segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18919: Notas de leitura (1091): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2018

Queridos amigos,
Muito mais do que uma obra contada com mestria, um registo do horror e da brutalidade feito com contenção e a secura quanto baste, "Nó Cego" veio a alcandorar-se no pódio das obras-primas absolutas graças a um caso raro, talvez mesmo único, em que tudo quanto se passa naquele teatro de guerra ganha legitimidade para qualquer outro teatro, ali estamos todos nós, bramindo e rilhando os dentes, naquele companheirismo que só a guerra tem o condão de acrisolar e de elevar aos píncaros, para todo o sempre.
A mais singela homenagem que se pode fazer à obra maior da literatura da guerra colonial é contá-la assim, sem prejuízo da sua leitura integral, as leituras repetem-se, e o diamante literário faisca sempre de outra maneira.

Um abraço do
Mário


Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (2)

Beja Santos

"Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018, impôs-se ao longo de 35 anos, como leitura obrigatória, é o mais universal dos romances, o mais poderoso, melhor arquitetado e de dimensão clássica. Já se falou da primeira operação da Companhia de Comandos no Planalto dos Macondes, um bom número dos seus figurantes perfilou-se diante do leitor. Estamos agora em M, um verdadeiro entreposto em que os aviões andam num virote, os helicópteros depositam feridos na enfermaria, as colunas partem e chegam.

É-nos apresentado o Tio Abílio, o tenente-coronel comandante do batalhão de caçadores de M, “um homem precocemente envelhecido, magro e pequeno, de barriga dilatada, fardado com uma camisa verde e uns calções compridos a ultrapassarem os joelhos, ostentando na cabeça um boné de pala que lhe dava o ar ridículo de menino velho”. Informa o capitão que o brigadeiro está aborrecido com os resultados da operação, parecia-lhe inexplicável como duas Companhias de tropa especial não tinham conseguido assaltar uma base de guerrilheiros. E começa a reunião, parece uma sessão solene, não faltam mapas da situação, com setas e cruzes, uma ventoinha dá o ruído de fundo, o capitão dos Comandos não se exime a fazer a sua apreciação:
“Mentalizados ou não para morrerem, a verdade é que os homens lutam, morrem, ficam estropiados, isto apesar de lá em baixo, no quartel-general, e em Lisboa os nossos chefes não quererem aceitar que estamos numa guerra a sério e não a realizar operações policiais”.
O brigadeiro dá-lhe réplica:
“Vamos alterar a nossa estratégia. O nosso novo general comandante-chefe e eu próprio acabámos de ocupar os nossos cargos, e contamos com o vosso patriotismo e a vossa coragem para dentro de um ano termos a área limpa”.

Comia o capitão a sopa quando foi confrontado com as mais recentes peripécias do Tino, que lhe apareceu de camisola branca rota e suja, tinha havido zaragata da grossa no bar do batalhão, havia que agir rapidamente:
“Quando passaram à porta de armas distinguiram, mesmo à fraca luz do quartel, vultos correndo a tomarem posições de assalto junto a um dos edifícios. Os seus homens estavam a cercar os soldados do batalhão e imaginava o que lhes iriam fazer. Nada que melhorasse a consideração do novo brigadeiro por eles”.
O capitão lá conseguiu repor a ordem. É chamado ao brigadeiro, este revela-se exasperado, questiona o capitão:
“É chefe de um bando de guerrilha ou oficial do Exército? Esta unidade está em insurreição?” - e manda levantar um auto de corpo de delito por indisciplina, a tensão entre brigadeiro e capitão é latente.

E realiza-se o funeral do Preguiça, houve missa de corpo presente. O capitão visita na sala dos feridos graves o soldado Pedro, que perdera uma perna. “O Pedro já não era como eles, embora fosse para sempre um deles. Pareciam sofrer de um incómodo e indefinível sentimento de culpa por manterem intactos os seus corpos, embora recebiam dos mutilados olhares onde julgaram ver alguma vergonha pela sua nova situação e inveja por já não serem como eles. A expressão dos jovens soldados feridos das enfermarias militares parecia conter uma certa dose de ressentimento. Nunca mais seriam jovens”.

Imagem retirada do blogue Espaço Etéreo, vivências da guerra colonial, com a devida vénia

As tropas saem de Mueda para a Volta ao Mundo, vão atacar a Base Beira da Frelimo, na operação irão comandos e paraquedistas, haverá artilharia. E são emboscados, uma Fox estoira, há mortes. “Os homens moveram-se sem necessitar de ordens. Ligaram os cabos dos guinchos de reboque ao casco e à torre da autometralhadora para libertarem do interior do blindado o corpo meio esmagado do furriel do esquadrão de cavalaria a escorrer sangue e espuma da boca. Desceram-no, desarticulado, da velha lata para os braços do enorme soldado Bento, que pegou nele ao colo como a um menino. Deitou-o docemente à sombra de um arbusto compondo-lhe os membros. A cara de criança em corpo de gigante do soldado dos Comandos enfrentou a do outro, com a face branca da morte, sem acreditar que já não estivesse vivo”. Ao fim da tarde, a coluna chegou ao Sagal, o quartel onde iriam passar a noite antes de se lançarem na Volta ao Mundo. É eloquente a conversa que se vai travar entre o capitão dos Comandos e o comandante da guarnição, o que dizem é a história de uma guerra que parece infindável, aqueles oficiais caminham para o limiar da subsistência, estão a perder horizonte, o capitão dos Comandos não gosta do que está a ouvir:  

“Tinha diante de si um homem mesquinho, preocupado apenas consigo. Chocava-o ver-se confrontado com um militar tão egoísta que nem imitava uma manifestação de solidariedade para com a sua própria tropa que ia sair de madrugada”.
Há aqui um vigoroso registo do furriel Freixo, que vários ocasos irão transmutá-lo em herói. De novo a coluna está em marcha, começa o inferno das minas, há quem já esteja a fazer contas ao prémio de dois contos por levantar cada uma delas sem as rebentar. O capitão é categórico, é tudo para rebentar, o perigo está à vista:  
“A picada passou a confundir-se com uma seara de minas, que apareciam coladas umas às outras. No primeiro quilómetro, contaram 60 e demoraram seis horas a percorrê-lo. Os homens deixaram de sair das viaturas. Em cima delas comiam, de cima delas se aliviavam. Dormiam sentados com os quicos a taparem-lhes as caras das mordidelas dos mosquitos”.
Alguém fica gravemente sinistrado, o tempo vai passando, chega a noite com o silêncio assustador da floresta. Um soldado irá ter um ataque violento, segue-se uma descrição fulgurante:
“Foi de repente que, expelido pelo silêncio de aquário do Planalto dos Macondes, se ouviu um grito. Não um grito de medo ou de dor, mas um grito horrendo que lhes eriçou a pele carregada de eletricidade em picos de lixa. Um grito com vida, nascendo de um uivo de suicida caindo no abismo; mal nascido e logo fugido para o negrume de árvores sombrias a receberem-no quais fantasmas baloiçando braços descarnados de ramos rendilhados em teias negras, a prolongar-se num eco de mil latidos”.
Pergunta-se o que foi, um soldado do pelotão dos “picadores” do Sagal espumava e revirava os olhos, deitando por terra o grupo dos que o agarravam. O soldado epilético lá foi aplacado e depois sossegado.

Com a claridade da manhã, recomeça a marcha: “As minas voltaram a nascer como cogumelos em estrume húmido na picada que mal se distinguia entre a floresta”. De helicóptero, chega o Tio Abílio, à cautela fica debaixo de uma Berliet. Na manhã seguinte chega um helicóptero que leva o tenente-coronel a M, este está muito impressionado com o fino trato do furriel Freixo, a coluna retoma o seu lento curso no Planalto dos Macondes, os “picadores” estão exaustos, os Comandos vão apoiá-los, o comboio de viaturas prossegue a sua marcha, estão próximos da zona de ataque, virá a descobrir-se que os guerrilheiros fizeram fogo e retiraram. O gigante Bento morreu tal como o condutor do rebenta-minas.
A Volta ao Mundo chegou ao fim ao cair da noite.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 6 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18911: Notas de leitura (1090): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18918: O Spínola que eu conheci (33): Três histórias da Spinolândia (António Ramalho, ex-fur mil cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)



Guiné > Região do Cacheu > CCAC 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71) > Destacamento de Pete > 9/11/1970 > Visita do general Spínola no dia seguinte ao ataque ao destacamento. À sua direita, o comandante do BCAV 2862 (Bula, 1969/70), ten cor Carlos José Machado Alves Morgado, o ten cor cav Morgado, nosso conhecido da Op Ostra Amarga (que aparece no fim do filme da ORTF com Spínola e Almeida Bruno; será cmdt da Academia Militar, em 1980/81; é general na reforma). (*)

Foto (e legenda): © Victor Garcia (2009) . Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné)



1. Mensagem de António Ramalhox-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, membro da Tabanca Grande, com o nº 757:


Data: 11 de agosto de 2018 às 18:32

Assunto: Recordar é viver!

Caro Luís boa tarde.

Cada dia que vou ao blogue mais me enriquece e aviva a minha memória, todos os conteúdos são extraordinários!

Excelente périplo pelas ruas de Bissau do camarada Carlos Pinheiro (**), alguns nomes, locais e empresas que nos marcaram, todavia há uma que não foi referida - A.M. Correia de Paiva - nosso cliente, importador de largas toneladas de frangos para as tropas!

Ruas à noite, atapetadas com milhares de cascas d'ostra! No Pelicano tomei a primeira refeição aquando da minha chegada à Guiné.

Na Meta foi interdita a minha entrada por ir fardado, nunca mais lá fui!...

Não fui grande frequentador do QG (Biafra), tinha alojamento (permanente) em Engenharia!

O circuito nocturno geralmente terminava no Chez Toi sem antes passarmos pela Messe de Sargentos da Força Aérea!

Um dado curioso, as girls estavam em comissão como nós, só que eram rendidas com menos espaço e com muito menos gente a despedir-se ou a recebe-las no cais ou no aeroporto, obviamente!...

Relembrei-me de três histórias com o nosso ex-camarada gen António de Spínola, duas deleas presenciei-as, a primeira foi-me contada pela protagonista (***).

Vamos à primeira:

O nosso General teve um pequeno acidente com o seu monóculo, enviou o seu impedido a um oculista da cidade, cuja empregada era familiar do proprietário, natural duma aldeia perto da minha.

Avisado depois de reparado o monóculo,  foi ele mesmo levantá-lo com aquele seu ar austero, de camuflado engomado, sempre simpático para com as populações.

No acto da entrega pergunta-lhe a empregada:
- Senhor Governador, quer que embrulhe ou leva-o no olho?
- Menina, dê cá o monóculo, no olho levam vocês!...

A rapariga desmanchou-se a rir quando nos contou!

Segunda.

Aquando da minha estadia em Capunga, vejo chegar um jipe com o nosso general a bordo, chamei imediatamente o furriel mais velho que estava jogando à bola.

A seguir às formalidades e cumprimentos da praxe, pergunta-lhe o nosso general:
- Você é que é o nosso alferes?
- Não, não sou, meu general, o nosso alferes foi buscar água a Bula.
- Pois olhe, você tem muito mais cara de alferes do que muitos que para aí há!... Transmita-lhe que eu vim cá ver o andamento do reordenamento em Capunga.

Comentários do Alferes à visita inesperada:
- Caraças... Não me avisaram! 

Terceira

Aquando da minha estadia em Bissum, fomos visitados mais uma vez pelo nosso general tendo como companhia um governante brasileiro, na ocasião!

Depois da visita à população também decidiram visitar o aquartelamento. De passagem pela padaria o nosso cabo ofereceu-lhe pão quentinho, acabado de sair do forno.

Depois de o apreciar, manifestou-se encantado pela qualidade:
- Que belo pão, rapaz, parabéns!
- Meu general, se cá voltar amanhã ainda estará melhor!
- Adeus, rapaz, então até amanhã!

Até hoje...

Haverá mais histórias que o tempo nos irá avivar! Aguardo por um almocinho em Algés [, na Tabanca da Linha].

Um forte abraço para ti, extensivo a toda a camaradagem da Spinolandia, Guiné!

António Fernando Rouqueiro Ramalho
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(***) Último poste da série > 11 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15236: O Spínola que eu conheci (32): A primeira vez que comi caviar, foi com ele, em Bambadinca (Jaime Machado); um militar que eu admirava (João Alberto Coelho); em Antotinha, formámos o pelotão e batemos-lhe a pala no campo de futebol, em tronco nu: estávamos a jogar à bola, quando chegou de heli (Carlos Sousa)

domingo, 12 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18917: Blogues da nossa blogosfera (99): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (18): Palavras e poesia

Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


UM DIA ME DAREI CONTA

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Um dia me darei conta do teu corpo infindável
Um dia sorridente me sentirei infinito
nunca esgotado o desejo que nos abraça e nos atormenta
à distância dos sentidos sempre fugazes
sempre perdidos no corpo finito.
Um dia me darei conta
do tempo que não se perde para lá das formas
do tempo em que não murcham
os rebentos cálidos da minha carne
e o sangue não perde o fulgor
das cores abertas ao sol.
Um dia me darei conta
e nesse dia gostaria de partir.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18899: Blogues da nossa blogosfera (98): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (17): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18916: Blogpoesia (579): "Passou para trás...", "Três dias de ausência..." e "Mar de poesia", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Passou para trás...

Passou para trás o dia que, ontem, foi hoje
e não volta a ser.
Passam todos por mim enquanto eu vou.
Depois, serei do passado
como tantos que já não são.
Com outros, sem mim, continuará a passar.
Não sei donde vim e para quê.
Não sei para onde vou.
Só sei que, agora, sou...

Mafra, 5 de Julho de 2018
14h2m
Jlmg

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Três dias de ausência...

Troquei minha ausência de Mafra por três dias de presença a velejar pela minha aldeia.
Profundas vibrações das pisadas que ali deixei iluminaram minha lembrança.
Figuras respeitáveis de gente ida. A que sabia bem o nome que me chamavam.
Vieram à minha saudade.
Com a ternura familiar da vizinhança sã.
Era o tempo da fidalguia pura e da honestidade.
Quando o sol nascente nos espreitava a arder pelas fragas longínquas do Marão.
Sorriam verdes as latadas altas, bordejando os campos e as searas.
E, nos rostos rubros das pessoas, refulgiam os sorrisos da honestidade.
- "O Senhor te abençoe..." - assim me dizia um desconhecido que passava.
Tudo me ressoou fremente, nestes breves dias de passagem...

Mafra, 10 de Agosto de 2018
10h7m
ouvindo Kathia Buniatishvili, tocando Grieg
Jlmg

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Mar da poesia

Banhei meu pensamento no mar da poesia.
Expu-lo ao sol e ao vento para secar.
Depois soprei-o e fiquei a vê-lo adejando versos como aves soltas a brincar no céu.
Como eram belos.
Quem os ditava não era eu.
Pus-me a lê-los.
Grandioso.
Um painel de cores.
Faiscando belo.
Lindas mensagens.
Sereno apelo.
De amor e esperança.
Oxalá o vissem de todo o mundo...

Ouvindo Sheherazade de Rimsky-Korsakov
No Bar "Castelão" em Mafra,
12 de Agosto de 2018
10h10m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18898: Blogpoesia (578): "Sombras...", "Minha sonda..." e "Laçadas falsas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18915: Memória dos lugares (380): O "Chez Toi", a casa de duas moradias, em frente aos serviços metereológicos, e que foi o primeiro cabaré da cidade... E depois da independência, era a chancelaria e a residência do embaixador... de França! (Nelson Herbert, EUA)


Guiné > Bissau > s/d > "Aspecto parcial e Câmara Municipal"... Bilhete postal, nº 133, Edição "Foto Serra" (Colecção Guiné Portuguesa")...

Segundo o nosso amigo guineense, de origem cabo-verdiana, Nelson Herbert,  jornalista que trabalhou na VOA - Voice of America, e vive nos EUA, a casa de duas moradias que se vê à direita, na imagem acima,  foi a antiga "boite" ou "cabaret" "Chez Toi"... Em frente era a "Estação Meterológica de Bissau" (edifício nº 8, assinalado no mapa em baixo)... Antes da independência, esta rua, que era perpendicular à Av da República (que partia da Praça do Império até ao cais do Pidjiguiti) chamava-se rua do engº Sá Carneiro (antigo subsecretário de Estado das Colónias que visitou o território em 1947, sendo governador-geral Sarmento Rodrigues).


Colecção de postais ilustrados: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).


1. Mensagem de ontem, às 16h29, do nosso amigo Nelson Herbert


Ahahahaha, já estive no blog... cujas coordenadas não perdi... e a deliciar-me com as estórias do Chez Toi... num "flashback"!

Ahahaha, as fantasias sexuais nossas... nós, a meninada da rua/bairro... do Cabaret... E sabíamos lá nós o que era um Cabaret? 

Attached uma foto que creio ter sido já postado no blogue em que aparece a casa de duas moradias... do lado oposto do muro dos serviços de meteorologia... onde funcionava a boite/cabaret Chez Toi... e onde,  no pós-independência,  funcionou, pelo menos até 1980, a chancelaria e a residència da embaixada da França em Bissau...  (*)

Mantenhas cordiais, meu velhos amigos... Abraço fraterno

Nelson Herbert




 


Fonte: Milheiro, Ana Vaz, e Dias, Eduardo Costa - A Arquitectura em Bissau e os Gabinetes de Urbanização colonial (1944-1974). usjt - arq urb , nº 2, 2009 (2º semestre), pp.80-114 [ Disponível aqui em pdf ] (**)

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18914: Memória dos lugares (379): No restaurante e cervejaria Pelicano, à noite, acabado de desembarcar em Bissau, em 9 de novembro de 1970, ouvindo "embrulhar" lá longe, talvez Tite, talvez Fulacunda...(Hélder Sousa)


(**) Vd. postes sobre a arquitetura e o urbanismo de Bissau, antes da independência:


14 de abril de 2014

25 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13042: Manuscrito(s) (Luís Graça (26): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte III): Sarmento Rodrigues, o seu palácio e a sua praça do império (fotos de Benjamim Durães, julho de 1971)

19 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13164: Manuscrito(s) (Luís Graça (28): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte IV): Na antiga avenida da República (, hoje Amílcar Cabral), os edifícios da Sé Catedral (João Simões, 1945) e dos Correios (Lucínio Cruz, 1950/55)


20 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13312: Manuscritos(s) (Luís Graça) (33): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte VI): O novo bairro da Ajuda (1965/68), um "reordenamento" na estrada para o aeroporto...

12 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13392: Manuscritos(s) (Luís Graça) (36): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte VII): O melhor edifício da cidade, a Associação Comercial, hoje sede do PAIGC, projeto do arquiteto Jorge Chaves, de 1949-1952

sábado, 11 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18914: Memória dos lugares (379): No restaurante e cervejaria Pelicano, à noite, acabado de desembarcar em Bissau, em 9 de novembro de 1970, ouvindo "embrulhar" lá longe, talvez Tite, talvez Fulacunda...(Hélder Sousa)



Guiné-Bissau > Bissau > 1996 > Rua onde ficava a célebre cervejaria Solmar, aqui evocada pelo Hélder Sousa, acabado de chegar a Bissau, em 9 de novembro de 1970: "Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse, a Solmar, o Solar do 10, a Ronda, o inevitável Café do Bento (5ª Rep.), a casa das ostras na rua paralela à marginal, o Pelicano"...

Foto: © Humberto Reis (2005). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné-Bissau >  Região de Bafatá > Saltinho > Abril de 2006 > Um olhar de esperança no futuro ?... É, pelo menos, o que gostaríamos de adivinhar neste olhar inocente de uma criança às costas de sua mãe... O que mudou na Guiné-Bissau, desde que o Hélder Sousa desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de Novembro de 1970 ?...

Foto: © Hugo Costa (2006). Todos os sireitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada, amigo e grã-tabanqueiro  Hélder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72), desembarcou, em Bissau, do T/T Ambrizete, em rendição individual, em 9 de novembro de 1970 (, tendo partido de Lisboa ao findar dia 3). 

Apresentou-se no STM (Serviço de Transmissões Militares), em Santa Luzia, e depois foi dar uma volta para conhecer Bissau "by night"... São as primeiras impressões da cidade que ele relata aqui, telegraficamente (*).  É mais um contributo para a nossa "memória dos lugares" (**)... Curiosamente, do seu roteiro inicial de Bissau, "by night", não constava o Chez Toi..."Boite", "cabaret", "night club"...era a coqueluche de Bissau "by night", no início da década de 1970...Não havia cão nem gato que não conhecesse ou quisesse conhecer o "Chez Toi" onde "gajas brancas",,,


(...) O camarada que fui substituir deixou-me depois aos cuidados dos meus conterrâneos vilafranquenses, furriéis milicianos José Augusto Gonçalves e Vitor Ferreira, o primeiro deles meu colega da Escola Industrial e o outro das tertúlias do Café A Brasileira, mais parceiro que adversário das partidas de bilhar, os quais estavam integrados nas Transmissões (nessa ocasião ainda estava em criação o futuro Agrupamento de Transmissões) os quais arranjaram um espaço para me acomodar no quarto que compartilhavam nas instalações para sargentos em Santa Luzia, juntamente com outro Furriel, de apelido Pechincha, que tinha estado numa Companhia de Caçadores Nativos [, CART 11,] e que estava agora destacado numa repartição qualquer do QG.

Levaram-me a jantar à Meta (já li algumas referências no Blogue mas não me parece que lhe tenham dado o relevo que de facto tinha naqueles finais de 1970), lugar muito frequentado, com uma zona de Bar, zona de restauração e uma enorme pista de minicarros, muito maior que as que conhecia cá na Metrópole e que era palco de acesas e renhidas disputas de competição dos vários miniaceleras que por lá iam gastando o seu tempo e dinheiro.

Após o jantar, uma voltinha para desmoer e reconhecer os vários locais de interesse:


  • a Solmar;
  • o Solar do 10;
  • a Ronda;
  • o inevitável Café do Bento (5ª Rep.);
  • a casa das ostras na rua paralela à marginal;
  • o Pelicano.
Aqui no Pelicano, quando para me integrar saboreava a minha coca-cola com uísque (era um privilegiado, já tinha tido a oportunidade de beber aquela coisa quando em 1968 estivera em França, Bélgica e Inglaterra), tive contacto directo com mais algumas das realidades do mundo onde estava a entrar...

O primeiro foi a sensação estranha de estar ali na esplanada a ouvir embrulhar lá longe, do outro lado do grande e largo Geba, diziam que era em Tite, ou Fulacunda ou qualquer outro nome que para mim naquela ocasião não assumia personalidade, coisa que mais tarde já não era assim, os nomes tinham depois uma identidade própria, acho mesmo que havia até uma como que espécie de hierarquia, no que respeita à forma como eram identificados pelas dificuladdes de vida que lhes eram inerentes.

Estar ali a ouvir os rebentamentos abafados pela distância e a ver alguns clarões deu logo um arrepiozinho na espinha, com aquele misto de temor e de ansiedade que nessas ocasiões nos assaltam, mas também com um pensamento de solidaridade e angústia pela impotência de quem só pode assistir e não intervir.

O segundo contacto foi mais do género de constactar a degradação moral que a permanência em situações daquelas podia produzir em espíritos mais fracos. Já se falava do que acontecia no Vietname com os soldados americanos consumindo droga para resolver os seus problemas mas ali no Pelicano não foi esse o caso.

Tratou-se apenas do facto de que em determinado momento um desgraçado qualquer acercou-se da mesa onde estávamos e procurou vender uma fotos "de gaijas nuas". É claro que recusámos mas fui depois esclarecido de que não se tratavam de "gaijas" mas sim de "uma gaija", a própria mulher dele, a quem ele (diziam que era um fulano já bastante apanhado do clima) enviava fotos que tirava a si mesmo sem roupa e pedindo que ela lhe enviasse fotos do mesmo jeito, que ele depois reproduzia e tentava vender.

Fiquei bastante impressionado com aquela demonstração prática da alienação a que o clima de guerra e o consequente improviso da vivência podiam produzir em seres humanos e jurei a mim mesmo que haveria de sair da Guiné são de cabeça e mais determinado em contribuir para as mudanças inevitáveis que haveriam de ocorrer na nossa sociedade. (...)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2008 >  Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

(**) 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.

Guiné 61/74 - P18913: Os nossos seres, saberes e lazeres (279): De Aix-en-Provence até Marselha (11) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
À despedida de Nîmes, era inevitável contemplar esse fenómeno único que é Pont du Gard, um dos exemplos magnificentes do que foi o génio arquitetónico romano.
E partiu-se para a última etapa da viagem, Marselha, a cidade multicultural da França debruçada sobre o Mediterrâneo, cercada de parques naturais, presenteada por um dos portos históricos, aqui se cruzaram variadas civilizações, recordo que os sírio-libaneses que arribaram na Guiné, todos eles por aqui passaram antes rumar para África.
Chega-se à estação ferroviária e a arquitetura é também de estadão, sinais de riqueza aqui não faltam, mas aquele primeiro dia era mesmo para calcorrear o impressionante Porto Velho.
Foi muito compensador conhecer Marselha, final mais feliz para esta viagem à Provença dificilmente se podia arranjar.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (11)

Beja Santos

Ir a Pont du Gard estando em Nîmes é como passar por Roma e procurar ver o Papa. Apanha-se um autocarro de carreira, dá para apreciar as belezas da região de Uzès, vemos no percurso aldeias carregadas de caráter, à distância, nas colinas escarpadas, avistam-se igrejas e muralhas, houvesse tempo e percorria-se estes lugares patrimoniais com outros olhos, mas, tristemente, é visita de médico. Pont du Gard, Património da Humanidade, é mais um exemplo eloquente do génio da arquitetura romana, o que se está a ver é um aqueduto construído em 20 a.C. sob a égide de Agripino, genro de Augusto. Leia-se o que vem na brochura, quanto às suas impressionantes dimensões: atravessa o rio Gard com quase 49 metros de altura e 275 metros de comprimento, e temos a magnificência de três séries de arcos sobrepostos. Nenhuma abóbada da Idade Média apresenta um vão desta envergadura. Os arcos inferiores são compostos por blocos gigantescos, seguem-se blocos de pedra mais pequenos estabilizados por pedras de cantaria gigantescas, por aqui se passeia e desfruta uma panorâmica de estalo. Ponto final, regresso a Nîmes, nova viagem de comboio para a etapa final, Marselha.


Quando se fala em Marselha, ocorre imediatamente à mente o Porto Velho, buliçoso e portador de uma história de vários cruzamentos de civilização, tem o Norte de África ali ao pé, continua a atrair gente das antigas colónias. O currículo da cidade é enorme, está marcada pela Antiguidade Clássica, tem vestígios da cidade romana, as muralhas à volta do Porto Velho impressionam pela sua majestade, e quando se sai da estação ferroviária depara-se com esta escadaria a que não falta magnificência, dá passagem à famosa Canebière que liga ao Porto Velho. Por aqui vai o viandante mirando a arquitetura que assinala a prosperidade dos séculos XIX e XX, desce-se esta grandiosa avenida e vamos encontrando arquitetura sumptuosa, há sinais de riqueza contida, caso da Ópera, que data de 1924, em estilo Arte Déco. É inevitável, arruma-se a tralha onde se vai estadear por dois dias, corre-se apressadamente para o Porto Velho, enquanto há luz, dura e faz figura.






Uma inscrição em belo lampião atrai imediatamente a atenção. Neste preciso lugar foi assassinado o rei Alexandre I da Jugoslávia, em 9 de outubro de 1934, há filme e muitas imagens do que aqui se passou, o rei vinha em visita de Estado, tinha à espera um revolucionário búlgaro.


Chegou-se a Marselha com o céu um tanto enegrecido, desanuviou, o viandante anda agora prazenteiro no Velho Porto, aqui chegaram os gregos em 600 a.C. e durante toda a Antiguidade e Idade Média, Marselha desenvolveu-se na margem esquerda do Porto. Será preciso esperar por 1666 para que a cidade vá crescer no lado Sul. É um panorama ímpar com esta multidão de barcos, passeia-se calmamente a ver entradas e saídas de embarcações, segue-se atraído pelos fortes que fazem guarda ao Porto e que datam do século XVII.



Os fortes de S. Nicolau e S. João possuem esta grande dimensão e o de S. João é hoje uma casa de cultura, tem permanentemente exposições, é aqui que está implantado o Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, o Muceum. E assim finda uma tarde contemplativa, toca de rumar para o Porto Velho, há que desencantar uma caldeirada reconfortante, Marselha é terra da bouillabaisse, um bom tónico para o programa de amanhã, pela velha Marselha e subindo ao seu ponto mais alto, de onde se avistam cordilheiras de Alpes que avançam para o Mediterrâneo, que grande beleza panorâmica!



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18896: Os nossos seres, saberes e lazeres (278): De Aix-en-Provence até Marselha (10) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18912: Estórias do Juvenal Amado (61): Um pouco de todos nós - "Difícil foi libertar-me do abraço", por Carlos Paz

CICA 4 - 8.º Pelotão - Com o Aspirante Pimenta e o Cabo Miliciano Picado


1. Em mensagem de 3 de Agosto de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta sob o pseudónimo de Carlos Paz.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO

61 - UM POUCO DE TODOS NÓS

"DÍFICIL FOI LIBERTAR-ME DO ABRAÇO"

Um Conto por
Carlos Paz[1]

Movimentos ritmados, cadência entre a passada e a vara, picamos o chão à frente dos pés. O ar está seco, as botas levantam pequenas nuvens de pó, as gargantas suplicam por água, os sentidos ficam cada vez mais absortos, à medida que o cansaço provoca um tropel na marcha e a respiração cada vez mais audível. Ninguém fala, a mata cala-se à nossa passagem, só sinto um zumbido e o roçar da arma a tiracolo na anca, o calor faz-nos desfazer em suor que encharca o pescoço e a farda.
Quantos passos quantos compassos por hora, quantas gotas de suor se limpam com as costas da mão?
Só penso na hora do regresso, só quero descansar. Viro-me para trás, a fila alonga-se, os rostos ainda com barba mal semeada mas mesmo assim por barbear na sua quase maioria, estão deformados pelo esforço.
Quem nos reconheceria agora?
Quando pisámos o cais éramos praticamente crianças a boiar nos camuflados novos, agora passados nove meses, a cara tisnada, tensa e crespa, corpo dorido, olhos duros não parecemos os mesmos. O nosso aspecto acompanhou a degradação do camuflado, que está roto e com as cores desmaiadas.

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Quanto tempo passou na verdade? Aqueles momentos parecem tão longe.
Em pouco tempo percorremos o espaço entre os bailaricos, das festas, dos namoricos e a idade adulta. Uma cavalgada desenfreada em que galgámos os dias e as noites num salto no tempo. Aceitámos sem revolta ir combater numa terra estranha e que da qual, só conhecíamos o que aprendemos na escola e pouco ou nada nos lembrávamos.
Tudo se passou rapidamente no implacável contar das horas, dias e meses. Quase sem darmos por isso, passámos da vida despreocupada, do convívio com familiares e amigos, para um mundo diferente no clima, nos costumes e cheio de armadilhas, umas imaginárias e outras, bem reais como rapidamente constatamos.
Por vezes tanto se dá correr como saltar porque as curvas, as escorregadelas e as pedras do caminho, estão lá à nossa espera. Depois de escorregarmos pareceu-nos tão simples, ficamos a pensar como não antevimos o obstáculo, como não nos desviamos a tempo, porque aceitámos inexoravelmente que não havia outro caminho, não questionámos quem nos mandou naquela direcção. Costuma-se dizer que não vale a pena chorar sobre leite derramado e é uma grande verdade.
Difícil foi libertarmo-nos do abraço, do inevitável, enquanto num fio de voz murmurava baixinho: “Isabel não me esqueças mas ajuda-me a libertar-me deste abraço e ajuda-me despedir-me de ti”.


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Estações cheias, comboios apinhados de mancebos, fardas verdes, boinas castanhas, na sua esmagadora maioria destinos incertos, despejados em Sta. Apolónia, cais dos nossos medos. Com graçolas e risadas engana-se o aperto no peito e a ansiedade pelo passo seguinte.
No rio ali perto baloiçam navios e um deles abre os porões para nos engolir. Aperta-se a tenaz à nossa volta e para muitos a viagem vai ser uma descida aos infernos.
Só virão para cima às costas dos camaradas, tão doentes do enjoo, que facilmente se deixariam definhar e morrer naquele porão nauseabundo e fétido. Tudo ficou enevoado e esquecido, perante os dolosos incontroláveis arranques que vêm do fundo das suas entranhas e que lhes levam as últimas forças. Naquela atmosfera de humidade extrema e pegajosa, vomitam e urinam-se, sem forças para subir ao tombadilho onde instalaram as latrinas. Ninguém gosta de lembrar esses momentos em que o homem perde a dignidade e se dá ao abandono físico e anímico. Deixa-se de lutar, pois a cabeça não raciocina e o corpo deixa de ter vontade. A nossa juventude não merecia tal tratamento, tal falta de respeito, tanto desprezo.
Não enjoei mas estou com a cabeça levemente zonza pelo contínuo balançar do barco e o barulho em surdina dos motores, que se espalha pelo o porão abaixo do nível da água. Recordam-se os sorrisos e a trocas de olhares, as promessas mudas, o leve roçar dos corpos ao som da música, a respiração junto ao rosto que, tantas promessas encerram.

Ao largo da Madeira

A bordo do Angra do Heroísmo

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Hoje ansiamos pelo dia do correio, onde esperamos reviver os dias brilhantes de romance contido, dos beijos mais ao menos tímidos, por isso mais saborosos na maravilhosa descoberta um do outro.
Naquele dia encontrámo-nos. Um e outro tinham a certeza nos olhos daquele amor reprimido. Não é sexo mas entrega, é paixão incontrolável num acto tantas vezes desejado, mas mesmo assim assumido com atracção irreprimível de promessa e dos segredos por desvendar.
O desejo explode com as caricias e beijos, os seios crescem para serem afagados, as bocas entreabrem-se, línguas tocam-se as mãos percorrem cada centímetro dos corpos frementes. Nada é calculado nada é previamente estudado. A natureza, o desejo vibra não há reserva, há necessidade de consumar de ir na corrente que nos leva para um doce abismo. Um soluço agudo a dor que desaparece como a dúvida, já nada nos faz parar é o assomo que nos transcende, que nos transforma num só.
É a beleza do momento consumado, universo alinhado, é a natureza que comanda que dita as leis, as dos homens e de Deus, ficaram esquecidas, pois só há lugar para nós dois, que ficaremos ligados para sempre a este momento mágico.
Por fim descansamos abraçados com a respiração ofegante, a realidade e os sons voltam pouco e pouco. Há uma felicidade pela descoberta, há algum receio pela consequência, mas nada nos pode tirar o que acabamos de sentir e viver. Está tudo mais belo mais humano mais florido o nosso segredo é um elixir para os sentidos.
O lugar vai ser repositório dos nossos encontros, catedral dos nossos arrebatamentos e fortaleza do nosso amor. Não deixa de haver algo trágico e belo nos encontros e nas despedidas.
Depois acorda-se e é preciso encarar a vida, a dor e a separação que nos espera, como que à esquina, sem apelo sem queixume e sem justificação.
Era o dever, disseram.
O carteiro vai saber o nome do remetente de cor e salteado, tantas vezes escrito e lido. Vai fazer de arauto a cada nova carta e também vai reparar, no dia que não houver nenhuma.
O correio só sai duas vezes por semana e só nessa altura recebemos também as cartas dos nossos. Há um desfasamento de datas entre o seu recebimento e a resposta, o que por vezes confunde.
No meio da parada, sob Sol escaldante gritaram o meu nome e apressei-me a receber aquele envelope tão simples, mas que tem o teu cheiro, que foi tocado por ti e ao tocares-lhe, o transformaste num bem mais preciso que o ouro, mais resistente que os diamantes, água que transborda límpida e fresca, que sinto correr pelos meus sentidos, que me dá vida e transporta para fora dali onde o Mundo é porventura perfeito.

“10 de Outubro 1972
Jorge meu amor
Espero que estejas bem de saúde, que eu cá vou andando com muitas saudades e à espera do passar dos dias em que te voltarei a abraçar, a beijar e tornarmo-nos um só novamente repetidamente. Até durmo com a tua fotografia a que dou mil beijos logo de manhã. Bem sei que é preciso ter paciência mas o desejo de te ter, faz os dias dolorosos que não vejo o fim deste castigo.
Meu querido são tantas saudades tuas que até doem. Ontem recebi várias cartas tuas pois o correio anda com atrasos.
Entre a fábrica e os afazeres em casa, só fica para mim o tempo em que leio e releio as tuas cartas. A tua recordação mantém-me os dias. Gostei de saber que não vais mais para o mato e que ficas impedido no quartel, só não percebi bem porquê e a fazer o que vais fazer.
Os teus colegas perguntam-me por ti sempre.
Ouvi dizer que que José António também vai para aí. Se for verdade vou-lhe pedir que te leve alguma coisa de que precises".


A caixa vai enchendo com as cartas, aerogramas e fotos. Todos guardam ciosamente o seu correio e é doloso quando a má sorte bate à porta de algum camarada. Ao juntarmos os seus pertences, a sua correspondência recebida em que as ultimas cartas já não terão resposta. “Meu querido
Nas últimas fotos que enviaste, vi que deixaste crescer o bigode e gosto de te ver com ele, mas não gostei de ter ver agarrado à rapariga negra. Vê lá como te comportas e não mandes mais fotos dessas. As minhas colegas gozam comigo e dizem que tu andas para aí só metido com essas mulheres”
.
Como viveremos depois de passar pelo que vimos e as provas a que fomos submetidos? A mentira de que está tudo bem, que não vamos mais para o mato, é recorrente para sossegar os nossos entes queridos.
Não há impedimentos para tantos, assim, só nos livramos das colunas e patrulhas quando estamos doentes.
Alguma coisa secou em nós só se mantém viva a esperança do regresso, mas como ainda falta tanto não se pensa muito nisso. Dizem, que o verdadeiro medo começa quando se acredita que estamos prestes a deixar para trás aqueles caminhos. Aí pensamos duas vezes no que vamos fazer e onde nos vamos meter.
Isabel meu amor, o que eu não daria para estar contigo, abraçar-te, sentir as tuas mãos, cheirar o teu cabelo, fazermos amor e esquecer tudo ao nosso redor. Por vezes julgo ouvir-te, sinto a tua cara molhada contra a minha na hora da despedida, a tua recordação é como um bálsamo que me acompanha a todas as horas, quando estou acordado penso em ti e quando durmo só quero sonhar contigo.
“- Jorge meu amor aqui as notícias não são boas sobre o que se passa aí, mas tu dizes que está tudo bem e não sei em que acreditar. Se correres perigo diz-me por favor.”
A caminhada parece não ter fim, o calor cada vez aperta mais. Por fim há ordem de parar e descansar, mas não abandonamos a picada uma vez que é perigoso sairmos dela. As armadilhas são um tormento.
Troco um lata de corned beeff por uma de cavala em óleo com o Lopes. A carne em pasta enlatada dá-me vómitos. O Sol a pique, por isso só existe sombra fora do caminho debaixo de umas árvores, mas quem é que se arrisca a ir para lá?

"- Jorge ontem estive com a tua mãe, que se queixou de não escreveres. Quase tive acanhamento de lhe dizer que recebo carta tua, uma por cada dia. Por um lado esconder-lhe isso, seria preocupá-la mais, assim sabe por mim que tu estás bem.”

Falámos pouco pois mantivemos as distâncias da marcha.
- O que ia agora era uma cervejinha fresca - murmura alguém que no fundo diz o que todos pensamos.
Foi breve o descanso, há que retomar a marcha, cada vez mais perigosa pois há muito deixámos zona mais ao menos segura e encontrar alguém será com certeza hostil. Volto a pensar na casa, lembro os sítios e as pessoas, as mesas de refeições onde estão os meus pais e irmãos, a Isabel a sair da fábrica com o seu passo rápido, jovem e sensual e eu que tudo fazia para me encontrar com ela. Parecia impossível que ela para mim olhasse, que finalmente correspondesse aos meus sentimentos.

- “Tenho tantas saudades que até doem, sonho com os teus beijos e quando estamos juntos. Acordo de noite com pesadelos em que não voltas para mim, por favor diz-me que me amas e que nunca me deixarás”

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É de esperar sempre o pior, mas quando acontece é um choque, a dúvida e terror instala-se, o bafo da explosão chega até mim. Mergulhamos em busca de protecção com terra a cair por cima de nós, alucinados de arma pronta. O coração bate desordenadamente ameaça sair-me pela boca. Ouvem-se gritos que abafam o estrondo da explosão, rasgam o silêncio em que o eco se vai desvanecendo. Momento mil vezes temido acontece sempre quando nunca se espera e nunca se está preparado para isso. Nada será igual daí em diante. Este momento lembra-nos que podia ser qualquer um de nós. Gritos e mais gritos misturam-se com o medo o calor e suor. Cheira a pólvora e sangue.
Pisou uma mina. Está sem pernas. Já deixou de gritar e nada podemos fazer por ele a não ser lembrá-lo, até que o tempo esmoreça o seu rosto quase irreconhecível, a sua farda em farrapos, a sua cama vazia, a última cerveja bebida o cigarro que ardeu até queimar os dedos. Quantos mais terão de morrer?
O Santos morreu, mas ninguém morre de imediato para toda a gente ao mesmo tempo. Neste momento só morreu para nós, daqui a umas horas, a notícia da sua morte atravessará o oceano, atingirá a sua aldeia os seus pais, mulher, amigos e conhecidos. Até lá o Santos estará vivo. Está em contagem decrescente até que o eco da sua morte se junte com a notícia do facto consumado.
A mulher, talvez ainda esteja a escrever a derradeira carta que porá na caixa do correio. Esta viajará milhares de quilómetros sem encontrar destinatário, voltará pois às mãos dela que a receberá de volta mais dia, menos dia, pois o tempo deixou de ser importante. Olhará para ela e a dor atingirá mais um degrau e a certeza cavará um buraco no seu peito, a lágrimas rolarão como ácido a queimar as faces, o grito de animal ferido partirá para o vazio que sente. Depois, abraçará o filho de ambos e deixará que o seu calor e a doce respiração faça amainar a sua dor.
Suamos em bica, as moscas e mosquitos fazem nuvem sobre nós, despejo um pouco de água sobre a cabeça com o cantil. Está quente mas mesmo assim tenho que a poupar, pois só teremos água quando regressarmos. A mata agiganta-se ameaçadora, parece que nos vai engolir a qualquer momento sem que possamos fazer algo para o impedir.
A mala com os pertences dele será enviada à família.
O corpié, o serviço de chá e o robe chinês, comprado no “Libanês”, para os dias felizes, serão os bens materiais a que se juntarão as cartas da mulher as fotos dela e do filho que ele só conhecia por elas, que cuidadosamente exibia em cima do armário improvisado ao lado da espingarda, cartucheiras e granadas de mão.
Estava tudo igual como estava ontem e anteontem em perfeito estado, ele é que já não serve, como escreve o poeta[2]. Fazia parte do plano dele para o seu futuro agora perdido irremediavelmente.

[2] - Fernando Pessoa no poema “O Menino de Sua Mãe”

Dirão as velhas da aldeia na sua simplicidade que não tem remédio, remediado está, que foi o destino, ou a vontade de Deus, que no fundo acaba por ter as costas largas para servir de ónus para todas as culpas, que resultam da estupidez humana.
O cemitério será local de visita semanal. Ele na sua inocência brincará à volta das campas, quando a mãe ali for depositar flores e cuidar da última morada do marido. Dir-lhe-ão que o pai foi para o céu e seus olhitos responderão com a incompreensão da inocência.

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É o quinto morto. Vêm-me à lembrança os outros quatro. O primeiro de acidente, os outros três ceifados num ataque com morteiros ao destacamento.
Também eles tinham muitas cartas começadas por meu amor.
A galeria de rostos cresce, morre-se naqueles sítios perdidos quase sem nome, o local só perdurará na nossa memória e a certeza de que nada ali vale um pingo das nossas lágrimas, nem do nosso sangue.
Cresce com a dor e esgotamento físico.
Tento dormir, a mata tem barulhos próprios que parecem passos, perigos iminentes, rastejantes e sombras que estão à espreita. Estou alagado em suor, mas sei que vou ter frio sobre a madrugada, ponho o pano de tenda e o mosquiteiro por cima da cabeça e das costas para ficar mais confortável e em vão tento dormir. O amanhecer traz a luz que afasta as sombras fantasmagóricas, que parecem espiarem-nos durante toda a noite mal dormida e a certeza de outro dia a caminhar sob Sol escaldante.
Vamos regressar ao destacamento pois já ali não estamos a fazer nada. O rebentamento da mina denunciou-nos e perdeu-se o efeito surpreso da operação. O que estamos aqui a fazer tão longe de casa?
Faltam 16 meses, bebo água que refrescou durante a noite e como a ração de combate sem prazer. É hora de voltar a caminhar, não interessa para onde. É penoso voltar a caminhar sem saber bem onde pôr os pés. Se caminhasse para regressar aos teus braços até voaria.
As viaturas com escolta vêm ao nosso encontro, e é com algum regozijo que nos afastamos dali. A natureza cumprirá o seu designo de apagar rapidamente os vestígios que a tragédia deixou no local. Se alguma coisa fizesse sentido, ali e em muitos lugares da Guiné, nasceriam flores ou ervas cor de sangue.
Lá na terra, a família e amigos podiam pôr flores ou ergueriam mesmo pequeno monumento, onde se podia pôr uma vela a arder, mas aqui, o momento ficará para sempre na memória de quem o viveu.
Finalmente acendo um Português Suave, aspiro fundo o fumo e o cheiro a gasolina do isqueiro, e solto grossa coluna de fumo. Sinto uma leve tontura e, ao dar-me tosse, lembro-me das ordens do médico para deixar os cigarros, pois tenho os brônquios em mau estado, mas quem se preocupa com o perigo do tabaco, quando corre tantos perigos todos os dias?

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No destacamento as conversas são parcas. A morte do camarada pesa no pensamento de todos. Bebe-se o que há, é preciso ficar dormente e assim conseguir dormir, esquecer, distanciarmo-nos do doloroso momento, do cheiro do estrondo e do medo. O tempo dele a sua recordação, pouco a pouco, dará lugar ao nosso tempo e esse, trará uma forma de esquecimento ainda parcial, ainda assim latente.
O último aerograma que a Isabel me mandou está ali aberto, está inalterável, nada mudou no que lá está escrito e nada mudaria, se o morto fosse eu.
Deito olhar às linhas escritas, não me confortam como seria natural. Há demasiado horror nas pernas decepadas, no rosto há tantas interrogações, há tanta dor e ansiedade, sentimo-nos impotentes para mudar o que se quer que seja. Tento dormir mas vai ser sempre em sobressalto. Os tiros que as sentinelas dão, quando vêm alguma coisa a mexer na escuridão da orla da mata, ou simplesmente para espantar o sono, fazem-me sentir menos só naquele momento.
O que é feito da aventura, da vontade de conhecer outras paragens? Não sabíamos que o preço seria tão alto, que demoraria o resto da vida a pagar.

Dulombi - Monumento de homenagem aos Mortos

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Meu amor, quando regressar caminharemos na areia molhada, sentar-nos-emos a ver o mar, sentiremos o nevoeiro a envolver-nos e propagar o ruído dos comboios a quilómetros de distância, o cheiro das ervas molhadas, ouviremos de madrugada os homens que partem para azáfama dos campos, os cães a responderem uns aos outros, as sirenes das fábricas, todos estes ruídos insignificantes do dia-a-dia, são o ruído que a paz tem e serão música para os nossos ouvidos. Este pensamento aviva-me as saudades, pudesse eu deitar-me nos teus braços e chorar os dias e as noites longe de ti, talvez esta dor desaparecesse e eu fosse finalmente salvo.

-“Meu querido. 
Por hoje é tudo. 
Recebe mil beijos com muita saudade desta que te ama mais que tudo, e conta os dias e horas para ter novamente junto de mim. 
Recebe muitos beijos 
Sempre tua 
Isabel” 

[1] - Pseudónimo de Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18884: Estórias do Juvenal Amado (60): O azar das margaridas

Guiné 61/74 - P18911: Notas de leitura (1090): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46) (Mário Beja Santos)

Bolama, vestígios do quartel-general, fotografia de Francisco Nogueira, retirada, com a devida vénia, do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2018

Queridos amigos,
O que temos hoje a oferecer para leitura é variado. Antes de mais, nesta década de 1920 foram lançados empreendimentos que não chegaram a bom porto, expetativas não faltavam, corria a fama que as terras da Guiné eram luxuriantes, de Norte a Sul. Não é por acaso que se inicia a exposição com os belos propósitos da Companhia de Fomento Nacional, investiu-se muito e correu tudo mal, irá a seguir a Sociedade Agrícola do Gambiel. Fala-se também da Companhia Estrela Farim e das imensas propriedades que Vítor Gomes Pereira desbaratou. E há cenas de intriga, com veneno à mistura, do gerente de Bolama, já em contencioso com Bissau e a dizer cobras e lagartos de Velez Caroço.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

A década de 1920 vê surgir alguns empreendimentos agrícolas que se julgavam ter futuro. Não acontecerá assim, darão todos com os burrinhos na água, a despeito de muitas expetativas. Logo a Companhia de Fomento Nacional, em Aldeia do Cuor, ocupando em parte os regulados de Cuor, Joladu e Mansomini. Na resposta dada em 16 de Fevereiro de 1923 ao gerente do BNU em Bissau, tudo são promessas, veja-se o que se conjeturava a partir de um farto documento enviado da sede, Rua Augusta, 176, 2º, Lisboa:
“A linha de confluência entre as terras altas e as lalas que pelo exame da planta da concessão facilmente se verifica ser extensíssima e quase sempre guarnecida de palmeiras de Dendém em povoamentos mais ou menos densos, devendo o seu número subir alguns milhões, constituindo uma grande riqueza a explorar.
As suas instalações em Aldeia, na margem do rio Geba, com dois portos para embarque e desembarque, cobertas de telha, possuindo instalação eléctrica, cobrem já uma grande superfície (e descrevem-se as construções). Estas construções todas indispensáveis para a vida da exploração representam muitas centenas da exploração de metros quadrados de alvenaria, muitos metros cúbicos de madeiramentos e milhares de telhas e não se levantavam hoje se não com muitas centenas de contos.
Devemos ainda mencionar 9 quilómetros de estradas de penetração, não contado com os 20 ultimamente construídos pela circunscrição (de Bafatá) assim como 20 quilómetros de caminhos diversos e ainda duas pontes lançadas sobre o rio Gambiel que permitem a sua travessia por todos os nossos mecanismos de lavoura e transporte”.

Segue-se ainda uma descrição minuciosa do que já está cultivado. Não foi um êxito, tempos depois o empreendimento passou a ter outra designação, Sociedade Agrícola do Gambiel.

Outra empresa que parecia votada ao sucesso era a Companhia Estrela Farim, o seu diretor dirigia-se ao governador de BNU nestes termos em 9 de Março de 1924:
“A Companhia Estrela Farim possui na Guiné Portuguesa uma das mais vastas e belas propriedades, 25 mil hectares ocupando cerca de 12 quilómetros da margem do rio Cacheu, acessível a embarcações de 3 mil toneladas.
Esta propriedade acha-se no começo de exploração agrícola e possui instalações e maquinismos adquiridos no valor de cerca de 700 contos.
Tem a companhia os seus estudos feitos para uma exploração susceptível de larguíssimo desenvolvimento futuro, compreende duas culturas principais e o aproveitamento dos palmares existentes de muito mais de um milhão de palmeiras de coconote, cujos frutos os indígenas trarão à permuta desde que se encontrem quem lhes forneça artigos apropriados às suas necessidades de consumo. As duas culturas principais serão o gergelim e o tabaco.
Para realizar este trabalho a companhia carece do auxílio do BNU, precisa de um crédito contracorrente prestado em dinheiro em notas da Província da Guiné, constituído pelas seguintes importâncias: até 31 de Março do corrente, 50 contos; e em cada um dos meses subsequentes 20 contos, num total de 230 contos”.

Encontrar-se-á em diferentes relatórios a verberação, tanto de Bolama como em Bissau, de que estas empresas eram mal geridas, mal planeadas, nunca se visualizava uma relação efetiva com os agricultores locais, sempre ciosos por agricultar as suas coisas, remunerando mal e sem nunca oferecer contrapartidas sociais. Um poderoso empresário do Sul, Vítor Gomes Pereira, dissipará o seu capital, milhares e milhares de hectares das suas terras passarão para a posse do BNU.

Estamos agora em 1925 e surgem sinais claros de arrufos entre Bolama e Bissau, nunca mais se extinguirão até ao momento em que a filial de Bolama desaparecer. Vejamos uma queixa de Bolama enviada para Lisboa em 6 de Julho de 1925:
“Pedimos há tempo à agência de Bissau para nos comprar ali uma porção de sacos; estes sacos destinavam-se ao embarque da mancarra do nosso cliente Vítor Gomes Pereira, que nos está consignada a mancarra.
A agência de Bissau, quando nos enviou o documento do custo dos sacos, incluiu no mesmo uma comissão de 1% para si.
Baseado no artigo 312 do Regulamento das Dependências, reclamámos contra aquela comissão, mas aquela agência, com o fundamento em que os sacos não eram para uso próprio desta filial mas sim para um cliente, insistiu naquela exigência, não só naquela compra como em outras que lhe se seguiram.
Pondo de parte a alegação de que os sacos não eram para uso da filial, alegação que não merece contestação, resta o muito trabalho que causa a compra dos sacos. Não compreendemos como aquele serviço possa causar muito trabalho, quando ele pode ser feito tão simplesmente mandando um contínuo ou praticante às casas que costumam vender aquele artigo, perguntar se o tem e quanto custa e depois em face das informações dizerem: mandem tantos sacos. O embarque dos mesmos também não demanda muito trabalho, nem a interferência de nenhum empregado superior, pois se resume a saber quando vêm uma lancha para Bolama e mandar pôr a bordo dessa lancha os referidos sacos.
Seja, porém, como for, o que é certo é que o artigo 312 do Regulamento é taxativo e bem explícito, não fazendo referência alguma ao maior ou menor trabalho que os serviços recíprocos possam ocasionar, e tanto assim que aquela agência, em anos anteriores, já nos tem prestado iguais serviços sem reclamação da comissão.
A termos de pagar aquela comissão, não é lícito carregarmos ao cliente duas comissões, uma para esta filial e outra para a agência de Bissau, temos de chegar à conclusão que esta filial terá de trabalhar gratuitamente em serviços dos seus clientes, para ir dar interesses à agência de Bissau.
O nosso colega, em face da nossa insistente reclamação, propôs agora que aquela comissão seja dividida pelas duas dependências e sugere-nos que, caso não estejamos de acordo, para apresentarmos a nossa reclamação perante V. Exas., o que nós vimos fazer, não tanto pela importância daquelas comissões, que é relativamente diminuta, mas como uma questão de princípio a estabelecer para outros negócios de, porventura, maior importância”.

Logo Lisboa respondeu: “O número 312 do Regulamento é muito claro e terminante: o serviço prestado pelas dependências entre si é gratuito. Isto mesmo dissemos a Bissau”. Mas as tensões jamais serão aplacadas.

Data de 16 de Novembro de 1926 um documento enviado por Bolama a Lisboa sobre a situação da colónia, o Governador Velez Caroço está na berlinda:
“Como alguns jornais de Lisboa iniciaram ultimamente uma campanha contra o governador da Guiné, parece-nos oportuno informar V. Exas, imparcialmente, do que aqui se está passando.
Desde há meses a esta parte que se vem notando nesta colónia um movimento de desagrado à administração do Governador Velez Caroço.
Rompeu hostilidades, ostensivamente, o Capitão de Engenharia João Pedro da Costa com um relatório dirigido ao ministro das Colónias, verberando a administração do governador, que classifica de perdulária.
Este relatório foi organizado um tanto levianamente, ressentindo-se falta de provas jurídicas, e não sortiu o efeito que o autor desejava: uma sindicância àquilo a que o governador chama a sua obra. Dizem-nos que o governador facilmente destruiu as acusações que lhe foram feitas. O certo, porém, é que o Capitão João Pedro da Costa não foi até hoje castigado militarmente por ter acusado um seu superior sem o ter feito pelas vias competentes.
Pouco depois era o Engenheiro Costa secundado na campanha pela Associação Comercial de Bissau, elegendo como seu representante para o Conselho Legislativo o Dr. Alçada Padez, advogado naquela cidade e particular amigo do Engenheiro João Pedro da Costa.
Passaram então a revestir certo interesse para o público as sessões do conselho legislativo, onde o Dr. Padez entrou em franca oposição, comentando, por vezes acaloradamente, a administração do governo da Guiné.
Entretanto o governador seguiu para Lisboa. Dá-se a revolta militar e o governador embarca apressadamente para o seu posto.
Como todos contavam que o governador pedisse a demissão, a pouco e pouco foram perdendo o medo que ele inspirava e por todas as esquinas eram comentadas desfavoravelmente tanto a administração dos dinheiros públicos como a sua adesão ao governo militar”.

O gerente de Bolama tudo vai comentando sobre estes confrontos, quem é quem no baluarte da oposição, em que constituem os ataques aos Caroços, pai e filho, um governador, outro Secretário dos Negócios Indígenas e Comandante da Polícia. A campanha “anti-carocista” atinge o auge, mas o gerente de Bissau não deixa de dizer que parece que o atual ministro das colónias mantém por tudo quanto se está passando na Guiné um desprezo superior, e lança o seu veneno:
“Nas repartições públicas nada se faz. Em Bolama sente-se uma atmosfera densa de terror. As perseguições aos funcionários que não votaram com o governador não se fizeram esperar. Inventam-se intentonas. Houve tropas de prevenção, com metralhadoras e tudo. Quase se não respira.
Não nos move a mais leve animosidade contra o senhor Governador Velez Caroço, com quem mantemos amistosas relações pessoais, mas não podemos, imparcialmente deixar de reconhecer que não são sem fundamento a maioria das acusações que lhe fazem.
Há esbanjamentos, há imoralidades e o orçamento é uma ficção”.

(Continua)





Reproduz-se na íntegra a troca de correspondência a propósito de um acontecimento embaraçante para o BNU da Guiné: a República da Guiné aparecia com uma moeda nova, estava estabelecido o caos nos mercados do interior, que valor se podia atribuir ao franco guineense? Era esta a pergunta-chave, para qual não se encontrava resposta, houve que proceder a consultas. Era esta a primeira grande dor de cabeça que vinha do regime de Sékou Touré
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Notas do editor:

Poste anterior de 3 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.













Desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Afinal, em que é que ficamos ? "Nazareno", casa de fados e restaurante (em 1968) ? "Chez Toi", pensão, restaurante e "boite"  (em 1970/71) ? "Gato Negro", de novo casa de fados  (em 1973) ? (*)

O Carlos Vinhal (ex-Fur Mil Art e Minas e Armadilhas da CART 2732 (Mansabá,1970/72),  nosso coeditor, tinhs guardado, no seu "baú",  esta precioso documento a que já tinha feito referência num poste de há 12 anos atrás (**)-

Na altura, no início  de 1971, o Chez Toi era pensão, restaurante e "boite"... O Carlos mandou-nos também  outros documentos, dizendo:

(...) Luís: Junto envio uma factura referente à estadia de dois dias no Hotel Portugal, onde estive na companhia dos camaradas Furriel de Alimentação Costa e Cabo Maciel. Como te deves lembrar, podíamos ser muito ricos, que mesmo assim nos estava interdito o acesso ao Grande Hotel, onde só podiam ficar Oficiais (por mais labregos que fossem) e civis. Nós, os furrielitos, praças e demais maltrapilhos estávamos confinados ao melhor que havia, nomeadamente o Hotel Portugal ou o Chez-Toi.

A propósito do ChezToi, eles tinham um desdobrável, do qual junto parte, que sucessivamente ia aparecendo: Abra com cuidado, Desdobre de vagar e leia com atenção, Vá..., comer..., no..., CHEZ TOI... Especialidade em Cachupa Rica, etc. (...) 

Ora a cachupa é um prato típico cabo-verdiano... Será que a gerência era cabo-verdiana ?

Em 1968/70, o Carlos Pimheiro diz-nos que a casa de fados Nazareno foi  "mais tarde rebatizada de Chez Toi" (***).

O Tó Zé Pereira da Costa, na altura capitão de artilharia, garante que "o Chez Toi chamava-se Gato Negro em 1973"... E acrescenta: "Era a mesma coisa, mas com nome mais pomposo. Até tinha uma fadista que cantava axim, mas tirando isso era uma casa muito respeitável" (***)

No logue Lamparam III, editado pelo nosso amigo e grã-tabanqueiro da primeira hora, Leopoldo Amado,  também enocntrámos uma referência a um guitarrista, guineense,  Zeca Fernandes, que animava as noites de gala do Chez Toi, considerado " um dos primeiros Night Club de Bissau" (****)

2. Destaque, por fim, para o testemunho do nosso camarada Paulo Santiago, ex-comandante do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Bambadinca, 1970/72) ("Uma ida ao Pilão"), para quem o "Chez Toi", em 1972, era um "cabaret chungoso", equivalente hoje a "um bar de alterne":


(...) Foi aí por volta de 30 ou 31 de Março de 1972 que os acontecimentos se passaram. Estava eu em Bissau, de passagem, para mais um mês de férias na Metrópole, embarcava no avião da TAP em 2 de Abril.

O NRP Orion (...)  foi onde jantei naquela noite, a convite do Comandante Rita, sendo também convidado o ten RN [reserva naval] Alves da Silva, conhecido entre nós pelo petit-nom de Eduardinho. Não me lembro da ementa, mas foi excelentemente acompanhada pelos belíssimos néctares existentes na garrafeira daquele navio.

O [alf mil ] Martins Julião estava em Bissau a chefiar a comissão liquidatária da CCAÇ 2701 [, Saltinho, 1970/72]: sabendo que me encontrava a bordo da Orion, apareceu no fim de jantar, ainda a tempo de beber uns uísques.

Por volta da meia-noite, ou ainda mais tarde, resolvemos ir ao Chez Toi, um cabaré chungoso, o que se chama agora casa de alterne. 

Apanhámos um táxi no porto e lá seguímos para a má vida. O Rita, como habitualmente, ainda poderia beber mais uma garrafa nas calmas, eu, o Alves da Silva e o Julião já estávamos um pouco mal tratados. O cabaré estava repleto, já não cabia mais ninguém. Convencemos o empregado a trazer-nos uma Old Parr, mais quatro copos e ali ficámos encostados ao muro a dar conta da garrafa.

Subitamente chega um carro em alta velocidade, Peugeot 404 preto, que faz uma travagem maluca ali em frente, e donde sai o Cap Tomás, ajudante [de campo] do Caco [, gen Spínola]. Vinha bastante encharcado, mas deitou a mão à nossa garrafa bebendo uma boa golada. A única pessoa que ele conhecia bem era o Rita. Queria ir para as gaijas, não sei fazer o quê, naquele estado. Convenceu o Comandante e lá entrámos os quatro para o 404, era o carro da D. Helena [Spínola], onde o único meio sóbrio era o meu amigo Rita." (...).

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(....) Mais tarde, um encontro fortuito ou o retomar de uma velha amizade, viria a ligar o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, considerado na época um bom guitarrista, dava noites musicais de gala no Chez Toi , um dos primeiros Night Club de Bissau. 

Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão. Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo “Roda Livre” e ao conjunto musical “Sweet Fanda”. Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho que brota de um lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe defrontaram. (...)

(ªªªªª) Vd. poste de 24 de novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: NPR Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)