sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Teima-se em tentar eliminar o palco em que se desenvolveu aquele período da guerra, havia mil militares antes de se desencadearem as hostilidades, o número vai crescendo, nesta fase começa a aproximar-se dos 25 mil. Estão lá os três ramos das Forças Armadas, a Armada percorre os rios, tem na Guiné o seu papel crucial, muitíssimo superior ao que viveu em Angola e Moçambique. Indubitavelmente, 1964 é um ano chave pelo alastramento da guerra, pelas populações em fuga, pela compreensível dificuldade em definir uma estratégia com defesa das populações. As forças portuguesas irão vezes sem conta ao Oio, como ao Cantanhez e a outras paragens de luta renhida. Os resultados serão sempre minguados pelo facto de ali não se permanecer mais tempo daquele que dura a operação. Só muito mais tarde, com a operação "Grande Empresa", em 1972, é que se procurará a reocupação do Sul, como se sabe com resultados efémeros pois em 1973 um vendaval de fogo irá comprometer o esforço quase titânico do que foi a criação desses novos estacionamentos.
De seguida, passamos para os documentos da estratégia portuguesa, tal como eles constam na "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África", no teatro de operações da Guiné.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (47)

Beja Santos

“Deixando estas regiões
para Brá se abalou.
A Companhia do azar
em Farim continuou.

Houve boatos daqui e de além
já se sabe o que é a rapaziada
todos queriam abalar da porrada
porque na guerra ninguém estava bem.
Em Farim, Cuntima e Jumbembem
houve muitas aflições
mas deixando as operações
e começando pela 3.ª Companhia
vai o Batalhão de Cavalaria
deixando estas regiões.

Na 488 se aguentaram
até chegar a sua vez
e no dia 13 deste mês
aquela povoação deixaram.
Mulheres e crianças choraram
e tudo à tropa se abraçou.
Em Cuntima o mesmo se passou
quando chegámos à hora de abalar
e deixando tudo a gritar
para Brá se abalou.

Alguns homens do Comando
regressaram de avião
e outros vieram numa embarcação
pelo Geba navegando.
Ao cais de Bissau chegando
em Brá vamos aquartelar.
É lá que vamos aguardar
o dia que mais se ambicionou
mas por enquanto ainda não chegou
a Companhia do azar.

A 487 se exibiu
com mais uma mina que encontrou
o furriel Cravo alevantou
após o Joel que a viu.
Noutra vez que se saiu
mais uma arma se apanhou.
Ao fim da comissão se chegou
sempre arriscados à morte
e a Companhia da pouca sorte
em Farim continuou”.

********************

Aproxima-se o fim da comissão do BCAV 490, procure-se, em nome da clareza, entreabrir as portadas deste cenário em que decorreram as suas atividades. Há um antes, aquele despertar nacionalista que transita do fim da década de 1950, quando Amílcar Cabral parte para o exílio, ficando ali perto, em Conacri, outros, na órbita de Rafael Barbosa, sublevam no interior da Guiné Portuguesa. Organizou-se o partido e organizou-se a guerrilha, formaram-se guerrilheiros e com o primeiro armamento desencadeou-se a luta armada, surpreendendo as forças portuguesas que esperavam acometidas nas regiões fronteiriças, acreditava-se que se iria reproduzir o que se passara em Angola a papel químico. O BCAV 490, é este o modesto entendimento do companheiro do bardo, vai viver o período crucial da expansão do PAIGC por zonas de onde, ao longo de toda a guerra, só sairá para regressar: nas matas do Sul, em toda a região do Morés, no Corubal. O contingente português vai crescendo, de mil militares chegará rapidamente a dez mil, depois a vinte mil, e crescerá ainda mais. O PAIGC dinamitou a economia, no final de 1964 já pouco restará das serrações e das atividades comerciais da CUF e da Sociedade Comercial Ultramarina. O PAIGC não intimida somente, procura mobilizar as populações rurais, o líder fundador é muitíssimo claro, estas populações são fundamentais para alojar e até para alimentar os contingentes da guerrilha. Há dados seguros sobre este crescimento. Voltamos hoje a referenciar “Guerra Colonial & Guerra de Libertação Nacional, 1950-1974, o caso da Guiné-Bissau”, o essencial da tese de doutoramento de Leopoldo Amado, IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, 2011. A título complementar, passaremos para a “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”, os livros dedicados à Guiné.

Leopoldo Amado recorda que a partir de março de 1963 todo o Sul está em sobressalto: destruição de pontões nas áreas de Tite e de Buba, flagelações na península de Empada com corte de acessos à povoação e aos locais de embarque para Bolama, incêndio do barco a motor da carreira Bolama-Ponta Bambaiã, ataques às tabancas, flagelações de Cufar e Fulacunda. E nos meses seguintes chega-se a Cacine, a Gadamael, a Cacoca e Sangonhá. Atravessa-se o Corubal e ataca-se o Xime; e a guerrilha escolhe com sucesso o Oio, o quadrilátero Mansoa-Bissorã-Olossato-Mansabá é uma zona de florestas densas e quase sem estradas, melhor refúgio não podia haver. No final do primeiro semestre de 1963 avança-se para Bissorã e Barro, para Binta e Farim, montam-se emboscadas entre Mansoa e Bissorã, destroem-se pontões na estrada Olossato-Mansabá. A destruição económica parece imparável, o principal eixo rodoviário da região, a estrada Mansoa-Mansabá-Bafatá vai ficando inutilizável. No final do ano, o armamento soviético começa a chegar às carradas, as atividades de guerrilha consolidam-se no canal do Geba, há bases que permitem atuar entre Porto Gole, Enxalé, Xime e ao Norte de Bambadinca, o PAIGC instala-se numa capilaridade que vai de todas as bases do Morés até Sambuiá, Sarauol, Belel, alastra a sua atuação em novas direções, para Bula e Binar, procura atingir, ainda que com pouco sucesso, a região dos Manjacos.

Ver-se-á adiante que Louro de Sousa e Schulz, à luz dos meios, da incapacidade de prever a estratégia do PAIGC, foram atamancando, procurou-se expulsar os grupos do PAIGC no Sul, no Norte, impedir os abastecimentos vindos da República da Guiné e do Senegal, só que os efetivos do PAIGC alastravam-se, chegava novo armamento. Em maio de 1964 ocorre a primeira colocação de minas, chegam os morteiros e até as minas de anticarro armadilhadas, o Xime é atacado à bazuca, passa a ser corrente flagelar os aquartelamentos e as tabancas em autodefesa com morteiros e metralhadoras, mais tarde virão os canhões sem recuo. A Guiné, também nos vem recordar Leopoldo Amado, foi o mais importante e o único teatro de operações onde a ação da Armada Portuguesa foi vital, não só em termos estratégicos como táticos.
E recorre a uma citação de um trabalho de António José Telo:
“À volta de 80% de toda a carga ou pessoal movimentado seguia por via marítima ou fluvial, só cerca de 18% seguia por estrada e 2% por via aérea. No final da guerra, quando o transporte por terra era mais difícil, as vias fluviais e marítimas asseguravam cerca de 85% de toda a carga e passageiros. Esse transporte era igualmente vital para o PAIGC, pelo que a acção de interdição e fiscalização da armada era tão importante como a de transporte. Na realidade, podemos dizer que uma das poucas formas de qualquer dos lados vencer militarmente a guerra na Guiné seria ali impedir o uso dos cursos de água com fins logísticos e de transporte pelo outro”.

Louro de Sousa apela aos recursos disponíveis, Arnaldo Schulz receberá muitíssimo mais, e dos três ramos das Forças Armadas, apercebe-se que tem poucos contingentes bem preparados para a natureza daquela guerra, resolve o dilema do número crescente da população sobre duplo controlo recorrendo à disseminação de aquartelamentos, à preparação de milícias e a uma política de tabancas em autodefesa, sob vigilância das forças posicionadas em destacamento, virão forças especiais, desde fuzileiros a paraquedistas, os bombardeamentos atordoarão todas essas matas onde se acantonam os guerrilheiros e as populações suas apoiantes. É fácil acusar Schulz de que não tinha uma ideia de manobra bem definida, veja-se o contexto em que ele chega à Guiné em 1964, há já dois importantes santuários, o Cantanhez e o Oio-Morés. O que se julgava importante no início da guerra, caso da ilha do Como, esvazia-se com as novas preocupações do avanço do PAIGC em direção ao Boé, o corredor de Guileje passa a ter um papel crucial no abastecimento, as forças portuguesas tudo tentarão para expulsar essas linhas de abastecimento, sem êxito algum. Schulz recorrerá à propaganda, às emissões radiofónicas, ao Boletim Informativo das Forças Armadas, uma comunicação com diferentes direções, incluindo a opinião pública em Portugal. Às ações da guerrilha, procurava-se reagir, ensaiava-se um dispositivo militar para reocupar a zona fronteiriça desde a Aldeia Formosa a Cacine e Campeane. O dispositivo de informações do Exército Português era muito elementar, o uso de informadores dava os seus primeiros passos. Daí a surpresa de certos ataques, como aqueles que começaram a surgir nas regiões fronteiriças, no Norte e no Leste. No final de 1964, a luta armada é cada vez mais persistente à volta de Bula e de Teixeira Pinto, de Bissorã e de Mansabá. Nessa altura, Guileje é já um local que o PAIGC pretende reduzir a pó.

E Leopoldo Amado escreve:
“Em finais de Novembro de 1964, o PAIGC atacou por três vezes, e violentamente, o aquartelamento de Guileje, sendo o ataque de 29 de grande envergadura. Iniciado às quatro da manhã, durou cerca de duas horas, período durante o qual os guerrilheiros utilizaram todas as armas novas que possuíam. No dia seguinte, deu-se novo ataque, que provocou novas baixas, demonstrando não somente que o PAIGC teria decidido ocupar em força a povoação de Guileje por ser estratégica, mas também para fazer uma demonstração de força, usando os novos armamentos com que a partir dessa altura já contava: morteiros, metralhadoras ligeiras, espingardas automáticas, minas anticarro de fabrico russo”.

Todo o restante ano de 1964 vai revelando um gradual poder combativo do PAIGC. Para além dos acometimentos sistemáticos em Madina do Boé e Guileje, a maior parte dos destacamentos do Sul são flagelados e prosseguiu a destruição de pontões, dificultando a mobilidade das forças portuguesas. De toda esta evolução, Arnaldo Schulz dará conta aos seus superiores, vai-se instituindo a contrainformação militar, melhorou a ação psicossocial, são aprovados planos de desenvolvimento, como novos alojamentos em bairros de Bissau. E entrarão em cena helicópteros com helicanhões. Trata-se de uma realidade que já não será acompanhada pelo BCAV 490. Como é óbvio, a tese de doutoramento de Leopoldo Amado prossegue até 1974, o que significa que está fora do contexto que analisamos.

O companheiro do bardo socorre-se de belas páginas da obra-prima de Armor Pires Mota, “Estranha Noiva de Guerra”, Âncora Editora, 2010, para se dar o ambiente do que era uma flagelação clássica, nela ainda não são referidos os foguetões e muito menos a aproximação de viaturas, como acontecerá anos mais tarde:
“Um tiro solitário saltitou, estalando fino. Já não tive tempo para disparar outro e outro. As sentinelas abriram, de imediato, fogo cerrado para o mato. O ataque começava. Só tive tempo de enfiar a G3 em bandoleira e as cartucheiras. Correndo, de torso curvado, quase arrasando o chão, fui acaçapar-me em abrigo. A fuzilaria feroz e cerrada vinha de todos os lados, dos morros de bagabaga, de árvores bem copadas, da pista de aterragem, até da tabanca, os morteiros mais ao largo. Via-se que estavam perto. As armas espirravam estrondos, faiscavam pirilampos de fogo devastador, mesmo à boca do mato. As tarimbas rangeram. Em menos de um ámen, todos enfiaram o capacete, as cartucheiras. O ânimo também. Em menos de um ámen, empurraram as armas para o quadril, arrastaram cunhetes de bala e granadas de mão. Alguns, nem sequer tiveram tempo de pensar que iam de berimbau ao léu ou mesmo de cuecas. Tanto fazia morrer nu como vestido (…). Um vulto começou a correr aos ziguezagues na direcção onde eu estava. Os olhos faiscavam. Firmei a arma bem no ombro. Suspendi ainda a respiração. Como se fosse o meu último minuto de vida. Premi o gatilho e abati-o como uma rajada seca de seis tiros. O rapaz dançou no ar, como um boneco de palha. Por outros locais, os gajos tentavam forçar a barreira, vomitando fogo e apostando em fazer das suas (…). O ataque tinha duas partes. Assim, ao recomeçar o tiroteio, verificou-se logo uma intenção mais violenta por parte do IN, a que correspondeu a tropa com fogo nutrido. O pior é que o IN se acobertava e protegia com as casas de tabique da aldeia à nossa guarda e o capitão recusava-se a bater a aldeia com os morteiros. Algumas granadas dos morteiros de calibre 82mm do IN começavam a espirrar com mais força sobre a caserna e a escola. A escola era a messe e a casa de habitação do capitão”.

Em todas as circunstâncias, o contraditório e o complementar são obrigatórios para melhor procurar entender como se ia desencadeando aquela guerra, como reagia a estratégia portuguesa a toda esta carga avassaladora da guerrilha. Por isso se seguirão referências ao que se escreve na “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África”. E fica-se rapidamente a perceber que há lacunas fundamentais a preencher para que todas estas peças do caleidoscópio melhor se agreguem para dar uma explicável figura.

(continua)
____________

Notas de leitura

Poste anterior de 21 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20690: Tabanca da Diáspora Lusófona (7): A história de mil anos de Portugal explicada numa hora à comunidade eslovena em Nova Iorque (João Crisóstomo) - IV (e última) Parte


Fonte: Cortesia de Luso-Americano, 19 de janeiro de 2018


[Foto à direita: O nosso camarada e amigo 

João Crisóstomo,luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses: Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes... Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, foi alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): vive desde 1975 em Nova Iorque; é casado, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracun] 





Conversa sobre Portugal: 19 de janeiro de 2020, Comunidade eslovena em Nova Iorque

por João Crisóstomo


[ O autor tinha preparado um guião original, já com cortes, para uma conversa de meia hora; como o tempo disponível acabou, entretanto, por ser maior - cerca de uma hora - ele passou a ter liberdade para introduzir notas e comentários extra; a versão original está disponível em inglês, no final deste poste (*); o editor Luís Graça fez a tradução e adaptação livre para o blogue, com a devida autorização do autor ](**)

(Continuação)


De alguma maneira esta saída dos judeus de Portugal veio a ter muita relevância na América: sem estar com grandes detalhes permito-me enumerar e salientar alguns factos.



Os primeiros judeus que chegaram aos Estados Unidos vieram do Brasil, depois de, por razões já mencionadas, terem saído de Portugal. A eles se devem a criação da primeira comunidade judaica em Nova Iorque; a construção da primeira sinagoga em Newport, Rhode Island (a "Touro Synagogue"); e logo a seguir uma outra sinagoga em Nova Iorque, a primeira nesta cidade  ainda hoje chamada "The Spanish and Portuguese Synagogue" — onde durante muitos anos os serviços eram em ladino, como hoje podemos ver nos documentos originais. 

Em ambas as sinagogas a maior parte dos nomes daqueles que as construíram, e assim gravados em pedra, são bem portugueses.


A própria "Estátua da Liberdade” em frente a Nova Iorque tem uma vertente portuguesa: o conhecido poema "Deixai vir a mim os desterrados", que se pode ler na base desta estatua, é da autoria de Emma Lazarus [1849-1887], ainda de ascendência portuguesa; os seus antepassados pertenceram ao grupo daqueles saídos de Portugal depois da instituição da Inquisição. 



E, a título de curiosidade, o mesmo se pode dizer do maior autor de marchas militares americanas, John Philip de Sousa [1854-1932], de pais açoreanos, cujas marchas ouvimos sempre, queiramos ou não, no dia da Idependência e outros momentos solenes e assim pertinentes.



E já que estou mencionando pessoas e factos/acontecimentos relevantes, não posso deixar de mencionar alguns: Peter Francisco [1760-1831],   o conhecido gigante português, guarda-costas de George Washington, considerado por muitos o mais famoso do “Continental Army” e possivelmente até de toda a história militar dos Estados Unidos,  assim reconhecido num selo postal.

E porque não mencionar também a Pedra de Dighton, onde estão gravados em pedra os nomes de Corte Real, o escudo real português e outros testemunhos de que, antes dos ingleses chegarem a terras americanas,  havia muito tempo já que os portugueses aqui tinham chegado. E quem fez esta descoberta escrita na pedra não foi nenhum português, mas antes um professor americano, em 1920, Edmund Burke Delabarre, professor na Universidade de Brown em Providence, Rhode Island. Quem quiser ver a pedra e o seu pequeno museu, estes podem ser visitados a qualquer altura. 

Após a libertação da Espanha [, em  1 de dezembro de 1640], Portugal conseguiu recuperar a maioria das colónias invadidas durante a ocupação espanhola. E um ressurgimento se seguiu. Foi no Brasil, 150 anos antes do mesmo acontecer nos EUA, que ocorreu a primeira corrida do ouro nas Américas. Ouro, diamantes, tabaco e outras riquezas começaram a afluir a Lisboa novamente. 

E Portugal tornou-se novamente um país rico. Riquezas do Brasil foram usadas para construir uma enorme Basílica, Palácio e Convento em Mafra, perto de Lisboa, que hoje possui o maior corredor de qualquer palácio da Europa, incluindo Versalhes; uma grande e nova grande casa de ópera foi construída; e outros monumentos. 

Mas essas riquezas não foram usadas em proveito  do povo, mas apenas em benefício de alguns; e enquanto o Vaticano recebia uma luxuosa embaixada portuguesa, as condições de trabalho em Portugal eram muito próximas da escravidão. O fato é que, embora nas mãos de poucos, havia muita riqueza em Portugal. 

Mas em 1755 uma tragédia natural atingiu Portugal: um terramoto terrível, seguido por um tsunami e incêndios destruíram a maioria dos edifícios em Lisboa, sobretudo na Baixa, e outras cidades e povoações do litoral. Apenas em Lisboa houve cerca de 75.000  mortos (, as estimativas variam, conforme as fontes, entre 10 mil e 90 mil). 


A  reconstrução da cidade, sob a liderança do Marquês de Pombal, foi e ainda hoje é objeto de admiração para quem visita Lisboa. Mas logo outro revés ocorreu com três invasões sucessivas pelas forças francesas, quando Napoleão tentou levar Portugal à submissão como primeiro passo na sua luta com a Inglaterra. O rei português e sua corte conseguiram escapar para o Brasil, em 1807, em navios fornecidos pelos britânicos antes da chegada dos franceses, mas estes, ao chegarem, ocuparam Portugal por algum tempo, até serem forçados a recuar. Napoleão enviou imediatamente uma segunda força, que teve o mesmo destino da primeira. E uma terceira invasão se seguiu.

Foi em Torres Vedras, minha cidade natal, que as forças portuguesas e britânicas sob o comando de Arthur Wellesley,  futuro Duque de Wellington [1769-1852], deram o golpe final às forças francesas em Portugal, impedindo-as de ocupar Lisboa novamente e forçando-as a recuar pela terceira vez para não mais voltarem. Mas o que havia em Portugal de qualquer valor durante essas três invasões foi propositadamente destruído ou levado para a França. Recentemente, alguns mapas da costa africana e registos do desenho e construção de navios, roubados pelos invasores franceses, foram encontrados no departamento de Arquivos de Gironde, na França. 

Em 5 de outubro de 1910, os portugueses optaram por uma república, em vez de um sistema de governo de monarquia constitucional. Mas durante muito tempo Portugal foi um país muito pobre. 

Em 1932, Salazar foi escolhido pelo presidente para ser o novo primeiro-ministro. Ele conseguiu manter Portugal neutral  na Segunda Guerra Mundial e, por meio de medidas rigorosas e austeras, trouxe alguma estabilidade económica ao país. Mas enquanto as outras nações que haviam saído da guerra completamente destruídas, estavam no caminho de uma notável recuperação económica, investindo em educação e infra-estruturas, Salazar [1889-1970] não fez nada disso, mantendo o ouro que acumulou e economizou em reserva,  por razões que ninguém entendeu. 

Ele figurava entre os líderes autoritários mais antigos do mundo, mas quando morreu [, em 1970, depois de ter sido sustituído em 1968, sem nunca o saber, por doença grave], o seu regime [, o Estado Novo] conseguiu sobreviver, mantendo Portugal com o rendimento mais baixo da Europa Ocidental.

Por outro lado,enquanto outras nações estavam prontas para conceder autonomia e independência às suas colónias, ele resistiu aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas (, que ele insistia em chamar de "províncias ultramarinas" ou extensões de Portugal), à custa de milhares de vidas, e perda de riqueza, numa longa e inútil guerra, que se prolongou de 1961 a 1974(, a guerra colonial).

Muito mais podia e devia ser dito. Mas não o posso fazer neste curto espaço de tempo. Não quero porém deixar de fazer uma menção ao papel de Portugal no que respeita aos refugiados durante a II Guerra Mundial.

Como mencionei atrás, Portugal conseguiu conservar uma posição neutral neste conflito. A sua posição geográfica porém fez dele o destino ideal como porto de saída para o resto do mundo. E Salazar por razões que a razão desconhece - por um lado tínhamos uma ligação de aliança com a Inglaterra, mas ao mesmo tempo Salazar era um admirador de Mussolini e de Hitler, mais do primeiro do que do segundo, é certo —, decidiu neste assunto alinhar-se com a maioria das nações, dificultando e mesmo proibindo, na maioria dos casos, e salvo raras excepções, a entrada de refugiados, especialmente os de origem judia, em Portugal.

E foi neste momento em que apareceu o grande humanista Aristides de Sousa Mendes [1885 - 1954]. Alegando que o dever de sua consciência cristã se sobrepunha a qualquer outra consideração, não hesitou em desobedecer às directivas directas do governo português e deu milhares de vistos a todos os refugiados que o procuraram,quando era cônsul em Bordéus, em 1940. O seu gesto corajoso, foi o primeiro e o maior a nível individual de todas as operações de resgate que se seguiram.


Muitos outros diplomatas, e até pessoas individuais, seguiram o seu exemplo depois em actos de corajosos resgates. É o seu pioneirismo que quero realçar, pois foi o facto de isto ter acontecido logo no início da guerra que forçou a abertura das portas que Salazar não teve mais coragem de fechar. Por estas portas passaram centenas de milhares de refugiados, muitos dos quais teriam perecido em Auschwitz e noutros campos de concentração, se não fora a coragem heróica deste português.


Como devem saber, Salazar (que,  acabada a guerra vangloriou de ter salvo muitos refugiados, dizendo ter pena de não ter feito muito mais), nunca perdoou a Aristides o que ele considerou um acto de desobediência, e Aristides veio a morrer como um pobre num auspício para pobres em Lisboa. 



Depois da morte de Salazar,    os portugueses aperceberam-se de que se impunha um novo rumo político para o país. E cedo ocorreu uma revolução em Lisboa [, em 25 de Abril de 1974]. Mas,  talvez porque cansados de guerra e de lutas, esta foi uma revolução quase pacífica , se assim se pode dizer, pois que não houve mortes, e viria a ser chamada "revolução dos cravos” pelas flores com que todas as armas eram "coroadas" por civis e depois mesmo pelos militares.



Foi uma recuperação longa e lenta desde 1974, quando um novo governo democrático foi instalado em Lisboa. Hoje, Portugal, conhecido por sua hospitalidade, vida simples e ambiente seguro, é hoje considerado um bom lugar para se viver e visitar. Eu, pelo menos, espero que continue assim. 

Obrigado! João Crisóstomo
__________

Bibliografia que consultei;


1. O livro de onde faço várias referências é o livro:” The First Global Village"- How Portugal changed the world , da autoria do escritor Inglês Martin Page, 12a edição. " Casa das Letras" ( comprei este aí em Portugal).



Outros livros que li e que “consultei" agora:


2. "Encompassing the World” Portugal and the World in the 16th and 17th Centuries. Um daqueles livros grandes em todo o sentido, de se lhe "tirar o chapéu, pelo seu conteúdo fabuloso em todos os aspectos. Publicaçao da “Arthur M.Sacckler Gallery( da Smithsonian Institute em Washington)

3. Lisbon - War in the shadow of the city of light, 1939-1945 da autoria de Neil Lochery

4. The First World Sea Power—1139-1521; volume 1o. Autor: Saturnino Monteiro

5. 1494 How a Family Feud in Medieval Spain Divided the World in Half . Autor:Stephen R. Bown ( St Martins Press, New York)

6. 1808 (5a edição) Autor: Laurentino Gomes ( jornalista brasileiro). Editora Planeta. Brasil

7. Os Pioneiros Portugueses e a Pedra de Dighton, do Dr. Manuel Luciano da Silva

8. Magellan autor ; Stefan Zweig,( version française) par Alzir Hella; Bernard Grasset- Paris

Jornais e revistas:

1. "Luso-Americano” uma série de artigos sobre esta exposição, da autoria do jornalista /escritor/editor principal do" Luso Americano". Publicadas neste jornal de 27 de Abri29 de Junho de 2007.

2. New York Times, Friday, June 29 2007

3. Washington Post, June 24 2007 e July 20 2007

4. "Portuguese in the making of America” da autoria de James H.Gill

5. Military History, July/August 2006, artigo do historiador Michael D. Hull, capa e artigo (páginas 24 a 31).

____________


Notas do editor:

(*) January 19, 2020; Slovenian community:Talk on Portugal…



(...) After the liberation from Spain Portugal was able to recover most of the colonies which had been invaded during the Spanish occupation. And a recovery followed. It was in Brasil, 150 years before the same would happen in US, that took place the first gold-rush in the Americas.



Gold, diamonds, tobacco and other riches started to flow to Lisbon again. And Portugal became again a wealthy country. Riches from Brasil were used to build a massive Basilica in Mafra, near Lisbon, which today boast the longest corridor of any palace in Europe, including Versailles; a great grand new opera house was built; and other. But these riches were not used for the people but just for a few; and while the Vatican was recipient of this Portuguese royal generosity, working conditions in Portugal were very close to slavery.

The fact is that, though in the hands of a few, there was much wealth in Portugal. But In 1755 a natural tragedy struck Portugal : a terrible earthquake, followed by a tsunami and fires destroyed most buildings in Lisbon, Porto and other places. Just in Lisbon there were 75,000 people dead.

The following reconstruction of the City was and is still today object of admiration for anyone who visits Lisbon. But soon another setback occurred with three successive invasions by French forces, as Napoleon tried to bring Portugal into submission as a first step in his fight with England. The Portuguese king and his court were able to escape to Brasil on ships provided by the British before the French arrived, but upon arrival they occupied Portugal for some time, until they were forced to retreat. Immediately Napoleon sent a second force, which had the same fate of the first one. And a third one followed.

It was in Torres Vedras my hometown that the Portuguese and British forces under the command of the future Duque of Wellington gave the final blow to the French forces in Portugal, preventing them from occupying Lisbon again and forcing them to retreat a third time not to come back any more.

But what there was in Portugal of any value during these three invasions was either purposely destroyed or taken to France. Just recently some maps of the African coast and records of the design and construction of ships which were stolen by the French invaders were found in the Archives department of Gironde in France.

In 1910 the Portuguese opted for a republic, instead of a monarchy system of government. But for a long while Portugal was a very poor country.

In 1932 Salazar was chosen by the President to be the new Prime Minister. He was able to save Portugal from entering WW II and by means of strict and austere measures brought some economic stability to Portugal. But while other nations which had come out of the war completely destroyed were in the road to a healthy recovery by investing in education and infrastructures, Salazar did nothing of this, keeping the much gold he had amassed and saved in storage for reasons nobody understood. 

He is among the the longest authoritarian leaders , but when he died, and for some years afterwards as the same regime continued, Portugal had the poorest income in Western Europe. While other nations were ready to grant autonomy and independence to their colonies, he resisted the liberation movements in Portuguese colonies, which he insisted in calling extensions of Portugal, at the cost of thousands of lives, and the loss of all he had amassed in a futile war that nobody understood.

It has been a long and slow recovery since 1974 when a new democratic government was installed in Lisbon. Portugal of today, well known for its people hospitality, simple living and safe environment, is considered now a good place to live and visit.

I for one hope it will continue so. Thank you!




Postes anteriores:






Guiné 61/74 - P20689: Parabéns a você (1765): José Rodrigues, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20687: Parabéns a você (1764): Luís R. Moreira, ex-Alf Mil Sapador do BART 2917 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 – P20688: Memórias de Gabú (José Saúde) (91): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Memórias de Gabu

“Um Ranger na Guerra Colonial  Guiné-Bissau 1973/74”

Camaradas, deixo-vos aqui um de muitos textos que o meu último livro, o nono, contempla. Viagens por espaços físicos que muitos de vós conheceram. A obra, com a chancela da Editora Colibri, é tão-só uma reminiscência de circunstâncias que permanecem eternamente nas nossas memórias. Comprem o livro e rever-se-ão em cada tema narrado.

Bafatá, cidade acolhedora

Um olhar sobre o Geba

Cativava-me uma viagem a Bafatá! E foram muitas as jornadas àquela cidade guineense. Um olhar lançado sobre o rio Geba, ao cimo da rua principal, deleitava espíritos de jovens militares que, no mato, se deparavam com frequência a imensos problemas de índole diversa. A guerrilha, sempre ativa, quebrava permanentemente a monotonia de tropas dispersas por toda a região.    
Uma ida a Bafatá simbolizava uma jornada à faustosa urbe para militares entregues a um profundo isolamento. A cidade debruçava-se sobre uma das margens do leito do rio Geba, um portentoso curso de água que ao longo da guerra registou inúmeras histórias fatídicas. Bafatá era uma boa anfitriã.
As minhas idas a Bafatá baseavam-se em colunas de reabastecimentos. A estrada era asfaltada. A distância que separava as duas localidades (Bafatá-Nova Lamego), rondavam, mais ou menos, os 35 kms, julgo. Lembro-me de uma ocasião em que o major Óscar Castelo da Silva, segundo comandante do BART 6523, me pediu para o acompanhar a Bafatá. Tendo em conta a distância e o ambiente de guerra que se vivia, disse-lhe que “preparava o grupo e o meu major levava o jipe com o condutor”. Resposta: “Não, você acompanha-me, armado, e iremos os três”.
E lá nos fizemos à estrada. Confesso que a certa altura cheguei a ter receio da aventura. Havia quilómetros de mato denso. Sabia que esse trajeto, todo em alcatrão, não oferecia problemas de maior. Regressámos sem nada se registar.
Bafatá foi também um azimute traçado quando um dia subi o rio Geba. Embarquei em Bissau e ancorei no Xime. As ligações para Gabu, via aérea, complicaram-se. A guerrilha estava ao rubro. Ganhava uma imponente dimensão. Impunha-se um maior cuidado. Esperei alguns dias, comparecia nos Adidos (estrada que unia Bissau a Bissalanca) e a resposta negativa mantinha-se. Aguardavam ordens, diziam-me. Numa manhã, já desolado com a situação deparada, colocaram-me como hipótese o meu regresso ao Leste por via fluvial. Disse prontamente que sim.
Nunca imaginei uma viagem tão atribulada. A lancha da marinha – LDG – ia cheia que nem um ovo. Os negros, em grande número, transportavam consigo vários apetrechos pessoais. Nem a galinha faltou à chamada!
Ao chegarmos à zona da Ponta Varela, e com o rio a estreitar as suas margens, o comandante da embarcação mandou-nos deitar. “Nem uma cabeça a ver-se do exterior”, avisou. Os marinheiros, já feitos à dita viagem, agarraram-se às metralhadoras e fez-se silêncio. Prevaleceu, momentaneamente, o medo. O “cabo Bojador” foi ultrapassado e, desta feita, o pessoal passou isento de eventuais novidades.
Disseram-me que a zona era extremamente perigosa. Contava-se que aquela viagem já tinha conhecido contornos fatais resultantes de ataques do PAIGC a partir das margens do rio.  
A navegar já em águas fluviais mais “calmas” ancorámos no cais do Xime. Seguiu-se a viagem numa Berliet que cruzou Bambadinca, Bafatá e, finalmente, Gabu.
Bambadinca era também conhecida como a terra do tenente Jamanca, um negro de corpo franzino, estatura baixa e que comandava a CCAÇ 21. Recordo as suas virtualidades como guerrilheiro. Tive a oportunidade de com ele contactar e ouvir histórias em que o soneto da guerra agitava as curiosidades.  

 A rua principal de Bafatá com o Geba ao fundo 


Cais do Xime, 1973

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.:

Vd. também os postes:

Guiné 61/74 - P20687: Parabéns a você (1764): Luís R. Moreira, ex-Alf Mil Sapador do BART 2917 e BENG 447 (Guiné, 1970/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de Fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20684: Parabéns a você (1763): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo Especialista MMA da FAP (1979/82)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20686: Historiografia da presença portuguesa em África (201): "A Guiné Através da História", pelo Coronel Leite de Magalhães; Cadernos Coloniais, Editorial Cosmos (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2019:

Queridos amigos,
É justo uma palavra de apreço sobre esta coleção dos Cadernos Coloniais, iniciativa da Editorial Cosmos, eram livrinhos de cerca de 60 páginas, o conhecimento das parcelas imperiais, de vultos e trabalhos ultramarinos muito lhe deve.
O caderno n.º 24 foi escrito por António Leite de Magalhães, homem com bibliografia, a ele se voltará mais tarde. Atenda-se ao percurso histórico que ele sintetizou neste seu livrinho, bastante útil para confirmar a leveza da presença portuguesa ao longo dos séculos em que ali se permaneceu, presença leve e sempre com a agravante de uma atmosfera de indisciplina interna e permanente hostilidade em torno das praças e presídios.

Um abraço do
Mário

Coronel António Leite de Magalhães


A Guiné Através da História, pelo Coronel Leite de Magalhães (1)

Beja Santos

Estes Cadernos Coloniais foram uma aposta da Editorial Cosmos, foram publicados durante décadas. O número 24 teve como autor o Coronel António Leite de Magalhães, governador da Guiné de 1927 a 1931, apanhou a Revolução Triunfante. É um livrinho de divulgação que tem aspetos bastante curiosos, Leite de Magalhães elenca, à luz dos conhecimentos da época alguns dos aspetos mais palpitantes da vida da colónia-feitoria.

Começa por nos dar um quadro a que ele intitula “Da descoberta à revolução liberal de 1820”. Inicia a sua descrição com a tomada de Ceuta, e logo escreve ao gosto do tempo que se lançaram as velas pandas no mar misterioso e largo, as suas quilhas abrem sulcos novos dia a dia, e neste relato entusiasmado dobra-se o Cabo Bojador e chega-se ao rio Senegal, começava a história da Senegâmbia. Não se esquece o autor de nos recordar que em 1448 o rei cedeu ao Infante o exclusivo do comércio ao sul do Cabo Bojador, e que por carta régia de D. Afonso V, de 7 de junho de 1454, o Infante D. Fernando tornou-se o donatário de todas as terras do Ultramar adquiridas e por adquirir, doação confirmada pelo Papa Nicolau V. No seu testamento, datado do ano da sua morte (1460), o Infante D. Henrique outorga à Ordem de Cristo a espiritualidade da Guiné. Dois anos depois começou a exportação de mão-de-obra escrava para Cabo Verde, António de Noli estava a povoar a Ilha de Santiago com indígenas daquela procedência. Em 1490, é feita a doação da Ilha Boavista a Rodrigo Afonso para criação de gados, é também povoada com gente da Guiné. De 1513 a 1516, Cabo Verde recebeu cerca de três mil escravos dos portos da Guiné, dos quais uma grande parte foi aproveitada por Espanha para a colonização das suas conquistas. Ao tempo a concorrência entre traficantes de escravos era enorme, mas já tinha antecedentes. D. Manuel I proibiu, em 1518, os resgates da Guiné, interdição que acabou ao fim de dois anos. No período do reinado de D. João III até ao domínio filipino a pirataria francesa fez os seus estragos na região.

Tentou-se a missionação, a história das missões irá ser alvo do importante trabalho de investigação do Padre Henrique Pinto Rema, mas o autor aqui refere a presença dos jesuítas e dos capuchinhos franceses, como é sabido, com pouco êxito. Quando em 1 de dezembro de 1640 se extinguiu o domínio espanhol, a Senegâmbia Portuguesa era um vasto campo de piratarias. Em 1641 é nomeado Capitão-Mor e Feitor de Cacheu Gonçalo de Gamboa Ayala, é o tempo em que nasce a fortaleza. A Guiné deve a este capitão a fundação de Farim e a ocupação de Zinguinchor.

A Guiné é sempre um ponto de interrogação para o Estado Português, incapaz de uma estratégia para este enclave. Em 1675, pretendeu-se formar uma companhia em benefício da Praça de Cacheu e Comércio da Guiné, não deu frutos. Segue-se um longo período de grandes tensões em Cacheu, sempre com sublevações à volta, com os ingleses no rio Gâmbia e com os franceses a pretender construir uma fortaleza em Bissau. Em 1690 funda-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde e dois anos depois o rei mandou que se construísse a Fortaleza de Bissau, competindo à Companhia de Cacheu e Cabo Verde costear a despesa. E o autor repertoria um estado de tensão permanente com as gentes da Guiné.

A fortaleza de Bissau foi mandada destruir em 1708, já no reinado de D. João V. Diz-se que a nova fortaleza foi edificada a expensas da Companhia do Pará e Maranhão, que se fundara em 1755, ficando com o exclusivo do comércio e a administração das ilhas de Cabo Verde. Não terá sido seguramente um êxito, a Companhia foi extinta em 1777. E o autor extrai elementos de um relatório elaborado pelo Administrador João da Costa, da Companhia do Pará e Maranhão, sobre o estado da Guiné, com data de 1778: os edifícios da praça de Bissau eram uma ruína completa, a capela caída, a guarnição de 190 soldados sem pagamento e sem vestuário, a população de 700 guineenses católicos sem serviço religioso; em Cacheu, a artilharia estava fora de uso, os soldados como os de Bissau, e quanto ao serviço religioso, ali e no rio da Gâmbia havia apenas um padre; a praça de Farim estava completamente abandonada, o mesmo se passava com Zinguinchor.


Em 1783, foi consentida a formação da Companhia de Comércio das Ilhas de Cabo Verde, mas de proveitoso para a Guiné não há registo. Instalara-se a desordem na colónia. A Corte parte para o Brasil, a Guiné ficou mais esquecida. Em 17 de maio de 1819, o Governador de Cabo Verde, António Pusich, propôs que, para alívio da Real Fazenda se entregasse a Guiné a uma companhia, o que não aconteceu. Dá-se a revolução liberal, mas não melhorou a situação da Guiné, as sublevações são constantes na guarnição de Bissau, para se salvar um dos comandantes teve de fugir para Geba, ficou protegido pela população local. Em 1834, o governador de Cabo Verde pretendeu reunir num só os dois governos, Bissau e Cacheu, Lisboa não aceitou a proposta.

Vem a propósito lembrar a extraordinária memória da Senegâmbia elaborada por Honório Pereira Barreto, em 1843: o país está completamente desorganizado, todos os empregados, desde o primeiro ao último, ignoram quais sejam as suas atribuições, e por consequência quais sejam os seus deveres… os vigários, apesar de serem ministros de uma religião sublime, pouco se importam com a moral e preceitos dela, vivem com as barregãs em casa, apresentam-nas a todos, como qualquer homem casado apresenta a mulher; a tropa é um bando de homens indisciplinados, turbulentos, esfomeados, nus e traficantes; das ilhas de Cabo Verde só mandam para estas guarnições os soldados incorrigíveis e os ladrões que lá há.

E é nesta atmosfera de caos que a Grã-Bretanha não esconde as suas ambições sobre Bolama e os franceses avançam pelo rio Casamansa e se fixam nas proximidades de Zinguinchor.

Esta questão das tropas indisciplinadas tem um largo e doloroso historial: soldadesca amotinada era um dado frequente, não faltavam trapalhadas. Atenda-se ao que escreve o autor, é um episódio antes da revolução liberal:
“Em 1804, morre envenenado em Bissau o Capitão-Mor António Cardoso de Faria. E em Fevereiro do ano seguinte segue para aquela praça o seu substituto, Manuel Pinto Gouveia. Este leva 150 degredados tirados do limoeiro, facínoras e dos maiores crimes. Em Cabo Verde entregam-lhe mais 80 homens… da mesma qualidade. E com esta gente e mais 230 soldados pretos, treinados na ordem e no vício, formou o batalhão 460 praças até ao ponto de, com eles, impor e manter a paz entre o gentio. A ilusão durou pouco, em Abril de 1818 amotina-se a tropa por falta de pagamentos. Em 12 de Junho nova insubordinação…”.

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20665: Historiografia da presença portuguesa em África (200): “A Guiné Portuguesa, subsídios para o seu estudo”, comunicação de Carlos de Almeida Pereira, no 3.º Congresso Internacional de Agricultura Tropical, Londres 1914 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20685: Fotos à procura de... uma legenda (126): O militar em questão não seria o cap inf Manuel Francisco da Silva, comandante da CCAÇ 1681/BCAÇ 1911 (1967/1969) ? Se sim, nasceu em Silves em 1933 e morreu em Faro, em 2015, como cor inf ref, tendo sido também, em 1982, presidente da Câmara Municipal de Faro (Jorge Araújo)



Será o Cap Inf Manuel Francisco da Silva , comandante  da CCAÇ 1681/BCAÇ 1911 (1967/1969), formada no RI 15 (Tomar) ? Hipótese avançada pelor Jorge Araújo. Segundo o Valdemar Queiroz, a fotografia parece ter sido tirada em Tomar, vendo-se, por detrás do militar,  as costas da estátua de Gualdim Pais e parte da torre da Igreja da S. João Baptista. Foto disponibilizada por Carlos Mota Ribeiro. 

O camarada Manuel Francisco da Silva (Silves, 1933- Faro, 2015) morreu em 5 de janeiro de 2015 aos 81 anos.






Manuel Francisco Silva, cor inf ref (Silves, 1933 - Faro, 2015)


1. Mensagem do nosso coeditor Jorge Araújo, com data de ontem, 24 de fevereiro de 2020, às 15:01:



 Caro Luís,

Está tudo bem contigo? Espero que sim.

Na sequência do meu comentário ao poste em epígrafe, anexo, para os devidos efeitos, algumas notas sobre o mesmo e respectivas fontes.
Não sei se acertei na identificação da foto... mas tentei. Aguardemos pelo seu desenvolvimento..

Um óptimo Carnaval... na Lourinhã... em Torres... não interessa o local. O importante é que à nossa volta haja alegria e felicidade e muita saúde.

Um abração. Jorge Araújo.

_____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série >  24 de fevereiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20680: Fotos à procura de... uma legenda (119): restos da vida de um combatente, capitão de infantaria, provável comandante de uma Companhia de Caçadores, CTIG, 1970/72... (Carlos Mota Ribeiro, Maia)

(i) Comentário de Jorge Araújo:

Caro Carlos Ribeiro,

Como primeira hipótese de resposta ao conteúdo do presente poste, sou de opinião de que não deveremos fazer corresponder a medalha de "Cruz de Guerra" com a "das Campanhas de África", pois poderão ser de pessoas diferentes, e que só a oportunidade de compra/venda as fez juntar.

Por outro lado, tendo por base a minha investigação, ainda que superficial, sem nada que possa afirmar com total certeza, avanço com um nome de partida:

Será que estamos perante o caso do "CAPITÃO MANUEL FRANCISCO DA SILVA (?-2015)", natural de São Marcos da Serra, Silves?

Em correio separado, vou fazer chegar ao Luís Graça um pequeno resumo do que encontrei com foto.

Acrescento, no entanto, que o louvor que originou a condecoração deste militar (Cruz de Guerra) está publicado no livro da CECA - Volume 5 - Tomo VIII Cruz de Guerra, p592.

Para a elaboração da minha pesquisa, foi importante o contributo do camarada Valdemar ao apontar Tomar com local da foto publicada.

É que a Unidade a que pertenceu, na Guiné, o Cap Inf Manuel Francisco da Silva, foi a CCAÇ 1681/BCAÇ 1911 (1967/1969), formada no RI 15 (Tomar).

Este militar faleceu a 05 de Janeiro de 2015, com a patente de Coronel.

À consideração do Fórum... aguardando novos contributos.

Um abraço. Jorge Araújo.

(ii) Comentário de Jose J. Macedo, DFE 21-Guine

Camaradas, junto vos envio um Link para o Wikipedia com a biografia do Coronel Manuel Francisco da Silva. A "procura" foi feita baseada nas informações do camarada Jorge Araújo.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Francisco_da_Silva

Um abraço.

Jose J. Macedo
DFE 21
Cacheu-Bolama-Guine -1973-1974

Guiné 61/74 - P20684: Parabéns a você (1763): João Carlos Silva, ex-1.º Cabo Especialista MMA da FAP (1979/82)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20683: Parabéns a você (1762): Gumerzindo da Silva, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3331 (Guiné, 1970/72)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20682: Em busca de... (301): Raul Fernandes Coelho, natural de Braga, piloto de Heli AL III e de caça-bombardeiro T 6, do meu tempo (Francisco José Rato Mendonça, ex-1º cabo esp MARME, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Cufar > s/d > c. 19727/74 > Militares da FAP, pilotos: da esquerda para a direita, alf Pimenta, cap Branco, alf Cruz Dias,  fur Coelho (?) e fur Luís Santos.

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem de Francisco José Rato Mendonça, nosso camarada e leitor, ex-1º cabo especialista MARME [, mecânico de armamento e equipamento], BA 12, Bissalanca, 1972/74:

Data: sexta, 21/02/2020 à(s) 22:57

Assunto: Informação

Olá, Luís

Sou um ex-especialista MARME,  estive na FAP entre  1970 a 1976, tendo passado por, Ota, AB1, BA12, BA6, BA6, EMFA (com o General Morais e Silva).

Chamo-me Francisco José Rato Mendonca, estou no estrangeiro [Itália ?]

Pretendia saber se atravás da nossa organização [  o nosso blogue,]  posso ter o contacto de Raul Fernandes Coelho,  piloto de helicóptero e de T-6 na Guiné, 1972/74. Ele é de Braga,

Esperando que me possas ajudar, as minhas saudações aeronáuticas

Francisco Mendonça


2. Resposta de hoje, às 16h13, do Miguel Pessoa, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, atualmente cor pilav ref:


Lembro-me de um Furriel Coelho, da Esquadra 122 (AL-III) que voava também o DO-27 na Esquadra 121. Penso que seja o que está referido na foto em anexo (com alguma dúvida...).
Não tenho registo de contactos deste camarada.
Abraço. Miguel Pessoa

Francisco Mendonça.
Cortesia de blogue
Especialistas da Base Aérea  12
(Guiné 65/74)
3.  Comentário do nosso editor LG;

Do Raul Fernandes Coelho não encontrei rasto no blogue dos especialistas da BA12 (Guiné, 1965/74) nem na Net.

Mas encontrei um outra mensagem  (e uma foto) do Francisco Mendonça, com data de 4 de abril de 2016, e que reproduzo aqui com a devida vénia:

Bom dia, especialistas.

Eu sou Francisco José Rato Mendonça,  Esp MARME, 2/70. As bases por onde passei foram OTA, AB1, BA12, BA6 Montijo, EMFA representante dos especialistas no tempo do General Morais e Silva,  (graduado) Comandante da BA12 Lemos Ferreira, segundo  comandante Tenente Coronel Vasquez com quem voei em Dornier 27 depois de terem sido abatidos,  numa semana, alguns aviões. Houve uma espécie de recusa naquele período pelo facto de não termos misseis.

Do tenente que era chefe do armamento,  não me lembra o nome dele. Eu era da linha da frente, carregava a Dornier com roquetes, o T6 com bombas  de napal 80 kg mais bombas de 50 kg e ninhos de granadas incendiárias. Fiz algumas missões com dois T6 com carregamento de bombas algures em território da Guiné. Nos Fiats carregávamos diversos tipos de bombas e as metralhadoras.

Durante um certo período fui transferido para fotografia aérea. Aqui na Bulgária fiz uns voos no Antonov 2, um antigo aéreo biplano que se utiliza para regas agrícolas. uma espécie do tractor americano-

Além daquilo que vos enviei,  informo: Sou piloto de Delta plano (sem motor);  piloto de Planadores PPP: piloto de aviões monomotores a hélice até 5900 kg ppa; curso incompleto de paraquedismo (sem saltos).

Saudações aeronáuticas, Francisco Mendonça

________________

Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Em 1984, João de Melo deu à estampa, sob forma de romance, a sua experiência como furriel enfermeiro em Calambata, São Salvador, Norte de Angola. Livro duríssimo, a contingência militar entremeada com a opressão colonial explorando os paupérrimos agricultores do café, a vida martirizada nas sanzalas onde não se pode iludir que há simpatias com os movimento os de libertação.
Em 2017, temos uma versão reescrita que veio acentuar as duas narrativas paralelas entre tropa e colonos e tropa, colonos e colonizados. Esta nova versão é deliberadamente excessiva em tudo: muita gente gananciosa e torpe, muito ideal revolucionário, a tal ponto que podemos encarar esta nova versão como um manifesto anticolonial a pretexto de se situar inteiramente num palco de guerra, Calambata, onde o autor ganha contornos de um verdadeiro apóstolo amado pelo gentio.
Texto de inegável qualidade, e exigente na interpretação desses excessos que foi aquele mar de ruínas em que viveu João de Melo e que agora o reconta sob a forma de uma guerra sem sentido.

Um abraço do
Mário


Autópsia de um mar de ruínas, nova edição reescrita pelo autor (1)

Beja Santos

João de Melo
“Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor, Publicações Dom Quixote, 2017 tem por base uma das obras consagradas da literatura da guerra colonial, cuja 1.ª edição data de 1984. João de Melo explica o ponto de partida e a reformulação. Onde inicialmente pesava a narrativa da presença colonial em Calambata, perto de São Salvador, no Norte de Angola, um quartel erguido sobre um monte estratégico tendo duas aldeias africanas por baixo, agora as duas narrativas decorrem paralelamente: o que fazem os militares em contraponto com a vida quotidiana nas duas sanzalas, onde vivem pessoas de diferentes etnias e soldados que desertaram dos exércitos de libertação. Nesta reescrita, torna-se mais claro quais as duas razões sociais do que nas edições anteriores. Reescrever tem os seus custos, João de Melo, conscientemente ou não, alterou o cerne da obra, de um romance de guerra toda a trama ganha a dimensão de um retábulo barroco, não há roupagem que não se torne excessiva, ondulante, sujeita a leituras diferenciadas.

Logo aquele soldado no seu posto de sentinela em completa tensão e desorientação com os movimentos que pressente na mata, seguem-se fogachos, a tropa responde a um ataque fantasma:
“Dezenas de metralhadoras ligeiras, apontadas ao foco luminoso do Seixel, uniram-se às rajadas das quatro Bredas dos postos. Bocas de chamas em crepitação, das quais saíam, numa torrente, balas incendiárias que pareciam lançar para os céus de Calambata um estrondo de um vulcão em atividade”. Entra em cena um capitão medíocre e reles, de nome Marinho, oficiais e sargentos são pessoas pouco estimáveis, depois deste grotesco capitão surge o alferes Alexandrino que leva uma coça valente no escuro. Mas a figura do capitão é alvo de uma atenção implacável: “Ia na terceira comissão de serviço, depois de Moçambique e da Guiné. Envelhecera depressa de mais. Era-lhe difícil lembrar-se de quais eram, e como, as suas qualidades marginais. Deixara-se cair no cerne das maquinações de guerra”. O capitão também não aprecia o alferes Alexandrino: “Nunca gostara daquele bigodinho ralo e descaído sobre as pontas. Detestava a sua cabecinha adamada, a voz aflautada, o risinho tortuoso”.

Como se tece a narrativa em planos paralelos, estamos agora na sanzala, Romeu pontapeou o cão do senhor Valentim, autoridade colonial, vai ser sovado, brutalmente sovado. O soba Mussunda não reage, a sua autoridade é simbólica, sabe que não manda na sanzala, vive sob a ordem dos brancos. Num rasgo de dignidade pede ao polícia Valentim para parar, o agente colonial fica enraivecido, o chicote vira-se contra o soba: “Vibra o primeiro golpe no pescoço de Mussunda, que abre muitos olhos atónitos, ante a violência da agressão. Mais cego ainda, o golpe seguinte atinge-o em pleno rosto. O branco não está pelos ajustes. Assenta-lhe um punho na boca, estende-lhe uma joelhada por baixo, nos órgãos sensíveis dos machos”. Está esclarecida a correlação de forças, é a vez de a tropa transpor os velhos perigos do mato, uma coluna põe-se em movimento.

E João de Melo mostra os beneficiários da guerra, gente do quadro permanente e colonos, em pinceladas brutais:
“Tinham vindo ali parar trazidos pela mãozinha rufiona do dever patriótico dos outros, dos outros que serviam a pátria à sombra das cidades e dos seus palmares junto ao mar; dos outros que ganhavam o dinheiro com a guerra, dormiam, tranquilos e saciados, com um braço por cima do corpo amado das mulheres; dos outros que planeavam surdamente a morte à distância e criam mais e mais e sempre mais das tropas: armas apreendidas, mortos e feridos em combate, prisioneiros de guerra para interrogar sob tortura da fome e da sede, muita pancadaria, mutilações e mortes anunciadas. Havia-os de todos os aspectos próximos e distantes, desde generais velhos, atormentados pelo reumatismo, que usavam faixas cor de quaresma sobre as fardas de gala e traziam os dedos sáurios em louvados de negro, não possuindo mais nada de seu: nem o cabelo, nem o bigode com que lambiam a hierarquia dos poderes militares, de baixo para cima. Havia sargentos excedentários nos depósitos e arrecadações de víveres, outros à sombra dos paióis e das secretarias, outros de quem se dizia serem de uma palidez assustada, de uma fealdade fria, com o mistério profissional que a toda a gente lembrava negócios secretos, expedientes turvos, favores, homossexualidades reprimidas. Havia cabos gorduchos, de fardas muito coçadas pelo uso, com uns olhos alcoólicos e muito propósito de estragar a vida dos inferiores – campónios pouco mais do que analfabetos que pela mesma via das comissões sucessivas de serviço no ultramar reclamavam a promoção a sargentos. A outra realidade da guerra começava na figura dos colonos, donos de tabernas, mercearias e lojas de roupa, alguns dos quais, ao serem desmobilizados, acabavam por ficar em África, cafrealizados em pleno mato. Outros perdiam-se por outros caminhos, no tráfico dos homens contratados para irem trabalhar como escravos nas roças e fazendas, nos negócios do café e do algodão, nos comércios e contrabandos das cidades”.

Mas João de Melo tece considerações ainda mais punitivas:  
“Colonos de ontem e de hoje. Antes, usavam caçadeira e chicotes sangrentos nas costas nuas dos negros. Agora, dão o braço aos funcionários da Administração, aos polícias à paisana, ao regedor e ao pároco”. Parte a coluna e entra em cena João de Melo com o nome de furriel Gouveia, o enfermeiro, é um apóstolo estimado por todo aquele gentio: “As 750 pessoas de Calambata, entre militares e civis, ficavam entregues ao expediente, à intuição clínica e ao honesto estudo de Gouveia, um rapaz que sofria de insónias e não dava nada por aquela guerra nem por outra qualquer. A esperança do furriel estava toda posta nas crianças desprotegidas de Calambata, nos partos improvisados, no olhar de lodo e de pura bondade das velhas senhoras, que se sentavam à porta das suas cubatas, na tensão arterial, no pulso agónico dos anciãos, nos assobios de asma que se lhes soltavam dos pulmões para os seus ouvidos. Vacinava os meninos contra a cólera, a difteria, o sarampo, a Varíola e a tuberculose”. Parece que este furriel Gouveia precisa de ser vigiado, jamais o leitor merecerá a explicação sobre o seu passado antifascista ou os seus credos anticoloniais.

E temos a apresentação das crianças que vêm até ao quartel à espera das sobras do rancho:  
“Os pobres infelizes meninos atacaram em bando os caixotes do lixo rasparam com as mãos o arroz encaroçado no fundo dos tachos e panelas, serviram-se de gravetos para remover as bolas de cimento do esparguete e as cabeças do peixe. Com as mãos a servirem de conchas, foram pondo para dentro das latas enferrujadas, com uma pressa de predadores, porções de sopa, pedaços de pão ensopado no caldo, os ossos mal raspados ou ruídos que levaram para os irmãos mais novos e mais velhos, para mamã doente, para vavó com fastio de morrer em breve”.

E a trama romanesca volta a centrar-se nas sanzalas de Calambata.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)