segunda-feira, 16 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18850: Notas de leitura (1084): “Máscaras de Marte”, por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2018 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
O Coronel de Cavalaria Paraquedista Nuno Mira Vaz tem já um expressivo número de títulos publicados, nesta obra de ficção, mas com cunho histórico, posiciona três amigos na Guiné, em 1972, mesmo com efabulações, está ali a história do BCP 12, as suas glórias e os seus mortos e feridos.
Um romance de arquitetura sóbria mas que abre mão para se entender a evolução das mentalidades destes oficiais para-quedistas no decurso da guerra. Nem ali falta um grande safado que é o António Rosado, alguém que aspira receber a medalha de Valor Militar, faz todas as manigâncias para lá chegar.

Um abraço do
Mário


Um romance sobre os para-quedistas no declínio do Império (1)

Beja Santos

A diferentes títulos, “Máscaras de Marte”, por Nuno Mira Vaz, Fronteira do Caos Editores, 2018, merece aqui ser saudado como romance de fortes ressonâncias históricas, em Bissalanca, no Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 (BCP 12), se irão encontrar camaradas de armas, alguns andavam no Colégio Militar, todos cursaram na Academia, desde 1961 que a África em fogo é o magneto que os atrai. Quem desencadeia as hostilidades para que a História progrida é Eduardo Azaruja, é recebido pelo Comandante de Batalhão, que o inteira da situação política. Em abril desse ano (1972) membros da Comissão de Descolonização da ONU tinham permanecido nas chamadas regiões libertadas da Guiné-Bissau, fizera-se uma operação para os lados de Guileje, com êxito relativo; reunira-se uma Assembleia Nacional Popular do PAIGC, a Guiné caminhava para a declaração unilateral da independência; Spínola reajustara o mapa da guerra, voltava-se em peso ao Cantanhez. Os paraquedistas andam permanentemente afobados, desta feita até vão abrir quartéis e neles permanecer, como uma tropa macaca.

Aparece um amigo de Eduardo, Francisco Meireles, vêm as recordações do Colégio Militar. Azaruja é apresentado à sua Companhia, reencontra o Sargento-Ajudante Carlos Pardal. E depois chega o Capitão Alexandre Albuquerque, o Alex, o círculo de amigos está quase retomado. A Companhia 122 parte para o Cubisseco, é a estreia operacional de Azaruja, é nos preparativos que ele vai recordando os acontecimentos de abril de 1971, em Angola. Nuno Mira Vaz tem a preocupação de ir situando cada um destes oficiais desde a formação até ao evoluir da guerra, Meireles, por exemplo, viveu a queda do Estado Português na Índia, ficou marcado pelos acontecimentos. Entre os amigos há confidências e queixumes pelos atos operacionais inaceitáveis.

Num jantar, Albuquerque conta aos amigos:

“Cheguei há três dias de Sare Bacar com a Companhia. Estivemos lá mais de um mês. Uma tabanca minúscula, encostada à fronteira do Senegal, uma meia dúzia de quilómetros a Oeste de Pirada. A nossa missão era impedir um ataque, que estaria iminente, do PAIGC. Exatamente contra quê, ou contra quem, nunca nos foi explicado. Também ninguém parecia saber ao certo por que motivo os atacantes iriam cruzar a fronteira justamente naquele local, sabendo, porque não podiam deixar de saber, que nós ali estávamos. Mas o Comando-Chefe estava seguro de que o caminho para o ataque passaria ali nos próximos três ou quatro dias. Com alguma rapidez mas pouco afinco, cavámos umas valas. Passados os primeiros quatro dias sem que algo de anormal ocorresse, apareceu-nos um Tenente-Coronel a informar que o ataque tinha sido adiado, mas desta vez o Comando-Chefe não tinha dúvidas: seria dentro de dois ou três dias. Entre as certezas dele e os desenganos sucessivos fornecidos pela realidade, passou para cima de um mês. Ao fim de uns dias já ninguém aguentava o atum e as sardinhas de conserva. Ali não aconteceu coisíssima nenhuma. Nem ao menos uns tirinhos para justificar as medidas de segurança. Se vos dissessem, na Metrópole, que se podia despachar uma Companhia de paraquedistas para a fronteira com o Senegal e mantê-la lá durante um mês a olhar para as moscas, vocês acreditavam?”

A narrativa vai-se entremeando com os episódios do ingresso destes jovens como paraquedistas, avultam operações, os oficiais assistem à morte dos seus soldados. É nisto que entra em cena a ovelha negra do rebanho, Rosado, Nuno Mira Vaz irá fazer dele o símbolo da abjeção, alguém que aspira, socorrendo-se dos meios mais desprezíveis, em ser condecorado com a medalha de Valor Militar. António Rosado viera de um seminário para a Escola do Exército, tem um belo perfil militar, quase instintivamente os outros oficiais fogem dele.

É nesta atmosfera de vai-e-vem operacional que os paraquedistas vão ser hipotecados na implantação de três destacamentos militares no Cantanhez – em Caboxanque, Cadique e Cafine, seria a reocupação de uma região onde as forças portuguesas não atuavam desde 1969. Rosado entusiasma-se, vai ter clima propício para a sua ambicionada medalha de Valor Militar. Como o romance está dentro de coordenadas históricas, Nuno Mira Vaz descreve a primeira reocupação militar do Cantanhez, em janeiro de 1968, e a decisão de Spínola de ali retirar as tropas a pretexto do reajustamento do dispositivo militar. Efetivamente, a operação Grande Empresa terá um grande investimento dos paraquedistas, várias Companhias de Caçadores desembarcam em Cadique, em Caboxanque e em Cafal, os paraquedistas estão permanentemente operacionais, patrulham, emboscam, assaltam. Rosado elabora um relatório destinado a autovangloriar-se e a pôr o Comandante do Batalhão nos píncaros.

E o autor comenta o que a Grande Empresa está a provocar:

“Por toda a área do Cantanhez, mesmo nos locais mais afastados dos aquartelamentos, as populações regressavam às moranças tradicionais ou apresentavam-se nos aldeamentos construídos pela engenharia militar, a princípio desconfiadas, hesitantes, numa reserva que as impedia de manifestar entusiasmo pelas casas novas, pelos poços de onde brotava água potável ou pelas escolas onde os militares lhes ensinavam os rudimentos do português e da matemática. Aos poucos foram-se abrindo, os militares incentivaram-nas a fazer-se representar por conselheiros eleitos em assembleias onde se discutiam formas de melhorar as condições de vida e, passado algum tempo, tudo o que acontecia nas tabancas tinha o aval dos habitantes, ainda que em registos diferentes, pois com as populações que habitavam em locais afastados das guarnições militares nunca se estabeleceu o mesmo grau de confiança recíproca que a proximidade alimentava. Mas no final de março de 1973, Caboxanque era, depois de Tite e de Pirada, a localidade que, em toda a Guiné, tinha maior afluência de população não residente, para efetuar trocas comerciais ou para consultar o médico-militar”.

A tropa macaca recolhia e reinstalava as populações negras, os paraquedistas patrulhavam o exterior dos quartéis, patrulhava-se igualmente um afluente do Cacine, o PAIGC manifestava-se sobretudo com bombardeamentos espaçados.

Inopinadamente, este quadro da reocupação do Cantanhez vai ser alterado, surgiram os mísseis, vão seguir-se, no romance de Nuno Mira Vaz novas formas do inferno da guerra.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18841: Notas de leitura (1083): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (43) (Mário Beja Santos)/a>

Guiné 61/74 - P18849: Álbum fotográfico de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) - Parte VI: Ponta Consolação, ação psicossocial


Foto nº 41 > Guiné > Região do Cacheu > Bula > Ponta Consolação >  O Carlos Oteda e os seus alunos.


Foto nº 40  > Guiné > Região do Cacheu > Bula > Ponta Consolação >  Escola construída por nós.


Foto nº 36 > Guiné > Região do Cacheu > Bula > Ponta Consolação > O nascimento de Helga (I)


Foto nº 37 > Guiné > Região do Cacheu > Bula > Ponta Consolação > O nascimento de Helga (II)


Foto nº 38 > Guiné > Região do Cacheu > Bula > Ponta Consolação > O nascimento de Helga (III)


Foto nº 39 > Guiné > Região do Cacheu > Bula > Ponta Consolação >  O nascimento de Helga (IV)

Fotos (e legendas): © António Ramalho (2018) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



António Ramalho, ontem e hoje...


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, e novo membro da Tabanca Grande, com o nº 757:

Legendas das fotos de 36 a 41 (de um total de 55):

36. O nascimento da Helga dos Reis  (**)

37. O nascimento da Helga dos Reis

38. O nascimento da Helga dos Reis

39. O nascimento da Helga dos Reis

40. Escola construídas por nós.

41. O Carlos Oteda e os seus alunos.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18788: Álbum fotográfico de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) - Parte V: Ponta Consolação, na margem esquerda do rio de Caleco ou de Bula, afluente do rio Mansoa

(**) Vd. poste de 23 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18667: Álbum fotográfico de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) - Parte I: o parto de Helga Reis, em Ponta Consolação, em 6 de janeiro de 1971

domingo, 15 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)


Citação: (1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC atravessando uma ponte", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43132 (2018-7) [Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral]




Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER,  CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do nosso blogue



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE: UM ITINERÁRIO ATÉ AO HOSPITAL DE ZIGUINCHOR (SENEGAL)



1. Introdução


Há exactamente dois anos, tomei a iniciativa de dar início neste fórum de ex-combatentes à publicação, em fragmentos, de algumas das memórias grafadas no livro escrito pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos», onde o autor dá a conhecer as histórias que lhe foram contadas, em castelhano (espanhol), por quinze médicos cubanos que estiveram na Argélia, na Guiné (Bissau), no Congo Leopoldville (belga), no Congo Brazzaville (francês) e em Angola, apoiando os movimentos de libertação daqueles territórios.

No caso concreto da Guiné foram três os entrevistados, por esta ordem: 

(i) o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado [P16224; P16234; P16285 e P16304];

(ii) o médico de clínica geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado [P16357; P16380; P16396; P16420 e P16441];

(iii) e o médico militar, especialista em cirurgia geral, Virgílio Camacho Duverger [P16592; P16613; P16721 e P17151], 

os quais relatam algumas das suas muitas memórias [experiências], vividas na primeira pessoa, e das motivações que os levaram a optar por um dos lados do combate.

Como antecedente histórico ao acima exposto, recorda-se que os apoios cubanos ao PAIGC tiveram a sua génese no encontro realizado em Conacri, em 12 de Fevereiro de 1965, entre Ernesto "Che" Guevara (1928-1967) e Amílcar Cabral (1924-1973), com o primeiro a comprometer-se a ajudar, na medida das possibilidades, o segundo, na qualidade de líder daquele movimento nacionalista.

Decorridos três meses, a 11 de Maio de 1965, a primeira (grande) ajuda de Cuba chega a Conacri, a bordo do navio Uvero, constituída por cento e trinta e sete caixas de medicamentos, sessenta e seis caixas com armas, munições, minas e uniformes militares, assim como alimentos, cigarros e fósforos.




Mas é em Janeiro de 1966, por causa/efeito da participação de Amílcar Cabral (1924-1973) na I Conferência Tricontinental efectuada em Havana, durante a qual é aprovada a criação da Organização de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), que o Secretário-Geral do PAIGC recebe a notícia de mais apoio (material e técnico) traduzido no envio de viaturas para a deslocação dos guerrilheiros, mecânicos, instrutores militares e médicos, como corolário da reunião tida com o presidente Fidel de Castro (1926-2016).

No âmbito da cooperação técnica na área da «Saúde», o primeiro grupo de nove médicos chega a Conacri no início de Junho de 1966. Passado um mês (Julho) estes são divididos em três equipas, com a seguinte distribuição operacional:

(i) Frente Norte >  Domingo Dias Delgado (cirurgião); Pedro Labarrere (medicina interna) e Teudi Ojeda Suárez (ortopedista);

(ii) Frente Sul >  Rómulo Soler Vaillant (cirurgião); Luís Peraza Cabrera (cirurgião) e Julio Garcia Olivera (Bebo) (cirurgião);

(iii) Boké (Hospital na Guiné-Conacri) >  Raúl Currás Regalado (medicina interna); Jesús Pérez (ortopedista) e Virgílio Camacho Duverger (cirurgião). Ali já se encontrava, há dois meses, o médico panamiano Hugo Spadafora (1940-1985).


2. Testemunhos do médico Domingo Diaz Delgado (1966)

Para enquadramento desta narrativa – a da logística clínica em contexto da guerrilha – recupero alguns testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n.1936), referentes à sua passagem pelas bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Sará, na Frente Norte, itinerários percorridos durante o segundo semestre de 1966.

Conta ele: 

[…] "Luís Cabral levou-me até Ziguinchor. Aí permaneci dois ou três dias, tendo-me encontrado com os chefes militares mais importantes que actuavam no Norte da Guiné, entre eles Osvaldo Vieira (1938-1974) porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera. 

Despediram-se de mim [6 de Julho] e saí com um grupo de combatentes. Era noite quando cruzei a fronteira por essa zona escoltado por uns quantos. A caminhada, feita por um terreno acidentado, para mim foi terrível. Demorei quatro a cinco horas até chegar à primeira base guerrilheira que se chamava Sambuiá. Passei a noite nessa base, já com os pés bastante maltratados. 

Essa caminhada que fiz em quatro ou cinco horas, quando regressei fi-la em cinquenta minutos, porque tinha menos trinta quilos e levava já um ano caminhando naquele terreno.

Passada a noite nesse lugar, de madrugada retomámos a caminhada até à próxima base da guerrilha, penetrando profundamente no território da Guiné (Bissau). 


À volta de quarenta minutos caminhámos com uma vegetação que nos protegia da aviação, mas para alcançar o rio Farim, que teríamos de atravessar para chegar à base de Maqué, faltava ainda percorrer sete quilómetros muito planos, e sem qualquer protecção natural".

Acrescenta: 

(...) "Pouco habituado a estas tarefas, caminhava lentamente face ao estado em que estavam os meus pés e todo o corpo. O meu estado de desespero também começou a dar sinais e que não me deixava ficar tranquilo, e não dava conta que olhavam para o céu, uma vez que naquele lugar os helicópteros armados e os jactos (aviões de guerra), metralhavam e matavam quem fosse detectado. Os guerrilheiros estavam desesperados porque tinham que zelar pela minha segurança, pois era o primeiro médico que ali chegava.

Finalmente chegámos ao rio Farim, onde o abundante caudal tornava difícil a sua travessia nas pequenas canoas que eles fabricavam com troncos de árvores. Atravessámos o rio e chegámos pela noite à base de Maqué, onde levava dois dias a andar e estava bastante mal. 

No trajecto tivemos de beber água em más condições. Ali a água potável era a dos rios, e eles habituaram-se a fazer uns buracos na terra, bem localizados e escondidos para encherem quando chovia. Ao longo do itinerário realizado sabiam onde tinham os buracos para tirar a água com terra e era a que, a partir desse momento, comecei a beber.

Como era o primeiro grupo cubano na Guiné (Bissau), não tínhamos antecedentes. Quando cheguei à base de Maqué já as diarreias começavam a fazer estragos, mas nem por isso deixámos de comer o que encontrávamos pelo caminho. No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará". […]



Base de Sará (1966) – Da esqª/dtª., o instrutor militar tenente Alfonso Pérez Morales (Pina); o ortopedista Tendy Ojeda Suárez; o cirurgião Domingo Diaz Delgado e o médico de clínica-geral Pedro Labarrere. (in. op. cit.).



Continua: 

"A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. 

Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dez'66] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]



Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as bases por onde passou o médico Domingo Diaz Delgado.


3. Testemunhos do médico holandês Roel Coutinho (1973/74)


Para melhor compreensão do descrito pelo médico cubano Domingo Diaz Delgado no ponto anterior, nada melhor do que associar às suas palavras algumas imagens do mesmo contexto, ainda que entre si exista uma diferença temporal superior a sete anos. Esta oportunidade, e coincidência, só foi possível graças ao espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho], também ele cooperante com o PAIGC, particularmente na actividade clínica dos sujeitos dela carenciada: combatentes e população sob o seu controlo.

A sua missão na guerrilha decorreu nos anos de 1973 e 1974, tendo percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, com destaque para Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, agradecemos a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG.



Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974.




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 14 08 > Roel Coutinho in Sara > Guinea-Bissau [o médico Roel Coutinho lendo e ouvindo a rádio portátil em Sará].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > G07 > Ziguinchor, Senegal > Vaccination [o médico Roel Coutinho administrando uma vacina com injector de jacto, visando a imunização (protecção imunológica de uma doença infecciosa) de adultos].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > B23 > Infirmary in Sara > Guinea-Bissau > Heartbeat check-up by doctor Antonio [O médico cubano Dr. António durante uma consulta com auscultação cardíaca].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A19 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [O médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico, acompanhado de dois enfermeiros, um cubano (Gustavo) e um guineense].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F34 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Transporting the wounded from Candjambary to the Senegalese border [Transporte de ferido desde Canjambari até à fronteira do Senegal].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F35 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Carriers of wounded people [Carregadores de feridos].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F36 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Bearers of the wounded on one day walking distance to the Senegalese border [Um dia de caminho até à fronteira do Senegal (de Canjambari)].




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F37 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Armed escort carrying the wounded to the Senegalese border [Transporte de ferido para a fronteira do Senegal com escolta armada].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > C40 > Walk from Candjambary to Sara > Guinea-Bissau > Military escort with rifle during trip [Militar – criança-soldado? – do PAIGC, armado de Kalashnikov (AK-47), durante uma escolta].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > G04 > Ziguinchor, Senegal > Infirmary ambulance [Ambulância da enfermaria (Hospital do PAIGC) de Ziguinchor, (aguardando a chegada de feridos do interior da Guiné?)].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 11 05 > Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiras no hospital do PAIGC, em Ziguinchor, tratando de guerrilheiros feridos].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 11 06 > Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiras no hospital do PAIGC, em Ziguinchor, tratando de guerrilheiros feridos].




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 10 05 > Nurses in Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiros no hospital do PAIGC, em Ziguinchor].



Itinerário da evacuação dos feridos entre Canjambari e Ziguinchor. A verde; marcha a pé até à fronteira com o Senegal. A amarelo; em ambulância até ao hospital do PAIGC de Ziguinchor.



Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

06JUL2018.
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18749: (D)o outro lado do combate (33): As deserções no PAIGC no Sector de Tite ao tempo do BART 2924 (1971-1972) e suas consequências (2) (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18847: Blogues da nossa blogosfera (96): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (15): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


AO FIM DA TARDE

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ

Ainda é dia ao fim da tarde
ainda há uma réstia de sol no horizonte.
Entre o fim do dia e a morte
ainda há uma ponte onde mora o frio
e onde o coração bate
ao som das luminosas águas de um rio.
......

Não te posso responder a quente senão choro…
o que há muito não acontece.
À margem da realidade
na magia de um sonho impossível que esmorece
nada mais consigo do que estender meu braço
e tocar os dedos da tua mão firme.
Mas tudo muda e resplandece
e se acende dentro de mim
no frágil redemoinho das palavras que disseste
e só a alma entende.
A música sorridente do teu rosto
canta bem fundo na alma nua da utopia
que ilumina a ponte da tristeza e da agonia.
Não saias dos meus olhos
e deixa-te estar um pouco mais
sobre esta ponte do fim da tarde em que ainda é dia
e há uma réstia de sol no horizonte
deliciosa mentira de uma primavera tardia
no castelo sideral da fantasia
onde hoje habito entre os teus olhos e o infinito.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18775: Blogues da nossa blogosfera (95): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (14): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18846: Blogpoesia (576): "O que se diz das omoplatas...", "As flores da minha mente" e "Os males da alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


O que se diz das omoplatas...

Se diz que as omoplatas, desencantadas, na criação,
Se agarraram ao corpo como se fossem lapas.
O seu sonho era lhes crescessem asas Queriam voar.
Como não,
Só para reinar,
Decidiram servi-lo para sempre, com o que o que viesse à mão.
Muito versáteis.
Governam o corpo.
Fazem de mastros de caravela ou só de remos, se não houver vento.
Servem de escudo, no caso de ataque.
Desfecham socos, se alguém lhes bate.
Cultivam artes para serem fortes.
Cuidam do aprumo como mais ninguém.
De vaidosas,
Sem elas, não haveria adónis
Nem os bustos seriam aras.
Bailarinas, se dedicam à dança,
Com a esperança forte na sedução.
São dominadoras.
Mantêm as pernas, os seus suportes, mesmo distantes,
ao seu serviço.
Só se sentem em paz quando abraçam...

Mafra, 9 de Julho de 2018
17h42m
Jlmg

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As flores da minha mente

Semeei na minha mente
Um punhadinho de sementes,
Sem saber de que seriam.
Esperei que desabrochassem.
Minha mente ficou um jardim.
Flores de tantas cores.
Das maiores às mais pequenas.
Com elas desenhei canteiros
E teci os meus poemas.
Fiz arranjos tão harmoniosos
Como os andores da procissão.
Tão forte o seu perfume,
Vieram aves e borboletas.
Mais parecia um festival.
Quando caía a hora das trindades,
Ali vinham as andorinhas,
Faziam ninhos no meu sobrado e
O enchiam de chilreios.
Meu jardim ardia em coro
Que se ouvia no mundo inteiro.

Mafra, 11 de Julho de 2018
Jlmg

********************

Os males da alma

Arremesso ao vento os males da minha alma, confiante de que afoguem nas nuvens e se desfaçam na imensidão do nada.
Chovam do céu as bênçãos da trovoada que despedace a secura dos lagos e rios em combustão.
Venham do alto as riquezas desperdiçadas pelos ricos famintos e ociosos.
Se encham de abastança as mesas pobres, apenas pobres por injustiça.
Se convençam os governantes de que o poder que têm nas mãos lhes foi apenas confiado para o bem de todos.
Contentem-se os ávidos de paz e de justiça com as sementes puras da concórdia.
Se estreitem as relações dos povos na base firme do respeito mútuo.

Bar do Castelão em Mafra, 13 de Julho de 2018
8h26m
ouvindo Concerto nº 1 para piano e orquestra de Chopin por Olga Scheps
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18836: Blogpoesia (575): "O Meu Jardim", poema de Fernando Tabanez Ribeiro, ex-2.º Tenente da Reserva Naval

sábado, 14 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18845: Bombolom XXII (Paulo Salgado): O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



T/T Carvalho Araújo a caminho da Guiné. A 26 de abril de 1970, avistámos à rè o  T/T Vera Cruz (a caminho de Angola ou Moçambique, presumivelmente).


Foto (e legenda): © António Tavares (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Paulo Salgado, ex-alf mil op esp. CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72


Bombolom III  (Paulo Salgado) (3) > O desembarque das tropas em Cabo Delgado (1915) e no Pidgiguiti (1970)



O desembarque do navio Zaire [1] decorreu num ambiente de estranha confusão a que os militares não estavam habituados, não obstante alguma desorganização nestas circunstâncias, por falta de meios. Durante a viagem, sede, fome e miséria no bojo do Zaire foram uma constante. Depois, do barco até à praia, os soldados sentiram o miserando esforço dos indígenas para carregar às costas os militares. Sim, às costas.

Tenho tido oportunidade de aprofundar os meus conhecimentos, com várias leituras, sobre a primeira grande guerra em África [2]. Estava-se na primeira vintena de anos do século XX, carregada de episódios políticos, nacionais e internacionais, alguns deles relativos às posições assumidas por ingleses e alemães que, no fundo, pretendiam, juntamente com outras potências (França, Itália, Bélgica…), dominar o continente africano, com prejuízo para Portugal, afastando-o, por vezes com maneiras cordatas, diplomáticas, todavia frequentemente pela coação política. Recorde-se o vexame do Ultimato inglês [3], ainda no século XIX, que pensadores e escritores da época apelidaram de enorme afronta do aliado tradicional (por exemplo, Guerra Junqueiro).

Passo, então, a transcrever os seguintes excertos da obra indicada em rodapé (ver nota 2):

«…quando, já noite cerrada, cheguei ao local que o Quartel-general tinha destinado ao estacionamento do meu batalhão [na zona do Rovuma, perto de Porto Amélia - nota deste escriba], encontrei-me numa pequena clareira, raspada à pressa no seio da floresta, sem ar e sem luz, dando-me a impressão do poço Poe [4] aberto na solidão daquele mato…foi ali o nosso primeiro bivaque [5]

Prossegue um pouco mais adiante a descrição pessoal deste ilustrado combatente à chegada ao Norte de Moçambique, em 1915:

«Parece que o Quartel-general ignorava a viagem que há um longo mês vínhamos fazendo em direcção a estas paragens».

Ao ler este precioso depoimento pessoal, de que transcrevi dois breves excertos, decerto escrito em circunstâncias adversas, não posso deixar de referir a viagem atribulada do Carvalho Araújo, nome do bravo marujo, que transportou para o Teatro de Operações da Guiné, na sua primeira viagem [6] após restauro e adaptação a transporte de tropas.

Após a IAO [7], e cumpridas as férias antes do embarque, ia a malta de barco. Ao longo de sete dias, a “carne para canhão” esteve sujeita às miserandas condições de habitação do navio. Sobretudo os soldados viajavam no bojo do barco, em condições deploráveis, enquanto os graduados tinham algo de mais positivo lá no alto.

Sou muito claro: só a necessidade e a obrigação de orientar as tropas nos faziam descer ao fundo, aos graduados, aos porões, onde se jogava às cartas e se vomitava imenso... Uma miséria no ano de 1970!

Igualmente, chegados a Brá – quem lá passou, sabe como era! – distribuíram-nos tendas esburacadas e colchões meio podres, e atacados pela mosquitada. Depois, já no mato, a sobreposição com os “velhinhos”, uma confusão dos diabos…

Como vedes, camaradas, as situações vividas em guerra na África estavam separadas por cerca de cinquenta anos e não houve grandes melhorias. Diferente e melhor na guerra colonial, pois que estavam garantidos na Guiné e, creio, nos restantes TO, o serviço postal militar (SPM), a distribuição, precária mas existente, de víveres e outros produtos, a electricidade fabricada por geradores, o apoio clínico, o apoio pastoral, o apoio dos “héli-canhões” ou dos “fiats”…

Até à próxima crónica do meu bombolom.

Paulo Salgado – 30.6.2018
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Notas do autor:

[1] Foram vários os navios utilizados no transporte de tropas para o norte de Moçambique e sul de Angola durante as operações havidas na Primeira Grande Guerra, por força do confronto entre Inglaterra e Alemanha, e na qual Portugal participou, dada a velha aliança com os ingleses. De acordo com o Capitão-de-Mar-e-Guerra, José António Rodrigues Pereira (Revista Militar, nºs 2551 e 2552), mencionam-se os seguintes navios envolvidos nesta guerra no norte de Moçambique, 1914-1916: Moçambique, Durhan Castle, Beira, Cazengo, Ambaca…

[2] Por exemplo a leitura do livro Epopeia Maldita – o Drama da Guerra de África, de A. Cértima, publicado em 1924, como já referira na crónica anterior do meu Bombolom.

[3] Como é sabido, o governo inglês exigiu a Portugal, em memorando, no ano de 1890, a retirada das forças portuguesas que, por direito, tinham ocupado o território compreendido entre Angola e Moçambique. O governo português e o rei foram muito atacados pelos republicanos. Entre outros intelectuais, Guerra Junqueiro vituperou a concessão do governo e do rei D. Carlos na sua obra, direi patriótica e panfletária, Finis Patriae, onde escreveu versos de revolta, de que ora se recorda «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente// Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?» É de recordar, no entanto, que as diversas tomadas de posição por republicanos pouco interesse prático revelaram, como defendia Eça de Queirós.

[4] É uma referência do autor do livro citado (ver nota 2) ao conto ‘O Poço e o Pêndulo’, de Edgar Alan Poe, que fala, como sabeis, de um condenado que sente a sensação horrível de estar preso numa masmorra, num espaço claustrofóbico.

[5] Bivaque designa um acampamento rudimentar para passar a noite na natureza, vigiando. Trata-se de uma expressão muito utilizada nas campanhas militares, herdada da palavra francesa bivouac. Bivaque é também a designação de boné, utilizado por militares ou paramilitares.

[6] Este navio fazia a carreira dos Açores, transportando pessoas e gado dos Açores para o Continente; já meio consumido pelo uso e pelo tempo, foi, por necessidade, transformado em navio transportador de militares para a Guiné. Nele seguiu a CCAV 2721, onde este escrevinhador estava incluído, e duas companhias e uma secção de morteiros.

[7] No Arquivo do Centro de Documentação do 25 de Abril – Universidade de Coimbra, há um texto – que eu conheça, pois haverá outros – sobre a mobilização, a IAO – instrução de aperfeiçoamento militar, que, na Guiné passou a fazer-se, creio eu, a partir de 1972, e que refere o que passo a transcrever:

«O militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem. Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam-se de novo em parada no quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho-de-ferro mais próxima».

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de 2018  Guiné 61/74 - P18757: Bombolom III (Paulo Salgado) (2): As guerras - a primeira e a colonial

Guiné 61/74 - P18844: Os nossos seres, saberes e lazeres (276): De Aix-en-Provence até Marselha (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 2 de Maio de 2018:

Queridos amigos,

É com a maior satisfação que partilho convosco algumas imagens de um museu excecional, enquanto arquitetura, enquanto acervo, enquanto organização museográfica e museológica. É claro que há de quê para esta imponência, a Roma das Gálias transformou Arles e o seu porto numa placa giratória entre o Mediterrâneo e a Europa do Norte, a decadência da região acontecerá com as primeiras invasões bárbaras, no século V, quando ruiu o Império Romano do Ocidente. Ficaram estes esplendorosos vestígios de um mundo antigo, genial na arquitetura, no saneamento, no direito, na capacidade de assimilação, na organização militar, e algo mais. Percorre-se Arles e sente-se na perfeição como estes vestígios falam do génio e como se vão articular, em uma singular harmonia, com a arquitetura medieval. É também outra dimensão atrativa inultrapassável que Arles oferece aos viandantes, que saem com o desejo de aqui em breve voltar.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (8)

Beja Santos

O viandante sabia da existência de um edifício moderníssimo destinado a abrigar as coleções excecionais da arte romana em Arles. É este o museu azul situado perto dos vestígios do circo romano, nas margens do Ródano, aqui está a arqueologia de Arles e vizinhanças, é um acervo que vai do Neolítico à Antiguidade tardia. Foi um projeto de Henri Ciriani inaugurado em 1995, é um museu tão excecional que tem três estrelas no Guia Michelin, a partir de 2016.


Já se falou um pouco da história de Arles, da Gália Narbonense, que se estendia desde os Pirenéus até aos Alpes, as principais cidades eram Narbonne e Marselha. A 6.ª legião de César instalou-se aqui, Arles tornou-se imediatamente um importante estaleiro naval, construíram-se fortificações e monumentos públicos, Arles transformou-se num ponto de comutação de vias marítimas e terrestres, este período de relativo esplendor vai sofrer com as invasões dos Ostrogodos, Visigodos, Normandos e Francos, a partir do século V. Começava a decadência de Arles.


O museu contempla áreas distintas: Arles antes da chegada dos Romanos; os Romanos em Arles; um grande porto fluvial-marítimo; as atividades artesanais e agrícolas, a vida quotidiana, os ritos e práticas funerárias do mundo romano e, por fim, Arles e o mundo cristão. Acervo riquíssimo instalado neste edifício triangular de linhas depuradas, facilmente visível a uma boa distância. Acervo de tal maneira rico onde é possível encontrar fragmentos de cerâmica grega, o presumível retrato de César, a estátua colossal de Augusto ou a estátua de Neptuno, ânforas, baixos-relevos, sarcófagos, mosaicos e joias. Sem esquecer esse caso único que é um barco inteiro da Antiguidade, espantosamente intervencionado e conservado.


O busto presumível de Júlio César.



Este museu permite ficar com ideia do que era o polo comercial grego, Arelate, importante até à conquista romana. Arelate era a pequena Roma das Gália. No fim do I século a.C. Augusto deu a Arelate um impulso económico e arquitetónico de grande fôlego. Havia dinheiro, pois aqui convergiam as rotas comerciais do Alto Império, Arles apropriou-se de um património cultural excecional.



A lógica de organização do museu é de que esta casa de cultura é muito mais do que uma coleção de objetos belos, serve para descobrir e compreender o passado: como viviam os Romanos, em que deuses acreditavam, quais as suas atividades económicas, daí circular-se em espaços que possuem essa lógica cronológica e temática, está tudo cuidadosamente pensado para responder a estas diferentes questões, há mesmo maquetes que procuram restituir os monumentos romanos no seu estado original.


Está aqui a mais importante coleção arqueológica antiga da Provença, coleções excecionais que fazem de Arles e este museu uma obrigação para qualquer visitante que queira saber e compreender a vida do Império Romano nas Gálias.



Se a escultura é excecional, este barco é o ex-líbris do Museu Arqueológico de Arles, há ânforas, muita loiça em cerâmica, há metal em lingotes, tudo serve para confirmar a importância e a intensidade do porto de arte para a Europa do Norte e o mundo mediterrânico. O viandante jamais supusera ver com os seus olhos um autêntico barco do mundo antigo, permaneceu séculos dentro de lamas, foi assim que escapou à deterioração total, uma equipa de cientistas transformou-o neste documento histórico inultrapassável.



O viandante está regalado, começou pela cidade romana, esteve no teatro e no anfiteatro, viu sinais espalhados pelas ruas, percorreu os criptopórticos, descansou as pernas e bebeu uma cerveja na Praça do Fórum, aqui perto deste museu andou pelas termas de Constantino, vai partir amanhã para outro destino, faz contas jamais esquecer este museu acolhedor e dinâmico, ainda tem algumas memórias que quer aqui exarar e deixa-as para o apontamento seguinte, é melhor deglutir este banquete do génio romano, não podendo deixar de saudar a esplêndida e arrojada arquitetura que o encerra e que inclui um horto que nos dá a perceção do mundo romano. Arles é para guardar no coração, e para toda a vida.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18818: Os nossos seres, saberes e lazeres (275): De Aix-en-Provence até Marselha (7) (Mário Beja Santos)