, perdendo todas as aulas da manhã.

O dia a dia de um aluno interno era terrivelmente duro! Havia quem chorasse copiosamente! Tal era a bomba! Para os semi internos a pílula não amargaria tanto – iam dormir a casa diáriamente

Dura lex sed lex! A disciplina é dura… mas é disciplina! – e se ela era rígida, inflexível, naquela casa! Não fora a imaginação e a ousadia da rapaziada para tentar adoçar a pílula (algumas vezes conseguia-se; outras vezes as contas saiam furadas, e sofríamos as consequências) e a nossa vida seria ainda mais atroz, quase insuportável

O aluno nunca era expulso da aula; este tipo de castigo não estava previsto. Havia castigo corporal! Naquele tempo, já era proibido por Lei… mas era prática mais ou menos corrente – mais corrente que menos. Regra geral, não podíamos fazer queixa aos nossos pais, porque, na maioria dos casos… levávamos a dobrar.

Nenhum pai (quase) ousava discutir esse assunto com a Direcção; intransigentemente o sr. Almeida alegava que “era para o bem do aluno” e tinha em conta, também os encargos monetários dos pais. “Naquele tempo o dinheiro era muito caro! Rareava quase em absluto!

Os internos podiam ser impedidos (e eram-no com frequência) de ir passar o fim de semana com os pais, acontecia sempre que havia más notas ou eram indisciplinados. Para o colégio seria até um prejuízo material mas, felizmente, a direção (os proprietários da escola) preferiam que os alunos tivessem boas notas e fossem bem comportados, perdendo eles alguns escudos referentes à sua alimentação dos alunos castigados durante o fim de semana.

A nossa tarefa iniciava-se, diariamente, às 6:30 horas da manhã (excepto ao domingo); às 7:00 horas, entrávamos no salão de estudo e ali permanecíamos até às 8:45, tempo para o pequeno almoço. As aulas iniciavam-se às 9:00. Depois do almoço havia um intervalo (cerca de uma hora) para dar uns pontapés na bola ou ver jogar. O período das aulas terminava às 19 horas; depois do jantar havia um intervalo até às 20:30 horas; seguia-se nova sessão de estudo para, sob vigilância do prefeito, preparar as aulas do dia seguinte; às 22 horas íamos dormir num edifício mais recente, voltado para a avenida principal; era no rés do chão deste edifício que tomávamos as refeições – no rés-do-chão. Em véspera de prova (ponto) era permitido estudar até mais tarde. Por vezes enquanto a maioria dos alunos dormia, sem a presença do prefeito, uns estudavam , outros aproveitavam a hora de pretenso estudo para surripiar umas laranjas do quintal da Direcção ou fazer uma incursão na adega (por baixo do salão de estudo) donde se retirava uns pedaços de carne de porco salgada e até umas garrafas de vinho; tudo bem regado! No edifício mais antigo, voltado para o recreio havia uma porta diferente, algo estranha, que dava acesso a uma garrafeira que também chegou a ser visitada por alunos.

Com os restos da comida, a direcção, mandava alimentar uns suínos, cuja carne era depois servida aos alunos; assim tínhamos oportunidade de compreender, na prática, que Lavoisier tinha razão!

No nosso “horário” não havia “furos”; estes eram ali substituídos pela palavra “estudo”; ou seja, entravamos num salão enorme onde passávamos 50 minutos a estudar… no mínimo éramos obrigados a olhar para o livro… e, em silêncio absoluto – ouvia-se nitidamente a mosca que ousasse penetrar aquele espaço – íamos preparando as aulas que se seguiam.

Se um professor faltava – acontecia apenas quando o rei fazia anos (ao contrário dos tempos de hoje) os alunos não entravam na sala de aula, ou abandonavam-na de seguida e dirigiam-se ao salão de estudo.

Uma característica terrivelmente sádica era a “segregação” total por sexos; rapazes e raparigas só podiam ver-se (apenas ver) nas aulas. Conversar com uma moça era um risco extremamente grave que ninguém de bom senso ousava correr sem tomar avultadas cautelas e mesmo assim… a segurança era quase sempre diminuta. O perigo rondávanos!

A menina Dina, pessoa de absoluta confiança da diretora, tinha um excelente jogo de cintura para agradar a gregos e a troianos (alunos e diretores); era uma solteirona “de pai e mãe” seca de carne, elegante, sem nada dever à beleza, afável, delicada e sempre bem disposta, era empregada da secretaria e dava umas arrojadas badaladas na sineta; logo os rapazes corriam para as suas salas de aula; só quando já não havia rapazes nos corredores, as meninas podiam avançar para as respectivas salas; no fim da aula os rapazes só podiam ir para o recreio quando os corredores estivessem totalmente vazios (sem as “pequenas”).

Constava (no mínimo era… parcialmente verdade) que a directora mantinha, “impunha” esta austera, quase ignóbil, separação por sexos, porque ela, sendo já dirigente, casou com um ex-aluno, cerca de década e meia mais novo que ela. Dizia-se até que ela casara com um aluno…, mas na verdade, casou com um ex-aluno. Durante o fim de semana o horário continuava rígido, especialmente para os alunos castigados; para os outros havia um pouco mais de abertura.

Sábado à noite, depois do recreio que se seguia ao jantar, mantinha-se o estudo obrigatório durante hora e meia; ao domingo a “alvorada” era às 8 horas; depois do café da manhã, dirigíamo-nos à Igreja Matriz onde assistíamos à missa das 9 horas; de seguida passávamos cerca de meia hora a dar voltinhas ao jardim da vila (hoje cidade); era o nosso “picadeiro”. Mas constava, entre os rapazes, que apenas as moças davam a volta completa ao jardim… circundando a estatueta ao fundo… para dar uma olhada à pilinha do menino – esta estatueta, em bronze, foi recentemente roubada; assim já não há motivo – se é que havia! - para dar a volta completa . Seguia-se nova sessão de estudo durante 90 minutos, cerca das 10:30 às 12, continuando a ser obrigatório olhar para o livro, no mínimo.

Depois do almoço, se o tempo estivesse chuvoso, podíamos ir ao cinema; Se o sol brilhasse, o leque de divertimentos alargava-se de acordo com os gostos individuais: uns iam ao cinema, outros iam ver a Oliveirense jogar, outros escolhiam dar umas voltas no parque de La Salette, outros ainda decidiam fazer uma visita, a pé e “não guiada”, ás aldeias vizinhas; um último grupo dos não castigados ficava intra-muros a dar uns furiosos pontapés de má qualidade numa infeliz bola de borracha – muda aos cinco e acaba aos dez. Os que passavam o fim de semana no colégio, por castigo, não podiam sair à rua no domingo à tarde; passavam grande parte do tempo no salão de estudo; com frequência a directora aproveitava para dar umas aulas da sua especialidade. E assim se passava um domingo… em beleza.

No dia 18 de Março havia confissões gerais (mais ou menos obrigatórias) para os alunos do colégio; no dia 19, dia de S. José, comungávamos e cantávamos na missa especial celebrada em honra do santo na Igreja Matriz. Nesse dia havia “rancho” melhorado.

Alimentação

Os alimentos eram mais ou menos bons e bem confecionados (dependia do clima) e em boa quantidade. Às duas refeições principais, havia dois pratos – caso raro ou único em internatos – exceto no dia em que o almoço constava de bacalhau cozido com todos (apenas couves e batatas) e ao jantar de domingo em que, para aligeirar a carga horária do pessoal da cozinha, comíamos massa de meada cozida ou (guisada), com alguma carne, normalmente bofes.

O segundo prato era invariávelmente arroz; constava ( até seria verdade) que este cereal era fornecido pelo pai do Sr. Diretor, marido da diretora; Ele era proprietário de um ou mais moinhos de tracção por água para descascar arroz e moer outros cereais, em Santiago de Riba Ul.

Naqueles tempos, como o dinheiro não abundava; os pequenos agricultores pagavam o descasque (acontecia o mesmo com a moedura do milho e/ou centeio) em espécie – entregavam ao moleiro uma determinada percentagem do cereal trabalhado (moído ou descascado). Eis o motivo (dizia-se) por que éramos “obrigados” a comer arroz duas vezes por dia. Não consta, porém, que um qualquer aluno tenha ficado com os “olhos em bico” (olhos de chinês) por causa disso. A directora impunha, (quase só aos mais novos) que “todos” os alunos, por uma questão de boa educação, deviam comer (eram obrigados a) tanto do 1º prato como do segundo. Nós entendíamos que ela pretendia apenas ajudar o sogro… a esgotar o arroz das maquias (trabalho pago em espécie).

Certo domingo, no meu primeiro ano, uns 15/20 alunos ficaram no colégio; ao almoço sentámo-nos todos à volta de uma mesma mesa grande. A refeição era salada russa… seguida de arroz… como tinha de ser. Cada aluno encheu completamente o seu prato; eu era talvez o mais novo… mas sendo um “bom garfo” também atestei o meu. Logo a diretora me avisou que eu, (apenas eu) porque era o mais puto, tinha de comer igual quantidade do segundo prato. Frequentemente ela sentenciava o mesmo a qualquer miúdo mas, por vezes, esquecia-se. Daquela vez tal não aconteceu. Apercebendo-se que eu tinha comido a salada russa, pegou no meu prato, colocou-o sobre um aparador e encheu-o de arroz, recolocando-o à minha frente. Fiquei abismado! Os meus amigos, ao verem a minha cara de quase pânico, logo me ofereceram papéis de jornal e envelopes usados para neles embrulhar o arroz exedente e levá-lo para o exterior do refeitório, para ser colocado no lixo.

A diretora, porém, ao contrário do que habitualmente acontecia, estava atenta; colocou-se estrategicamente nas imediações, e olhava-me pelo canto do olho. Enfardei aquela montanha enorme de cereal. De seguida, levantei-me e transmiti-lhe (respeitosamente ) que queria mais um pouco de arroz. Ela assustou-se! Mas ordenou que colocassem outra travessa na mesa; eu retirei dela apenas meia colher de “alpista” para meu prato e comi. Foi remédio santo! Ela não esqueceu! E nunca mais pretendeu que eu comesse tanto do segundo prato como do primeiro! Passei a ser tratado como um dos “grandes”

O diretor, o Sr. Almeida, porém, tinha opinião diferente – só não queria que os alunos saíssem da sala de refeições com apetite; podíamos comer a quantidade desejada de um só prato, à nossa escolha. No meu tempo havia uma refeição semanal de açorda e outra de “farinha de pau”; (mandioca) estes pratos foram banidos ainda no meu primeiro ano – não sei o motivo mas adorei que tal tivesse acontecido; detestava pão “mastigado” por outrem!

Às refeições principais tínhamos direito a vinho; um pequeno copo mais ou menos a meio. Alguns alunos não gostavam da “pinga”… mas faziam o seu negócio vendendo o vinho aos colegas apreciadores do precioso néctar

Salazar dizia – constava – que “beber vinho é alimentar um milhão de portugueses”! A direcção do colégio aplicava ali os ditames do 1º ministro… para o bem e para o mal

Aproveitamento escolar

Regra geral os alunos do C.O.A. apresentavam bons resultados finais (acima da média) em cada um dos liceus habituais (Aveiro e Porto); distinguiam-se pela positiva. Havia ali bons professores; cito apenas alguns, os que mais me agradaram: Dr. Vide, Prof. Santos, Dr.ª Maria José Mourão, Dr. Abel Gandra, Dr. Magalhães Lima, entre outros.

Os direcores (tanto a Dª Maria Adília como o Sr. Almeida) davam aulas de “empreitada”. Próximo dos exames aproveitavam todos os tempos livres… para mais uma aula. Que seca!

No meu 5º ano, o Sr. Almeida comunicou-nos, logo no início, que nunca tinha dado Geometria no Espaço… nem como aluno nem como professor; durante o Verão recebeu aulas do Dr. Fachada… e nós fomos as cobaias… mas houve resultados muito satisfatórios… também nessa disciplina. O Leonel Castro Nunes conseguiu na prova escrita de matemática uma nota excelente – 19,8. Constou que não lhe “deram” o 20 porque ele deixou o resultado da expressão algébrica em √4; não acrescentou = 2; – entendeu que o examinador devia saber que raiz de 4 era 2.

Nesse ano, numa aula de matemática, o Sr. Almeida, comunicou-nos que determinado problema estava mal apresentado, pois o proposto tinha sentido ambíguo. O Leonel logo comentou: - “ai o umbigo” O Sr. Almeida aproximou-se dele e perguntou agressivo, ameaçador:

Sabes o quer significa “ambíguo”? não esperou pela resposta e acrescentou: quer dizer dos dois lados! E logo lhe afinfou uma sonora bofetada em cada face… e não se fala mais disso!

Educação física

Esta era uma situação caricata! Coisa anormal mesmo há 60 anos! Esta disciplina existia somente no… horário. Na verdade, o Prof. Costeira, pai ( que também era professor de português e ciências naturais do 1º ano e era chefe de secretaria) raramente – muito raramente mesmo – comparecia no recreio (o ginásio foi construído mais tarde e não era usado para esse fim) para ministrar aquela disciplina; quando aparecia vinha “equipado a preceito”: sobretudo vestido e cigarro no canto da boca; os alunos compareciam nesta aula “equipados” tal como para as outras disciplinas. Assim nos iniciávamos(?) na Educação Física.

Ele teria sido furriel na tropa… e entenderam que, assim sendo, estaria (?) qualificado para ser o responsável por aquela disciplina. Certamente ainda não haveria o INEF ou quejandos. Era um bom professor de português… mas na Educação Física deixava muito (tudo) a desejar… ponham muito nisso!

Trimestralmente, porém pagávamos determinada verba (creio que 20$00) para actividades da M.P.(Mocidade Portuguesa) a que todos éramos obrigados a pertencer. Não seria assim tão má pois no verão de 2012 o coordenador dos nossos atletas olímpicos defendeu públicamente que seria aconselhável que se recriasse a M.P. – e porque não?!

Um dia, um grupo de alunos pediu ao Sr. Almeida que comprasse uma rede e uma bola para jogar voleibol. Resposta na ponta da língua, eficiente (curta e grossa). - Essa disciplina não consta do horário do colégio! Mas lá comprou aqueles apetrechos para a malta se divertir, treinando sozinhos para participar nos campeonatos da M.P.

A “Escola Livre” (creio que foi mais tarde aglutinada à UDO??) tinha uma equipa das camadas mais jovens que era campeã ou vice-campeã nacional de hóquei em patins. Apenas um desses jovens não era aluno do colégio! Pediram ao Sr. Almeida que comprasse equipamentos próprios para concorrer aos campeonatos da M.P., pois teriam sérias (todas) as hipóteses de ser campeões nacionais daquela salazarista ( ou salazarenta) organização. A resposta foi um rotundo NÃO! Nada a fazer! O Sr. Almeida estava mais interessado nos estudos do que na componente fisíca; convinha-lhe que os alunos tivessem boas notas que ele podia exibir perante os progenitores dos novos candidatos; Naquela altura os romanos” ainda” não teriam inventado e espalhado pelo mundo de então a sua célebre frase: “mens sana in corpore sano”. Frequentámos o colégio demasiado cedo.

Fim da 1ª parte Outubro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10378: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (27): O "Engrácio"

Guiné 63/74 - P10616: Agenda cultural (229): O Festival Sete Sois Sete Luas, na sua 20ª edição, de 4 a 11 de Novembro, em Cabo Verde... Arranca hoje com os portugueses Melech Mechaya na Ilha do Fogo








1. Pensando nalguns dos nossos camaradas que vivem em Cabo Verde, ou nasceram em Cabo Verde, bem como nos muitos amigos e leitores que lá temos (Cabo Verde está no "top ten" dos países de origem dos visitantes do nosso blogue!), damos aqui notícia mais detalhada deste festival, de resto relevante para o aprofundar do conhecimento e do estreitar da amizade entre os nossos povos lusófonos (Brasil incluído)  bem como de toda a Europa mediterrânica...Dos grupos musicais portugueses refira-se a presença dos Melech Mechaya e dos Mood's.   


O Festival Sete Sóis Sete Luas este ano abriu a sua XX edição [, 1993-2012,] com uma grande novidade que marca a sua profunda relação com Cabo Verde: Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República, aceitou a herança do Prémio Nobel português, José Saramago, como novo Presidente Honorário do Festival. Este foi só o início de um ano em que se viu a promoção internacional de muitos artistas caboverdianos no mundo. Teté Alhinho, Cordas do Sol, os pintores José Maria Barreto, Djosa, e os vencedores do Prémio Revelação SSSL Leni e Banda, atuaram em diferentes Países da Rede SSSL: Espanha, Portugal, Itália, Croácia e França.

Mas agora chegou o momento de realizar a XX edição do Festival em Cabo Verde, que este ano abarca uma nova ilha: a ilha de Brava, que se vai juntar às outras ilhas que apostaram neste projeto internacional no ano passado: a histórica Ribeira Grande da ilha de Santo Antão, primeira a aderir á manifestação, Cidade Velha e Tarrafal na ilha de Santiago e São Filipe na ilha do Fogo. E é mesmo aqui que vai começar a viagem musical do certame no dia 4 de novembro, terminando no dia 11 de novembro na ilha de Santiago.

A programação artística é um cocktail explosivo de teatro de rua basco, forró do nordeste brasileiro e seduções lusitanas de Portugal. Os nomes são: 

(i) Deabru Beltzak, a companhia de teatro de rua mais internacional do País Basco que vai capturar-nos com as percussões e muitos outros efeitos especiais e vão apresentar-nos as magias e os rituais das suas terras;

(ii) Os Melech Mechaya, primeira e mais proeminente banda de música Klezmer sediada em Lisboa e Almada, farão emocionar com os ritmos ciganos, árabes e balcânicos;

(iii) em quanto que os grupos Culé de Xá (Brasil) e Mood’s (Portugal) farão dançar desenfreadamente com o sensual forró brasileiro e os sons alentejanos.

Para além deste rico programa, haverá o Prémio Revelação Sete Sóis Sete Luas nas cidades de Ribeira Grande de Santo Antão, Cidade Velha e Tarrafal. O grupo vencedor do concurso, que será escolhido por um júri, terá a possibilidade de tocar, no próximo ano, num dos Países da Rede SSSL, como fez este ano o grupo Leni e Banda de Tarrafal, que atuou em Portugal.

O Festival Sete Sóis Sete Luas (www.7sois.eu), com o alto patrocínio da Presidência da República de Cabo Verde e com os importantes apoios da Embaixada de Portugal em Cabo Verde, do Instituto Camões, da Embaixada da Espanha em Cabo Verde – AECID / Oficina Técnica de Cooperação, da Embaixada do Brasil em Cabo Verde, do Governo do País Basco e das Câmaras Municipais da Ribeira Grande (ilha de Santo Antão), da Cidade Velha, do Tarrafal, de São Filipe e de Nova Sintra, celebra este ano duas décadas de existência (1993-2012) e continua a sua longa viagem pelas rotas musicais, artísticas e turísticas que unem o Mediterrâneo ao mundo lusófono.

Nascido entre Portugal e Itália, o Festival Sete Sóis Sete Luas desenrola-se, hoje, ao longo de um itinerário que conta já com 30 cidades em 11 países, entre os quais Brasil, Cabo Verde, Croácia, Espanha, França, Grécia, Israel, Itália, Marrocos, Portugal e Roménia. Cabo verde foi o primeiro país extraeuropeu que entrou na rede no ano 1998, e, ao longo dos anos, ganhou muitas raízes no projeto. O Festival envolve mais de 400 artistas, oferecendo cerca 150 concertos de música popular contemporânea, acompanhados de exposições de artes plásticas, contando com mais de 60 estreias nacionais e 200.000 espectadores anuais.


Programa

SÃO FILIPE (ilha de Fogo), 
Cinema ao ar livre

Domingo, 4 de novembro, 21h30

Deabru Beltzak (País Basco) + Melech Mechaya (Portugal)

Entrada livre


NOVA SINTRA (ilha de Brava)

Terça-feira, 6 de novembro, 21h30 
Deabru Beltzak (País Basco) + Melech Mechaya (Portugal)

Entrada livre
PRAIA (Ilha de Santiago),
Auditório IC-CCP Centro Cultural Português

Quinta-feira, 8 de novembro, 21h30

Melech Mechaya (Portugal)

Entrada livre
TARRAFAL (Ilha de Santiago), Mercado Municipal de Artesanado e Cultura

Quinta-feira, 8 de novembro, 21h30

Deabru Beltzak (País Basco) + Mood’s (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Sábado, 10 de Novembro, 21h30

Melech Mechaya (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Domingo, 11 de Novembro, 21h30: 

Culé de Xá (Brasil) + Prémio Revelação SSSL

Entrada livre


RIBEIRA GRANDE (ilha de Santo Antão), Terreiro

Sexta-feira, 9 de novembro, 21h30
Deabru Beltzak (País Basco) + Melech Mechaya (Portugal) + Culé de Xá (Brasil) + Prémio Revelação SSSL

Sábado, 10 de novembro, 21h30: 

Mood’s (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Entrada livre
CIDADE VELHA (ilha de Santiago), Praça do Calhau

Sexta-feira, 9 de novembro, 21h30
Prémio Revelação SSSL

Sábado, 10 de novembro: 
Deabru Beltzak (País Basco) + Culé de Xá (Brasil) + Prémio Revelação SSSL

Domingo, 11 de novembro: 
Melech Mechaya (Portugal) + Prémio Revelação SSSL

Entrada livre

Mapas das ilhas: Wikipédia (com a devida vénia)
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Para esclarecimentos adicionais:

info@7sois.org; Facebook: Sete Sóis Sete Luas
www.7sois.eu 

Organização sem fins lucrativos: 


Festival promotor de turismo cultural-musical
Um festival único que, no ano em que comemora a sua XX edição, se torna numa viagem a não perder pelas ondas das sonoridades do mediterrâneo e do mundo lusófono com a promoção de vários pacotes turísticos, a preços em conta, para os diversos territórios do circuito, válidos nos dias dos espectáculos do Festival. O pacote de Cabo Verde, válido desde o dia 4 de novembro até o dia 11 de novembro, apresenta diversas opções de viagem segundo as origens (Espanha, França, Holanda, Portugal, Luxemburgo...) e inclui a passagem aérea para Fogo e São Vicente, os transportes internos de barco e o alojamento e o pequeno almoço em todas as ilhas.
O objectivo é fazer dos espectáculos do festival um estímulo para a mobilidade dos espectadores de todos os Países da rede.

Fonte: Facebook Festival Sete Soís Sete Luas (coma  devida vénia...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 31 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10598: Agenda cultural (228): O livro "O Outro Lado da Guerra Colonial - Cantina Oliveira, Moçambique", de Manuel Francisco de Oliveira Ramos, foi apresentado em Torres Novas no passado dia 28 de Outubro de 2012 (Carlos Pinheiro)

sábado, 3 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10615: A minha CCAÇ 12 - Anexos (I): Sansacuta, tabanca fula em autodefesa no sul do regulado de Badora, onde estive em março de 1970 e onde um dia recebi, do vagomestre, um lata 5 kg de fiambre dinamarquês... que tive de consumir e repartir pelos putos em escassas horas (Luís Graça)






Guiné > Zona leste > Seto  L1 (Bambadinca) > BARt 2917 (1970/72) > Tabancas fulas em autodefesa do Regulado de Badora: crianças... e cães.

Fotos: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados



1. Enquanto não aparece o poste relativo ao mês de novembro de 1970. quando a CCAÇ 12 perfazia 18 meses de Guiné (, mês que me traz amargas memórias) (*), vou iniciar um séria paralela, para lá pôr uns textos anexos... O primeiro tem a ver com a temporada (duas semanas e meio) que passei em Sansacuta, no sul do regulado de Badora, do lado esquerdo da estrada Bambadinca-Mansambo, comandando uma secção do 4º Gr Comb da CCAÇ 12, entre 24 de fevereiro e 12 de março de 1970.

Adicionar legenda
Uma aldeia fula em autodefesa:  Sansacuta, regulado de Badora

por Luís Graça



1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo) e túbérculos (mandioca, inhame), acompanhos de molhos de origem  vegetal (óleo de palma). 

A alimentação é, pois,  deficiente, sobretudo em qualidade. O peixe (sobretudo seco) e a carne são raros. Além disso, os fulas, que são islamizados, não comem carne de porco. Em contrapartida, não têm os problemas de alcoolismo dos povos ribeirinhos, animistas (como os balantas de Nhabijões).

E, no entanto, trata-se dum território aparentemente fértil, mas com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.


Mas a guerra e a sua escalada vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo maciço de populações inteira (balantas, beafadas, mandingas, manjacos, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é cada vez para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) só por si deve representar hoje  cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que terá dirigido uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais, não  em Fá, aqui perto de Bambadinca, mas em Pessubé, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico e social da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária (imposto de palhota), colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! 


Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula, que aqui ouvi em Sansacuta (em 8 de março de 1970):

Na mitologia fula a mancarra (amendoím) está associada ao Diabo em pessoa (Iblissa). O cherno Umaru que dirige uma pequena escola islâmica nesta tabanca e que se prepara , como bom muçulmano devoto (tijanianké), para fazer no próximo ano a sua peregrinação a Meca (Iado Hadjo, em fula) e assim juntar ao seu nome o título venerando de al-hadj,contou-me a seguinte história,  traduzida  pelo Suleimane, o José Carlos Suleimane Baldé (o meu braço direito, guarda-costa, intérprete, cozinheiro, secretário):

- Um dia Iblissa (o Diabo) quis desafiar a autoridade divina de Mohamadu (o Profeta Maomé). Tinha chovido muito e o Profeta dissera que então nasceriam todas as sementes que fossem lançadas à terra. O Diabo, em vez de uma semente de milho ou de arroz, deitou leite numa cova que ele próprio tinha feito no chão. Mohamadu, intrigado e inquieto com a provocação de Iblissa, foi falar com Alá, que lhe mandou guardar uma semente. E ao fim desse tempo, não é que do leite nasceu mesmo a mancarra ? (**)

O segundo produto é o arroz (***). Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território (que são 150 mil, segundo o censo de 1962). Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamadjai e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...



Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!-, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária I"o famigerado "imposto de palhota"), imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança. 
Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquirir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa. (****).

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas, como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula.

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal ou Guiné-Conacri) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentracionário da sua tabanca, e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do José Carlos Suleimane Baldé me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).


Tínhamos uma secção destacada em Sinchã Mamadjai  [ou Mamajã] que foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansacuta, com o objetivo de controlar os trabalhos de autodefesa [, e que haveria de  regressar definitivamente a Bambadinca a 12 de Março de 1970].

Fome, subnutrição, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...), doenças como paludismo, mortalidade infantil,  etc., contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, os dois únicos brancos, já que as praças são desarranchadas. 


Tivemos de comero fiambre em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor (, frigorífico a petróleo ka tem!), e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabancas em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África...

Luís Graça




Guiné > Zona Leste > Croquis do Sector L1 (Bambadinca) > 1969/71 (vd. Sinais e legendas).  Dentro retângulo a vermelho, ficavam localizadas as duas tabancas aqui referidas neste poste, Sansacuta e Sinchã Mamadjai, no limite sul do regulado de Badora,  entre Bambadinca e Mansambo. A sudeste ficavam três importantes (e das últimas) tabancas fulas do regulado do Corubal,  Afiá, Candamã e Camará,  eestas já pertencentes ao subsetor de Mansambo.

Infografias: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados

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Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1969/71. 
Cap. II.26: A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro de 1970 para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].~


Notas do editor:


(*) vd. último poste da série > 30 de julho de 2012 > Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)

(**) Números sobre a mancarra:  Principal produto de exportação da Guiné nos anos 60: 76% do total (em 1964), percentagem que decresce para 61% em 1965, em consequência do agravamento da guerra. A área cultivada atingia os 100 mil hectares (um 1/4 do total da área cultivada da província). A produção rondava as 65 mil toneladas. A produtividade era baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais).

A cultura era feita em regime de rotação, sem seleção de sementes, sem recurso a adubos ou estrume, proporcionando fracos rendimentos e exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, colheita, protecção contra os babuínos...). Principais regiões de produção: o leste da Guiné, Farim, Bafatá, Gabu, onde os solos são mais leves e a precipitação menor. 

No entanto, esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas... Tradicionalmente os camponeses da região praticavam um sistema de rotação mancarra - cereal - pousio, considerado pouco eficaz. Acrescente ainda o sistema de comercialização, penalizando fortemente os produtores. (Fonte: adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa,  1996,  44 pp., policopiado).

(***) Arroz: a área de cultivo devia representar 150 mil hectares no início da década de 60, antes da guerra, o que equivalente a 38% do total, concentrando-se em especial nas regiõe do Cacheu, Bissorã e Mansoa, a norte do Rio Geba, e Fulacunda e Catió, a sul. Havia dois tipos de cultura de arroz: o alagado, ou de bolanha (nas regiões mais ribeirinhas, no litoral); e o arroz de sequeiro, no interior, praticado sobretudo pelos manjacos e fulas. 

A produtividade é também baixa, oscilando entre os 30 kg e os 2 mil kg por hectare, com um a média de 800 kg/ha. A produtividade é sempre maior no arroz alagado. A Guiné passou a ser autossuficiente em matéria de arroz, sobretudo a partir dos anos 30 até ao início da guerra colonial. Exportava arroz para a metrópole, para a África francesa (Senegal e Guiné-Conacri) e para Cabo Verde. Com a guerra, a situação inverteu-se: passou a importar. (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).

(****) A terceira cultura de maior peso na Guiné era a do milho (cavalo, preto e basil), mas que tinha um baixíssimo valor alimentar. A área ocupada era sensivelmente a mesma do arroz, mas a produção era 3 vezes inferior: apenas cerca de 50 mil toneladas. Era também uma cultura devastadora para o ambiente, sendo precedida de derrube da floresta e de queimadas...

Outras culturas, mas de menor  impacto na economia e na dieta do guineense do nosso tempo: fundo (30 mil hectares / 10 mil toneladas /  300 quilos por hectare), o feijão, a mandioca, a batata doce, o inhame... Dos frutos mais comuns,  e com relevância para a alimentação, destaque-se a manga, a papaia, a banana, a laranja,  a tangerina, o limão,  a cola, o cajú, o coco... A cana de acúcar também era cultivada, no litoral, destinando-se praticamente apenas para a produção de aguardente de cana.

Outras culturas, com valor económico e alimentar: o óleo de palma (extraído da palmeira de dendê, "Elaeis guineensis"), o coconote, gergelim...

Quanto á riqueza pecuária era estimada, em 1961,  em mais de 230 mil cabeças de gado bovino. Havia umas escassas dezenas de cavalos e mais de 3800 burros. Outros animais domésticos: cabras (c. 144 mil), porcos (c. 98 mil) e ovelhas (c. 54 mil). (Fonte: Dragomir Knapic, 1966, op. cit.).


Guiné 63/74 - P10614: Blogpoesia (302): O teu lenço (Juvenal Amado)



Lisboa, 18 de Dezembro de 1971 > Embarque do BART 3872


1. Em mensagem do dia 31 de Outubro de 2012, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872,Galomaro, 1971/74), enviou-nos este poema intitulado "O teu lenço":


O TEU LENÇO

O teu lenço acenando 
Tão só numa multidão 
As sirenes esmagam o teu grito 
A dor que permanecerá 
Será renovada em cada embarque 

Choram os teus e meus olhos 
Lágrimas que engrossam o Tejo 
De tanto nos verem passar 
Ficarão para sempre verdes as águas 
Turvas e repositório de saudade 

Os nossos olhos cobrem de nevoeiro a cidade 
As lágrimas perdidas na exaustão dos dias 
A cidade parece-me uma estranha 
Cinzenta sem um grito de revolta 
Cidade que se cansou de nos ver partir 
Permanece bela e fria como fêmea que rejeitou as crias 

Vais perdendo os contornos 
Vais-te diluindo na bruma da madrugada 
O teu rosto em breve confundir-se-á numa amálgama de prantos 
Só agora reparo que há uma parede de rostos e lenços 
O lenço branco acenando qual gaivota tentando voar 
Se essa gaivota me trouxesse o teu último beijo 
Saberia a Mar e à espuma dos anos

Juvenal Amado
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10613: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (14): Um poema-despedida da Naty, dedicado ao seu companheiro a caminho da Guerra Colonial

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 3 de Novembro de 2012:

Caros camaradas Editor e co-Editores
Por motivos profissionais não tenho estado muito 'colaborante', embora acompanhe na mesma o nosso Blogue por via das mensagens que sempre vão chegando.
Estou sempre esperançado que melhores dias virão (não estou a falar de política, nem de economia, nem da vida das pessoas em geral, estou a referir-me à minha disponibilidade de tempo...) e que nessa ocasião colaborarei mais.

Desta vez envio apenas um poema. Não um poema escrito por mim, não senhor, não tenho jeito, mas um poema escrito para mim. É um poema-despedida-incentivo que me foi presenteado na abalada para a Guiné pela então minha namorada, com quem casei e que encontrei quando arrumava alguns papéis.
Tem a data de 27 de Outubro pois seria por esses dias que teria partido mas, tal como relatei no primeiro artigo que enviei, nesse dia o "Ambrizete" fez-se ao largo da Baía de Cascais mas voltou para reparações e só segui viagem definitivamente cerca das 22:30 do dia 3 de Novembro, faz hoje exactamente 42 anos.

Se acharem por bem, podem publicar e podem incluir na série a que dei o nome de "Histórias em tempo de guerra".

Saudações a todos os camaradas
Hélder Sousa




Querido Companheiro

Vais partir, para um destino incerto,
Mas onde é certa a ameaça da vida.
Nos olhos levas o pranto e o espanto
Da tua cobardia à "doce" realidade.
Viveste no meio da tortura, hesitando e destruindo
Como se não fosse fácil escolher na tua idade!...
Vais de rosto lindo, cheio de amargura.
Tuas veias se contrairão para não espirrarem...
Sentes desmoronar tuas ideias, teus ideais,
Não, não digas nada, companheiro querido,
Eu sei que é por mim que vais!


Monte Real 2011 > VI Encontro da Tabanca Grande > A Natividade, esposa do nosso camarada Hélder Sousa e autora do poema publicado. A Natividade é tratada pela família e amigos por Naty, permitam-nos os dois que no Blogue fique também conhecida por este diminutivo.
Foto ©: Miguel Pessoa (2011)
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Notas de CV:

- Título do poste da responsabilidade do editor

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10341: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (13): Abuso de poder

Guiné 63/74 - P10612: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte IV): As Nossas Tropas


1.  Texto do Manuel Serôdio, que vive em Rennes, Framça, enviado a 23 de outubro último:

Cher Luis, voici encore une page en continuation de la dernière. Je te demande, (si ça ne te gêne pas) de m'avertir chaque fois que tu reçois une nouvelle page, afin que je puisse envoyer une autre, sachant que c'est bien la continuation de la dernière. Merci. Cordialement  [  Caro Luis, aqui vai mais  uma página, em  continuação da última. . Peço-te (se nºao for muita maçada) para me avisares ssempre que receberes  o meu material, para que te possa envirar o seguinbte. Obrigado. saudações cordiais]


2. Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte IV): As Nossas Tropas (*)


Enquanto o inimigo evoluiu na sua organização e potencial de fogo, as nossas tropas continuaram na mesma, e o que é mais grave, as substituições de material, não se fazem ao ritmo que se impõe, apresentando-se o que agora existe, quando existe, em precárias condições de funcionamento. A mesma orgânica, cada vez mais fraca, não corresponde às necessidades existentes, e o armamento também não evoluiu como se impunha, não tendo hoje as nossas tropas com que contrabalançar o poder de fogo do inimigo. Basta ver o armamento de um bi-grupo inimigo, e compará-lo com o nosso, para imediatamente ressaltar a diferença.

Ao fim de 6 anos de luta, ainda não fomos capazes de dotar as nossas tropas com um lança-granadas tipo explosivo, como os que o inimigo dispõe, e em quantidade. Como é que as guarnições tipo Companhia ou Pelotão, resistem ao fogo dos canhões sem recuo, se estes ultrapassam o alcance do nosso morteiro médio?

Porque é que não se dota a Milícia com armamento eficaz? Só quem esteve em contacto com o inimigo, e lhes sentiu o potencial de fogo, pode apreciar as razões porque a maioria das Milícias se sentem complexadas.

Que dizer do material rádio, gasto e cansado, e que não é substituído?
Que dizer da falta de viaturas?
Que dizer da falta de explosivos?
Que dizer da falta de sobresselentes para tudo?
Que dizer da falta de equipamentos?
Que dizer da falta de artigos simples, como pás e picaretas?

Enfim, não nos alarguemos neste verdadeiro número de lamentações.

Da análise feita ao inimigo e às nossa tropas, resulta que os efetivos inimigos são superiores, que está melhor armado e ocupa áreas agricolamente ricas, onde pode subsistir perfeitamente, e ainda ajudar outras regiões. Que as operações levadas a efeito com várias Companhias,são frutuosas, na medida em que enfraquecem o inimigo, lhes causam perdas, e lhes destroem as instalações, mas que só a ocupação efetiva do terreno, e reordenamento das populações, são susceptíveis de terminar com a subversão.

Assim, para terminar com a subversão no sub-setor de Empada, torna-se necessário como mínimo o seguinte:

(i) Colocação de 1 Companhia de Caçadores em Gubia, com um destacamento em Paiunco, Ganafá ou Darsalame;

(ii) Construção de um novo aquartelamento na área de Cachobar em Ianguê, com elementos retirados de Gubia;

(iii) Uma Companhia de Intervenção para auxiliar a primeira fase de reordenamento da população;

(iv) Forçar as populações a reorganizarem-se em torno dos aquartelamentos, retirar 2 grupos de combate das áreas pacificadas, e construir um novo aquartelamento no cruzamento das estradas de Butumbali Beafada,dominando as bolanhas importantes da área, e forçando as populações a organizarem-se nas proximidades do aquartelamento;

(v) Estabelecimento em simultâneo de uma cobertura escolar e sanitária, conjuntamente com o dispositivo militar.

Este plano é concebido em linhas gerais, podendo se necessário, ser detalhado. Duas Companhias, uma das quais será recuperada no final da pacificação, é o mínimo que se julga necessário.

Caso não se queira resolver o problema, torna-se necessário reforçar a Companhia pelo menos com 2 grupos de combate, afim de poder atuar em profundidade, pois a atual dispersão não lhe permite grandes movimentos, e dotá-la de armamento suficientemente potente para inflingir ao inimigo em caso de ataque, perdas consideráveis.

Consideram-se,  neste caso, canhões sem recuo 10,6, e metrahadoras Breda, Brownig 12,7. Nas atuais circunstâncias, porque a própria formação da Companhia, que já é pequena, e se encontra dispersa por 3 aquartelamentos, quando a Companhia sai, muitos elementos têm que fazer serviço na véspera da operação, fazer esta, e no dia seguinte tornar a entrar de serviço, o que se torna extraordinariamente violento e contrapoducente.

É tudo quanto se afigura informar este Comando, esperando encontrar a compreenção e apoio, igual à vontade de bem cumprir, de que a Unidade se acha compenetrada.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10570: Manuel Serôdio, ex-fur mil CCAÇ 1787 (Empada, Buba, Bissau, Quinhamel, 1967/68) (Parte III): De Porto Gole a Cutia: Op Escudo Negro: conseguimos entrar no 'santuário' de Sará / Sarauol

Guiné 63/74 - P10611: Do Ninho D'Águia até África (23): O maldito dente (Tony Borié)

1. Vigésimo terceiro episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, desta feita recorrendo a tercetos para o contar.


Do Ninho D'Águia até África (23)

O Maldito Dente!

Resumo da história de um dente que o Cifra, teve que mandar extrair, pois estava de cor preta e já bastante afectado, por falta de limpeza, do tabaco, algum álcool, e da água “medicinal” da bolanha.
Acordou pela manhã, cheio de dores, cá vai a história, feita desta maneira, não é em quadras, nem sendo um poema, talvez sejam uns versos, frases completas, frases soltas, ou então é qualquer coisa original, os companheiros, antigos combatentes, passaram por lá, vão por certo rir um pouco, e compreender.
As personagens são sempre as mesmas, os seus companheiros e amigos, que com ele viveram dois anos em Mansoa, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Marafado, o Mister Hóstia, o Pastilhas e outros mais, que o Cifra, lembrará para sempre, pelo resto da sua vida, e dos quais, continuará a contar histórias, algumas já quando eram emigrados tal como ele, e viviam na diáspora, mas que o destino o fez encontrar de novo, do lado de cá do atlântico.

Na noite anterior, tinha bebido, 
Com outros colegas, também tinha comido, 
Já fora de horas, não tinha dormido.

Por volta das cinco, ainda acordado, 
Não dormi ainda, viro-me de lado, 
Este lado da cara, está muito inchado. 

Vejo o Trinta e Seis, não sei o que faço, 
Olha para mim, com cara de palhaço, 
Com a mão na cara, mostro o inchaço. 

Tenho aqui um dente, que me está a doer, 
Ele me responde, vendo-me sofrer, 
Vai ver o Pastilhas, e já a correr. 

O Curvas estúpido, alto e refilão, 
Diz lá de cima, como eu sendo um anão, 
Não sejas guloso, não roubes mais pão. 

Responder p'ra quê, calar simplesmente, 
Ele olha-me de novo, e diz de repente, 
A merda do “chiclet”, fod..-te o teu dente. 

O Setúbal correndo, a ver o que passa, 
Chega-se a mim, quase que me abraça, 
Podes ficar bom, com papas de linhaça. 

O Arroz com Pão, camisa suja, 
Olha para mim, diz-me que fuja, 
Tens uma cara, tal uma coruja.

O Mister Hóstia, com terço na mão, 
Olha p'ra mim, com grande aflição, 
Vou rezar por ti, uma boa oração.

Vem lá do fundo, o Marafado, 
Toca na cara, mas com cuidado, 
Deve doer, como está inchado. 

O furriel grita, que se passa afinal, 
Para mim olha, a cara está mal, 
A mão vai ao bolso, fuma um “especial”. 

O sargento da messe, comendo um biscoito 
Vem ver o que passa, mas não muito afoito, 
Pois a minha cara, está feita num oito. 

Volto-lhe as costas, vou à enfermaria, 
O raio do Pastilhas, está de mania, 
Pergunta logo, o que é que eu queria.

Abri a boca, num grande repente, 
Mostrando-lhe a dor, no maldito dente, 
Será que ele não vê, o que um homem sente.

O grande sacana, vai logo a correr, 
O frasco do álcool, tentar esconder, 
Não pensando sequer, no que estou a sofrer.

Ele estava certo, em o frasco esconder, 
Pois de outras vezes, tinha mesmo que ser, 
O frasco roubavam, para logo beber.

Com cara manhosa, e com uns gestinhos, 
Abre-me a boca, e com uns sorrizinhos, 
Tira essa merda, se não vais prós anjinhos.

Os dentes são negros, dá-me um sermão, 
És um javardo, não tens mais perdão, 
Lava esses dentes, com água e sabão. 

Consulta marcada, espera sentado, 
Não vais agora, espera um bocado, 
Sofre dois dias, p'ra seres embarcado. 

No carro dos doentes, vim prá capital, 
Depois de andar, vejo o Hospital, 
Não desejo a ninguém, todo este meu mal. 

Entro no Hospital, vejo o Honório, 
Traz braço ao peito, vou ao consultório, 
Está muita gente, parece um velório.

Ponho o meu nome, com a mão direita, 
Estão lá três listas, e quase outra feita, 
O cabo enfermeiro, verá o que ajeita. 

Estou com dores, não suporto mais, 
Começo a gritar, perturbando os demais, 
O cabo enfermeiro, vem ver os meus “ais”.

Diz que me cale, está lá mais gente, 
Tenho que esperar, e não ser exigente, 
Eu digo que sim, mas que tire o meu dente.

Vendo-me assim, diz com embaraço, 
Tem paciência, vou ver o que faço, 
Pois vou eu mesmo, tirar-te esse inchaço.

Leva-me para dentro, na frente da gente, 
Manda-me sentar, e diz sorridente, 
Pergunta qual é, e tira-me o dente.

Gritei com a dor, ficando aliviado, 
Lava com “borato”, com algum cuidado, 
Dentro de três dias, vais ficar curado.

Pedi-lhe o meu dente, que queria guardado, 
Era o primeiro, que me tinham tirado, 
Do cesto do lixo, toma lá um bocado. 

Tonto com dores, sem nenhum tino, 
Limpando a cara, sem qualquer destino, 
Nem vim à cidade, beber o meu “fino”. 

Com baba e ranho, então regressei, 
Talvez dormindo, nem eu próprio sei, 
Ao meu lado alguém grita, merda, cheguei.

Semanas depois, bastante contente, 
Decifrando mensagens, com cara dormente, 
Cuspia bocados, do que fora o meu dente. 

Meses depois, sem dores realmente, 
Ria-me sozinho, já menos deprimente, 
Colocando o cigarro, no lugar do meu dente.
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 Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2012 > > Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10610: Parabéns a você (489): Ten General António Martins de Matos, ex-Ten Pilav da BA 12 (Guiné, 1972/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10601: Parabéns a você (488): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10609: Notas de leitura (425): A Guiné na História de Portugal, de Rui Ramos (António Graça de Abreu)


Capa da História de Portugal, publicada recentemente em fascículos pelo jornal “Expresso”,  com a coordenação do historiador Rui Ramos mais a colaboração de Nuno Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa: no seu 8º. volume fala na nossa Guiné.

O livro foi originalmente publicado pela Editora A Esfera dos Livros. Autores: Rui Ramos,  Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro; Título: História de Portugal; Colecção: História Divulgativa; Nr de páginas: +/- 1000 + 52 extratextos; PVP /c Iva: 39 €; ISBN: 978-989-626-139-9; Formato:
16 X 23,5; Encadernação: Cartonado;  An o: 2009.



1. Texto de António Graça de Abreu [, foto à esquerda]:

A nossa História vai sendo feita, com a distanciação e a ausência de paixões possíveis, respeitando-se a verdade dos factos, respeitando-se a verdade histórica.


É por esta causa que me tenho batido neste blogue, ao longo de mais de cinco anos. Não contra as diferentes e naturais opiniões divergentes de cada um, mas contra os falsificadores da História que, às vezes, brotam na terra do blogue como cogumelos no Outono, cogumelos envenenados, se bem me faço entender. Tenho por detrás de mim o meu humilde, limitado conhecimento e entendimento das coisas do mundo. E, já agora, um mestrado em História (1999) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 

A mais recente História de Portugal, publicada recentemente em fascículos pelo jornal “Expresso” com a coordenação do historiador Rui Ramos mais a colaboração de Nuno Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa; no seu 8º. volume fala na nossa Guiné. 

Não resisto a transcrever uns tantos parágrafos, enquadrados convenientemente no período que todos vivemos, o fim da ditadura, o ocaso do regime de Salazar e Marcelo Caetano.
A páginas 21 e 22-23 desta História de Portugal leio: 

Perante a recusa do Governo português em negociar com eles a independência, (os movimentos de libertação) optaram pela luta armada. Nunca, porém conseguiram sujeitar Portugal a uma guerra com a intensidade da que os franceses enfrentaram na Argélia (1954-1962) ou os norte-americanos no Vietname (1964-1972). A partir de países vizinhos actuaram em zonas fronteiriças, através de pequenos grupos cuja acção principal foi a minagem de estradas e pistas ou a realização de emboscadas. Na Guiné, onde devido à pequenez do território o raio de acção da guerrilha foi maior, os 6.000 militantes do PAIGC nunca terão tido sob seu controlo exclusivo mais de 25.000 dos cerca de 500.000 habitantes.[1] Sujeitos a uma vida dura – as suas baixas em relação ao exército português eram 20 vezes superiores[2] –  e avassalados por querelas tribais e ideológicas, foram muito susceptíveis a deserções e traições: na Guiné, a PIDE tinha informadores “no núcleo mais chegado à direcção do PAIGC e ao próprio secretário-geral.”[3] 

(…) O exército português seguiu os manuais de contra-guerrilha: actuou através de pequenas unidades de infantaria ligeira, procurou “africanizar” a guerra e tentou obter a simpatia da população, contribuindo para a melhoria do seu nível de “bem estar.”

(…) Em 1974, 50 por cento das forças portuguesas eram do recrutamento local. Na Guiné, mais de metade dos choques com o PAIGC já era da responsabilidade dos 9.000 homens das milícias nativas. Nesta colónia, entre 1969 e 1974, o exército furou 140 poços e construiu 196 escolas, 630 diques e 8.313 alojamentos e garantiu cuidados de saúde ao nível mínimo da Organização Mundial de Saúde (1 médico por 10.000 habitantes).[4]

(…) Em Portugal, a ditadura impediu debates públicos e a sociedade rural forneceu soldados obedientes e acolheu, com agrado, os seus prés. Como constataram militantes da oposição, na província a guerra foi aceite depois de se perceber que “não matava tanta gente como se julgava.”[5] Eis a verdadeira chave da guerra de África, obscura e pouco mortífera, demorou a impor a urgência de outras soluções.

Leio, a pags. 39:
Da Guiné, a 24 de Outubro de 1972, o comandante-chefe (Spínola) informava Caetano de que o PAIGC “atravessa uma grave crise”, encontrando-se “em situação de manifesta inferioridade”. 


(Mas)

Como confessou depois de 1974, Marcelo Caetano concluíra “realisticamente” que a “independência” (de Angola, Moçambique e Guiné) era “inevitável.”[6]

Leio a pags. 44:


Marcelo Caetano deu aos generais a oportunidade de protagonizarem grandes manobras e gerarem grandes expectativas. Kaúlza e Costa Gomes chegaram a anunciar o “fim da Guerra”. Spínola compôs uma personagem característica, com monóculo e pingalim, e começou a lembrar o presidente de uma república africana. Aos jornalistas pedia para lhe fazerem perguntas “de maneira a que os seus leitores percebam que onde digo Bissau deve ler-se Lisboa.”[7] 

O seu objectivo, tal como o de Kaúlza, era provavelmente a eleição presidencial de Julho de 1972. A reeleição de Américo Tomás terá derivado, tanto da vontade de Caetano em conservar equilíbrios como da apreensão que já lhe inspiravam os “senhores da Guerra.”

Em Setembro de 1972, o chefe do Governo cooptou Costa Gomes para chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, apesar da oposição do Presidente da República. Mas deixou Kaúlza e Spínola a remoer dissidências. Ambos exageraram as vantagens que tinham supostamente adquirido entre 1970 e 1972. Kaúlza prometia a vitória se lhe dessem mais 10.000 homens e Spínola se o autorizassem a negociar com a guerrilha – para melhor culparem Caetano pelo arrastar da guerra. Na Guiné, Spínola deixou correr o rumor de que o Governo, para concentrar recursos em Angola e Moçambique, admitia desguarnecer o território e até provocar uma “derrota calculada.”[8]

A partir daí, os oficiais da Guiné encararam todas as dificuldades – como o abate de cinco aviões entre Março e Agosto de 1973 por mísseis terra-ar – de um ponto de vista apocalíptico. O PAIGC não conquistou nenhuma posição e só em Janeiro de 1974 atingiu outro avião. Mas tudo mudara psicologicamente.



Agora o meu comentário, António Graça de Abreu. 

Previam-se, de facto, cenários apocalípticos para a Guiné. Que não aconteceram pela simples razão de que o PAIGC não tinha força, diante de 40.000 soldados portugueses, mais 9.000 tropas africanas, como NT. Os guerrilheiros eram 6.000, apenas 2 a 3 mil no interior da Guiné, Não se registou nenhum apocalipse até à manhã de 25 de Abril de 1974. Mas a guerra ia acabar, tinha de acabar. Não houve derrotas militares nem vitórias militares, mas sim o sinuoso fluir das vontades dos homens por dentro das lágrimas do tempo. 


António Graça de Abreu 
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[1] Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, , 1977, pag91/92.
[2] Luz Cunha, A Vitória Traída, Lisboa, 1977, pag. 72. 
[3] José Pedro Castanheira, Quem mandou matar Amílcar Cabral, Lisboa, 1999, pag.117 e 219-221. 
[4] John P. Cann, Contra Insurreição em África, 1961-1974, o Modo Português de Fazer a Guerra, Lisboa, 1998, pag.pags. 30-31, 136-138. 
[5] J. A. Silva Marques, Relatos da Clandestinidade, o PCP visto por Dentro, Lisboa, 1976, pags.85-86. 
[6] Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, 1974, pag. 34 e O 25 de Abril e o Ultramar, Lisboa, 1977, pags. 13,15 e 64. 
[7] Avelino Rodrigues, C. Borga e M. Cardoso, O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril, Lisboa, 1974, pag. 246. 
[8] Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, 1977, pag. 142.

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10607: Notas de leitura (424): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (2) (Mário Beja Santos)