Brunhoso - Com a devida vénia
1. Em mensagem do dia 24 de Junho de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos, desta feita com a primeira parte do Ciclo do Pão.
Brunhoso há 50 anos
8 - O Ciclo do Pão (1)
Na década de cinquenta do século passado, que é até
onde a memória me consegue transportar na minha viagem ao passado,
Brunhoso vivia de uma agricultura rudimentar que pouco diferia da
agricultura praticada pelos antigos egípcios, gregos, romanos e outros
povos mediterrânicos.
Era uma agricultura, sem recurso a máquinas que se baseava na
utilização intensiva da força humana e dos grandes animais
domésticos: bois, vacas, gado muar e asinino. A tecnologia mais
avançada que utilizava, para além da charrua, era o arado e o carro
de bois de que já se vêm em gravuras do antigo Egipto do tempo dos
faraós. A charrua com funções semelhantes às do arado, era toda em
ferro, mais pesada portanto e com uma relha maior que rasgava a terra
com mais profundidade e conseguia lavrar em solos mais duros, que
veio como tal permitir aumentar a área de cultivo possibilitando o
desbravar de muitos terrenos incultos. A charrua é considerada um
avanço tecnológico da Idade Média, que terá sido mais difundida após
a revolução industrial da Europa com a criação de fábricas
metalúrgicas que as fabricavam em série como acontecia na fábrica de
Tramagal no Ribatejo, donde eram as que eu conheci, nesses tempos.
Para além da melhoria tecnológica que representou a invenção da
charrua, terá havido, como é natural outras melhorias que a marcha
dos tempos sempre traz, como melhores selecções de sementes, um
melhor conhecimento dos solos e a criação de melhores adubos para os
tornar mais férteis. Um adubo muito utilizado e publicitado por
paredes de vilas e até aldeias, nos anos cinquenta e algumas décadas
subsequentes era o famoso "Nitrato do Chile".
Charrua do Tramagal
Depois das sementeiras em fins de Setembro, meados de Outubro,
conforme o tempo o permitisse, novo ciclo do pão recomeçava. O
lavrador nunca tinha descanso e a terra, essa deusa antiga, exigia dele
uma atenção e um trabalho constante. O meu amigo Joaquim "Passarinho",
já com 86 anos, diz muitas vezes que a “fazenda” (conjunto das
propriedades agrícolas de que o lavrador tinha que pagar anualmente a
décima nas repartições da Fazenda Pública) gosta de ver o dono. Para
preparar as terras para as sementeiras do próximo ano, os lavradores
começavam logo a decrua, que era a primeira lavra com as tais charruas
de ferro da fábrica de Tramagal, puxadas por juntas de bois, vacas,
mulas ou machos que rasgavam a terra cheia de ervas e restolho já
ressequido. O tempo da decrua, que decorria no Outono, que por não
haver colheitas, era uma estação do ano triste e temida pelos
trabalhadores da terra, pois antes da apanha da azeitona que só
começava em Dezembro as jeiras eram escassas.
Venda do Pinheiro - Publicidade ao Nitrato do Chile em azulejo
A “vima”, que era a segunda lavra, fazia-se normalmente na Primavera,
nos meses de Março, Abril e Maio. Não havia muito rigor nestas datas
pois tanto a decrua como a vima dependiam muito das condições
atmosféricas que podiam trazer tempo seco ou chuvas e condicionavam as
fases da preparação dos campos de cultivo. Podia até acontecer que se
fizesse alguma decrua na Primavera por não ter havido condições para
fazê-la antes, nesses casos a vima seria já mais próxima da
sementeira.
Alguns lavradores, quando a vima era feita logo no inicio da
Primavera, “escardavam” também os campos, que era uma última lavra
que tinha por objectivo arrancar as ervas daninhas que entretanto
tinham crescido.
Um dos sinónimos de escardar é eliminar os cardos, que nalguns
terrenos cresciam em abundância.
As sementeiras começavam em Setembro e acabavam em Outubro. As
sementeiras eram pois feitas ao entrar o Outono, nesse tempo de
paz em que duração dos dias e das noites se equilibravam e o sol
enviava raios mais oblíquos com um calor suave que iluminavam a
terra com uma claridade que alargava mais os horizontes, quando as
folhas caducas dos castanheiros, das parreiras e de outras árvores e
arbustos de folha caduca, na despedida, se iam transformado em
tonalidades suaves de verde, castanho, amarelo, rosa e vermelho. O
tempo das sementeiras era um tempo que se adequava ao meu
temperamento e sensibilidade. Um tempo calmo, ameno e em que os
horizontes de montanhas se alargavam e tornavam mais visíveis, fazendo
crescer os sonhos em evasões imaginárias.
Nesse tempo tínhamos uma junta de bois e uma junta de vacas. O meu
irmão mais velho lavrava com a junta de bois e eu com a junta de
vacas, enquanto o meu pai semeava o trigo. De manhã ao sair de casa a
minha mãe como de costume, dava-nos o saco da merenda, feito de
linho ou estopa, com o pão, presunto, toucinho, chouriço, por vezes
queijo ou frango. Lembro-me desses dias de sementeira como de
solenidades místicas com homens e animais empenhados no mesmo esforço
comum, sendo o nosso pai o “Xamã” que "espalhava" o cereal (trigo
ou centeio) com ar sério e compenetrado. Pelo meio-dia, por ordem
dele, parávamos e escolhíamos uma sombra para merendar. Nunca esqueci
um dia, teria 16 ou 17 anos, em que fizemos a sementeira duma terra do
Zimbro. Há dias ou momentos que recordamos para a vida inteira sem
sabermos explicar o porquê desse registo. A mim tem-me acontecido
algumas vezes ao longo da vida. Desse dia de sol esmaecido, de fins de
Setembro, recordo quase tudo com uma fidelidade fotográfica. Além da
visão dos homens e dos animais e das suas tarefas até recordo o sabor
do toucinho que fazia parte da merenda. Não me lembro de ter comido
um naco de toucinho como aquele. Depois de ter sido curado pelos frio
seco de Inverno e resguardado do calor intenso de verão na despensa
fresca do rés-do-chão, o toucinho estava curado e feito, como um bom
vinho, que afinal até lhe fazia companhia no mesmo lugar. Talvez
tudo isto me tenha acontecido por ter experimentado a bênção da
terra que o lavrador recebe quando comunica com ela, eu que era um
lavrador sazonal, de tempos de férias.
Normalmente as terras
ficavam de "POUSIO", pelo menos um ano. Não havia nenhum pacto de
regulação de zonas, no entanto, para acautelar o pastoreio dos
animais, os lavradores procuravam andar na mesma folha que os outros,
embora houvesse quem assim não fizesse, se não tivesse
alternativa. Isto significa que metade dos campos cultiváveis da
aldeia estavam cobertos de cereal enquanto os da outra metade, de
pousio, estavam a ser preparados para as próximas sementeiras.
Depois das sementeiras o trigo e o centeio tinham uma gestação de
nove meses, tão demorada ou mais como as dos filhos dos
lavradores, pois as colheitas só seriam feitas nos meses de Junho ou
Julho do ano próximo. As searas iam crescendo lentamente, passado um
mês não teriam mais de um palmo. Chegados os frios de Dezembro ou
Janeiro, um pouco mais crescidas para poder suportar as geadas e a
neve desses meses. Um provérbio muito conhecido, a experiência
acumulada dos lavradores tinha tantos provérbios mensais e anuais,
que este era mais um a juntar aos outros: “Cresce o trigo debaixo da
neve, como o carneiro debaixo da pele”.
Com a chegada da Primavera
ainda com muitas chuvas mas com mais sol a aquecer os campos de trigo
e centeio, as searas iam crescendo e ondulando ao vento em aguarelas
de tons de verde sobre verde. Pelos fins de Maio os campos de cereal
iam adquirindo uma cor aloirada, sinal de que o grão e a palha
estavam quase maduros e prontos a ser colhidos. Com as ceifas, que
conforme o tempo atmosférico, teriam lugar nos meses de Junho e
Julho, começavam os trabalhos que durante três meses congregavam o
esforço de todos os homens e muitas mulheres da aldeia.
Olho para trás, para esses tempos antigos, e revejo esses homens,
alguns ainda adolescentes, a andar ligeiros, curvados sobre a
terra, cada qual com três assucadas, com a seitoura na mão
direita, a ceifar o trigo e centeio, horas e horas debaixo desse sol
transmontano de Julho que abrasa a terra como o fogo do inferno.
Tenho recordações que são como flaches da memória e volto a ver esses
quinze segadores, nesse dia quente de Julho, na Cortinha das Maias,
todos magros e curtidos pelo sol e pelos ventos, com o suor a cair do
rosto em pingas de água, como se fossem lágrimas. Os mais
experientes revezavam-se ainda na tarefa de “atar” sempre difícil e
dolorosa, ainda mais dolorosa que segar. Era preciso que alguém
fizesse esse trabalho difícil com responsabilidade e, ao mesmo
tempo, que os “molhos” fossem todos mais ou menos iguais entre si.
Os segadores além de cada qual assumir uma responsabilidade individual
pelo acompanhamento na marcha ritmada das assucadas tinham também a
responsabilidade colectiva de fazer um trabalho perfeito mesmo que
para isso alguns tivessem que se sacrificar mais. Eu, era o filho do
patrão, que tinha por missão um trabalho bem mais leve que era
distribuir água, que transportava num cântaro de barro, a quem dela
necessitasse.
CEIFEIROS - Painel de azulejos policromos, pintado por Eduardo Leite
segundo cartão de Dórdio Gomes, produzido na Fábrica da Viúva Lamego,
Lisboa. Átrio da Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja.
As refeições eram os únicos momento de descanso que tinham durante
todo o dia. Gostava de as fazer com eles, sempre abundantes e com boa
qualidade para repor as energias gastas e compensar o organismo do
esforço despendido:
Cerca das 9,30, comíamos sopas de pão centeio que levavam alho,
colorau e azeite rijado. Os homens agrupavam-se cinco ou seis, de
volta de uma caçarola, munidos de uma colher para comer esse repasto
matinal. Gostava muito dessas sopas que a minha mãe só fazia para os
segadores.
Ao meio-dia era o almoço que podiam ser batatas guizadas com carne de
borrego ou carneiro;
Às quatro da tarde era a merenda, que podia constar de toucinho,
queijo, saladas de alface e tomate, e às oito horas, já em casa do
patrão, o jantar que muitas vezes era bacalhau cozido ou guisado
com batatas.
Nesses tempos em que a dureza do trabalho era sentida por quem a
prestava e era bem visível para quem a pagava geralmente todos os
lavradores tratavam os trabalhadores com boas comidas, melhores até,
falo dos lavradores médios, do que aquela que comiam diariamente eles
e as suas famílias, em suas casas.
Todas as refeições acompanhadas de algum vinho pois era consensual,
entre os trabalhadores, que o patrão que dava pouco vinho não
prestava.
Os principais cereais que se semeavam em Brunhoso, que cresciam e
amadureciam ao mesmo tempo, por vezes lado a lado, eram o trigo e o
seu meio irmão o centeio, mais escuro e considerado menos nobre, como
se fosse um bastardo do mesmo pai, mas apesar disso com um porte mais
altivo. Tanto com um como com o outro as nossas mães faziam os grandes
pães cozidos em grandes fornos aquecidos com lenha de giesta e
esteva, que se conservavam quinze dias em óptimas condições, guardados
nas despensas das casas. Lembro-me da minha mãe, afogueada pelo
esforço e pelo calor, depois de ter metido todos esses grandes pães no
forno, os abençoar, fazendo o sinal da cruz, na sua entrada, com a
mesma pá com que os tinha metido. O pão era esse alimento sagrado que
nunca devia ser pousado doutra forma que não fosse aquela em que
assentou quando foi cozido, que quando deixávamos cair um pedaço ao
chão tínhamos que o beijar, que não se devia estragar ou usar em
brincadeiras.
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de março de 2016 >
Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)