segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21332: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (4): A cabrinha Inha...


Guiné > Região de Bolama > Nova Sintra > 1972 > Entrada do quartel dos Duros de Nova Sintra, a CART 2711, 1970/72... É possível que este pórtico, "Rancho dos Duros", tenha sido inspirado pelos vizinhos, mais antigos, do "Rancho da Ponderosa", destacamento de Ualada, subsetor de Empada, ao tempo da CCAÇ 1587 (1966/68).

Foto (e legenda): © Herlander Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Gabu > Piche > Foto nº 112/199 do álbum do João Martins > 1968 > Uma mulher fula amamentando, com o leite do seu próprio peito, a "sua" cabrinha (ou cabritinho ?), provavelmente um dos bens mais preciosos do seu escasso património familiar... Uma ternura de foto do álbum do nosso camarada João Martins, já célebre nas redes sociais.... Era mais fácil aos fulas vender-nos uma vaca do que um cabrito...

Foto: © João José Alves Martins (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Carlos Barros, Esposende


1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974:


A cabrinha Inha

por Carlos Barros (*)
 

Os militares da 2ª Companhia de Nova Sintra, com reforços de pelotões de Jabadá (1ª C/BART 6520/72) e Fulacunda (3ª C/BART 6520/72) estiveram envolvidos na abertura da estrada Nova-Sintra –Fulacunda, em 1973.

Ao rasgar essa estrada, por entre mato denso, iriamos ter problemas com o inimigo , o que se veio a verificar já que fomos emboscados algumas vezes, tentando obstruir a nossa progressão porque esse acesso a Fulacunda não interessava militarmente ao PAIGC.

O furriel Barros estava com o seu grupo de combate na segurança da estrada, com outro grupo, e estavam homens e mulheres africanas envolvidas na descapinagem do estradão.

Verifiquei, por mero acaso, que uma indígena tinha apanhado uma cabrinha à mão que se tinha perdido da mãe e perguntei-lhe o que iria fazer com o animal. Prontamente me respondeu, dizendo que a ia matar e depois comê-la!

Abeirei-me dela e pedi que ma vendesse por 50 pesos , o que concordou perante a minha alegria, vendo que o animal não seria morto. (**)

No regresso ao destacamento, trouxe a cabrinha para o quartel, arranjei e adaptei um biberão e comprava leite na cantina e assim a Inha era alimentada por mim com todo o carinho e protecção.

Foi crescendo, dormia debaixo da minha cama na caserna e na parada do destacamento seguia-me para todo o lado.

O Capitão Cirne queria comprar a Inha mas confesso que não a vendia por dinheiro nenhum porque gostava muito do animal. A cabrinha era acarinhada pelos soldados do meu grupo, sendo a coqueluche da companhia e passeava por todo o lado, sem ninguém a molestar.

Tinha chegado a hora do jantar e, quando começávamos a comer o arroz com salsichas, vieram os soldados Cruz , Barros e Lurdes à messe e um deles disse-me:

- A Inha “adormeceu”…

Levantei-me a correr para a caserna e encontrei já morta a minha Inha, perante o meu desgosto…

O que aconteceu?

Um dos soldado deu-lhe cascas de manga e, provavelmente, teve uma congestão,  já que só se alimentava de leite e não vi outra razão…

Perdi a vontade de jantar e peguei n cabrinha, enterrei-a junto à caserna e depois coloquei uma cruz com uma lápide com os dizeres: “Aqui jaz a INHA”…

Foi um dia triste para mim e para os meus companheiros do pelotão e, nesse mesmo dia, morreu à mesma hora, uma gazela selvagem que tinha sido apanhada pelos militares e que se encontrava num galinheiro, “Gazeleiro,  improvisado….Triste coincidência…

Nunca mais desejei nenhum animal comigo, já que eles querem viver em liberdade, como todos nós seres humanos,  que, felizmente, só a conseguimos obtê-la no dia 25 de Abril de 1974.

Nova Sintra, maio de 1973,

Carlos Manuel de Lima Barros

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Notas do editor:

(*) Último postes da série > 4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará


5 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21142: O nosso livro de visitas (206): Carlos Barros, natural de Esposende, ex-fur mil at art, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1973/74)

(**) Vd, poste de 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18393: Fotos à procura de... uma legenda (102): Uma mulher fula a amamentar a "sua" cabrinha!... Ainda em tempo, celebrando o Dia Internacional da Mulher (Foto de João Martins, Piche,1968)

Guiné 61/74 - P21331: A galeria dos meus heróis (37): Rosemarie e os seus dois maridos...IV (e última) Parte (Luís Graça)


Indochina > Dien Bien Phu > 1954 > Ao fim de um cerco de 55 dias, o exército francês, de 17 mil homens (quase dois terços dos quais  legionários), pede rendição, em 7 de maio,  às tropas do general Vo Nguyen Giap (1911 - 2013) . Foto, do domínio público, mostrando a marcha dos prisioneiros franceses.  

O luso-francês Antoine Ben Oliel, desta história,  teve a sorte de ter escapado a esta cena final, sendo gravemente ferido, logo no início da batalha, em 13 ou 14 de março de 1954.

Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons.


A galeria dos meus heróis > Rosemarie e os seus dois maridos... 
IV (e última) Parte (Luís Graça) *


(Continuação)


− Era violento, o Antoine ? – perguntei à Rosemarie, em 2018, o último ano em que nos vimos, estávamos os dois longe de imaginar que o mundo iria acabar em breve para um de nós, na sequência da pandemia de Covid-19.

− Sim, às vezes perdia as estribeiras… Em situações de surmenage… Entendes ?

− Stress, como nós dizemos aqui.

Ah!, oui… Nisso talvez saísse ao lado transmontano do pai…

− ... que a Rosemarie obviamente não conheceu.

− Claro que não, ele morreu em 1939, se não me engano, teria eu dois anitos.

O Antoine é que contava, à Rosemarie, algumas, poucas, histórias do pai. Ele também mal o conhecera. Tinha oito anos quando ele morreu, na véspera da II Guerra Mundial. Eram sobretudo histórias contadas pela mãe Ben Oliel. E eu recordei-lhe que os dois, pai e filho, tinham andado na guerra… O pai, na I Grande Guerra, o filho na Indochina e na Argélia… 

− Talvez isso ajude a explicar algumas coisas, Rosemarie... 

Peut-être!... Era capaz de andar à porrada com gente arruaceira, que bebia demais… Chegou a correr com alguns clientes, agarrando-os pelos colarinhos, e pondo-os fora do bistrot, fossem eles portugueses, franceses ou magrebinos…

− Mas também sobrava para si, não ?!...

Ah!, oui..., por vezes, eu também apanhava por tabela! – confidenciava-me ela. – Humilhava-me à frente de toda gente!

− Violência doméstica, está visto! – acrescentava eu.

− Era a minha sina!... Afinal, tive dois homens que me batiam.

Na verdade, o primeiro marido, o tocador de rabeca, era alcoólico, e batia-lhe, quando queria sexo e ela lho negava. O segundo tinha mau feitio e era ciumento. Sugeri à Rosemarie que talvez o Antoine sofresse de stress pós-traumático de guerra…

Qu'est-ce que ça veut dire ?

Referi o facto de ter participado em combates violentos ou assistido a ataques terroristas, na Indochina e na Argélia… Ela condescendeu que ele dormia mal, tinha mau humor, fumava e bebia muito, por vezes acordava com pesadelos, e com a idade começara a ser dado a depressões. Por outro lado, sabia-se, pela Rosemarie e amigos, que o Antoine sempre tivera une vie dérégulée, uma vida desregrada…  Mas, se havia uma palavra tabu para a Rosemarie, era... legionário. 

Na minha opinião,  a minha interlocutora nunca terá percebido a verdadeira razão da sua atração por figuras masculinas que tinham alguns traços da personalidade autoritária do pai.

− A minha mãe era uma santa – recorda ela.

− E o pai ?

− O meu pai era mau como as cobras, que Deus lhe perdoe. Era mau, sobretudo quando se zangava. Não me esqueço das tareias com o cinto de couro e a fivela de cobre!... Batia-nos, poucas vezes, é verdade, mas nessas ocasiões transfigurava-se, parecia o diabo à solta.

− E a mãe, consentia ?!...

− A nossa pobre mãe punha-se de permeio, para nos proteger, e ela, coitada, é que apanhava as vergastadas. 

Mas, “tirando isso” (sic), o pai da Rosemarie era descrito, por ela,  como um homem alegre, popular, folgazão, pronto para a paródia, amigo do seu amigo, e que gostava de receber, mesmo sendo “pobre... mas sempre honrado”.

− Ah!, e tocava cavaquinho! – acrescentava ela – e era um garanhão!... Pauvre maman!

Em boa verdade, do pai não guardava as melhores recordações. Segundo ela, era fraco com os fortes, e bruto com as mulheres e a canalha lá em casa….

E pormenorizava:

− Desbarretava-se todo com os fidalgos… Ficava nervoso pelo São Miguel, com medo de não poder pagar a totalidade das rendas e ser despedido pelos senhorios… Ele amanhava duas quintas, mas em boa verdade só conheceu um patrão digno desse nome.

− Tratava-o bem, ao menos, esse patrão  ? – perguntei eu.

− O meu pai achava que já pertencia à família, ó Manel isto, ó Manel aquilo!... Era pau para toda a obra... O homem de confiança...Acabou por ser um escravo daquela família toda a vida!

E acrescentava:

− Nunca teve nada de seu, nem um palheiro onde pudesse cair morto.

Em suma, era um rendeiro típico do Norte, analfabeto, filho de rendeiros, analfabetos, sujeitando-se sempre à vontade dos patrões, quer em Celorico de Basto quer em Resende… Vá lá, na velhice arranjaram-lhe, por caridade, um lugar no lar da Misericórdia. Mas sobretudo foram os filhos que lhe valeram, quando começou a fraquejar com a idade.

−Os meus manos foram muito amigos dele!

Todavia, a  Rosemarie não veio ao funeral do pai, desculpando-se com a doença (grave) do Antoine. A relação com os irmãos e cunhados também se deteriorara ao longo do tempo, sobretudo desde que ela se juntara com o Antoine, em França. Só o irmão que esteve na Guiné e que depois emigrou para a Alemanha, é que a visitava mas até desse o Antoine não gostava.

Jalousie, ciúmes! – achava ela.

O pai da Rosemarie nunca abençoou, em vida, a relação da filha com o “Francês”. Homem rígido e conservador, em matéria de costumes, o pai terá dito à família e a amigos mais chegados, que, “para ele, ela já tinha morrido há muito” (sic). E de facto, ele já não era vivo quando, tardiamente, ela se casou, em 1997, de papel passado na "mairie", com o Antoine. 

Este, por sua vez, vai tornar-se ciumento com a idade. A par disso, as suas frequentes ausências de casa também não ajudavam a melhorar as relação do casal. Ele não estava certo do amor dela, apesar de toda a sua dedicação, comprovada nos momentos mais críticos da sua vida,  a dois. E muito menos tinha a certeza da sua fidelidade.

Talvez por pudor, ou até por alguma má consciência, ela nunca se abrira muito comigo sobre a sua alegada vida amorosa extra-conjugal, muito menos em relação ao tempo em que vivera com o Antoine…

− Durante mais de trinta anos!... – precisava ela.– Fui um anjo para aquele gajo!

Dizia "gajo" quando queria atingir a memória do homem que amava e odiava ao mesmo tempo. Também é verdade que nunca tiveram filhos.

Heuresement, felizmente! − exclamava.

Nunca soube nem quis saber “de quem era a culpa”. Todavia tinha um subtil, se bem que indisfarçável, sentimento de culpa "por não ter dado filhos ao Antoine". Talvez fosse “estéril, como a Sara da Bíblia, a mulher de Abraão”. (De vez em quando, no meio da conversa, vinha ao de cima a sua formação católica: na juventude, fora catequista, “mesmo com poucas letras”.)

Em resumo, admito que ela terá tido os seus “casos” com outros homens, nomeadamente franceses. Deu-me a entender que nunca quis arranjar problemas no seio da “pequena comunidade portuguesa” onde havia “alguns gajos, solteiros, que lhe faziam olhinhos”. E, depois, o Antoine era uma pessoa muito conhecida na região.

Afinal, era uma mulher atraente, com um bonita voz, cantarolava tanto a Amália como a Edit Piaf, mas era estrangeira, falando francês com certa desenvoltura embora com accent, imigrante, só tardiamente naturalizada…

Era, portanto, uma "mulher vulnerável" naquela época... Não me escondeu, de resto,  que, no local de trabalho, chegou a ser vítima de harcèlement sexuel, de assédio sexual, disfarçado da vieille galenterie française, o machismo gaulês…

Era sensível às carícias, ao discurso sedutor, de alguns dos seus “admiradores” contrastando com a frieza e a rudeza do Antoine que lhe dava proteção mas pouca ternura. Deixara, por outro lado, de cantar com regularidade, a partir  de 1974... E dizia isto com grande desgosto: chegara a sonhar, pauvre Rosemarie!,  com uma carreira artística como fadista em França!...

Havia, por outro lado, algumas outras coisas que ela detestava no Antoine. Por exemplo, os seus copains, antigos camaradas de armas do tempo da Indochina e da Argélia, legionários, gendarmes, polícias e outros, que se reuniam de tempos a tempos no bistrot, "O Cantinho da Saudade", fechando-se na sala reservada. 

Em geral, era ao domingo, o dia de descanso do pessoal. Eram só homens e ela limitava-se, nos primeiros anos da sua vida em França, a cozinhar para eles. Tudo acabava em cantorias, depois de um almoço bem regado. E aqui não entrava o fado, que a maior parte não apreciava, até porque não entendia as letras. E a música do fado era triste para os antigos camaradas de armas...

− Et la musique du fado était trop triste pour des ancients combattants! − resumia ela.

Outra paixão do Antoine era a caça grossa, la chasse aux gros gibiers (o veado, o javali, a cabra…), na Sologne e noutras partes, em França, em Espanha e até em Portugal. Era uma “amante cara”, a caça, que terá ajudado a delapidar o seu património… 

Foi ela, a Rosemarie,  quem na altura em que ele estava a ficar mais fragilizado, começou a pôr travão a alguns dos seus luxos… Era doido por bons queijos, fumeiro e vinhos, tinha uma boa garrafeira, era, em suma, um bon vivant, um bom copo, um bom garfo.

Nesse aspeto revelou-se "uma verdadeira mulher portuguesa do Norte". Lembrava-se amiúde do bom exemplo da mãe, que era a “formiguinha” da casa, enquanto o pai representava a figura da “cigarrra” da fábula de La Fontaine.

Felizmente que a sua empresa de limpezas (primeiro, domésticas e depois industriais) crescera e transformara-se até num caso de sucesso a nível  da região, dando emprego a várias mulheres, todas de origem portuguesa.

Sentindo a sua saúde piorar, o Antoine ainda teve a lucidez (e a sorte) de trespassar o bistrot no bom tempo, depois de já ter comprado o immeuble, de rés de chão e 1º andar, bem situado na cidade. Alienou também a licença de táxi, vendida a um dos seus antigos “passadores”. Dejá malade, conseguiu reformar-se, aos 60 anos, com a contagem do tempo em que servira na Legião Estrangeira.

Em 1997, com a Rosemarie a fazer 60 anos, e ele 66, foi magnânimo: a sua prenda de anos foi o pedido de casamento. Casaram-se na mairie, numa cerimónia singela, mas “emocionante” para a Rosemarie. Cortou-se o bolo e bebeu-se champagne.  Convidou dois ou três sobrinhos que vieram de Portugal e da Alemanha.

Três anos depois, sem chegar a fazer os 70 anos, o Antoine Ben Oliel morreu de cancro no pâncreas. Em menos de seis meses.

No funeral tinha poucos amigos portugueses. Daqueles, muitos,  que ele tinha ajudado a instalar-se em França, nem um lá pôs os pés no velório ou no cemitério.

− Gente ingrata, des gens de merdre! –arrematou ela.

Os dois últimos anos de vida do Antoine tinham sido dolorosos. Ele sofria de gota, depois vieram complicações do foro músculo-esquelético, que o obrigaram a andar de canadianas, um  ameaço de AVC e, como se não bastasse tudo isto, o fatal cancro do pâncreas!...  

−Apagava-se a olhos vistos, todos os dias! – contou-me a Rosemarie, que nunca o abandonou, honra lhe seja feita!

Antes de morrer, ele falou-lhe de um filho que teria tido fora do casamento, e que que deveria ter uns trinta e tal anos. Mal o conhecia, ou já não o conheceria, se o encontrasse na rua. Sentia-se mal por nunca o ter acompanhado quando novo, nem sequer o ter perfilhado. Era filho de uma pied-noire, uma argelina de origem francesa, um relacionamento que já vinha dos tempos de Argel. Mãe e filho acabaram por fixar-se em Marrocos, e abrir em Marraquexe um pequeno hotel de charme.

Rosemarie suspeitava que o Antoine os terá ajudado financeiramente, na fase inicial das suas vidas em Marrocos. Eu, pelo meu lado, estava mais interessado em saber algo mais sobre o obscuro passado do Antoine como legionário, e as circunstâncias em que fora gravemente ferido na batalha de Dien Bien Phu.  Embora com relutância, ela prometeu-me trazer, pour la prochaine fois, alguns dos papéis da tropa, poucos, que ainda restavam lá em casa, em França. Estava esperançado que ela me arranjasse alguma fotografia do Antoine quando jovem.

Infelizmente a Rosemarie não pôde cumprir a sua relutante promessa. Em 2019 não veio a Portugal. E há menos de seis meses morreu, vítima de Covid-19, tendo sido cremada.
Só vim a saber da triste notícia através dos amigos da casa da Lagoa de Óbidos. Confesso que fiquei desolado...

Com a morte da Rosemarie, inesperada (e chocante para os seus amigos, como eu), apagaram-se também os últimos segredos dos dois homens que com ela partilharam o pior e o melhor da sua vida, debaixo do mesmo tecto... 

Da última vez que a vi, no verão de 2018, parecia-me uma mulher finalmente feliz, reconciliada com ela e com a vida, liberta das sombras negras do seu passado. Era uma mulher sem rancores, que quis toda a vida amar e ser amada: despediu-se de mim, a cantarolar a Edith Piaff, "Non! Rien de rien, / Non! Je ne regrette rien. / Ni le bien, qu'on m'a fait, / Ni le mal, tout ça m'est bien égal!"...

Sorriu quando lhe prometi esperar, "até aos seus cem anos", para então lhe publicar a sua "histoire de vie".

Estava determinado (e condenado) a respeitar a sua vontade: agora que ela partiu, ao quilómetro 82 da sua "estrada da vida" (aliás, mais 'picada' do que autoestrada...), deixo aqui a sua história. A sua "petite histoire"... Caberá aos leitores ajuizar se ela fica bem, ou não, na "galeria dos meus heróis".

© Luís Graça (202o). Revisáo; 5/8/2023

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

11 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21246: A galeria dos meus heróis (34): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte I (Luís Graça)

(...) Conheci a Madame Ben Oliel, como ela gostava de ser tratada, numa festa do 14 Juillet, o Dia Nacional da França. Ben Oliel era o apelido do seu segundo marido, de origem portuguesa e judia sefardita, que esteve nas guerras da Indochina e da Argélio, como légionnaire.

Maria Rosa era o seu nome de batismo, de que trocou a ordem e afrancesou: Rosemarie, soava-lhe muito melhor, fazia-lhe oublier (esquecer) e até talvez cacher (esconder) a sua origem portuguesa e a sua condição de imigrante em França. (...)


16 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21258: A galeria dos meus heróis (35): Rosemarie e os seus dois maridos... - Parte II (Luís Graça)

(...) O Antoine deve ter-se alistado na Legião Estrangeira (Francesa), aos 19 anos, por volta de 1950. Pertencia (...) a um regimento de infantaria, um dos que foram para Dien Bien Phu e lá foram massacrados. (...)

Em finais de 1953 está na Indochina, para logo, passados poucos meses, em 13 ou 14 de março de 1954, no início da batalha de Dien Bien Phi,   ser ferido gravemente por um estilhaço de obus, que lhe desfigurou o rosto. Teve a sorte de ainda poder ser evacuado e sujeito a uma cirurgia reconstrutiva.

Menos de dois meses depois, em maio de 1954, Dien Bien Phu cairia nas mãos dos viet-minh do general Giap, e muitos camaradas do Antoine, de várias nacionalidades, perderam lá a vida ou foram feitos prisioneiros. E muitos também não regressaram do doloroso cativeiro. (...)



25 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21292: A galeria dos meus heróis (36): Rosemarie e os seus dois maridos... Parte III (Luís Graça)


(...) Rosemarie foi uma mulher corajosa para a época: casada com um tocador de rabeca de uma tuna rural do Marão, alcoólico, foi vítima de violência doméstica.

Separada de facto, mas não legalmente, sem ter posses nem conhecimentos para tratar dos papéis do divórcio, católica, amarrada de pés e mãos a um cadavre, o fantasma do primeiro marido algures em parte incerta, talvez no Brasil, com a 4ª classe já feita tardiamente, em Cascais, criada de servir, ajudante de cozinheira, numa família de banqueiros, em meados dos anos 60, a ganhar o dobro do que ganhava em Chaves e em Resende, mas infeliz, tomou a decisão da sua vida, em 1967, quando partiu para França “a salto”. Ia fazer, ou já tinha feito, 30 anos. (...)

domingo, 6 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21330: Blogues da nossa blogosfera (138): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (49): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


CANÇÕES ANTIGAS

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Na recordação das canções antigas
veste-se meu coração das verdes folhas do desejo
e entoa na fragrância dos campos
a melodia dos olhos pendurados na profundidade do céu.
Na sombra da figueira diz-me adeus o sol
em acenos de azul e violeta
por entre os ramos e os sons de uma flauta de lábios doces
que por ali poisou entre sonhos infinitos do lusco-fusco.
As primeiras chuvas do verão humedecem como lágrimas
as palavras ditas e não ditas
no silêncio dos caminhos perfumados de terra e folhas molhadas.
E nada se reconhece na lembrança muda das tardes
que para sempre morreram
mas os passos ecoam em silêncio por entre os pés das oliveiras
onde outrora floriram mil risos de criança.
Que fez de mim este crepúsculo azul
como flecha espetada no vento
ferindo de morte toda a vida de meu sonho-menino?
Onde está a pedra que se fez montanha
o regato que se fez rio
a tripla chama da vida nua
quando sagradas selvas e misteriosas crenças de punhal à cinta
quiseram que fosse santa?
Meu coração peregrino de seu perdido tesouro
entre o sol e as desgarradas nuvens de infinitos céus
ainda hoje se arrasta entre a razão e o abismo
em pálido reflexo de ouro para ser criança na hora de partir.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21304: Blogues da nossa blogosfera (132): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (48): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21329: Blogpoesia (695): "O agitar das águas", "Senhora Marquinhas da venda" e "Apenas agricultor", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


O agitar das águas

Águas paradas estagnam. Vêm os insectos e as algas, turvam a superfície.
O sol não inunda o seio e a vida definha nelas.
Como um charco. Imundo e fétido.
É a morte.
O que lhe sustenta a vida é o vento em brisa ou na agitação agreste.
Assim se passa no mundo das ideias. A letargia desertifica a
mente.
Tal como a ociosidade como hábito.
A vontade é o motor do corpo.
Se ele pára, a alma desiste e o corpo caminha para a extinção.
Uma amizade se não se demonstra com a presença, a entreajuda e o sacrifício, enfraquece e, depressa, morre.
Porque secaram as flores do belo jardim?
Seu dono deixou de o regar...
A lareira apagou? Se acabaram os cavacos!...

Berlim, 2 de Setembro de 2020
14h39m
Jlmg

********************

Senhora Marquinhas da venda

Havia na Forca uma tasca. Vinho da pipa e petiscos frescos eram sua bandeira.
Por trás do balcão de madeira,
Andava a senhora Marquinhas, a mãe,
E sua filha também.
Se cuidavam as duas.
Acudiam fregueses, sobretudo, homens.
Ali passavam a tarde.
Cavaqueando de tudo.
Jogavam à sueca e bisca lambida.
Bebiam canecas de tinto, em porcelana.
Umas atrás das outras.
Quando chegava a tardinha,
Recolhiam a casa para o caldo.
Tresandavam a vinho.
Um santuário de paz no seio da Forca.
Não era por ali que o mal vinha ao mundo...

Berlim, 4 de Setembro de 2020
9h41m
Jlmg

********************

Apenas agricultor

De sacho e enxada nas mãos, sou apenas o agricultor.
Revolvo a terra. Exponho-a ao sol o seu interior.
Tiro as ervas daninhas.
Os vermes a limpam gratuitamente.
A vida dá-a ele.
Me deleita ver crescer a vida verde.
Contemplar suas flores.
Ver seus frutos a amarelecer.
Depois, é um regalo colher tudo e encher de pão o celeiro enxuto.
É o ritmo vital da natureza.
Tudo é gratuito.
A chuva, o sol e a terra.
Uma condição:
Só damos o engenho e a força das nossas mãos.
Que riqueza!...

Berlim, 5 de Setembro de 2020
10h44m
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21324: Blogpoesia (694): poemas para dizer em voz alta, em casa, na varanda, na rua, ou à beira-mar, em tempos de pandemia: António Gedeão, Li Bai, David Mourão Ferreira e Viriato da Cruz (seleção de Mário Gaspar, António Graça de Abreu, Mário Beja Santos e Luís Graça respetivamente)

Guiné 61/74 - P21328: Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Lourinhã (1): vozes e cavaquinhos contra a guerra, os do Jaime Bonifácio Marques da Silva e Joaquim Pinto de Carvalho, em tempo de pandemia


Tabanca da Lourinhã, ensaio do tema tradicional "Ó Laurindinha, vem à janela". Cavaquinhos e vozes: Jaime Bonifácio Marques da Silva e Joaquim Pinto Carvalho. Sítio; Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, 5 de setembro de 2020.  Em homenagem ao nosso saudoso amigo, camarada e régulo da Tabanca de Porto Dinheiro, Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019)



Vídeo (1' 16''). Alojado em Luís Graça / You Tube


Letra e música: Tradicional

Oh Laurindinha, vem à janela.
Oh Laurindinha, vem à janela.
Ver o teu amor, ai ai ai, que ele vai p'ra guerra.
Ver o teu amor, ai ai ai, que ele vai p´ra guerra.

Se ele vai pra guerra, deixá-lo ir.
Se ele vai pra guerra, deixá-lo ir.
Ele é rapaz novo, ai ai ai, ele torna a vir.
Ele é rapaz novo, ai ai ai, ele torna a vir.

Ele torna a vir, se Deus quiser.
Ele torna a vir, se Deus quiser.
Ainda vem a tempo, ai ai ai, de arranjar mulher.
Ainda vem a tempo, ai ai ai, de arranjar mulher.



1.  Ontem, almoçamos com a São, viúva do nosso saudoso camarada Eduardo Jorge Ferreira ( 1952-2019). depois de uma caminhada entre a Maceira e o Porto Novo, nas imediações da sua terra natal, Vimeiro, Lourinhã... Nunca é demais esquecer que ele foi o régulo da Tabanca de Porto Dinheiro / Lourinhã, e que nos reuníamos, de vez em quando num restaurante dessa praia piscatória da Lourinhã, para comer uma caldeirada... e celebrar a amizade e a camaradagem que nos unia. 

Ontem, o petisco não foi uma caldeirada, mas uma feijoada do mar, no 100 Pratus, na Praia da Areia Branca. A São foi convidada dos casais, Maria do Céu / Joaquim Pinto Carvalho e  Alice Carneiro / Luís Graça. 

Fomos depois tomar o café ao Atira-te ao Mar, no Porto das Barcas, que tem desempenhado um papel importante na quarentena e no confinamento, resultantes da pandemia de Covid-19.  O Atira-te ao Mar passa a ser um digno sucedâneo da Tabanca de Porto Dinheiro, mantendo a "chama viva" das nossas melhores memórias e vivências. 

Daí a nova designação da Tabanca de Porto Dinheiro (que, com a morte do Eduardo, ficou órfã do seu insubstituível régulo). Como temos horror ao vazio, criámos a Tabanca do Atira-te ao Mar, no Porto das Barcas, Lourinhã, ao alcance de um tiro de canhão do Porto Dinheiro, Ribamar, Lourinhã. Fazem as honras da casa, o Joaquim Pinto Carvalho e a Maria do Céu Pinteus, os "duques do Cadaval", que nos dão o indispensável apoio logístico.

Ao fim da tarde, e a pretexto de ver o novo bandolim. adquirido pelo Pinto de Carvalho, apareceu o Jaime Bonifácio Marques da Silva, que também toca cavaquinho. O pequeno vídeo que publicamos acima marca a inauguração, oficiosa, da nova Tabanca, o Atira-te ao Mar.  

Aproveitamos também para publicar uma mensagem deste nosso amigo e camarada, o Jaime Bonifácio Marques da Silva (, ou simplesmente Jaime Silva), natural de (e agora residente em) Seixal, Lourinhã, ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72, e ex-autarca em Fafe.

Data: 28 de julho de 2020, 23:26:33 
Assunto: Crónica

Caro Sobrinho

Acabei de ler o teu texto [, que publicaste no teu blogue, em 30 de julho passado, e que me mandaste por email] (*). 

Obrigado por teres a coragem de o escrever. É o primeiro texto que leio de um jovem da tua idade, já nascido após o fim da Guerra Colonial.

A reflexão que fazes sobre a inutilidade das guerras e, nesta particularmente pelos traumas que causaram a muitos dos que a viveram (combatentes, famílias, amigos) é um contributo importante que prestas aos jovens das novas gerações para a reflexão que deve ser feita nos dias de hoje face a tal pesadelo.

Disse alguém: "Pior do que uma Guerra, é fazer de conta que ela nunca aconteceu"..E muitos jovens não sabem que a Guerra Colonial aconteceu.

Há cerca de quinze dias,falava com uma jovem mulher sobre Guerra Colonial, quando às tantas ela me pergunta: "Mas o que foi a Guerra Colonial?"

Em Março de 2021 vai fazer 60 anos que a Guerra Colonial rebentou em Angola.

Obviamente que podes divulgar o texto.

Vou enviar-te dois textos que escrevi. Um deles terminei-o ontem - porque para mim: "Na Guerra não valeu tudo!"

Abraço do
Tio Jaime

2. O Diogo Picão, músico e compositor, tinha enviado a sua "crónica" ao tio Jaime, através deste email, o qual merece ser divulgado, com a devida autorização dos dois:

Olá, tio.

Como estás? Nunca consegui escrever a canção que me pediste mas saiu-me há uns dias uma crónica sobre ti e o primo Arsénio. Gostava que lesses, me desses a tua opinião, e de te perguntar se te parece bem que eu a publique no meu blogue. Se não te sentires confortável fica para ti e eu guardo-a na gaveta.

Se te apetecer dá um olhada no meu blogue: http://dpicao.blogspot.com/

Um grande abraço

Claro que o Diogo Picão fica, desde já convidado, para integrar a nossa nova tertúlia, o Atira-te ao Mar, no Porto das Barcas, Atalaia,  Lourinhã. E oxalá um dia destes ele consiga ter a inspiração e sobretudo a disponibilidade para escrever a tal canção que o tio que foi à guerra, lhe pediu. Talento e sensibilidade não lhe faltam, oxalá / enxalé / inshallah a maldita pandemia o não penalise mais, deixando-o voltar à estrada e aos palcos da música, que é o seu ganha-pão.
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 2 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21216: Blogues da nossa blogosfera (133): Diogo Picão: "A guerra do meu tio"

sábado, 5 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21327: Os nossos seres, saberes e lazeres (409): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Vamos dar o merecido destaque ao Conde d'Aurora, um aristocrata limiano que andou em sedições monárquicas, andou pelo exílio, regressou, deixou prosa diversa, mas o seu principal fervor foi a Ribeira Lima e toda a envolvente minhota. O meu saudoso amigos Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo venerava constantemente a sua memória, contando pilhérias em que ele participara, logo a recordação de um julgamento no Porto. O Conde era Juiz, salvo erro num Tribunal do Trabalho, o Carlos Miguel ao tempo trabalhava numa caixa de providência, competia-lhe ir testemunhar. O meirinho tratou-o por Sr. Dr. Carlos de Araújo, e interpelado pelo juiz, observou-lhe que não era licenciado. Resposta pronta do Conde d'Aurora: "Não é, mas tem muito tempo para vir a ser".
Hoje é aqui festejado, parece-me que bem merecidamente. Eu ganhei o dia, ir a Ponte de Lima e sair daqui com este texto e estas fotografias é como trazer um relicário. A feira descrita pelo Conde d'Aurora é hoje outra coisa, noutro espaço. Termino o dia percorrendo a Avenida dos Plátanos, imaginando tendas, pregões, loiças, bancas cheias de ouro, latoaria profusa, mungido dos animais, poeira, cor, a vibração do acento minhoto, aquela indumentária ilustre, lojas com socas e tairocas, e saúdo quem já partiu e tanto amou Ponte de Lima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5)

Mário Beja Santos

Lembro-me como se fosse hoje. Aí por volta de 2013, numa tarde em que fui fazer leituras ao meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, limiano inquebrantável, depois de nos sentarmos, ele no seu sofá, eu num cadeirão, a escasso metro e meio dele, naquele belo ambiente de paredes forradas com preciosidades de Carlos Botelho, Moniz Pereira, Lurdes Castro, Mário Cesariny, Noronha da Costa, tendo diante dos meus olhos o retrato que lhe fez um amigo comum, Vasco de Castro, ele pediu-me para abrir um pacote que chegara de Ponte de Lima. Abri e disse-lhe que se tratava de A feira da Ponte, do Conde d’Aurora. Agitou-se no sofá, os seus olhos vazos pareciam ter ganho uma luminosidade, Deus me perdoe, estava eu com o livro na mão e a fotografar imagens que me pareceram da década de 1950, ou talvez do início da década de 1960, e Carlos Miguel parecia falar para uma assembleia entusiasmada, foram convocados ilustríssimos e sonantes nomes de limianos como o poeta e Embaixador António Feijó, o Cardeal Saraiva, que foi Patriarca em Lisboa, veio à baila o foral de D. Teresa, naquela sala foram referenciadas casas, o Natal na Casa da Feitosa, e já cansado, disse-me na sua voz abaritonada: “Por gentileza, recorde-me o que o Conde d’Aurora escreveu, sei muito bem que é um documento literário incomparável”.

E eu comecei: “Oh! Se puderes, forasteiro, vem a Ponte de Lima num dia de mercado. É às segundas, de quinze em quinze dias (às outras, chama-lhes o povo solteiras)”. Mais para a frente voltarei ao texto, foi uma tarde magnífica, o Carlos Miguel parecia recolhido, como em oração, só raramente interrompia, houve mesmo uma chamada telefónica, pretextou que estava lá a sua médica de família, ligaria mais tarde, e eu recomecei a leitura, aquela viagem empolgante dentro de uma feira, sentia-se que o aristocrata discorria esfusiante, eram notas amoráveis de alguém que olhava com o coração a palpitar naquele mar de gente, a sua gente.

Hoje começo o dia por ir ao arquivo de Ponte de Lima, pergunto por obras do Conde d’Aurora, logo que vejo este livro da feira não perco mais tempo, a senhora que me atende está assim um pouco atarantada, trouxe-me uma carrada de títulos, e agora o cliente quer pagar imediatamente aquele livro, diz que tem pressa, coisas urgentes a fazer. Urgência havia, queria pôr-me à beira-rio a sonhar com aquela feira, caminhar com a vibração do escritor que deixou imagens ímpares desta feira legendária.



Na Rua do Souto, parei diante de um portão e avistei este átrio, o belo arco e a escadaria. Deu-me para imaginar que Camilo Castelo Branco podia muito bem ter passado por ali…


Uma capela para além da ponte, cheia de história, chama-se do Anjo da Guarda, tem lá dentro a imagem de São Miguel, século XIII, monumento nacional

Imagem do Arquivo de Ponte de Lima


Já me sentei à beira-rio, estou a inventar um mar de gente, tendas de bordados, vendedores de ouro, um extenso mercado de gado. Pego no livro, dou a palavra a José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho: “Foi sempre muito concorrida dos povos da região – e, segundo rezam documentos antigos do arquivo camarário, em velhas épocas passadas eram muito frequentadas pelos galegos. Ainda há muito quem hoje venha de Caminha, pela serra. De Coura, Viana, Barca e Arcos chega muito gado. Não faltam a ela os ourives de Braga e as burriqueiras do Prado, dos linhos, e tantas gentes mais. Mas vou tentar descrever-ta.
Primeiro, de cima da ponte, um circo de montes de beleza única, solares acastelados nos altos, ermidas alvejando, como um chamamento de graça e de fé, pelo meio da verdura. Capelas, igrejas, casais de povo por todos os lados, dobra do rio envolta em verdura, traçando a larga curva a jusante – e verdes milheirais por ali abaixo. Depois a vila com o seu pastel de prédios e pano de fundo, de mata secular, a circuitar o casario: granito amontoado em fundo verde, heraldicamente emplumado”.

Atenda-se que todo este relato tem muito mais de meio século, quase tudo mudou, mas há descrições do Conde d’Aurora possuídas de um fulgor, é prosa limiana sacramental, a convicção é minha, consigo lembrar-me neste momento do recolhimento do meu amigo Carlos Miguel quando lhe estou a falar do formigueiro de povo que entra na feira, lavradeiras, ciganos, mulheres de saias muito compridas, de muitos folhos e pregas, passam carros de bácaros, muitos cestos, sacas, feixes. A narrativa é meticulosa, como se o autor fosse detentor de um olhar reticulado e pontilhista. Do lado norte é a feira do gado. Ao fundo, na parte do areal que toca na água, andam soltas as vacas leiteiras, cingidas na testa com fitas de mastro. “Neste extenso quadrilátero não entra um carro, um cesto, uma barraca – apenas as juntas de bois, quase todos Barrosões, dessa linda sub-raça vianesa de focinho preto luzidio”. Marcado este teatro de ação, passa a outra panorâmica: “Do outro lado da ponte: areal do sul, ainda mais extenso, formando quase um círculo, oval imensa que vai fechar-se ao fundo, lá muito ao longe, quando o rio vai de tangente beijar a capelinha da Guia, no topo da Avenida dos plátanos. O resto da feira, tudo o que não é gado bovino, aqui se desenrola”. Que melhor cicerone, aedo, porta-estandarte, podia ter a feira da Ponte, senão este iluminado?

Conde d’Aurora


O escritor segue entusiasmado, anda entre as tendas das barraqueiras da feira, avista linho, atoalhados com ponto aberto, parece que o sangue lhe ferve a falar dos barros, aqueles barros que emergem da capa do livro: “É a feira dos barros, esses barros de Alvarães e de Barcelos; panelinhas assadeiras de forma bizarra e tradicional, travessas de formato e desenho herdado do século XVIII, pratos coloridos como no Império, granadeiros napoleónicos e assobio dos pés para os garotos brincarem, e tantos assobios mais e panelinhas e cornetas de barro, esses temíveis clarins que o garotame estridula toda a tarde da feira (e felizmente se quebram ao fim do dia)”.

Fotografia do Conde d’Aurora


Eu sei que o Carlos Miguel quer falar de algumas das ousadias e brejeirices do Conde d’Aurora, ainda continua recolhido, estou agora na última página deste livro plenamente limiano, comprado ao princípio da manhã e destinado a ficar perto de mim, no meu escritório, tal a magnificência das imagens. Carlos Miguel, vamos acabar este fabuloso texto, antes da sua memória, das mais rigorosas que conheci, trazer à tona aspetos facetos deste escritor. Assim termina a viagem pela feira:
“Pela meia tarde, sol alto ainda, começa tudo a debandar, os de mais longe em carros acogulados de gente, camionetas incómodas de ingénuas pinturas menineiras, camionetas que vieram substituir os velhos carros de cavalos, essas catitas de funda caixa e alta boleia tripla onde se encarrapitavam trinta caceteiros de varapau em riste”. Deixa-nos saudades das carripanas e despede-se com ufania: “Poeira, alegria, cor, som, algazarra – e tudo é beleza em redor e a bênção de Deus enche de alegria os corações e os lares”. Bendito reencontro com a prosa e as imagens do Conde d’Aurora, insuperáveis, e que bom recordar aquela tarde de 2013, chegara um livro do Conde d’Aurora a casa do Carlos Miguel, tivemos os dois uma tarde de paraninfo, graças a um senhor ilustre que sabia mergulhar entre a seiva do seu povo.

Imagens recentes de feiras de Ponte de Lima

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21303: Os nossos seres, saberes e lazeres (408): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21326: Parabéns a você (1863): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21320: Parabéns a você (1862): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 (Guiné, 1963/65); José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > Mapa de Fulacunda (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gampará e da Ponta do Inglês na Foz do Rio Corubal 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)




Carlos Barros, ex-fur mil at art, 
2ª C/ BART 6520/72 (1972/74)

1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) (*):


As ratazanas ao ataque… 

 por Carlos Barros


O 3º Grupo de Combate da 2ª CART / BART 6520/72  foi destacado para Gampará, um pequeno inferno de guerra, zona conquistada “recentemente” ao PAIGC e que este movimento guerrilheiro nunca deixou de atacar, de uma forma insistente: eram constantes flagelações ao aquartelamento, inúmeras emboscadas no mato, em suma, era a guerra em toda a plenitude…

A maioria dos militares dormia ao ar livre, no período mais quente e outros recolhiam-se nas casernas, feitas de adobes com cobertura de chapas de zinco, onde o frio e a chuva, tinham entrada livre…

O furriel Barros dormia numa caserna, sobre um colchão de espuma, sem lençol, e dormir nestas condições era terrível já que a ansiedade estava constantemente presente, devido aos ataques dos guerrilheiros inimigos para além dos mosquitos, inimigo número um dos militares “metropolitanos”…

Os ratos eram às centenas, atacavam os militares, subiam pelas paredes dos adobes e “guinchavam” numa melodia de sons agudos e incomodativos.

Um dia, para fazer face a esta praga, o Barros pediu aos mecânicos da companhia para fazerem uma ratoeira e, passados dois dias, apareceu,  ao furriel, uma ratoeira cheia de molas, parafusos e outras “tecnologias”. Ratoeira montada durante uns dias, e os ratos entravam e saiam da ratoeira num gozo irritante…O Barros sentia-se ultrajado e agiu…

Fez uma ratoeira simples, com tábuas dos caixotes das batatas, uma caixa forrada com folheta, das latas de conservas, uma porta “levadiça”, um arame em caracol, com isco, a segurar a entrada da ratoeira improvisada e, no final, de uma semana, o Barros tinha apanhado 47 ratazanas, sim, foram quarenta e sete, nada mais , nada menos que essa quantidade de ratos…

E o que fazia o Barros, todas as manhãs? Imagine-se!...

Colocava as ratazanas num bidon, regava-as com gasolina e soltava-as numa curta corrida contra a morte…

Hoje, não faria isto, mas a guerra transtorna as nossas mentes e a realidade foge-nos…

O Barros não ficou com a patente da armadilha, pelo contrário, deu a conhecer aos “artistas inventores” dos condutores a estrutura e o funcionamento do mesma e, a partir daí, o furriel Barros, era o grande inventor e o inimigo das ratazanas… O Barros apanhava, e a população nativa, levava a “mercadoria” para as suas tabancas, para comerem como “pitéu”…

Em Gampará havia alguma população e eram maioritariamente Balantas e Mandingas e as ratazanas assadas eram comidas por esta população e vi, muitas vezes, eles nas bolanhas secas, com uma catana, esburacarem as tocas para apanharem esses roedores para sustento da família….

Como curiosidade, e um pouco aparte desta história, segundo censo de 1960, a população total da Guiné era de 521 336 habitantes, dos quais 519 229, constituíam a população residente.

A densidade populacional média, para toda a “Província” aproximava-se dos 15 habitantes por Km2.

No grupo mandinga contam-se os Mandingas, os Saracolés, os Bombarás, os Jacandas, os Sossos e os Jaloncas. A Guiné tinha uma diversidade étnica muito grande: Balantas, Manjacos, Mandingas, Papel, Brame, Fulas, Beafadas,Bijagós, Felupes, Torancas…Estas etnias e muitas outras, eram constituídas por vários subgrupos, numa complexidade tal, que a convivência entre eles não era fácil, como se pode depreender.

Estes dados é apenas , para dar a conhecer um pouco da população guineense mas, muito mais poderia descrever…

Uma coisa é certa, o Barros continuou na sua luta contra os ratos, uma longa guerra que continuou no tempo e, no final da Comissão, já em Esposende, contei esta história à minha família e amigos meus que a acharam engraçada e curiosa…

Carlos Barros
Esposende, 19 de junho de 2020
__________


Guiné 61/74 - P21324: Blogpoesia (694): poemas para dizer em voz alta, em casa, na varanda, na rua, ou à beira-mar, em tempos de pandemia: António Gedeão, Li Bai, David Mourão Ferreira e Viriato da Cruz (seleção de Mário Gaspar, António Graça de Abreu, Mário Beja Santos e Luís Graça respetivamente)

Lisboa > Bairro da Graça > Festival Todos 2019 > 29 de setembro de 2019 > Janelas. 

Foto (e legenda);  Luís Graça (2019)


Janelas de Lisboa

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas,
que andam no céu a rolar.

Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza,
que inunda de canto a canto.

Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.

Todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!

Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

[Seleção de Mário Vitorino Gaspar, 
1/9/2020, 23h24. Sem indicação de fonte]

   


O poeta Li Bai (China, séc. VIII), "bebendo ao luar". 
Foto: origem desconhecida.  Cortesia:
facebook de António Graça de Abreu

Bebendo ao luar

por Li Bai [701-762]

Tradução de um dos mais famosos poemas de Li Bai,  por António Graça de Abreu
 

月下獨酌
花間一壺酒
獨酌無相親
舉杯邀明月
對影成三人
月既不解飲
影徒隨我身
暫伴月將影
行樂須及春
我歌月徘徊
我舞影零亂
醒時同交歡
醉後各分散
永結無情遊
相期邈雲漢

Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho, sem amigos.
Levanto o copo e convido o luar,
com a minha sombra somos três.
Ah, mas a Lua não sabe beber,
a sombra só sabe acompanhar meu corpo.
O luar por amigo, a sombra por escrava,
vamos todos fruir a Primavera, festejar.
Eu canto e passeiam no ar
os raios de luar.
Eu danço e volteia no espaço
a sombra de mim.
Lúcidos, nós três desfrutámos prazeres suaves,
bêbados, cada um segue seu caminho.
Que possamos repetir muitas vezes
nosso singular festim
e nos encontremos, por fim,
na Via Láctea.


[ Seleção: Anjos Silva Mendes | António Graça de Abreu, 
26/8/2020, 23h12]

 

Adiamento

por David Mourão-Ferreira [1927-1996]

Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.

David Mourão-Ferreira
in, “Obra poética” a págs. 171/172
Editorial Presença, lISBOA, 2001

[Seleção: António Beja Santos, 

27/08/2020, 19:14]


















Maqueso, "makèzú", noz de cola... Cortesia de 

Makèzú


makèzú

— «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»

..........................................................

O pregão da avó Ximinha

É mesmo como os seus panos,

Já não tem a cor berrante

Que tinha nos outros anos.

 

Avó Xima está velhinha

Mas de manhã, manhãzinha,

Pede licença ao reumático

E num passo nada prático

Rasga estradinhas na areia...

 

Lá vai para um cajueiro

Que se levanta altaneiro

No cruzeiro dos caminhos

Das gentes que vão p’ra Baixa.

 

Nem criados, nem pedreiros

Nem alegres lavadeiras

Dessa nova geração

Das «venidas de alcatrão»

Ouvem o fraco pregão

Da velhinha quitandeira.

 

— «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»

— «Antão, véia, hoje nada?»

 

— «Nada, mano Filisberto...

Hoje os tempo tá mudado...»

 

— «Mas tá passá gente perto...

Como é aqui tás fazendo isso?»

 

— «Não sabe?! Todo esse povo

Pegô um costume novo

Qui diz quê civrização:

Come só pão com chouriço

Ou toma café com pão...

 

E diz ainda pru cima,

(Hum... mbundo kène muxima...)

Qui o nosso bom makèzú

É pra veios como tu».

 

— «Eles não sabe o que diz...

Pru quê qui vivi filiz

E tem cem ano eu e tu?»


— «É pruquê nossas raiz

Tem força do makèzú!...»


In: Viriato da Cruz, "Poemas", 1ª edição. Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, Colecção de Autores Ultramarinos, 1961

[ Seleção: Luís Graça, 4 set 2020;  "maquezo", do quimbundo  makezu, plural de dikezu, noz de cola,  fruto mascado ou de que se faz uma bebida; fruto sagrado na cultura bantu]

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