sexta-feira, 8 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20951: (In)citações (146): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte I: "A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar" (Abílio Machado)


Viana do Castelo > 16 de Maio de 2009 > 3º Convívio do pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, , 1970/72). > O ex-alf mil capelão Arsénio Puim veio propositadamente dos Açores. (Aliás, voltaria no ano seguinte, para o 4º convívio, que se realizou em Corcuhe, em 27 de março de 2010.)

Há 38 anos que não via nem abraçava os seus camaradas e amigos do batalhão e subunidades adidas (**).  Para ele, o fim da comissão de serviço, no TO da Guiné. acabou abruptamente, ao cabo de 12 meses, em maio de 1971, com a sua expulsão das fileiras do exército e do CTIG.

Foto (e legenda):  © Benjamim Durães (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do Miguel Puim, economista, filho mais novo do nosso camarada Arsénio Puim, recebemos, há mais de dois meses, o seguinte pedido:

Data: domingo, 16/02, 16:54

Assunto: Guiné, Arsénio Puim


Caro Luís Graça,

Apresento-me,  referindo que sou filho de Arsénio Puim, com o qual conviveu na Guiné. No próximo dia 8 de maio, Arsénio Puim fará 84 anos. (*)

Neste contexto, encontro-me a juntar um conjunto de felicitações / depoimentos sobre o meu pai, feitos por quem o conhece e com ele conviveu em diferentes etapas da vida, com o intuito de lhe ser oferecido no seu dia de aniversário.

Neste sentido, gostaria muito de poder contar com uma mensagem sua de felicitação. Tendo em conta igualmente que conviveu com o meu pai na Guiné, gostaria ainda de lhe pedir um testemunho sobre o meu pai, destacando algo que entenda relevante relativamente à sua ação na Guiné.

Poderia igualmente indicar-me a quem acha que devo pedir um testemunho (e se possível respetivos contactos de e-mail)? 

Tendo em conta que se pretende (vamos ver se será possível!) manter a surpresa, agradeço que não lhe refira este pedido até à data do aniversário.

Muito obrigado, Miguel Puim.


2. O nosso editor Luís Graça prontificou-se, de imediato, a colaborar com o Miguel, e fez contactos com outros camaradas que conviveram com o ex-alf mil capelão Arsénio Puim, em Bambadinca, ao tempo da CCS/BART 2917 (1970/72), da CCAÇ 12 (1969/71) e de outras subunidades, como o Pel Caç Nat 52, o Pel Caç Nta 63, o Pel Rec Daimler 2206, etc.

Foi possível juntar, em tempo útil,  com discreção, e em plena pandemia de COVID-19, alguns testemunhos, que aqui reproduzimos, com a devida autorização dos próprios e do Miguel Puim.

Um dos camaradas mais próximos do Puim foi o Abílio Machado, ex-alf mil, da CCS. No mail em que mandou, em anexo, o seu depoimento, escreveu o seguinte:

 "(...) O Puim (...) está seguramente entre  as pessoas que me marcaram e com quem convivi mais estreitamente em Bambadinca (além dos furriéis  da CCAÇ 12 - ainda hoje me pergunto porque me fui juntar a tal grupo de malandros, eu, o Bilocas"... ).

O Abílio Machado  tem 15 referências no nosso blogue.   Foi alferes miliciano, com a especialidade de contabilidade e administração, pertenceu à CCS (Companhia de Comando e Serviços) / BART (Batalhão de Artilharia) 2917, sediado em Bambadinca, 1970/72.

Foi também  um dos fundadores do grupo musical "Toque de Caixa"; vive na Maia; é autor do "Diário dos Caminhos de Santiago" (Porto, 2013). 

Profissionalmente, foi quadro superior da indústria farmacêutica. É pai de filhos e avô de netos...É natural de Riba D'Ave, Vila Nova de Famalicão... A malta da CCAÇ 12 (, eu, o Tony Levezinho, o Humberto Reis, o Gabriel Gonçalves...) tratávamo-lo, com todo o respeito e ternura, por "Bilocas", o "Bilocas da Cooperativa"... Referência às suas origens, em Riba d'Ave.

O Machado era "habitué" das nossas noites loucas no bar de sargentos de Bambadinca, um "bar aberto", se bem que o Arsénio não o frequentasse, a não ser pontualmente: falávamos mal, bebíamos em excesso, ladrávamos contra os "cães grandes", invectávamos Deus e o Diabo... Havia mais alferes, como o J. L: Vacas de Carvalho, do Pel Rec Daimler 220que tocava viola, bem como  praças, por exemplo, o 1º cabo cripto da CCAÇ 12, o GG, o Gabriel Gonçalves, também outro exímio tocador de viola...O bar de sargento de Bambadinca, naquela época, era a única "ilha"  da "cova do lagarto" (nome de Bambadinca, em mandinga) onde não havia "apartheid"...


Lisboa > Centro Comercial Colombo > Loja FNAC > 12 de março de 2010 > Apresentação, ao vivo,.  do novo CD ", "Cruzes Canhoro", do grupo musical "Toque de Caixa" Edição: Ocarina. N foto, de pé, à esquerda, o porta-voz (e co-fundador) do grupo: Abílio Machado (que esteve connosco em Bambadinca, entre maio de 1970 e março de 1971; ex-Alf Mil, CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72. fizemos lá uma bela amizade: ele, um periquito, um alferes de secretaria da CCS, e nós, operacionais, "pretos de 1ª classe", da CCAÇ 12, uma companhia de intervenção africana, ao serviço dos senhores da guerra de Bambadinca e de Bafatá; nós, eu, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Zé da Ilha, o GG - Gabriel Gonçalves e outros, noctívagos, que gostávamos de cantar, beber, conviver, de preferência, pelas altas horas da noite... 
A malta de Bambadinca apareceu em força: aqui o Machado troca impressões com  ex-alf mil sapador Luis R. Moreira (DFA,  reformado como professor do ensino secundário) e Júlio Campos, ex-fur mil sapador, ambos da CCS / BART 2917... O Júlio, de rendição individual, chegará a Bambadinca em março de 1971, quando a malta da CCAÇ 12 faziam as maltas, aguardando o respectivo periquito... Menos de dis meses seria expulso das fileiras do exército e do TO da Guiné o ex-alf mil capelão Arsénio Puim.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. Depoimento de Abílio Machdo > Arsénio Chaves Puim:  A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar. 

Dizem-me que botas já p’ra riba de dois carros, não sei se em Sta. Maria que te deu à luz usam vocês estes ditos quando se quer dizer que alguém tem mais de 80; seremos só nós aqui no Minho a usá-los, meio galegos somos, e rurais, que até avaliamos a idade do vizinho pelos alqueires de milho que uma junta de bois carrega.

Mas vamos ao que aqui me trouxe.

Pediram-me um testemunho, testemunho darei, porque testemunha fui de tudo o que vou contar. E interveniente.

Se isto tribunal fora e juiz houvera, diria que abono em favor da vítima… e da vítima direi que, cordeiro imolado, julgada vencida, ressurgiu vencedora. Dos réus, que os há, alguns já lá estão; outros, se o não saldaram neste mundo, no outro o pagarão: é a esperança que fica a quem, incréu como eu, já não crê em outros mundos, tão assustador lhe parece este.

* 1

Alguém me fez chegar a notícia que algo se passava com o Pe. Puim.  Larguei o serviço. Entrei. Irrompi, diria melhor, pelo quarto dentro.

O Puim, sentado na cama, enxovalhado ( o enxovalho só deslustra quem o lança… ), mas não humilhado (só nos humilha quem nós deixamos)…

Sento-me ao seu lado, pergunto mais por gesto que palavras “que se passa?“.  Não responde…

Vasculhavam o quarto, dois ou mais serventuários…

- Nosso alferes, não pode estar aqui… - alguém me diz.

Tive de sair, expulso do quarto.  Já não fui para o gabinete, fiquei por ali, na parada, à espera do desenlace.  O tempo passou… vi passar o Puim a caminho do DO 27, mais sereno, apesar do terror que tal barcarola sempre lhe causou.

E fiquei-me por ali a pensar que negro destino lhe reservariam… e a rememorar o companheiro de tantos momentos e desabafos.

( A coragem de um padre que não abdicou de o ser lá onde era o seu sítio: o altar.

Já corriam, porventura trazidos pela brisa que vinda de certa Casa ribeirinha se espalhava às vezes serena, às vezes inquieta pela parada do quartel, uns ditos de que o padre Puim se desmandava nas homilias. – escrevi eu no blog Luis Graça e camaradas da Guiné).


No dia 1 de Janeiro de 1971, Dia Mundial da Paz, sobre a paz predicaste. Disseste-mo.

Eu não ia às tuas missas, como sabias: as minhas missas contigo eram grandes conversas, edificantes, pela noite fora.

( Lembro que uma das últimas missas a que assisti, à boca de ser arregimentado para Mafra, foi em Macieira da Lixa: oficiava o Padre Mário, corriam gentes dos quatro cantos do Norte a ouvi-lo, não crentes dos mistérios divinos muitos deles, mas sequiosos todos da palavra.

Só mais tarde – ironias que o Olimpo nos reserva – vim a saber que o Pe. Mário tivera, anos antes, o destino que te estava reservado.

Também despadrou, como tu… tenho comigo que é mandinga que a Guiné lança aos padres jovens e generosos, a dizer-lhes que o seu reino é deste mundo e nele devem exercer a palavra, o Verbo).

Poderá ter sido a ajuda, o desvelo com que trataste as mulheres e crianças capturadas em certa operação e abandonadas à sua sorte, sem eira nem beira, como dizemos por cá, sem

grão para comer nem palha para deitar.

Poderá… mas para mim, foi a palavra que te condenou.

Verba volant, scripta manent: as que são ditas do altar não as leva o vento, calam dentro dos espíritos como recados escritos na pedra.

Não esqueças que em certos domingos deixávamos o quartel, descíamos ambos a ladeira que levava ao Geba e ancorávamos em certa casa: Casa Gouveia.

A umas entradas de banana-pão salteada de pequenos cubos de salpicão frito, seguia-se um chabéu (que, como a Coca-Cola, primeiro se estranha e depois se entranha, como dizia o outro ) arrastado, lento pela tarde fora: os fígados jovens a deslaçar o óleo de palma.

E uma ou duas bazucas a acompanhar, que calor está hoje, santo Deus!

Varreu-se-me de todo de como surgiu o convite e criámos o hábito de tais repastos: ao invés lembro bem que o dono da casa se dava por Mesquita e que fora nado e criado em Joane, V. N. de Famalicão, a dois passos da minha terra, do outro lado do cabeço do monte.

Mal te levaram, nunca mais lá voltei… ainda veio um convite, não houve segundo.
*2

O caso do furriel Uloma, da cabeça decepada e das fotos é agora contado …

Tu eras um dos presentes, por certo. Era o fim do jantar em que passávamos ao bar para os digestivos… retomávamos o debate tido durante o repasto sobre a natureza do exército, a sua intervenção na sociedade, o problema da guerra, das guerras, com o comandante Magalhães Filipe a sustentar a controvérsia… eis senão quando, a uma observação sua sobre a ética militar, rapo do bolso duas fotos da cabeça que trazia comigo e mostro-lhas:

- Diga-me, meu comandante, como é que um exército que se pauta por esses princípios se permite actos destes?

Um silêncio de cemitério…

De imediato, reunião do comando e, com o 2.º comandante a coordenar a caçada, ordens para chamar os autores das fotos, saber a lista dos compradores e proceder à recolha de todas.

Compreenda-se o pânico do comando, o país via-se isolado no contexto internacional, devi-do à ditadura e à sua política colonial… o Papa Paulo VI, amigos, recebera os líderes dos movimentos rebeldes, a psico do Spínola caminhava o seu caminho, fotos daquelas eram fogo nas mãos do inimigo.

Quem fosse por essa altura iniciado na política – eu passara por Coimbra nos anos da brasa – sabia que documentos desse tipo dariam não pequeno desassossego ao ministro Rui Patrício.

Eu próprio - tinha comprado 6 fotos – fui com o cabo Silva, do meu departamento e um dos autores das fotos, ao local onde se depositava o lixo e, miraculosamente, consegui, de dedo no nariz, três ou quatro bocados de fotos que comprovavam o que dissera, que às minhas, agoniado, as deitara ao lixo.

Algumas chegaram à Metrópole (duas trouxe eu: estão nas mãos de um conhecido comentador político e hoje com uma obra meritória de recolha de material de interesse histórico, “efémero” ou não…). Quebremos a confidencialidade, vamos aos arcanos da memória: o citado comentador, pelos fins dos anos 60 era visita assídua da minha terra e de casa do meu futuro sogro, e, por alturas de 73, recruta-me para o CMLP( Comité Marxista-Leninista Português), passando a ser o meu controleiro.

Numa conversa sobre a guerra, falei das fotos: entreguei-lhas… pelo meticuloso que é, não duvido que as tenha ainda hoje em sua posse.

*3

Li, num dos excertos do teu diário, publicado no blog, que também andaste no barco turra.  Sim, eu fui contigo para Bissau, em missão de patacão… irias tu prestar contas ao [Major Capelão] Gamboa?

O Batalhão rejubilava quando o Machado (Machadinho, na tua versão), a cada mês, pasta na mão, rumava a Bissau ao BNU levantar manga de patacão.

Não pouco trabalho me deu a missão nos primeiros meses: as notas bem eu as acadimava, agora as moedas (traze-me moedas para pagar aos praças – pedia-me o 1.º Brito ) enchiam um saco militar de uns bons vinte quilos.

Com o tempo, conheci outros tesoureiros: sincronizávamos a ida a Bissau, ao jantar, um ficava de atalaia ao patacão de três ou quatro batalhões, dormíamos em sobressalto, por travesseiro um monte de notas como nunca mais veria em dias da minha vida…


*4

E lembro, claramente lembro a noite em que no teu quarto ouvimos (sigilosamente, como se fora a Rádio Moscovo) na Rádio Conacri as primeiras declarações do tenente Januário sobre o assalto à cidade capital da ex-Guiné francesa.

Após a passagem, certa noite, dos Comandos Africanos por Bambadinca (manga de ronco, nosso alferes!), em que a expectativa se juntava ao secretismo da missão, uma barafunda tamanha, euforia que anunciava coisa grossa, as declarações do Januário foram para nós a certeza de que o ataque fora obra nossa e nem tudo correra bem ( guardei para mim um secreto contentamento…)

O regresso dos Comandos (uma feira: kalash.s à venda, guitarras eléctricas, chapéus cubanos, alguém me presenteou com um ), mais cimentou a ideia de que todo o espalhafato, o ronco, mal escondiam o desaire da missão.


*5

Termino, em jeito de memória:

Foi mais ou menos assim
que se passou com o Puim,
padre daquela fornada
do Vaticano segundo
e capelão militar:
criticou a hierarquia
por usar e abusar
dos prisioneiros de guerra,
velhos, mulheres e crianças…

O romanceiro do Padre Puim que o Carlos Rebelo escreveu…

Carlos com quem me encontrei um dia, aqui nesta parvónia encostada à Maia: morava à distância de uma pedrada de mim. E que, malfadadamente pelo que tinha ainda para dar à vida e dela receber, a doença levou tão jovem. Vi-o bastas vezes, umas debilitado, outras como ressurgido, até que a morte o levou consigo.

Para onde um dia todos iremos.

Não tu, Arsénio Chaves Puim, que não te deixamos ir: nos nossos corações permaneces porque da tua vida fizeste exemplo que orientou a nossa, a dos que te estimam e amam.

Abílio Machado (***)

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Notas  do editor:

(*)  Vd. poste de 8 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20950: Parabéns a você (1799): Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

(**)  Vd. poste de 23 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4404: Convívios (136): CCS do BART 2917: a emoção do reencontro, 38 anos depois (Arsénio Puim)

Guiné 61/74 - P20950: Parabéns a você (1799): Arsénio Puim, ex-Alf Graduado Capelão da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/71)

____________

Nota do editor:

Último poste da série: 5 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20941: Parabéns a você (1798): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20949: (De)Caras (159): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VIII: O último comerciante branco de Pirada?... Depoimento de Frutuoso Ferreira, ex-1º cabo at cav, 3ª C/BCAV 8323 (set 1973/ set 1974)


Frutuoso Ferreira, em 2009, ostentando na mão esquerda um exemplar da história da sua unidade, o BCAV 8323 (Pirada, set 1973/set 1974). Fonte: cortesia de Jornal das Caldas


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor L6 > Pirada > BCAV 8323 (1973/74) > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão  Jorge Matias, à esquerda, de perfil, e ao centro, em primeiro plano, o célebre comerciante Mário Soares, até então uma verdadeira "eminência parda".  o seu papel de ligação das NT com o PAIGC, via autoridades senegaleses, ainda é pouco conhecido. (*)

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o nosso grã-tabanqueiro António Rodrigues (e que foi reforçada por uma secção do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva).(**)

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Percorrendo a Net fui encontrar o depoimento de uma camarada da minha terra, Lourinhã, que esteve no TO da Guiné durante um ano (Set 73/Set 74) e que pertenceu ao BCAV 8323/73- Seu nome: Frutuoso João Ferreira. 

Esse depoimento está publicado no sítio do Jornal das Caldas (edição em linha),  um semanário da região do Oeste, que tem (ou tinha, em 2009), como diretor Jaime Costa e chefe de redação Francisco Gomes. Mantém também uma página no Facebook.

Por se revelar de grande interesse para os nossos camaradas que estiveram no leste da Guiné, no final da guerra, já tomámos em tempos a liberdade de reproduzir aqui, no nosso blogue, com a devida vénia, um excerto extenso do artigo, baseado numa longa entrevista. (***)

Na altura, tivemos ocasião de dar os parabéns ao autor do artigo, o Francisco Gomes  e ao seu jornal, bem como um alfabravo ao entrevistado, oosso camarada Frutuoso (e, no meu caso, conterrâneo). Bem gostaria que ele aceitasse, no caso de nos ler, o nosso convite para se juntar à nossa Tabanca Grande e de ter acesso à história da unidade.

Faltam-nos, infelizmente, no nosso blogue, mais depoimentos dos "últimos guerreiros do império". Por uma razão ou outra (pudor, medo de censura social, falta de tempo, de disponibilidade, de motivação, de oportunidade, etc.), muitos dos nossos camaradas que chegaram à Guiné nos último meses que antecederam o fim da guerra e o regresso a casa, ainda não passaram para o papel (ou  para o ecrã do computador) as suas memórias desse tempo, e os sentimentos contraditórios que muitos terão experimentado aquando da retração do nosso dispositivo militar, da "transferência da soberania" e, enfim,  do "regresso definitivo das naus"... Foram eles que arrearam, de vez, a bandeira portuguesa em terras da Guiné.

Por outro lado, os militares da CCS e da 3ª C/ BCAV 8323 (1973/74) foram a passar por Pirada. E sabemos que alguns dos seus oficiais foram visita da casa do comerciante Mário Soares (, que de resto só recebia oficiais...)

A crer na versão do Frutuoso Ferreira, o Mário Soares seria o único comerciante branco que restava em Pirada, onde vivia com a esposa e uma das filhas (, talvez a mais nova). Não sabemos exatamente o que lhe terá acontecido depois do 25 de Abril.

Temos a versão do ex-alf mil médico José Pratas, CCS/BCAV 3864 (Pirada, 1971/73):

(...) “Poucos dias depois, [o Mário Soares]  seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo [, Carlos Fabião], o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...) (****)

Também temos uma preciosa informação Domingos Pardal, chegada até nós, através do Manuel Luís Lomba, dois camaradas da CCAV 703... O Domingos, vou-o encontrando de tempos a tempos em Algés, na Tabanca da Linha... É um conceituado empresário, de Pero Pinheiro, a indústria de rochas ornamentais. Veja.se aqui o comentário do poste P20927 (*****):

(...) "O camarada Domingos Pardal, que se amesenda nas tainas da Tabanca da Linha, acaba de me dizer que o famigerado Mário Soares de Pirada veio parar a Aljezur, como retornado, o IARN financiou-lhe uma oficina de mármores nessa vila, que pouco tempo depois  entrou em falência" (...)

Isto significa que o Mário Soares não ficou na Guiné-Bissau, depois da independência, contrariamente à informação da historiadora Maria José Tríscar.


Tabanca da Linha > 35º convívio > Algés > 18 de janeiro de 2018 " Dois "homens grandes" de Buruntuma: da esquerda para a direita, o Jorge Ferreira e o Domingos Pardal, um de Oeiras, outro de Sintra.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > CCS/ BCAV 8323 (Pirada, 1973/74) > "Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1973. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu, à direita)"... De pé o criado Demba. Na parede, ao fundo, uma reprodução do célebre quadro do Picasso, "Guernica" (1937). A fotografia deve ter sido tirada pelo próprio Mário Soares.... [Quanto ao "tesoureiro", não seria antes o comandante da Companhia de Comando e Serviços (CCS), o tenente SGE Francisco Costa, de Coimbra ?]

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Recorde-se aqui a ficha do BCAV 8323/73:

(i) foi mobilizado pelo RC 3 (Estremoz);

(ii)  partiu para o TO da Guiné em 22/9/1973 e regressou 10/9/1974;

(iii) esteve um mês em Bolama a fazer a IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional;

(iv) de regresso a Bissau em 31/10/1973, o batalhão é colocado  em Pirada, setor L6, região de Gabu. leste da Guiné;

(v) comandante: ten cor cav Jorge Eduardo Rodrigues y Tenório Correia Matias [, natural da Ericeira, Mafra];

(vi) unidades de quadrícula: 1ª C/BCAV 8323/73: Paunca, Bajocunda; 2ª C/BCAV 8323/73: Piche, Buruntuma, Piche; 3ª C/BCAV 8323/73: Pirada;

(vii)  o facto mais saliente dessa época foi a heroica defesa do destacamento de Copá (, seguida depois  da sua  retirada, em 12/13 de fevereiro de 1974, por ordem expressa de Bissau).

Temos quatro dezenas de referências, no nosso blogue, a este batalhão, a maior parte relacionadas relacionadas com os acontecimentos de Copá, e aos bravos de Copá. Como se sabe, este destacamento acabou por ser retirado pelas NT em 14/2/1974. Pertencia à 1ª C/BCAV 8323/3, sedidada em Bajocunda.

Alguns camaradas deste Batalhão ("Os cavaleiros do Gabu"),  que integram a nossa Tabanca Grande, e que referenciamos numa pesquisa rápida pelo blogue:

(i) Amílcar Ventura, ex-fur mil da 1.ª C/BCAV 8323/73, Bajocunda, 1973/74, natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2009;

(ii) António Rodrigues, ex-soldado condutor auto 1.ª C/BCAV 8323/73 (Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma); é o autor da notável série "Memórias de Copá" (de que se publicaram pelo menos 6 postes):

(iii) Fernando [Manuel de Oliveira] Belo, ex-soldado condutor da 3.ª CCAV/BCAV 8323/73, Pirada, 1973/74;

(iv) Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74).


3. Excertos de  Memórias da Guerra na Guiné > Frutuoso Ferreira > Jornal das Caldas, 28 de Janeiro de 2009  (Texto de Francisco Gomes)

[Adaptação, fixação e revisão de texto, para efeitos de publicação nosso blogue: LG]

Frutuoso João Ferreira, ex-1º cabo atirador  acv da 3ª C / Batalhão de Cavalaria 8323/73 (Pirada. 1973/74)

(i) nasceu em Abelheira, Lourinhã, em 1952 ou 1953 
(, tinha  56 anos, quando deu a entrevista);
(ii) antes de ir para a tropa, foi pedreiro da construção civil;
(iii) em 22 de setembro de 1973, partiu para o TO da Guiné,
no T/T Niassa,  já casado e com um filho;
(iv) depois, regressar à vida civil,  continuou a trabalhar como pedreiro, 
na sua terra natal,  por mais quatro anos;
(v) em 1978, ingressou na guarda-fiscal;:
(vi) a partir de 2005, passou à situação de reserva 
da Brigada Fiscal da GNR, estando hoje aposentado.


(...) “Quando acabou a formação [, o IAO; em Bolama], regressámos no dia 31 de Outubro [de 1973], a Bissau e deslocámo-nos para Pirada, uma pequena povoação que ficava a poucos metros da fronteira do Senegal, onde o inimigo – os guerrilheiros do PAIGC – tinha algumas das suas bases”; (...)

(...) Em Pirada estava a CCS e a 3ª companhia: “A nossa missão era proteger [a sede do batalhão,] e as populações locais – os brancos que lá havia era só um casal de comerciantes e a filha [, referência ao comerciante Mário Soares];

(...) "O comandante da Companhia de Comando e Serviços (CCS) era o tenente Francisco Costa, de Coimbra. O capitão Ângelo Cruz, da Amadora, chefiava a 1ª Companhia, enquanto que o capitão Aníbal Tapadinhas, de Lisboa, comandava a 2ª. Integrava ainda o Batalhão a Companhia de Caçadores 11, que tinha à frente o capitão Nuno Sousa, de Lisboa." (,,,)

(...) "Eu estava no 4º pelotão da 3ª companhia, comandada pelo capitão Ernesto Brito, de Lisboa. O alferes Alípio Cunha, de Vila Nova de Famalicão, comandava o meu pelotão e havia três furriéis – o Sousa, o Simão e o Esteves. Os outros comandantes de pelotão eram os alferes Manuel Gonçalves, Rodrigo Coelho e António Pereira, respectivamente do Fundão, Pinhel e Amarante",(...)

(...) "Foi numa dessas alturas que passei o primeiro susto e momento aflitivo. Quando íamos para Bajocunda, a 13 de Dezembro [de 1973], foram detetadas várias minas anticarro. Toda a gente se protegeu, ficando só o sapador da CCS – o soldado Fernando Almeida – que as levantou. Repetiu a operação quatro vezes, só que a seguinte foi-lhe fatal”. (...)

(...) “Gritava ele [, o sapador Fernando Almeida,]  para o alferes Alípio Cunha, dizendo-lhe, satisfeito, que ao levantar a quinta mina já tinha dinheiro para ir à metrópole de férias (a passagem de avião custava cerca de quatro mil escudos) [,  cerca de 845 euros; a preços de hoje]" )...)

(...) Os sapadores recebiam do Estado mil escudos" [, cerca de 211 euros, a preços de hoje...]  "por cada mina anticarro que levantassem"...

(...) Mas a mina estava armadilhada com outra antipessoal e rebentou” (...)..

(...) “O corpo ficou todo desfeito aos bocados, espalhados pelo mato. Um pé foi cair à minha frente. Juntou-se o que se pôde e ficámos muito impressionados e desmoralizados. Não estávamos assim há tanto tempo na Guiné e já havia uma baixa. A partir daí sentimos que estávamos na guerra a sério”, (...)

(...) No dia 18 de Dezembro houve um ataque inimigo a Amedalai e a 7 de Janeiro [de 1974] houve em Bajocunda uma emboscada com armas ligeiras a uma coluna que ia abastecer um pelotão que estava em Copá. Morreram dois soldados – Sebastião Dias e José Correia, da 2ª Companhia, que ficaram em cima das duas Berliet destruídas. O pelotão a que pertencia  o Frutuoso Ferreira] foi escalado para ir lá buscar os corpos e tentar trazer o que restava das viaturas, operação difícil mas conseguida.

(...) Durante o mês de Fevereiro [de 1974] registaram-se várias investidas em Copá e Bajocunda. A 1ª companhia também sofreu ataques e morreram o 1º cabo António Ribeiro e os soldados Rui Patrício, Silvano Alves e José Oliveira.

(...) “Passados uns dias fomos fazer protecção a Sissaucunda, povoação a quinze quilómetros de distância de Pirada, com meia dúzia de palhotas. Cada pelotão permanecia naquele fim do mundo durante um mês. A nossa alimentação era ao almoço arroz com marmelada e ao jantar esparguete com atum. No dia seguinte era quase a mesma e só variava com arroz com salsicha” (...)

(...)  "No dia 13 de Abril [de 1974] brindou-os [. ao Frutuoso Ferreira e seus camaradas] om um ataque de mísseis lançados desde o Senegal. O destino era Pirada" (...)

(...)  “Vi os mísseis passarem por cima de Sissaucunda e começámos todos a correr para as valas escavadas no chão para nos protegermos. Sentia os mísseis a ‘assobiarem’ por cima de nós e poucos segundos depois a caírem em Pirada. O objectivo deles era atingir o quartel, mas caíram na povoação e mataram muitos civis” (...)

(...) No dia 25 de Abril [de 1974], o PAIGC voltou a atacar Pirada e mataram civis africanos, mas “da nossa parte não houve feridos nem baixas” (...)

(...) A partir de 25 de Abril de 1974, em virtude das modificações políticas ocorridas em Portugal, “não tivemos mais problemas na Guiné, porque iniciaram-se os contactos e conversações com os chefes da zona, entre as nossas tropas, o PAIGC e a população." (...)

(...) "Ainda bem que assim foi, porque a guerra estava tão acesa naquele setor, que se tem continuado mais tempo não sei se estaria cá para contar a história”. (...)

(...) “A primeira vez que encontrámos o inimigo já como amigo, na fronteira do Senegal, houve um sentimento estranho. Mas baixaram as armas e começámos a trocar tabaco e bonés” (...).

(....)  “Passámos o resto do tempo a recolher material bélico [, das NT,] e, na companhia do PAIGC a fazer propaganda política”.

(...) A 21 de Agosto procedeu-se à entrega de Paunca ao PAIGC. No dia seguinte foi a vez de Bajocunda e a 25 de Agosto seguiu-se Pirada, com a recolha da CCS e da 3ª Companhia a Bissau.

(...) O Frutuoso Ferreira ainda prestou serviço no quartel-general em Bissau a guardar o palácio do brigadeiro Carlos Fabião, comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné.

(...)  No dia 4 de Setembro, na parada do BCP 12, em Bissalanca, cerca de 500 homens do [BCAV] 8323 uniram-se em formatura geral, “sentindo cada homem palpitar dentro do seu peito a dignidade do soldado português, que enfrentou os perigos de uma guerra dura” (, as palavras são do entrevistado)

(...) O regresso  a Portugal foi no dia 12 de Setembro de 1974.
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15323: Em busca de... (262): Pessoal de Pirada ao tempo do BCAV 8323/73... Quem ouvir falar do episódio em que o ten cor cav Jorge Matias terá recebido, em janeiro de 1974, por intermédio do comissário político do PAIGC, em Velingará, um tal Biai, um pedido de Luís Cabral para entabular conversações com as autoridades portuguesas? (José Matos, historiador)

(...) Olá, Luís

Precisava de uma pequena ajuda tua, no sentido de divulgares uma situação que se passou em Pirada em janeiro de 74.

Nessa altura, o comandante do Batalhão de Cavalaria 8323/73, o ten cor Jorge Matias, recebeu uma informação do delegado político do PAIGC, em Velingará, um tipo chamado Biai, de que Luís Cabral queria falar com as autoridades portuguesas.

Perguntava se algum dos camaradas que estava em Pirada nessa altura ouviu alguma coisa sobre isso e se pode contar...

Ab

José Matos (...) 


quarta-feira, 6 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20948: Historiografia da presença portuguesa em África (208): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Digamos que não se encontra aqui um relato singular de alguém que anteriormente percorrera o território com responsabilidades no levantamento topográfico, a configuração das fronteiras da Guiné Portuguesa, trabalho que, como é sabido, se prolongou até à primeira década do século XX, com vários contenciosos luso-franceses pelo caminho. É um escritor marcado pelo formalismo mas o que mais entusiasma e nos faz sorver estes parágrafos aparatosos é o fascínio africano, ilimitado, viera com medos, até de escaramuças ou de encontrar pela frente antropófagos, rende-se à paisagem, inclusive a humana, uma bela flor de 13 anos fê-lo subir ao Sétimo Céu...

Um abraço do
Mário




“Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1)

Beja Santos

No descritor reservado à Guiné-Bissau, na Biblioteca Nacional (com centenas de obras consultáveis), dá-se nota de uma obra que nunca se vira referenciada em nenhuma bibliografia. Trata-se de uma edição da Parceira António Maria Pereira, a data é 1891, tem ilustrações primorosas para os três territórios visitados, acicata-se a nossa curiosidade, a Guiné autonomizara-se recentemente de Cabo Verde, que surpresas nos reserva este autor, que se descobrirá, mais adiante, que colaborou no levantamento das fronteiras da Guiné Portuguesa?

É comprovadamente um autor culto, bom observador, de escrita clássica, como se mostra, depois de nos ter falado exaustivamente da Madeira e de como aqui se tratavam os tísicos e o feitiço que lhe provocou o arquipélago cabo-verdiano:
“Três dias depois demandávamos a Guiné; e ao aproximar-nos desta terra fantasticamente delineada pelas tradições, onde a muitas milhas de distância o prumo marca seis a oito braças no seu contar de vaticínios, ao sulcarmos estas águas turvas e eriçadas de escolhos, onde os receios parecem receber o baptismo de realidades, encarando a expressão triste do espectáculo que se alarga de fronte, essa ondulação monótona de águas correntes onde apenas se desenha alguma ilhota verdejante, respirando o ar abafado em que parece errar a exalação quente de um resfolegar cansado, arreigou-se-nos por tal modo o convencimento das terroristas narrativas, que, como em caleidoscópio gigante, começámos a divisar pela imaginação, emboscadas sem número, através de matagais sem eco, feras hercúleas em rixas de estremenho, azagaias multiformes molhadas em venenos subtis… cobras despedaçando bois… crocodilos fazendo soçobrar embarcações… E como fundo deste quadro de uma compostura dantesca, os pântanos dormentes.”

João Augusto Martins é conhecedor do que fala, não há encómios ocos nem entusiasmos convencionais. Chegam a Bissau e daqui partem para Bolama numa baleeira, diz que foram acolhidos principescamente, fizeram piqueniques, visitaram tabancas de Fulas e de Brames e de Mouros, participaram em caçadas e ficaram hospedados em Bambaya, feitoria da casa Blanchard. Escreve enfeitiçado, galvanizado: “Atravessámos ao impulso entusiástico das caçadas magníficas florestas dez vezes seculares, guarnecidas de campinas tapetadas por vegetações colossais, onde a gazela salta com o frémito da sua fuga vertiginosa, e bandos de pássaros de todos os tamanhos e de todas as espécies matizam o horizonte com as cores vivas das suas penas brilhantes”.
E alarga-se no seu êxtase:
“Uma paisagem severa, calma e selvagem, grandiosa de toda a espontaneidade de um sol virgem, onde o caminhar, por mais que se estenda, não encontra um traço de cultura, e a vista, por mais que se alongue, não enxerga vestígios da presença do homem. Por todos os lados, a distâncias que se não podem calcular, cumeadas espessas de árvores elevando-se a alturas prodigiosas, e, em seguida, sem transição, subitamente, enormes tufos de verdura dessas esplêndidas espécies tropicais; lagoas mostrando meandros infinitos; riachos arrastando arcadas de folhas e de flores… e aqui e ali, escondidos à sombra de ervas curtas e espessas, pântanos traiçoeiros, onde a sanguessuga e a rã se espreguiçam aos raios ardentíssimos de um sol abrasador”.

E se a paisagem possui este fulgor, a beleza feminina não fica atrás:
“Foi numa dessas excursões extraordinariamente impressionistas que deparámos em África, onde a mulher geralmente pelas formas nos faz pensar nos manipanços, que nos foi dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo que há de mais irresistível nas atracções do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes da África. Tinha apenas 13 anos, e a adolescência irrompia nas indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica de suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo enfim… tudo se resumia nesta criatura como em síntese de encantos, de onde irradiava a sensação das místicas simpatias e as horripilações dos loucos desejos”.

Gravura que mostra o canal de Bolama.

O autor diz tratar-se de uma paisagem da Senegâmbia.

Legenda lacónica: Guiné Portuguesa, uma tabanca.

Quase não precisa de comentário, vê-se como o autor se assombrou com a baga-baga.

Uma bela gravura mostrando o régulo de Canhabaque e dois fiéis com longas

Descreve-nos Bissau, convém não esquecer um conjunto de documentos já aqui referenciados, alguns deles em depósito nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Vejamos o que nos diz João Augusto Martins:
“A vila de Bissau, sede do concelho, que por decreto de 4 de Julho de 1883 compreende o presídio de Geba, Fá, S. Belchior e todos os mais pontos ocupados e por ocupar nas margens do rio Geba, é uma pequena cidadela, de população limitadíssima, cercada ao norte, este e oeste por um fosso já semi-atulhado que acompanha paralelamente da banda de fora uma muralha de quatro metros de altura, a qual se liga ao centro à antiga fortaleza de S. José e termina nos flancos por pequenos torreões de estilo gótico, que fazem sentinela permanente ao rio. Essa fortaleza, construída, segundo uns, pela Companhia de Cacheu e Guiné, segundo outros pela Companhia do Grão-Pará, ampla, arejada, e altiva de toda a imponência dos poilões gigantes que lhe marcam os ângulos protegendo-a com as sombras benéficas da sua ramagem tufada, é guarnecida por peças velhíssimas de ferro, montada sobre reparos do mesmo metal que apenas servem hoje de armamento histórico e de espantalho aos gentios.
Entretanto, essas paredes arqueológicas, essa artilharia muda e esses baluartes vazios continuam a inspirar as frases sonoras com que os magnates da localidade, retórica oficial e os repórteres levianos, fazem acreditar urbi et orbi que o gentio é feroz e que nessas muralhas carcomidas pelo tempo e pelo abandono que reside ainda toda a garantia da propriedade e um esteio seguro ao comércio aí estabelecido.
A vila, pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, imunda de todo o indiferentismo das municipalidades de África, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma, adubada pelo paludismo, dizimada pelas febres, constitui ainda assim o último reduto da vitalidade da Província, o centro mais importante do comércio da Senegâmbia Portuguesa.
Existem aí casas francesas, alemãs, americanas e inglesas, além de muitos pequenos negociantes, na maior parte de Cabo Verde, e concorrem à praça todos os dias, não só os povos que a avizinham mas muitas das tribos afastadas que a abordam em grandes canoas sui generis pela construção, os quais vindo permutar por tabaco, aguardente, fazendas, etc. os produtos de agricultura e objectos originais da indústria indígena, dão um cambiante nitidamente selvagem a esse limitado quadro da vida africana, curiosíssimo pela variedade de penteados e costumes de seus personagens, interessante pela tatuagem com que se enfeita o preto, pitoresco pela diversidade dos tipos, dos penachos, das gesticulações e das vestimentas, profundamente impressionista no género grutesco, e constituindo no todo um espectáculo original pelo tumulto da selvajaria e da embriaguez, poetizado pela coloração verdejante de árvores colossais, enfeitado todo ele pelas cores vivas de habitações dissimilares que parecem banhar os pés nesse lodaçal extenso onde dezenas de canoas esguias se espreguiçam indolentemente como crocodilos gigantes fustigados pela calma.”

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20919: Historiografia da presença portuguesa em África (207): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20947: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (11): Salada de atum camuflado (Jorge Araújo, régulo da Tabanca dos Emiratos)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

Tabanca dos Emiratos > Abu Dhabi > Uma casa portuguesa, com certeza,,, (como cantaria a Amália, no seu imortal e irónico fado...)

Fotos (e legenda): © Jorge Araújo (2020). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Jorge Araújo:Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); um homem das Arábias... doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes), Portimão, Grupo Lusófona; vive habitualmente em Almada:  autor da série "(D)o outro lado do combate";  nosso coeditor... Foi apanhado pela pandemia de COVID-19, em Abu Dhabi, quando foi visitar a sua "bajuda"...

Data:  sexta, 24/04/2020 à(s) 21:13
Assunto: Notícias dos "Emiratos"

Caro Luís,
Boa noite. Hoje foi dia de descanso semanal. Aproveitámos para ir às compras, para repor os stocks, pois temos o vício "desgraçado" de comer todos os dias. Feito o pagamento das últimas compras, e na impossibilidade de almoçarmos fora, devido ao encerramento dos estabelecimentos de restauração (a exemplo do que está a acontecer em Portugal), a alternativa foi regressar ao local de partida, numa altura em que o termómetro indicava já 30º, no dia em que chegou aos 38º.

Sem nada preparado para o almoço, havia que "desenrascar" qualquer coisa rápida, agradável e fresca. Ao ler/ver as sugestões, de hoje, dos "vagomestres" da Tabanca Grande, por sinal muito apelativas, cada uma delas a fazerem crescer água na boca, mas sem as podermos "agarrar", logo aproveitei a ideia das conservas... e já está... vai ser ATUM?... e foi mesmo!

Foi baptizado de «Salada de Atum Camuflado" ... para dois (e meio).

Ingredientes utilizados: (foto 1)

- 8 batatas p/ assar (pequenas) .... da África do Sul
- 1 lata de atum (160 g) ................ da Indonésia (Arábia Saudita) 
- 2 ovos ........................................ origem local
- 1/2 cebola .................................. de Espanha
- salsa (qb) ................................... origem local
- azeitonas (qb) ............................ de Espanha
- azeite (qb) .................................. de Espanha
- pimenta (qb) .............................. de França
- vinho (qb) .................................. de Portugal (alentejano)

Modo de preparar:
- Cozer as batatas e os ovos
- desfiar o atum
- cortar a 1/2 cebola em rodelas finas
- picar a salsa

Modo de empratar:
Numa terrina adequada às quantidades utilizadas, colocar por esta ordem: 
1. - batatas cozidas cortadas aos cubos;
2. - atum desfiado;
3. - cebola;
4. - azeitonas fatiadas;
5. - ovos fatiados:
6. - pimenta a gosto;
7. - salsa 
8. - azeite para temperar a gosto (individual)
9. - vinho - o estritamente necessário, neste tempo de confinamento.

Resultado final (fotos 2 e 3)

Bom apetite!.

Quando quiserem... apareçam. A porta está aberta, e a mesa está posta. (fotos 4 e 5). 

Nota: Aconselha-se este prato, em especial, ao grupo dos que tenham um "perímetro abdominal" superior ao regulamentado. Os restantes também podem/devem experimentar, numa altura em que importa repensar a nossa alimentação, tornando-a mais saudável, pois pertencemos a um "grupo de risco".

Bom "25 de Abril"... Bom fim-de-semana.

Um abraço,
Jorge Araújo.
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terça-feira, 5 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20946: Os nossos seres, saberes e lazeres (390): No Dia Mundial da Língua Portuguesa, uma prenda do nosso camarada António Graça de Abreu, a sua tradução de dois poemas da poetisa chinesa Li Qingzhao 李清照 (1081-1155)


António Graça de Abreu e a esposa Wang Haiyuan (2020): na ilha da Páscoa, posando junto a um "moai"

Um representação moderna da poetisa Li Qingzhao (1081-1155)

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu  (2020) Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem comlementar: Blogue Lu+is Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [ ex-alf mil, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da Tabanca Grande, com mais de 250 referências no nosso blogue; poeta, escritor, tradutor, sinólogo; andou recentemente a fazer o MSC - World Cruise, está em casa, depois de ter chegado são e salvo das peripécias da viagem de volta ao mundo, que ficou a meio, devido à pandemia de COVID-19; achámos oportuno publicar hoje a sua tradução, mesmo que ainda provisória, dedois poemas da poetisa chinesa, Li Qingzhao 李清照 (1081-1155), no Dia Mundial da Língua Portuguesa (*)



Data: sexta, 24/04/2020 à(s) 16:14

Assunto: Duas chinesas

Em navegação, Oceano Índico, 10 de Abril  [, a bordo do MSC - Magnifica]

Para esta Volta ao Mundo trouxe comigo duas mulheres chinesas, ambas bonitas, prendadas e inteligentes. A primeira é a Wang Haiyuan, mãe dos meus filhos, esposa há trinta e três anos que, na Austrália, seguiu de Sidney para Xangai, quase há um mês. Escapou a situação extrema de estarmos confinados a viver fechados neste navio de cruzeiros, com a possibilidade de o tenebroso vírus cair no meio de nós mas, tão ou mais importante, foi acompanhar em Xangai o nosso pai Wang Renlun, com 91 anos, muito doente, com as enfermidades do peso dos anos, não com o covid 19. O pai melhorou assim que teve a filha junto de si.
A outra chinesa que me faz companhia chama-se Li Qingzhao 李清, nasceu em 1081 e faleceu em 1155.
É considerada a maior poetisa de toda a poesia chinesa, velha de quarenta séculos. Nascida em Jinan, província de Shandong, numa família de letrados, casou com o mandarim Zhao Mingcheng e partilhou com o marido o gosto pelo sublime encadeamento das palavras, a magnificência da arte poética numa China que, na altura em que Portugal nascia, tinha já atrás de si as figuras imortais de geniais poetas como Tao Yuanming (375-427), Li Bai (701-762), Wang Wei (701-761) ou Du Fu (711-770).
Li Qingzhao,  senhora de uma enorme sensibilidade, cantava o amor, a alegria de viver, a solidão, a dor na sua viuvez quando o marido morreu com tifo, aos 48 anos de idade.
Navegando por estes mares, Pacifico e Índico, tenho-me entretido a mexer nos seus poemas, utilizando a tradução francesa da Gallimard, de 1977, de Liang Paixin, mais a Net, com os muitos caracteres chineses que sempre tenho dificuldade em conhecer, mas no meio dos quais não me costumo perder. Na Net, tenho dialogado com outros tradutores de Li Qingzhao em língua inglesa, como Wang Jiaosheng e Ronald Egan.
Eis dois poemas desta grande mulher, companheira de viagem na Volta ao Mundo, em traduções ainda provisórias para português:

Colher fruta madura

A noite, o vento arrasta a chuva,
apaga o fogo sufocante do sol.
Fui buscar a flauta de bambu,
diante do espelho, retoco o meu rosto.
A minha carne, sob o robe de seda púrpura,
como jade ou neve, liso e perfumado.
Sorrio e digo: "Meu amor, esta noite,
por detrás das cortinas de gaze, a frescura do nosso leito."

采桑子

晚来一阵风兼雨
洗尽炎光
理罢笙簧
却对菱花淡淡妆
 绛绡缕薄冰肌莹
雪腻酥香
笑语檀郎
今夜纱幮枕簟凉

Como um sonho

Recordo o pavilhão junto às águas, ao entardecer,
e nós, embriagados, incapazes de encontrar o caminho de regresso.
longe de tudo, encharcados em prazer, 
remávamos ao acaso. entre tufos de lótus verdes.
Mais depressa, mais depressa...
Na margem, assustadas, garças e gaivotas levantaram voo.

如梦令

常记溪亭日暮
沉醉不知归路
兴尽晚回舟
误入藕花深处
争渡
争渡
惊起一滩鸥鹭
_________________
Nota do editor:

Último poste da série > 5 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20942: Os nossos seres, saberes e lazeres (389): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (5) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Guiné 61/74 - P20945: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (5): Composição da CCAÇ 2366/BCAÇ 2845

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2020:

Boa tarde Carlos Vinhal.
Já vi que publicaste todo o trabalho que te tinha enviado e por isso mesmo aqui vai mais um. Desta vez é a Companhia de Caçadores 2366, do Manuel Carvalho aqui na Tabanca, Periquito Atrevido - Jolmete.

Sem mais de momento, um grande abraço para todos os Chefes de Tabanca e, ainda para todos os Tertulianos.
Albino Silva

____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20915: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (4): Composição da CCS/BCAÇ 2845 e vídeo do Convívo de 2011 dos Vampiros

Guiné 61/74 - P20944: Manuscrito(s) (Luís Graça) (181): Cesário Verde (Lisboa, 1855 - Lisboa, 1886) : poesia para dizer em voz alta à janela ou à varanda, uma boa terapia contra os "irãs maus" que infestam agora os poilões das nossas tabancas, em tempos de COVID-19... E no Dia Mundial da Língua Portuguesa.



Cesário Verde, por Columbano (1887)

NÓS

I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na "city", que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d' ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro! (...)

Excertos, NÓS - I, in "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886, posfácio e fixação de texto, António Barahona. Edição definitiva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 98.100. (Com a devida vénia...)



1 Hoje celebra-se  o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Pela primeira vez!.. A data foi consagrada, em novembro passado,  pela UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

Por azar, a primeira vez que se celebra a data,  esta coincide com a pandemia de COVID-19. Não haverá grandes ajuntamentos na rua ou nos salões... Mas temos as redes sociais, a Internet, o nosso próprio blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné, para podermos celebrar em conjunto esta efeméride com todos os nossos amigos e camaradas que vivem quer em Portugal, quer mais a norte ou mais a sul, a leste ou oeste da pátria de Camões e de Fernando Pessoa. 

O Português é a língua que nos une, a todos nós, os mais 260 milhões de lusófonos,  sendo  língua oficial de 9 países em 4 continentes: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. É também língua oficial da Região Administrativa Especial da Macau, República Popular da China. É língu mais falada no hemisfério sul. Além disso, estimam-se em 7 milhões o nímero de  pessoas que falam português e vivem fora de seus países de origem, na diáspora... Por fim, e não menos importante,  haverá, em todo  mundo, cerca de 4 dezenas de crioulos, de origem portuguesa... Sem paternalismos nem colonialismos, podemos dizer que nós, portugueses, os nossos antepassados,  abriram a primeira estrada da globalização, com a "aventura marítima", e ajudaram a dar "mais mundos ao mundo"... 

É verdade que nem todos os macaenses ou todos os guineenses ou timorenses ou moçambicanos dominam a língua portuguesa, escrita e falada. Os mais privilegiados, como nós, temos a obrigação de proteger e promover a língua de todos nós, a língua com que dizemos liberdade, com que cantamos a saudade ou com que expremimos os sentimentos de amor, amizade, camaradagem, compaixão, empatia, solidariedade... 

O meu pequeno contributo, para este dia,  é o de reproduzir aqui um excerto do belíssimo e extenso poema Nós, de um grande poeta português, um dos meus favoritos, que teve uma vida curta: morreu de tuberculose. Trata-se do lisboeta Césario Verde (1855-1886). A sua genialidade só foi mais tarde reconhecida, e logo por outros grandes poetas como Fernando Pessoa.

2. Na primeira parte do poema Nós, Cesário Verde evoca o surto de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 que terá contagiado entre 16 a 17 mil pessoas (perto de 10% do total da população lisboeta) e provocado mais de 5 mil mortes.E dois anos anos, o surto de cólera.

Se bem que séc. XIX venha marcar o fim das grandes epidemias que, ao longo de séculos vitimaram as populações europeias, surgem novos problemas de saúde, com a industrialização e a urbanização da Europa.  No nosso país, por exemplo, em menos de um quarto de século, e em duas ocasiões, a cólera irá fazer dezenas de milhares de mortos: cerca de 40 mil em 1833, um terço dos quais na capital; e aproximadamente 9 mil em 1855-56. Embora as estatísticas de mortalidade possam variar de autor para autor, a cólera passa a ser a doença epidémica, por excelência nas cidades em grande expansão.  

A cólera passou a ser conhecida dos portugueses com a chegada à Índia onde era endémica.  No caso do surto de febre amarela de 1857, as áreas mais afectadas em Lisboa  foram inevitavelmente as dos bairros populares (como Alfama e Bairro Alto), onde se concentravam as chamadas classes laboriosas, misturadas com o lumpen-proletariado, e onde continuavam a ser péssimas as condições de higiene e salubridade. 

Originária da América Central, terá chegado a Portugal continental no ínício da década de 1720. A primeira epidemia de febre amarela ter-se-á manifestado em Lisboa, no Outono de 1723. Aao fim de três meses terá feito mais de seis mil vírimas mortais, nas zonas de maior densidade populacional.

Registam-se igualmente importantes surtos de febre tifóide e de tifo, embora estas doenças tendam a regredir a partir de 1865. Mas,  mesmo ainda em 1923, Ricardo Jorge considerava Lisboa, no seu estilo tão castiço e peculiar quanto hiperbólico, como "uma das cidades mais infectamente tíficas" (sic) da Europa...

Cesário Verde era bebé aquando da epidemia de febre amarela de 1857. Mas este acontecimento ficou na memória da família Verde. O  seu pai, abastado agricultor e comerciante de ferragens na baixa lisboeta, fez aquilo que os ricos faziam na época: retirar a família para o campo. Neste caso, para a sua quinta em Linda-A-Pastora, hoje concelho de Oeiras. Aí Cesário Verde enamora-se pelas delícias do campo e dá-nos conta da modernização da agricultura da época.  


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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P20943: Tabanca da Diáspora Lusófona (10): Notícias da pandemia de COVID 19, em Queens, Nova Iorque, e dos meus camaradas da CCAÇ 1439 (João Crisóstomo)


Foto nº 1


Foto nº 2

Foto nº 1 > Nova Iorque > Queens >  O casal Crisóstomo: João e Vilma "Em 2016 encontramos na ponta de Sagres  no Algarve uma turista japonesa, especialista em museologia.  Ao ver-nos procurou-nos para uma informação e entabulamos conversa.  
De evidente vasta cultura e  de maneiras cativantes,  acabamos por passar o dia visitando lugares de interesse comum  e ao fim do dia era como se nos conhecêssemos de sempre. Desde então pelo Natal e em outras ocasiões  trocamos mensagens.
 E agora, ao ter conhecimento da situação aflitiva em Nova Iorque, quis ajudar:   acabamos de receber meia dúzia de máscaras, feitas à mão em sua casa … para que nos protejamos bem do virus convid-19. Amizade e Solidariedade! "

Foto nº 2 >  Nova Iorque > Queena > O   João Crisóstomo, confinado, com barba de quinze dias


Foto nº 3 | A dos Cunhados, Torres Vedras > Festa da famílias Crisóstomo  ë  Crispim, 15 de outubro de 2013 > O JúlioPereira e o João Crisóstomo


Foto nº 4 > Associação de Desenvolvimento de Paradas, Paradas, A dos Cunhados, Torres Vedras - Festa da famílias Crisóstomo >  Crispim  > 15 de outubro de 2013 > João Crisóstomo, camaradas e amigos. O Júllio Pereira e a esposa, Elisa são o casal da ponta direita...  Na fila de detrás, reconhecem.se os nossos camarada Eduardo Jorge Ferreira (recentemente falecido),  Jaime Silva e Luís Graça na primeira fila, à esquerda, o João Crisóstomo, um primo, a Alice Carneiro e a Dina (esposa do Jaime).

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2020) Todos os direitos reservados. 
[Edição e legendagem comlementar: Blogue Lu+is Graça & Camaradas da Guiné]


I. Mensagem do nosso camarada e amigo João Crisóstom [, luso-americano, natural de Torres Vedras, conhecido ativista de causas que muito dizem aos portugueses (Foz Côa, Timor Leste, Aristides Sousa Mendes); Régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona; ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67); vive desde 1975 em Nova Iorque, em Queens; é casado, desde 2013, com a nossa amiga eslovena, Vilma Kracuna.

Date: quinta, 23/04/2020 à(s) 03:24
Subject: De Nova Iorque
  
Meus caros,
  
1. Não sei se se lembram  do Júlio Pereira; pelo menos o Luís Graça deve-se lembrar bem dele: vd. poste P12456: Júlio Martins Pereira, sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto gole, 1965/67), grã -tabanqueiro no. 635.  (*).

Ele foi a várias reuniões da CCAÇ  1439 e outras,  inclusive a uma nas  Paradas, Torres Vedras, que eu  organizei para os meus familiares, mas para a qual convidei os camaradas da Guiné; e alguns, para grande satisfação minha,  apareceram mesmo.  Mantenho-me em contacto frequente com ele, pois que as circunstâncias da vida nos aproximaram:  viemos ao mundo no mesmo dia (22 de Junho 1944); depois na Guiné,  além de pertencermos à mesma companhia, sofremos cada um a sua emboscada no mesmo dia, embora em lugares diferentes; e outras "coincidências",  como tantas  sucede sem sabermos a razão. 

Estranhei que, de há tempos para cá,  eram menos frequentes as suas mensagens pelo Facebook, que a minha esposa segue mais do que eu e de que me dava sempre  conhecimento. Finalmente obtive notícias frescas por vídeo WhatsApp   com a Elisa,  sua esposa: estiveram ambos internados no hospital, vítimas desta famigerada Covid-19 e estão ambos em franca recuperação. O caso dela foi mais leve e  depois de uns dias no hospital voltou a casa onde leva a sua vida quase normal. O  caso do Júlio  foi mais complicado e  perdeu bastante peso; mas  acaba de ter alta  do hospital e já se encontra  também  na sua casa. Embora ainda confinado ao seu quarto e   ainda sem o contacto normal  com os filhos, netos e amigos que da sua casa fazem local de reunião e convívio semanal  a que está acostumado,  está em bons espíritos  e  determinado a vencer também esta luta.   O seu  rosto e o sorriso na foto que a Elisa  me mandou  são de quem sabe  ter agora a carta/trunfo na sua mão. 

Força, Júlio! Estamos contigo!

2. Este caso do Júlio Pereira levou-me a  fazer uma dúzia  telefonemas  para saber de  outros "Camaradas da Guiné' (, refiro-me  aos meus colegas da CCAÇ 1439),  a maioria dos quais, "não sei porque cargas d' água", não fazem parte da nossa Tabanca…  E é pena… eu de vez em quando bem lhes falo no nosso blogue, mas para frustração minha (e para me  confirmar as minhas poucas habilidades persuasivas) não consegui convencer ninguém a pegar na caneta e a  pôr em papel  as vivências  de que a gente fala e lembra dos nossos tempos na Guiné quando nos encontramos. 

Ainda bem que o  Henrique Matos e o Beja Santos,  com as suas apreciadas e abundantes  recordações  relacionadas com  esta "minha" companhia CCAÇ 1439,  relatadas para a posteridade neste nosso blogue, a que modéstia aparte   junto a minha parte também,  de alguma maneira  compensam, embora parcialmente, evidentemente,   esta  lacuna.

Para os camaradas que por acaso  tenham encontrado alguns destes  em algum  convívio ou os conheçam, posso  informar que, salvo por algumas "mazelas  da idade" que de uma maneira ou outra  e em algum degrau  todos sofremos, os encontrei a todos bem.  "Bem" não é bem assim! … "mais ou menos" será  mais exacto dizer  ... porque verifiquei sem surpresa que  todos e cada um deles eles estavam tão preocupados  como eu  e, devido crédito lhes seja dado,  nenhum teve sequer ideia de o negar ou disfarçar… 

 Falei com o Freitas na ilha da  Madeira; e depois com  o Sousa , o Teixeira, o Geraldes, o Verdasca, o Neiva, o Agostinho  de Marrazes, o Pimentel…e a todos pude dar um "abraço à distância", abraço esse  que a maioria me pediu para partilhar com quem eu pudesse. Aqui está esse abraço de e para todos,  portanto.

Notei porém que o  sentido de "aquartelamento  forçado" não era   tomado  por todos com a mesma resignação…Eu infelizmente conto-me entre aqueles , a quem só falta pôr "fita -cola  gigante" à volta das portas e janelas para que o malvado  do coronavirus nem pelas  frinchas  possa entrar…: o Henrique Matos confessava passar horas agarrado à sua música "para ajudar a "despairecer"; e   só pude falar com a esposa do  Leitão (Mafra), pois que este valentão se encontrava no pomar a tratar do milho. 

O mesmo sucedia com o Figueiredo a quem a esposa foi chamar para ele vir falar comigo….  Com este Figueiredo  nunca esqueço de lembrar e reviver o dia em que, estando ele a conduzir,  fomos  projetados   por uma mina  anticarro; esta por acaso não era muito potente( ou destinava-se talvez a um unimog e a nossa viatura, se recordo bem,   era uma   GMC bem pesada;     porque iamos  na parte da frente, tirando o grade salto inesperado ,   nada nos sucedeu; menos sorte porém tiveram os que vinham atras,   que  tiveram que ser  evacuados de helicóptero para Bissau.  

Entre estes estava o médico do Batalhão,  o Dr. Francisco Pinho Costa,  que seguia nesta coluna, e e  a quem também chamei e falei  logo a seguir. É que nunca esqueço a coragem e sangue frio deste nosso camarada médico: projectado também, ao "voltar  das alturas" partiu ambas as pernas ao bater no chão ; mas ao ver que outros precisavam da sua assistência (e  recordo que um deles -- não lembro se era perna ou braço tinha o  osso partido em exposição), apenas disse da sua condição e da necessidade de ser evacuado , depois de ter prestado os serviços que as circunst^^ancias lhe permitiam. 

Até hoje,-- e já lá vão 54 anos—ainda nunca o encontrei pessoalmente; foi este Figueiredo que a meu pedido o "encontrou". Espero com muita antecipação o poder dar -lhe o abraço que ocasiões e situações assim pedem e  exigem.  Já tínhamos programado encontro para  Outubro deste ano; mas agora com esta praga de  vírus… vamos a ver.

3. No que nos  diz respeito… pouco a contar. Sigo as notícas daí pelo  Público, Expresso, Badaladas e  de vez em quando pela RTP Internacional.   As notícias do resto  do mundo…tento segui-las  onde posso (BBC, e outros), piois que estes americanos têm a mania de só falarem deles e neste momento pouco de bom podem dizer.  "Valha-nos Deus que bem pode", como dizia a minha mão em momentos de aflição. 

 Contrariando tudo o que me apetecia fazer, passamos  também o dia 20 de Abril fechados em casa, celebrando  o 7º aniversário  do nosso casamento … sem fazer nada. Levantei-me cedo para ir comprar   um ramo de flores  para a Vilma, mas quem apanhou surpresa fui eu, pois o carro,  de há  semanas parado,   tinha perdido a bateria!…  Para ajudar a " levantar  o moral"   disse à Vilma que ia fazer a barba, coisa que eu não fazia já há duas semanas, ao que ela acedeu com a condição de me tirar uma foto para  recordação e prova da  preguicite aguda que nos tem afligido… E agora , como vêem já estou  "normal' outra vez … Aqui está  a  prova… Como a Vilma não é de cervejas,— ninguém é perfeito! - e não podemos ser iguais em tudo!--- eu  até me permiti um copo de tinto  para a acompanhar…    

Abraço a vocês os  dois e aos vossos queridos, de nós dois (**).
João e Vilma
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12456: Tabanca Grande (415): Júlio Martins Pereira, sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67), grã-tabanqueiro nº 635

(**) Último poste da série >  9 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20835: Tabanca da Diáspora Lusófona (9): Um duplamente sentido abraço de Páscoa, em plena pandemia de COVID-19, mas já a pensar no nosso próximo encontro em outubro, em Ribamar, Lourinhã, e no Convento do Varatojo, Torres Vedras (João Crisóstomo, Nova Iorque, Queens)