quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15470: História do BART 3873 [BAMBADINCA, SECTOR L1, 1972-1974]. Parte I (Jorge Alves Araújo)

1. O nosso Camarada Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494, (Xime-Mansambo, 1972/1974), enviou-nos mais uma mensagem desta sua série no passado dia 05DEZ. 

HISTÓRIA OU HISTORIAL
DO BATALHÃO DE ARTILHARIA 3873
[BAMBADINCA, SECTOR L1, 1972-1974]

(Parte I)

Distribuição do Dispositivo das NT e Lideranças: 

Omissões e Negligências

1. – INTRODUÇÃO

A elaboração da presente narrativa, também ela de natureza histórica, nasce da análise à publicação integral, no nosso Blogue, dos vinte e três fascículos [mais um, considerando que o 9.º está repetido] que constituem a «História da Unidade - BART 3873, à qual estão adicionados factos [alguns] das suas subunidades: CART 3492, CART 3493 e CART 3494», cujo documento original dactilografado foi facultado pelo nosso camarada António Duarte [ex-furriel da CART 3493 / ce da CCAÇ 12, 1971/1974].

O propósito deste meu novo texto, que se inscreve na linha dos anteriores aqui divulgados, é partilhar convosco, na primeira pessoa, mais um conjunto de novas informações relacionadas com o mesmo contexto onde, nos palcos da guerra e durante dois anos, vivi, convivi e sobrevivi – Sector L1, Bambadinca – em que a «História da Unidade», enquanto colectânea de acontecimentos nela descritos pelo seu historiador [que se desconhece], peca por defeito, omitindo e negligenciando, conscientemente [digo eu], ocorrências que, acredito, ainda hoje estão bem presentes na memória da maioria do seu colectivo e que a seu tempo identificarei.

Adicionar legenda
Mas, em boa verdade, o que me fez avançar para estas linhas foi o caso particular do seu “Último Fascículo – Alguns Números” [P15349], pelo que darei início a uma nova abordagem temática sobre a «História da Unidade». Ao primeiro documento original, escrito ao longo dos meses em Bambadinca e que anos mais tarde foi transformado em brochura, conforme se pode observar na imagem ao lado, passarei a chamar-lhe, a partir de agora, de «Historial da Unidade», uma vez que são distintas as suas definições ainda que complementares. 

Entretanto, na sequência da publicação do poste anterior, outro surge de imediato [P15355], como reacção ao seu conteúdo, titulado de «Direito à indignação, da autoria do camarada António Duarte, referindo nesse âmbito: “estou a escrever este texto atabalhoado e a sentir raiva pela forma manipuladora da síntese das baixas do meu batalhão”». 

Desses números apresentados em método de apanhado estatístico, como é referido no documento, recupero ainda a tese do meu/nosso camarada António José Pereira da Costa [CMDT da minha CART 3494 entre 22JUN72 e 10NOV72 – o 2.º –, sendo que a primeira data, curiosamente, coincide com a do seu aniversário e a segunda com a do meu... coincidências] afirmando que “A História do BART 3873, ao qual pertenci, está escrita com certa fantasia. Há várias imprecisões [eu acrescentar-lhe-ia, também, omissões e negligências] entre as quais a data da minha apresentação no Xime que surge dois meses depois de se ter efectivado. Não será importante, mas dá uma ideia da "ligeireza" com que foi escrita. Não sei quem "escreveu" a História da Unidade, mas sei que, às vezes, não havia intenção de branquear nada, mas antes o querer despachar "aquele dever" chato e sem interesse ...”.

Dito isto, a proposta que vos apresento é a de identificar as principais lacunas imperdoáveis [digo eu] que o documento contém, fundamentadas nos verbos: ver, ouvir e sentir, e ainda reforçadas pelo meu comentário ao poste do António Duarte, que transcrevo: “Camaradas; uma palavra inicial de apreço pelo conteúdo do meu/nosso camarada António Duarte que nos vem agora dar mais um valioso contributo no âmbito do quadro historiográfico do BART 3873, adicionando-lhe mais alguns elementos que, embora referentes às suas diversas unidades orgânicas - as CART's - o complementam. Prometi, como deixei expresso em correio interno, escrever mais dois/três textos sobre a temática apresentada hoje no Blogue”.


Eis, então, o primeiro de outros textos, este relacionado com a distribuição do dispositivo operacional das NT, pertencentes ao contingente metropolitano do BART 3873, sediado em Bambadinca, no Sector L1, ficando no Xitole a CART 3492, em Mansambo a CART 3493 e no Xime a CART 3494, conforme se indica no mapa abaixo.

Mapa referente à distribuição geográfica inicial [JAN72/MAR73] do contingente do BART 3873 [1972/74], na zona leste, sector L1: Bambadinca (comando e CCS), Xitole [CART 3492], Mansambo [CART 3493] e Xime e Enxalé [CART 3494].

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015).

2. – DISTRIBUIÇÃO DO DISPOSITIVO DAS NT E LIDERANÇAS

Porque, neste contexto, a História/Historial do BART 3873 [princípio a seguir por outra qualquer organização humana] não devia circunscrever-se tão só e apenas a registar os factos sociopolíticos e militares, ou os eventos organizados cronologicamente num determinado tempo e lugar, na justa medida em que ela é [ou teria sido] influenciada pelo processo decisório das suas lideranças, eventualmente partilhado entre os diferentes Poderes e Saberes. 

Sabemos/sabíamos que o campo de acção de um Batalhão é/era maior que o de uma subunidade, mas a decisão sobre a distribuição do dispositivo das NT implicava o superior reconhecimento de que a actividade operacional não era apenas o local ou que o lugar não era apenas o Aquartelamento, cujo sentido dessa acção acabava por influenciar qualitativamente as crenças, as expectativas, os comportamentos e os desempenhos dos sujeitos neles envolvidos.

Porque está omisso o critério, ou o processo, que determinou a distribuição das subunidades, sob a jurisdição do Comando de Batalhão, pelos três Aquartelamentos antes identificados, e porque desconheço, em absoluto, da sua existência, esta ausência de informação suscita-me colocar a quem sabe as seguintes quatro questões: a 1.ª; quando é que ela é definida [exemplos: se antes do embarque ou se depois, durante o período do IAO]? a 2.ª; e por quem? a 3.ª; se é um processo democrático a nível do Comandante ou Comando da Unidade ou se é imposto por decisão exterior a eles? e a 4.ª; se é confidencial ou está disponível para consulta?

2.1 – O EXEMPLO DA CART 3494 (XIME-ENXALÉ-MANSAMBO)

Como referi no P15307, a minha inclusão/ingresso na CART 3494 ocorreu algumas semanas depois da sua instalação no Aquartelamento do Xime. Quando aí cheguei em 28MAR1972, procedi em conformidade com o protocolo, apresentando-me aos meus camaradas e, concomitantemente, aos meus superiores hierárquicos.

Era, então, Comandante da Companhia, o Capitão Victor Manuel da Ponta Sousa Marques [?-29SET2004], da arma de Artilharia. A sua estadia no Xime acabaria por totalizar um período de oitenta e sete dias [até 23ABR1972]. Dos vinte e seis dias em que estive sob a sua liderança, apenas contactei com ele três vezes: a 1.ª aquando da minha apresentação na Unidade; a 2.ª, num dos primeiros dias de Abril, quando pelas 23:00 horas me chamou ao seu gabinete dando-me instruções [ordens] para fazer um patrulhamento nocturno, com o meu GCOMB [o 4.º], à zona dos Cajueiros, localizados a cerca de quatrocentos metros do arame farpado e a 3.ª, e última, no dia 22ABR1972, sábado, data da 1.ª emboscada sofrida pelo mesmo GCOMB, no sítio da Ponta Coli. Quando algum tempo depois aí chegou, já com a situação controlada, perguntou-me: “então, Araújo, o que se passou…? ao que lhe respondi: “meu capitão; o furriel Bento morreu e temos mais alguns feridos que necessitam de ser evacuados” [P9698].

No dia seguinte, domingo, 23ABR1972, fomos confrontados com a notícia de que o nosso CMDT, Cap. Silva Marques, tinha preenchido e assinado a sua própria guia de marcha com destino aos Serviços de Psiquiatria do Hospital Militar 241, em Bissau, para não mais regressar ao Xime.

Já antes deste episódio se comentava, no seio da classe de sargentos, que fora o Cap. Silva Marques a oferecer a “sua” Companhia 3494 para o Xime, considerando as suas experiências anteriores, ora na Índia, como Alferes, onde foi prisioneiro no Campo de Concentração de Ponda, em Goa, em 1961/62 [ultramar.terraweb.biz ou no livro “A Queda da Índia Portuguesa”], ora na Guiné, em Mansabá, na qualidade de CMDT da CART 644, 3.ª subunidade do BART 645 (1964/66), onde foi substituído respectivamente pelo Capitão Nuno José Varela Rubim e, depois, pelo Capitão José Júlio Galamba de Castro, ambos da arma de Artilharia [P4594].


Foto 1 (Goa, 1962) – da esquerda para a direita – Alferes: Carqueja; Silva Maques [circulo]; F. Gomes; Guerreiro; Jardim Simões; Raimundo; Abrantes; Catroga Inês; Capitão Pereira; Alferes Gaspar Nunes e Pereira Leal [in; op.cit; p305, com a devida vénia].

Antecedendo a sua liderança na CART 3494, o Cap. Silva Marques esteve ainda em Angola, na região de Quicua, como CMDT da CART 1770, 2.ª subunidade do BART 1926 (1967/69) [P7068]. 

Em função do acima exposto, o Historial da Unidade BART 3873 refere, no seu anexo V (AGO72), pp 27/28, que o Cap. Artª Victor Manuel da Ponte Silva Marques foi “transferido”, omitindo e/ou negligenciando o local e a razão ou razões que determinaram tal decisão.

Deste modo e por consequência, durante sessenta dias a CART 3494 esteve sem comando institucional não deixando os seus operacionais de cumprir as missões e acções que lhe estavam confiadas.

Exactamente dois meses depois do primeiro combate [emboscada] na Ponta Coli, onde se registou a única baixa da Companhia, chega ao Aquartelamento do Xime o, então, Capitão António José Pereira da Costa, aquele que seria o nosso 2.º CMDT. Aí permaneceu durante cento e quarenta e um dias [um pouco menos de cinco meses]. Durante a sua liderança viveu algumas emoções fortes, particularmente no acidente baptizado por «Naufrágio do Rio Geba» ocorrido em 10AGO1972, onde se verificaram três mortes por afogamento [P10246 + P13482 + P13493], das quais só um corpo foi resgatado ao Geba, o do soldado José Maria da Silva e Sousa.


Foto 2 (Xime, Set/Out72) – Messe de Sargentos; da esquerda para a direita – Cap. Pereira da Costa [CMDT da 3494 (2.º)]; Alferes Sousa [estagiário]; Alferes Serradas Pereira [chegado em SET72 para liderar o 4.º GComb]; Alferes Maurício Viegas [chegado em JUN72 para liderar o 20.º Pelotão de Artilharia, em rendição do Alferes Pinho, em final de comissão] e eu.

Depois deste momento de boa disposição, vivido em atmosfera de forte coesão e solidariedade, outros se seguiram pelos mais variados pretextos. Decorridas poucas semanas ausentei-me do Xime, entre 24OUT e 27NOV72, por motivo de cumprir o primeiro período de férias na Metrópole [P15307]. 

Quando aí regressei, em 29NOV72, constatei que o meu 2.º CMDT de Companhia, o então Cap. Pereira da Costa [agora Cor Art Ref e membro activo da nossa Tabanca] havia sido substituído pelo Capitão Luciano Carvalho da Costa, o 3.º CMDT da CART 3494, e que, nessa condição, se manteve à frente deste colectivo até final da comissão, em ABR1974. A sua nomeação está correcta no Anexo VIII (NOV72), p30.

Sobre a chegada do Cap. Pereira da Costa à CART 3494, o Historial da Unidade, no seu Anexo V (AGO72), p27, refere, e mal como se indicou acima, que foi nesse mês que se deu a sua inclusão, deturpando a verdade, dando a entender que após a saída do Cap. Silva Marques logo se encontrou um seu sucessor, no caso o Cap. Pereira da Costa. 

Outra omissão no Historial da Unidade, também ela negligenciada de forma grosseira, está relacionada ainda com o nosso camarada Pereira da Costa, pois nada consta quanto à data da sua “transferência”, razão/razões para a sua saída e qual o destino que lhe foi proposto até concluir a sua comissão na Guiné.

Soubemos, mais tarde, que tinha seguido para Mansabá. 

Na síntese do seu currículo, ao qual chama de “modestas aventuras guerreiras”, o ex-Capitão Pereira da Costa refere que começou na CART 1692, a 16JAN68, em Cacine, a 3.ª subunidade do BART 1914 [ABR67/MAR69], como Alferes adjunto do Capitão Veiga da Fonseca, regressando a Lisboa exactamente um ano depois. 

A 25MAI71, embarcou de novo para a Guiné, rumo à BA 12 (antiaérea), como CMDT da BTR AA 3434. Treze meses depois, a 22JUN72 assumiu, como referido anteriormente, o comando da CART 3494, até 10NOV72. 

A 11NOV72 transitou para a CART 3567, uma unidade independente formada no RAL 5 [Penafiel], aquartelada em Mansabá, donde saiu em 09AGO73, por ter concluído a sua comissão no CTIG [P6624].

Um mês após ter chegado ao Xime, o Capitão Luciano Costa recebeu a visita do CMDT do BART 3873, por ocasião do almoço/convívio de Natal de 1972.


Foto 3 (Xime, Natal72) - da esquerda para a direita - 1º Sargento Orlando Bagorro; 1º Sargento Carlos Simões; Alferes Manuel Gomes [1948-2014]; desconhecido; Alferes Maurício Viegas [20º Pel Artª]; D. Idalina C. J. Martins, esposa do CMDT [1923-2011]; Tem Cor Tiago Martins, CMDT BART 3873 [1919-1992]; Capitão Luciano Costa [3º CMDT da CART 3494] e Alferes Serradas Pereira [de costas].


Foto 4 (Mansambo, ABR73) – 1.º plano, da esquerda/direita: Furriéis: Jorge Araújo, Cláudio Ferreira, Abílio Oliveira e João Godinho; 2.º plano (a mesma ordem); Acácio Correia [Alferes], Luciano Costa [Capitão], Luciano Jesus [Furriel] e José Araújo [Alferes, 1946-2012].

Por motivo da rotação das Companhias do Batalhão, em MAR73 a CART 3494 foi transferida para Mansambo, enquanto a CART 3493 foi colocada em Cobumba. 

Em resumo: - considerando que não estão expressos os critérios que determinaram a distribuição do dispositivo das NT, o seu conhecimento ajudar-nos-ia a compreender melhor alguns dos comportamentos dos seus líderes, nomeadamente quanto às suas motivações, incluindo as do relator da História/Historial do BART 3873, por estarem omissos e negligenciados factos relevantes com ela relacionados, como foi o exemplo apresentado neste primeiro texto relativo à CART 3494.

Um forte abraço e muita saúde.
Jorge Araújo.
05DEC2015.
Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494 
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P15469: Memórias de Gabú (José Saúde) (57): “Djubi”, crianças simpáticas. Na hora de matar a sede. (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

“Djubi”, crianças simpáticas
Na hora de matar a sede

Revejo, ainda hoje, com uma nostalgia gigantesca os nossos tempos como militares enviados para as frentes de combate de além-mar. Coube-nos, em sorte, que os nossos destinos fosse o então território colonial da Guiné.

Em território guineense constatámos as mais vis e ortodoxas situações que o ser humano nas suas plenas faculdades mentais e físicas jamais ousou experimentar. Reconhece-se, contudo, que a máquina humana é possuidora de engrenagens complexas que quando necessárias corresponderam às suas solicitações dizem, pomposamente, presente.

Conhecemos situações de todo impensáveis. Conhecemos, repito, o teor de uma guerra que não dava tréguas. Visualizámos imagens que farão eternamente parte dos nossos “baús” como antigos combatentes.

Compreendo que não será por certo censurado que um velho combatente debite narrativas onde os nossos quotidianos cruzaram gerações. As realidades coincidiram e os factos, esses mesmos, são verdades comuns que transcendem inquestionáveis orientações geracionais.

Ora, não falarei, presentemente, dos tempos de uma guerrilha cujo puzzle passava pelo cosmos das armas. Falarei, sim, por momentos ímpares onde a simpatia de um “djubi”, crianças simpáticas, se predispunham a uma preciosa ajuda ao militar lusitano.

Algures na região de Gabu, após alguns quilómetros palmilhados pelo denso mato e quando o cantil já reclamava um profícuo recarregamento e a elevada temperatura se definhava por um saciar de gargantas entretanto já ressequidas pelas agruras de um tórrido calor, eis que em pleno mato me deparei com uma criança que afoitamente retirava água de um poço.

O arcaico reservatório ostentava saberes que só as etnias indígenas sabiam desfrutar. Recordo que o brotado líquido apresentava uma cor insípida, creio que barrenta, mas divinal para aqueles que ambicionavam algo que lhe gotejasse as suas efémeras necessidades.

E foi assim que na hora de matar a sede que um “djubi” amigo se predispôs a satisfazer carências que o tempo de guerra impôs a jovens soldados enviados para as frentes de combate.

Fica a imagem.


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P15468: Recortes de imprensa (78): O colonialismo (suave) nunca existiu... Leopoldo Amado, atual diretor do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, entrevistado em Bissau por Joana Gorjão Henriques ("Público", 6/12/2015, série "Racismo em português")

Excerto da reportagem de Joana Gorjão Henriques  (texto, em Bissau, Bafatá e Cacheu), Adriano Miranda (fotos) e Frederico Batista (vídeo). Série: Racismo em português

Público, 06/12/2015 - 00:00 


1. Excerto da reportagem, com a devida vénia, destacando as declarações do Leopoldo Amado, que é membro da nossa Tabanca Grande [, tem mais de 6 dezenas de referências no nosso blogue; foi cronologicamente  um dos 30 primeiros membros da Tabanca Grande (*)]:


Leopoldo Amado ma Feira do Livro de Lisboa, em 2012,
posando ao lado da Alice Carneiro, do Luís Graça
e do João Graça. Foto de LG
(...) Leopoldo Amado, historiador, director do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) [, desde 13 de janeiro de 2015], lembra a época em que um apito dava ordens de entrada e saída da população negra na cidade. Bissau começou a desenvolver-se a partir do porto e no porto havia um muro para separar as populações africanas dos moradores, que eram os comerciantes portugueses.

 “Em 1940, este muro ainda existia, foi derrubado quando o nacionalismo começou a despertar”, no final dos anos 1950, explica. “Nesse território com o muro em Bissau, na pequena cidadela, alguém usava um apito às seis da tarde e os africanos sabiam que era hora de saíram daquele espaço, a urbe colonial. Voltava-se a apitar às seis da manhã para entrarem e darem início aos trabalhos domésticos. A presença dos negros era admitida apenas para os trabalhos domésticos” ou de baixa qualificação.

A época colonial de que Fodé Mané, 50 anos, se lembra é a do governador António de Spínola (1968-73), altura em que estava em marcha a política Por Uma Guiné Melhor (que ficaria registada em livro, 1970). “Já não havia a implementação da segregação do indígena”, comenta. Era a política de criar mais escolas, mais infra-estruturas para travar a luta de libertação que estava a crescer. “Mas uma revogação não desaparece da mentalidade das pessoas”, continua. “Vivemos a diferenciação entre os que tinham beneficiado do estatuto do indigenato, dos que não tinham a possibilidade de ser assimilados e de ter o estatuto de cidadãos com plenos direitos, e aqueles que eram filhos de funcionários públicos e podiam estudar nas escolas do Estado. Para estudar, a pessoa tinha de ter registo ou certidão de nascimento ou um conjunto de documentos que o grosso da população não tinha.” (...)

Com pouco mais de 1,6 milhões de habitantes, a Guiné-Bissau foi a primeira colónia portuguesa a obter a independência em 1973, fruto da luta de libertação liderada por homens como Amílcar Cabral, iniciada no princípio dos anos 1960. Tem uma história marcada pela resistência, orgulho de muitos guineenses. Tendo feito parte do Império Mali e do Reino Gabu, a Guiné-Bissau nunca seria ocupada totalmente pelos portugueses. Historiadores como Leopoldo Amado defendem que a colonização efectiva durou apenas de 1936 (a data oficial do final das campanhas de pacificação) até ao despertar do nacionalismo, por volta dos anos 1960.

A Guiné foi administrada por Cabo Verde até 1879 como Guiné de Cabo Verde e até à descolonização eram os cabo-verdianos que formavam o grosso da administração pública colonial — daí dizer-se que a Guiné era uma colónia da colónia.

Com mais de 30 etnias, a língua portuguesa é falada por uma minoria de 14%, vigorando o crioulo. A política colonial portuguesa usou a divisão étnica a seu favor, criando cisões e adoptando aliados como os fula.

(...) Leopoldo Amado (n. 1960) é hoje um dos mais conhecidos e respeitados historiadores bissau-guineenses e é ele quem afirma: a partir de determinada altura, a Guiné era um fardo para o sistema colonial português. É uma terra com tradição guerreira que não permitiu que a colonização fosse efectiva e há relatórios que, a dada altura, mostram Portugal a ter mais despesa do que lucros com o país. Portugal não se desfez da Guiné apenas porque o império colonial era tido como um todo: se a Guiné-Bissau caísse, as restantes colónias tentariam seguir-lhe os passos, acredita.

Como Portugal tinha muito poucos meios, usou o sistema de “engavetamento étnico”: inventou etnias; dividiu para melhor reinar. “Houve casos em que os portugueses tiveram o desplante de colocar fulas a dirigir manjacos, manjacos a dirigir bijagós, provocando movimentações de etnias com o propósito de os dividir, e colocando sobre eles uma autoridade a que chamavam Assuntos Indígenas.”

No colonialismo existiam quatro categorias raciais, contextualiza: os grumetes (permaneciam na tradição, viviam à beira das cidades), tangomãos (participavam no comércio e eram uma espécie de assimilados), os brancos, e os lançados, os filhos da terra (brancos que nasceram na Guiné-Bissau). “Um dos factores de submissão foi exactamente a interiorização no negro da sua inferioridade pela via da separação”, sublinha. Por isso usavam o muro de Bissau, por exemplo. “Não que os portugueses fossem mais racistas que os outros, mas tinham de utilizar isso como método, a ideia de inferioridade para levarem avante os seus propósitos. Tudo isso foi feito num ambiente em que os portugueses, eles próprios, assimilavam valores africanos. Os colonos que se deixavam levar pela cultura africana e viviam com os africanos eram considerados ‘cafre’, o termo para classificar as pessoas que se tinham degenerado, e eram considerados do ponto de vista religioso como almas perdidas porque se submetiam à forma de estar do africano — aliás, criou-se o termo ‘cafrealização’. (...)

Como estratégia, os portugueses aproximaram-se dos fula, criaram exércitos de fula, de balanta, de outras etnias, com o objectivo de acicatar as diferenças. Com o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado em 1945, forneciam-se elementos ao poder político para melhor compreender as dinâmicas étnicas. “O contrário do racismo é exactamente isso, trazer à nossa convivência, viver com eles, permitir que tenham acesso à escola, à saúde, que melhorem as condições de vida. Na Guiné-Bissau isso não aconteceu: as poucas infra-estruturas só foram construídas porque havia necessidade de dar vazão às questões da guerra.”

Apesar de tudo, o sistema dava oportunidade de ascensão social a alguns guineenses. O pai de Leopoldo Amado, por exemplo, era director dos correios, posição à qual chegou no final da carreira, “não sem problemas pelo meio”, sendo “alvo de discriminação de todo o tipo”. A ideia era o sistema colonial usar uma parte ínfima da população como intermediária entre os seus interesses e as populações.

Depois apareceu uma literatura colonial etnográfica para estudar a psique do negro, adianta o historiador. “O negro praticava a gula, o pecado dos cristãos, logo era preciso civilizá-lo. O negro é um ente que tem uma potência sexual acima da média, quase boçal, quase um animal, que tem atitudes animalescas. Todas estas ideias foram reproduzidas nesta literatura colonial. Reproduziu-se também a ideia de que o negro é um irresponsável, propenso a bebedeira; no caso das mulheres, são lascivas, têm propensão para promiscuidade sexual, vivem na degenerescência moral. A par de tudo quanto era racismo, criava-se uma ideologia para poderem continuar com a empresa da colonização.”

A teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos, baseada na cordialidade, miscigenação, capacidade de adaptação e assimilação. Tem, para Leopoldo Amado, “algum substrato” porque “há uma maneira particular de ser português”: mas “isso não isenta de maneira nenhuma” o “ser racista”. “Salazar e Marcelo precisavam de uma teoria como a de Gilberto Freyre. A tese de Salazar era a de que havia portugueses de outra cor, mas isto era para consumo externo, porque entre os portugueses de outra cor existia o trabalho forçado, o sistema que substituiu a escravatura.” (...)


Ler aqui o resto do excelente trabalho de investigação jornalística de Joana Gorjão Henriques

Vd. também os vídeos de Frederico Batista, que estão disponibilizados no portal do Público Multimédia, com os diferentes entrevistados (onde se incluem alguns dos melhores e promissores quadros guineenses como o sociólogo e diretor executivo da ONGD Tiniguena,  Miguel Barros, o historiador Leopoldo Amado, diretor do INEP, o antropólogo Fodé Mané, a arquiteta Djamila Gomes, o sociólogo Dautarin Costa, o escritor Abdulai Sila, o investigador e doutorando Saico Baldé, o economista e político Mário Cabral (, velho militante do PAIGC), a Augusta Henriques, neta de colono português, fundadora da ONG Tiniguena, o gestor Mamadu Baldé, a jurista Samantha Fernandes, etc.:  No tempo em que ser guineense não era suficiente para ser cidadão  (**).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P159: Tabanca Grande: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia 

(...) Caríssimo Leopoldo:

Fui com alegria que, ao chegar de férias, vi na minha caixa do correio a sua mensagem. Começo por dizer-lhe que as suas palavras me sensibilizaram. De facto, eu e a generalidade dos meus camaradas, ex-combatentes da guerra colonial (ou do Ultramar, como outros preferem dizer), que vivemos quase dois anos das nossas vidas na Guiné, sentimo-nos guineenses e nada do que se lá passou (e até do que se lá passa hoje) nos é indiferente. É impossível não amar a Guiné e o povo guineense. E nessa medida todos somos guineenses, de alma e coração… A história aproximou-nos e afastou-nos. O nosso modesto contributo, através dos nossos escritos na Net, visam de algum modo manter e se possível fortalecer os laços (que são sobretudo culturais e afectivos…) que nos unem às gentes da Guiné.

Leopoldo: O seu nome e alguns dos seus escritos já não nos eram desconhecidos. Fico entusiasmado ao saber que tem um longo trabalho de investigação sobre os aspectos políticos e militares da guerra colonial na Guiné, e que está é está a ultimar uma tese sobre este tópico. O que é ainda mais interessante (e inédito) é a sua dupla abordagem da guerra, vista pelos dois lados. Além disso, você era djubi nesse tempo (tal como o nosso amigo de tertúlia o José Carlos Mussá Biai, natural do Xime) e, como criança, foi uma vítima especial da guerra, tal como nós fomos actores.

É, por isso, que me sinto honrado em aceitá-lo na nossa tertúlia. Falo, em meu nome pessoal. Mas creio também interpretar o sentir dos restantes membros da tertúlia (que já são quase treze dezenas). Seja bem vindo. Temos muito que conversar. Um abraço e até breve. Luís Graça (...) (***)




(**) Último poste da série > 13 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15361: Recortes de imprensa (77): Recensão ao livro "Nacionalismo, Regionalismo e Autoritarismo nos Açores Durante a I República", da autoria do Professor Carlos Cordeiro, por Santos Narciso, incluída em Leituras do Atlântico, no Jornal Atlântico Expresso

(***) Vd. também entrevsita de Leopoldo Amado ao semanário O Democrata, de 29/9/2014: "Grandes comandantes do PAIGC estavam com a PIDE".

(...) O PAIGC nunca teve mais de cinco mil homens em armas e nos picos da guerra o exército português chegava aos 40 mil homens. Mas o partido que nunca chegou mais de cinco mil homens criou uma estrutura de Estado, fez uma guerra exemplar e do ponto de vista diplomático fez uma guerra extraordinária, dado que conseguiu convencer até os aliados dos portugueses na altura a se colocarem do lado dele. Foi o caso da Dinamarca que passou a apoiar o PAIGC e as Agências das Nações Unidas já colaboravam com o PAIGC. (...)

Guiné 63/74 - P15467: Lembrete (15): Lançamento do livro "História(s) da Guiné Portuguesa", da autoria de Mário Beja Santos, com apresentação do Prof. Eduardo Costa Dias e Dr. António Duarte Silva, amanhã dia 10 de Dezembro, 5.ª feira, pelas 18 horas, no Palácio Conde de Penafiel, Rua de S. Mamede ao Caldas, n.º 21 - Lisboa

LEMBRETE para o lançamento do livro HISTÓRIA(S) DA GUINÉ PORTUGUESA, da autoria de Mário Beja Santos, com apresentação do Professor Eduardo Costa Dias, do ISCTE, e Dr. António Duarte Silva, investigador, amanhã dia 10 de Dezembro, 5.ª feira, pelas 18 horas, no Palácio Conde de Penafiel, Rua de S. Mamede ao Caldas, n.º 21 - Lisboa.



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos:

A todos os meus amigos, 
As "História(s) da Guiné Portuguesa" procuram avançar com mais hipóteses que venham no futuro a ser consideradas com alguma pertinência pela equipa de historiadores que meter ombros nessa tremenda lacuna da nossa cultura que é a ausência de uma história da Guiné Portuguesa. 
O meu livro procura introduzir dados novos que a moderna historiografia tem vindo a considerar, entre outros: a presença dos judeus na região da Senegâmbia; a natureza do tráfico de escravos na região; o impacto das guerras de pacificação, do século XIX para o século XX, na natureza de uma Guiné transformada em colónia-modelo; mais alguma iluminação sobre a natureza dos movimentos nacionalistas e o desenvolvimento da luta de libertação. 
Carreei, em sequência cronológica, muita documentação que não utilizei no livro a quatro mãos que escrevi em 2014 "Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro". Pedi a dois investigadores eméritos, Eduardo Costa Dias e António Duarte Silva, que na sessão de apresentação procedessem a um debate sobre as lacunas existentes e o modo de as preencher. 
Havendo hoje tanta investigação sobre o período colonial, tantas obras referentes à guerra colonial da Guiné, não se conhece nenhum estudo que abarque os quatros anos da governação de Arnaldo Schulz. 
Conto com a vossa companhia nesta sessão de lançamento e dentro das vossas possibilidades agradeço-vos a mais ampla divulgação possível. 

O reconhecimento e a cordialidade do 
Mário

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15379: Lembrete (14): Lançamento do livro "O Fedelho Exuberante", da autoria do Mário Beja Santos, dia 18 de Novembro, pelas 18 horas, no Auditório do Museu da Farmácia, Rua Marechal Saldanha, n.º 1, ao Calhariz, em Lisboa

Guiné 63/74 - P15466: (In)citações (82): Em dez anos, desde 2005, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes... E estão-me sempre a perguntar "quando voltas"... Até 1990 não queria sequer ouvir falar da Guiné... Hoje sinto-me também um guineense (Parte II) (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)



Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O José Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. "Um feliz reencontro. Regresso às origens em 2005. Encontro com um Português da Guiné, antigo paraquedista, que tem uma linda história para ser contada, pelo que sofreu e como consegui iludir o PAIGC para sobreviver à chacina de antigos combatentes portugueses".



Foto nº 9 > Guiné-Bissau, Regiãod e Tombali, março de 2008


Foto nº 10 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé.



Foto nº 11 > O Zé Manel da Régua [, José Manuel Lopes,] num regresso emocionado a Mampatá (?), em 2009



Foto nº 12 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xitole > 1 de maio de 2013 > "O Francisco Silva mais um antigo guerrilheiro do PAIGC, procurando localizar pontos de guerra comuns". [ Companheirop de viagem do Zé Teixeira, em 2013 (**), o Franscisco, hoje cirurgião, esteve no Xitole, como laf mil, ao tempo da CART 3942 / BART 3873 (1971/73), antes de ir comandar o Pel Caç Nat 51, Jumbembem, em meados de 1973]



Foto nº 13 > Guiné-Bissau, 2013


Foto  nº 14 > O Zé Teixeira, em 2013, em Djufunco, chão felupe,com as crianças que representam a esperança e o futuro da Guiné Bissau



Foto nº 14 > Mais um encontro emocionado: Xitole, 2008, o João Rocha (ex-alf mil, Pel Rec Inf / CCS / BCAÇ 2852, Bambadinca,  1968/70) com a sua antiga lavadeira (1)



Foto nº 15 > Mais um encontro emocionado: Xitole, 2008, o João Rocha (ex-alf mil, Pel Rec Inf / CCS / BCAÇ 2852, Bambadinca,  1968/70) com a sua antiga lavadeira (2)

Voltar à Guiné-Bissau, por terra, porque não ? A primeira vez foi em fins de 2005, com o Xico Allen. Que aventura mais linda!... Em 2008, repeti!,,, Aqui ficam mais algumas imagens dessas viagens, do Porto a Bissau, atravesssando Espanha, Marrocos, Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau... Sem legendas, que uma imagem vale por mil palavras!... São fotos comigo e com outros camaradas: o Francisco Silva, o José Manuel Lopes, o João Rocha...(JT)

Fotos (e legendas): © José Teixeira (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

Fotos do álbum de José Teixeira, um dos régulos da Tabanca de Matosinhos, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de dezembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15461: (In)citações (81): Em dez anos, desde 2005, visitei os meus amigos guineenses cinco vezes... E estão-me sempre a perguntar "quando voltas"... Até 1990 não queria sequer ouvir falar da Guiné... Hoje sinto-me também um guineense (José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos)

Guiné 63/74 - P15465: Antropologia (23): “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2015:

Queridos amigos,
Este livro tem consigo uma chave explicativa para a imagem que se pretendia dar ao estrangeiro sobre o Portugal dos meados da década de 1950: os tesouros da História, a ordem por toda a parte, a doce harmonia entre os tesouros preservados dos nossos ancestrais e a construção de infraestruturas modernas.
Um país com espécimenes incontornáveis da arte românica e gótica, um país com moinhos, fiadeiras, com fontes e tranquilidade. O país de Aljubarrota e da viagem de Vasco da Gama, um país virado para o mar, com belíssima praias, com excelente vinho, sargaceiros, cruzeiros, com beatitudes da natureza, campinos, o Navio-Escola Sagres, a cal das casas alentejanas, as amendoeiras em flor, a epopeia das pescas.
Este o Portugal romântico, esvaído nas brumas da memória, com fotografias impressionantes, a rivalizar, e nalguns casos a ultrapassar o que que cá vieram fazer génios da fotografia como Sir Cecil Beaton e Henri Cartier Besson.

Um abraço do
Mário


O Portugal fabuloso da década de 1950

Beja Santos

Encontrar na Feira da Ladra, com preço altamente abordável, que nada tem a ver com os preços a que a obra se vende nos leilões, o “Portugal Romântico”, com texto de Frederic P. Marjay, edição de 1955, foi dia em que se bateu com a biqueira do sapato no chão e saiu pepita de ouro. Frederic P. Marjay, basta ir ao Google, escreveu que se fartou obras de bom grafismo e de apresentação de Portugal sobre múltiplas facetas. Naquele ano, resolveu olhar para Portugal, para aquela gente ordenada, sorridente, amante da casa portuguesa com certeza, o Portugal marítimo, das igrejas românicas do Norte, do Mosteiro da Batalha, do Mosteiro dos Jerónimos, de uma rapariga alentejana fotografada em estúdio, do tempo em havia pesca do atum no Algarve e o corridinho era uma delicadeza etnográfica só para o mercado interno. Um Portugal fabuloso, de gente crente, pobrete mas alegrete.


Marjay, diga-se em abono da verdade, era exigentíssimo na escolha das imagens, iremos encontrar neste álbum com texto em inglês e em português fotografias, entre outros, de Artur Pastor, Domingues Alvão, Amadeu Ferrari, Otto Auer Júnior, Horácio Novais e António Rosa Casaco.


Que será que, em Portugal, nos atrai com tal intensidade, desde o primeiro instante? Temos o tempo histórico, o país que desabrochou a partir do Condado Portucalense, um rei esforçado e aí o autor lançou-se desbragadamente na fábula, entrou na lenda da Batalha de Ourique, ora vejam: “Livre em relação aos castelhanos, D. Afonso Henriques lança-se contra os sarracenos e infligi-lhes a derrota de Ourique, a mais bela vitória alcançada pelos cristãos contra os infiéis. Nessa batalha, 13 mil portugueses derrubaram 400 mil árabes. Cinco reis mouros foram vencidos ao mesmo tempo. Foi no Campo de Ourique que Cristo apareceu, segundo a lenda, a D. Afonso Henriques, prometendo-lhe a derrota dos mouros e a sua proteção a Portugal. Desde então, a pátria portuguesa ficou sob a proteção de Cristo”.


As margens do Douro, a linda ponte sobre o Rio Lima, a Igreja de Rates, o Mosteiro de S. Pedro de Roriz, isto é o Norte, onde as mulheres de Mogadouro fiam e os Pauliteiros de Miranda revelam o fascínio pela sua dança artística e original. Cá mais a baixo, ali bem perto de Peniche, há esta fortaleza que pouco serviço bélico prestou mas que hoje é um encanto, encastrada em paisagem protegida, garanto-vos que só para chegar aqui vale a pena esperar pelo mar calmo e contemplar património construído dentro de um exótico património natural.


Estes livros eram para ser comprados por turistas com posses, eram distribuídos nos centros do turismo de Portugal espalhados por bastantes países, e eram oferecidos pelo SNI e departamentos oficiais aos convidados. Todas estas imagens são marcantes, intrigam ou assombram.


O mar é destino de Portugal, somos um país de marinheiros, o nosso mar conhece ondas gigantescas, inventámos a caravela, ou quase, e fomos pelo mundo fora. E escreve o autor que os portugueses venceram todas as violências das águas infinitas. A sua audácia, a sua coragem, o seu heroísmo, dominaram todas as dificuldades que se lhes opuseram. Estamos ligados ao Atlântico, é este o nosso destino e a nossa sorte. E temos o peixe, que é do melhor, já fomos grandes consumidores dele, da costa Norte, passando por Sesimbra e quase todo o Algarve, o peixe foi riqueza e deu indústria grada, a das conservas, durante as guerras a nossa sardinha enlatada matou muita fome, consolou muito estômago em casas particulares, em submarinos e nas frentes de combate.


Há os belos templos e há essa profunda religiosidade. O autor lembra-nos Fátima como resposta direta ao ateísmo do século XX. E porque o livro se destina a turistas deixa-se uma informação pertinente: “Pelo menos metade dos visitantes pertence à classe média de todo o mundo. Senhoras da sociedade sueca e norueguesa, engenheiros alemães, sábios franceses, arquitetos americanos, médicos de toda a parte, até professores universitários lá vão. Cada um deles tem o seu desgosto, a sua dor, a sua preocupação ou a sua doença, talvez incurável. Vão ali orar e arrepender-se”.


Há os castelos, as raparigas castiças, as pontes romanas e medievais, as serras, as barcas, os mosteiros, os acontecimentos gloriosos como Aljubarrota que deu o Mosteiro da Batalha, há a religiosidade e há o homem português, do antes quebrar que torcer, o rosto de centúrias, o protótipo do português capaz de grandes feitos, todo ele identidade da terra e do mar. Todos estes livros visavam um entrelaçamento entre os pontos obrigatórios do turismo, a riqueza folclórica e as figuras típicas, imemoriais, como acontece aqui, um rosto tirado de um romance de Camilo.


As gentes que habitam para lá das fragas, que pastoreiam nas penedias e nos lameiros também fazem parte do Portugal romântico imaginado por Frederic Marjay. Não é só mar que é distinto de Portugal, o mar do Infante D. Henrique, de Vasco da Gama, nem a história começou com o Castelo de S. Jorge, o país é rico porque é compósito e nesta década de 1950 muito mais de metade da população vive dependente desta agricultura humilde. Para lá desta imagem, neste preciso instante, estes camponeses começam a sair a salto, o primeiro destino é França, mais tarde a Alemanha, a Suíça, o Luxemburgo e outras irradiações. O que aqui se fixa é que os portugueses trabalham e têm uma moral sólida como o granito das casas, são pastores exímios.


Um dos triunfos de António Ferro consistiu na divulgação do folclore, genuíno ou processado. Recordo um episódio que o meu padrinho viveu em Londres, em 1937. Pediram-lhe na Casa de Portugal para acompanhar um grupo de Pauliteiros, salvo erro o das Duas Igrejas, que vinham participar no Royal Albert Hall no Festival Mundial de Folclore. O grupo deu brado, saiu medalhado. E o meu padrinho contava sempre o que era andar no metro de Londres com aqueles pauliteiros com meias de renda, botifarras, chapéu florido, bigodaças e um garrafão de vinho, foi um espetáculo irresistível. Vendemos a imagem dos nazarenos, do corridinho algarvio, das chulas do Alto Minho e os mirandeses. O cante alentejano ficou para muito mais tarde.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2013 Guiné 63/74 - P11251: Antropologia (22): O Korá: Elementos essenciais para a sua compreensão (Braima Galissá / Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15464: Caderno de Notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (40): "A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria" -Guiné Bissau (Sobre a reportagem do jornal Público)

1. Mensagem do Antº Rosinha

[, foto à esquerda: emigrou para Angola nos anos 50, foi  fur mil em 1961/62; saiu de Angola com a independência, emigrou para o Brasil e finalmente foi topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93;  é um "ex-colon e retornado", como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar; é membro sénior da Tabanca Grande]: 


Data: 8 de dezembro de 2015 às 00:09

Assunto: A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria - Guiné Bissau (Sobre a a reportagem do jornal Público)


Luís e Carlos, só se não houver inconveniente...

Interessantíssima esta reportagem que Carlos Vinhal enviou para  conhecimento do pessoal da Tabanca Grande [ "A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria", de Joana Gorjão Henriques (texto), Adriano Miranda (fotos) e Frederico Batista (vídeo), Público, 6 de dezembro de 2015 (Série especial: Racismo português)].

Esta reportagem pouco traz de novo para quem antigamente ouvia as emissoras rádio Pequim, rádio Moscovo, rádio Praga, Deutsche Welle, etc., em programas em português do MPLA,  PAIGC e FRELIMO.

A maior diferença de discurso, está entre o anti-colonialismo primário e demagógico daqueles movimentos, e aqui sobressai apenas a crítica aos defeitos da colonização portuguesa.

O que é mais estranho é que as pessoas, filhos das "vítimas" do colonialismo, africanos dos PALOP em geral, continuem passivamente a não se descolonizarem mais radicalmente, ao ponto de abusarem, hoje, cada vez mais de "perucas" e a viver em cubatas de vários pisos ( Prédios enormes no caso de Luanda). A preferir viver em andares sem quintal, sem a antiga tradicional qualidade de vida familiar africana,

Não resisto a respigar uns tópicos dessa reportagem e entre parênteses fazer os meus comentários um tanto levianamente, porque colaborei e vi fazer essa tão má e tão pouco intensa colonização (parece que se diz "colonização suave"). 

Aliás, se qualquer colonização fosse boa, ninguém queria ser descolonizado, antes pelo contrário. Era caso para dizer vai chamar pai a outro, de um lado , ou vai chamar filho a outro, do outro lado E como sei que se foi difícil ser colonizado, também muito difícil era colonizar.
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A prova que era difícil colonizar, é que os Europeus desistiram bem cedo dessa colonização, e com certeza aos olhos de muitos africanos antigos, até teria sido cedo demais, que pensam isso mas não dizem.

Então lá vão os tópicos que me chamaram mais a atenção, nessa grande reportagem, e que alguns são bem genuínos, outros "assim-assim". (Entre parênteses é explicação minha, que fui cólon em Luanda muitos anos)

A colónia onde todas as Fatumata tinham de se chamar Maria. (Também se chamavam Domingas ou Segunda, talvez inspirados no inglês Robinson Crusoe com o seu Fryday)

Nos tempos do colonialismo português, o guineense tinha de vestir-se como um europeu para provar que tinha direito a ser cidadão.(Aqui haveria mesmo discriminação, ficavam isentas dessa obrigação as bajudas bijagós com as saias de palha? )

As mulheres tinham de desfrisar o cabelo, desfazer as tranças africanas. (Era o colono a ditar moda.)

A separação entre os guineenses e portugueses era real. (Só na praça o guineense não podia viver, porque na tabanca o português entrava e saía quando queria.)

Ninguém podia atravessar descalço a fronteira que dava acesso a Bissau.
(Chapa Bissau)(eram manias de colonos que na terrinha até andavam sempre descalços.)

Num exemplar da Caderneta do Indígena vêem-se várias folhas, cada uma com itens que alguém preencheria: as características, o imposto indígena, a contribuição braçal, castigos e condenações…(Era um autêntico cartão de cidadão com registo criminal.)

Os velhos contam que, quando se abriam as estradas, as pessoas eram obrigadas a ir trabalhar. (Com a agravante de só os brancos é que tinham automóvel.),

Quem eram os administradores? Raramente eram os lisboetas, os minhotos — muitas vezes eram os cabo-verdianos. (Pois, como além de administradores, também os dirigentes do PAIGC, Amílcar e os outros eram berdianos, imagina-se a indignação dos guineenses, não serem pioneiros nem na colonização nem na descolonização.) 

Não fez uma única amiga nesse tempo. Quando ia de férias para o Norte, o pai guiando o seu Cadillac, havia sempre uma pequena multidão de curiosos atrás, tinham de fechar os vidros :"olha o preto, olha o preto, olha o preto", gritavam. Eram os anos 1960, a época de um "Portugal tacanho". E ignorante. A mentalidade dos portugueses na Guiné-Bissau não era muito diferente. (Refere-se aos tugas colonos que tínhamos abandonado as cabrinhas, vindo a escorregar por uma tábua, embarcámos em Alcântara num porão de navio e regressámos de Cadillac, com uma prole mestiça, hoje já não somos ignorantes e vamos para Bissau via Dakar de Jeep e para Luanda de avião e vimos sem Cadillac e sem prole.... E se fosse agora não se dizia "olha o preto" dizia-se "olha mais um escarumba".)

A maior parte do tempo o mestiço está a ter de provar que é tão guineense como os pretos. (O racismo dos pretos chegou ao ponto de em Luanda, no 25 de Abril,  dizerem que os brancos vão para a terrinha, os mestiços não têm terra, vão para o mar.)

A teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos. (Ideologia do Estado Novo, do Estado velho, de Marquês de Pombal, de António Vieira, de Sá da Bandeira e continuará cada vez mais.)

P.S. - Não menciono o nome dos vários entrevistados nesta reportagem, para não aumentar muito o poste

Cumprimentos

Antº Rosinha


Angola >  Agosto de 1935 > Visita à Fazenda Tentativa,  no âmbito do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Princípe e Angola, uma inciativa da revista O Mundo Português, que juntou cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comeriantes"...

O director cultural do cruzeiro foi o  prof doutor Marcelo Caetano (1906-1980), então um jovem entusiasta do Estado Novo e doutrinador do corporativismo.(Será comisário da Mocidade Portuguesa em 1940 e ministro das colónias em 1944, até chegar a sucessor de Salazar, de 1968 a 1974).

Esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais" era dirigida pro Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional.

Fonte: O Mundo Português, vol II, nºs 21-22, setembro-outubro de 1935 (Exemplar oferecido ao nosso blogue por Mário Beja Santos; foto da autoria de Sam Payo, digitalizada e editada por L.G.; reproduzida com a devida vénia).
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