segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21420: Agenda cultural (758): O livro "Madrinhas de Guerra - A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar" da autoria da jornalista Marta Martins Silva; Edições Desassossego e prefácio de Carlos Matos Gomes, estará à venda nas livrarias de todo o país a partir do dia 9 de Outubro


Madrinhas de Guerra - A correspondência dos soldados portugueses durante a Guerra do Ultramar
Autora: Marta Martins Silva
ISBN: 9789898892997
Ano de edição ou reimpressão: 10-2020
Editor: Desassossego
Idioma: Português
Dimensões: 160 x 230 x 18 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 288


À venda a partir do dia a 9 de outubro nas livrarias de todo o país.

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Sinopse:

«Eu sou um militar longe, muito longe da minha terra natal [...] e com a sua ajuda o tempo passava um bocadinho melhor.»
A chegada do correio era o momento mais aguardado pelos militares que combatiam na Guerra Colonial. Em Angola, na Guiné e em Moçambique, milhares de rapazes portugueses viveram o inferno na terra, e as cartas que recebiam da metrópole eram o conforto que precisavam para se sentirem mais perto de casa.
Muitas destas cartas eram escritas por mulheres que eles não conheciam mas que aceitaram o repto do Movimento Nacional Feminino para se corresponderem com os militares e lhes oferecerem um ombro amigo durante a comissão em África: palavras de alento que deram, em muitos casos, lugar a declarações apaixonadas que chegaram ao altar.
Madrinhas de Guerra conta o papel quase esquecido destas mulheres pela voz das próprias, mas também as lutas dos homens a quem escreviam, protagonistas de uma guerra que deixou atrás de si um rasto de sangue e destruição. Por entre histórias de encontros e desencontros - entrelaçados com a História de Portugal dos anos 60 e 70 do século passado -, há lugar aqui para o que de melhor ficou desse tempo tão duro para quem o viveu: o amor.


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Sobre a autora:

Marta Martins Silva nasceu em Aveiro em 1984, numa altura em que o país lidava com a recessão económica e o FMI. Não sabe se foi isso que a afastou dos números e a aproximou das palavras desde que se conhece. Encontrou no jornalismo, que exerce desde 2007 na revista Domingo do Correio da Manhã, a junção de duas das suas grandes paixões: a escrita e as pessoas. Agradam-lhe as histórias reais, pela verdade dos protagonistas que as vivem e porque não há melhor guião do que a vida daqueles com quem todos os dias se cruza. Desde os bancos da escola que se interessa pela História do país, mas nos últimos dez anos, fruto dos contactos frequentes com os ex-combatentes da Guerra Colonial para a revista Domingo, apaixonou-se pelo tema do Ultramar e pelas histórias que a História esconde. Em 2019, assinou na revista Sábado o especial «Os primeiros soldados enviados por Salazar», e edita agora o seu primeiro livro.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21357: Agenda cultural (757): Contos eróticos, "Os Velhotes", de António José Pereira da Costa... na Feira do Livro do Porto, 12 de Setembro de 2020 (Carlos Vinhal)

Guiné 671/74 - P21419: Notas de leitura (1312): “Guerra Colonial", por Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes; Porto Editora, 2020 - O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Esta nova edição da Guerra Colonial é uma obra de referência para quem quiser ter uma grande angular da guerra, o que motivou o Estado Novo a optar pela guerra alegando mesmo que havia força para a manter intemporal, isto a despeito dos ventos de mudança que tinham refeito novas cumplicidades e introduzido na cena internacional o conceito de auto-determinação. Os autores oferecem-nos agora um manual escrito numa linguagem muito acessível e que abarca o modo de fazer a guerra, a organização das forças terrestres, aéreas e navais, a africanização, o viver quotidiano. Iremos mais tarde apreciar o que eles descrevem e analisam sobre as controversas teses da guerra ganha ou guerra perdida e como, na última cena do ato final, Marcelo Caetano procurou arranjar tentativas para a solução da guerra, quando tudo já estava perdido.
Obra de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário


O mais rigoroso manual de divulgação de toda a guerra colonial (1)

Mário Beja Santos

A dupla Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes obteve um currículo inexcedível na investigação da guerra colonial, são dois comunicadores rigorosos, possuem opinião fundamentada e estão dotados daquela mestria de tornar acessível matéria que poderá ser encarada como árida pela opinião pública curiosa mas leiga. Acaba de sair uma nova edição de Guerra Colonial, Porto Editora, 2020, não é uma remodelação superficial, a sua arrumação permite a quem quer recordar ou iniciar-se sobre políticas, doutrinas, modos de ver, territórios da guerra, organização e manobras táticas das Forças Armadas portuguesas, as populações envolvidas nos conflitos, como era o dia-a-dia dos militares e dos guerrilheiros, como surgiram, se organizaram, evoluíram os movimentos de libertação e conduziram a guerra; e como eram os comportamentos na sociedade portuguesa face ao progredir da guerra, procede-se ao balanço, o que se passou após o fim do conflito, quais os protagonistas considerados com papéis mais marcantes. Enfim, uma obra de estrutura inédita entre o roteiro, o manual e o breviário.

“A guerra que Portugal travou em África entre 1961 e 1974, e que contribuiu de forma decisiva para o 25 de Abril, é o acontecimento mais marcante da nossa história na segunda metade do século XX. Este trabalho pretende contribuir para um melhor conhecimento do que foi esse conflito, das condições em que ele se desencadeou e das suas consequências”.

Abre toda esta digressão com o mapa da guerra, o cenário do mato, passa-se para a doutrina militar de contraguerrilha assente no manual O Exército na Guerra Subversiva, uma verdadeira bíblia para as forças terrestres. Elencam-se as forças portuguesas perante a guerrilha, a natureza das operações, desde a defesa dos pontos sensíveis, passando pelas minas, os patrulhamentos e os golpes de mão. Com este pano de fundo da guerra e dos atores de âmbito nacional, a digressão é de Portugal na cena internacional, estudos que ficam a cargo de Josep Sanchez Cervelló, a partir de 1960 nos areópagos internacionais a política colonial portuguesa era maioritariamente contestada. Ficamos igualmente a conhecer o que era o Exército Português nas vésperas da guerra colonial.

Adriano de Moreira dá-nos um magnífico ensaio sobre Salazar, um homem só num mundo em mudança, é de leitura obrigatória, aqui fica um parágrafo:
“Extremamente hábil e lúcido com os problemas diplomáticos até ao fim da II Guerra Mundial, não receando medir-se com representantes de qualquer grande potência, num quadro de referência euromundista que permaneceu vigente durante a maior parte da sua vida, a explosão dos fatores internos e a mudança revolucionária do contexto internacional não o encontraram munido de igual capacidade de gestão, porque as solidariedades mundiais eram outras, as lealdades eram diferentes. O mundo, como o país, deixara de ser o conhecido”.

E Adriano Moreira disserta sobre a hierarquia militar e o olhar de Salazar sobre o império.

Estamos agora no primeiro palco de guerra, Angola, descreve-se o meio, os primeiros atos de terror, e depois a reocupação do Norte de Angola, esquematiza-se a emblemática Operação Viriato. Segue-se o quadro em que se movem os atores, os locais, os grupos étnicos, quem é quem nos movimentos de libertação e a resposta das Forças Armadas Portuguesas.

O segundo teatro de operações é a Guiné, releva-se a atuação do líder revolucionário Amílcar Cabral na fundação do PAIGC, dá-se relevo à primeira operação de grande operação, a Operação Tridente, entra-se propriamente no terreno e resume-se o que foi a guerra entre 1963 e 1968, segue-se a era Spínola e faz-se menção aos acontecimentos de 1963, ficamos igualmente a saber os efetivos da Marinha e da Força Aérea, bem como evoluiu o dispositivo militar do Exército na Guiné.

E passamos para a guerra em Moçambique, faz-se uma súmula do território, é descrito o aparecimento e organização da FRELIMO, como se iniciou a guerra, como se caraterizou o avanço da FRELIMO para Sul, entre 1973 e 1974. Faz-se agora um registo das Forças Armadas Portuguesas, primeiro o Exército com as suas diferentes armas, incluindo as Forças Especiais, segue-se a Marinha e por último a Força Aérea. Feita esta contextualização, avança-se para a descrição dos movimentos de libertação e guerra: o MPLA, a UPA/FNLA, a UNITA, o PAIGC e a FRELIMO, dá-se mesmo o quadro dos armamentos e equipamentos dos movimentos de libertação. Procura-se uma descrição dinâmica da evolução política destes movimentos de libertação, primeiro o MPLA, depois a FNLA, segue-se a construção do Estado na Guiné-Bissau, o papel de Samora Machel na FRELIMO e as contribuições da organização da Unidade Africana em suporte dos movimentos de libertação.

Em capítulo distinto é-nos dado um quadro referencial da manobra militar das Forças Portuguesas: o seu armamento, o desafio da logística, houve que requisitar paquetes, transformar a linha aérea imperial e comprar novos aviões, montar sistemas de informações e validar a ação psicológica, a ação psicossocial, construir aldeamentos, fazer recurso da africanização, em 1973 a percentagem das tropas locais no efetivo-geral do Exército mostrava números impressionantes e díspares: 42% em Angola, 20% na Guiné e 54% em Moçambique.

O quotidiano arranca com uma ordem de mobilização, forma-se uma unidade, dá-se instrução, segue-se uma licença de dez dias antes do embarque e para a generalidade a viagem é por navio. Os oficiais seguiam para a 1.ª classe, os sargentos para a 2.ª e as praças para a 3.ª. “À chegada ao porto de destino, procedia-se a uma nova formatura, um desfile e um discurso. Depois, iniciava-se a partida para um campo militar: o Grafanil, em Luanda, ou o Cumeré, em Bissau. Aqueles para quem Moçambique era o destino, prosseguiam viagem de Lourenço Marques para norte até à Beira, Nacala ou Porto Amélia. A partir daqui, seguiam-se os dois anos da comissão”. Os autores referem a importância dos quartéis, como se passavam aqueles dois anos, a importância do correio e os ritos da glorificação, as cerimónias do 10 de Junho e as condecorações. Não são esquecidas as organizações femininas, o papel das mulheres na guerra colonial e as manifestações oposicionistas à guerra. O historiador Luís de Salgado Matos dá-nos um elucidativo estudo sobre a Igreja e a guerra, da colaboração à resistência.

E ficamos hoje por aqui, os autores vão-nos falar depois de três generais com três conceitos distintos, o peso do esforço de guerra, o fim do Império, as feridas que a guerra deixou e inevitavelmente emerge a questão ideológica da guerra perdida ou sustentável, que eles vão documentar com os casos concretos da Guiné, Angola e Moçambique. Bem interessante é a relação que nos dão dos principais protagonistas e é de ter em conta a reflexão final sobre as Forças Armadas. Despedem-se dizendo que esta divulgação lhes pareceu a mais adequada para o maior número de pessoas, tanto para as que estiveram nos teatros de operações como para as gerações mais novas, que da guerra vagamente sabem por ouvir falar.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de setembro de 2020 > Guiné 671/74 - P21400: Notas de leitura (1311): “I Reunião Internacional de História de África - “Relação Europa-África no 3.º Quartel do Século XIX”; Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa 1989 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21418: Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Lourinhã (2): A despedida do verão ou a vida que segue dentro de momentos (texto e fotos: Luís Graça)










 






Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-te ao Mar e... Não Tenhas Medo > 4 de outubro de 2020 > A despedida do verão...


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Porto das Barcas: 
a vida segue dentro de momentos

por Luís Graça

À Maria do Céu Pinteus e ao Joaquim Pinto Carvalho, 
a quem carinhosamente chamamos os "Duques do Cadaval".


Um navio fantasmagórico
entra pelo mar dentro, meteórico,
quase abalroando as Berlengas.
Vai deixando pedaços de ilhas pelo Atlântico fora.
E restos de memórias e lengalengas.

Pelo Mar do Serro segue, em sentido contrário
a última Nau Catrineta,
com a bandeira preta,
sinal de peste a bordo
ou quiçá de assalto de corsário.

No Montoito ficamos de atalaia,
e mais abaixo avistamos a Peralta.
Não há sinais de cerco sanitário
nem de tempestade, a estibordo.
A vida segue dentro de momentos,
 lê-se em letras de fogo no céu.
"Bora, malta,

beber um copo que hoje pago eu!"

Felizmente há a solidez do rochedo da amizade,
a Tabanca do Atira-te ao Mar
e Não Tenhas Medo,
Companheiro.

Ah!, meu português domingueiro,
filho de um povo já pouco ou nada aventureiro,
que deixou gemidos de guitarra e fado
p'las bolanhas de Bambadinca, Buba e Bedanda.

Senta-te à nossa mesa comprida,
e aceita a nossa bianda,
a nossa hospitalidade,
que nunca a amizade e a camaradagem  foram pecado.

À volta de um prato de sardinhas
e de um pedaço de pão de trigo barbela,
com o azeite puro da nossa oliveira,
despedimo-nos do verão,
mas não da vida, ou do que resta dela, 
do puro prazer de estar vivo, e de pé,
de dedilhar uma viola,
de beber um copo em grupo,
ou de lembrar os tempos de Guiné,

Que não nos falte nada, à mesa, frugal
dizem os "Duques do Cadaval":
o pão,
o queijo,
as azeitonas,
as sardinhas,
as batatas,
os pimentos,
a salada, o vinho,
E mais importante:  o carinho.

Cada um tem o seu fadário,
mas que seria de nós, manos,  amigos, companheiros,
se alguém nos roubasse a neblina do Cabo Carvoeiro,
as ilhas do nosso imaginário, 
os nossos lugares de desterro,
o azul da serra de Montejunto
e a paleta de cores do pôr-do-sol
no Mar do Serro ?!

Porto das Barcas, Tabanca do Atira-te ao Mar... e Não  Tenhas Medo,

Guiné 61/74 – P21417: (Ex)citações (373): Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné. Abutres.(José Saúde)



A hierarquia dos abutres a devorarem uma carcaça (foto retirada, com a devida vénia, do  Portal dos Animais)  



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

A nossa existência de vida diz-nos que os abutres são aves necrófagas que se alimentam de restos de cadáveres. Na sociedade, onde há milhares de anos coabitamos, era normal a existência de voos rasantes de presumíveis “abutres” que “comiam tudo e não deixavam nada”.

Nos tempos de antigamente, do Estado Novo onde o conflito colonial imperava, gentes do poder envergavam fatos de fazenda fina, camisas acetinadas, sapatos e gravatas de luxo, comentavam os teores da guerra e traziam ao conhecimento do povo inverdades, mas, por outro lado, procriavam réstias de esperanças em familiares de “miúdos” que, entretanto, se encaixavam nas trincheiras da morte.

E é neste contexto que vou debitando temas que farão parte eterna das nossas memórias que, no nosso caso, foram cruéis. Eu, à beira dos 70 e com 14 anos de um AVC que me deixou profundas sequelas no lado direito, a mão destra continua ausente, lá vou dedilhando histórias no meu computador, mas, somente, com a mão esquerda. É, aliás, com esta tenaz persistência que continuarei, aqui no blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné, a dizer: Presente!...

Deixo a dica aos camaradas, caso porventura assim o queiram, adquirirem a minha última obra, nona, “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu”, lançada pela Editora Colibri, Lisboa.

Um livro que integra uma coletânea de “Memórias de Guerra e Revolução” cuja coleção é pertença do Comandante Almada Contreiras, um dos militares do MFA – Movimento das Forças Armadas – que esteve envolvido na Revolução dos Cravos, o 25 de Abril de 1974, e que terminou com a guerra colonial.


Pássaros que esvoaçavam os céus da Guiné 

Abutres 

Numa breve reflexão sobre a passarada guineense, que era e é enorme, detenho-me perante uma veracidade que me fora conhecida, ousando trazer à estampa o universo dos abutres, pássaros necrófagos que proliferavam em todo o solo e que amiúde observava com algum interesse. O seu aspeto atirava para um horripilante semblante e o habitat natural passava pela procura sistemática de restos de cadáveres.

Não vacilo, porém, em recordar Hitchcock na sua análise psicanalítica sobre um filme onde o tema era, obviamente, “Os Pássaros”. Os conteúdos do emaranhado de imagens remetiam-nos para o ataque dos pássaros aos seres humanos. Um filme que se estreou nas telas cinematográficas mundiais no ano de 1963 e que bom dinheiro rendeu à produção, sobrando as inúmeras interpretações feitas pelos amantes do cinema que assumiam presumíveis traduções que esbarravam em análises científicas.

Mas demos um passo em frente, ouçamos, abstratamente, o clarinete e apresentemos armas numa infindável parada, falando nos “abutres” conhecidos numa Guiné em tempo de guerra e não numa outra espécie de “aves de rapina” que se multiplicavam na metrópole lusitana. Estes rapazes de então, bem ou malvestidos de acordo com as circunstâncias propostas, pareciam “bandos de pardais à solta” que esmiuçavam vidas e citavam, com ênfase, a provável falsificada ideologia de um patriotismo entendido, por eles, como inigualável.

Simultaneamente ao evoluir das desgraças conhecidas onde a morte de camaradas se amontoavam nas frentes de combate, lá vinham os senhores de gravatas acetinadas e fatos à príncipe de “Gales” que na hora da despedida no cais portuário de Alcântara, incentivarem um contingente de jovens mergulhados em porões de navios cuja etiqueta transportada era, tão-somente, o pregão ao dito popular que a encomenda que seguia a bordo registava: “carne para canhão”.

Passemos, licitamente, à vanguarda porque esses fatídicos tempos foram maus de mais para ser verdade. Com efeito, concentremos atenções no respetivo pássaro e observemos que o abutre é uma ave accipitriforme e originária da família chamada de accipitridae. Refletindo em pormenor sobre estes necrófagos, diz-se que as aves são também conhecidas como abutres do velho mundo. A sua longevidade chega a atingir os 30 anos, sobretudo quando se encontram em cativeiro.

Conheci o seu esvoaçar num horizonte interminável e os seus impulsos animalescos na procura de um lugar para pernoitar. Conheci, também, a obstinada azáfama na procura de alimentos. Conheci, ainda, as suas visitas quotidianas às proximidades do barracão do Seidi, “magarefe-dia” onde o nosso quartel angariava carne de vaca fresca para uma pontual refeição mais abastada, sendo que este rapaz de etnia fula matava, esfolava e dividia a carcaça do animal de acordo com os pedidos previamente feitos.

Lembro, e foram muitas vezes a que assisti, o Seidi, após a trabalheira da matança lançar para o bando de abutres pequenas dádivas para os pássaros se deliciarem com primor.

Recordo, simultaneamente, as lutas desenfreadas travadas entre eles pelo melhor naco, ou, as guerras para limparem parte das ossadas do animal, ficando a certeza que no grupo havia regras que os mais desenfreados comilões, sempre de bico “afiado”, assumiam por inteiro, tendo em conta o posto hierárquico emanado pelo bando.

Claro que as lutas dos pássaros desenhavam ávidos momentos em que a prioridade era o encher o papo. Noutros lugares existiam sequiosos “abutres”, mas estes literalmente curvados ao faustoso e recheado prato que lhe fora colocado na mesa. A nutritiva refeição era tão-só uma pausa pontual ao arroz com salsichas.

Para outros, pássaros de rapina imbuídos num minucioso calculismo, a tal vaca morta e desmanchada pelo Seidi tinha os seus dividendos. Restava a certeza que a mão “milagrosa” do Seidi jamais recusou atirar para os abutres as sobras da carcaça que, por razões evidentes, “não iam à mesa do rei”.

Hoje, ao lembrar as memórias de Gabu detenho-me perante as minhas vulgares idas ao matadouro do Seidi. A sua azáfama era de todo interessante. A túnica, veste que usualmente transportava no seu corpo e que aparentava alguma sagacidade, estava normalmente manchada de sangue, tal como as mãos que reproduziam um trabalho que ele próprio assumia com dignidade. Era, aliás, dessa árdua faina constante que o nosso amigo recolhia proveitos monetários para alimentar a família.

Retalhos de vidas que em tempo de guerra abasteciam tabancas de gentes que faziam do momento imponderáveis desejos de uma existência vergada pelos horripilantes sons vindos de outras batalhas campais que ocorriam ali por perto.

Lá longe, muito longe, os arautos do despotismo debitavam discursos, qual “abutres” esvoaçando sobre negros horizontes, dizendo às massas que os militares portugueses lutavam nos palcos de guerra com honra e dignidade.

Na verdade, nós jovens lutávamos como heróis visando a essencial salvaguarda da nossa “carcaça”, mas numa guerra que não era decididamente nossa. Os defuntos “abutres” que num limiar de cautas razões que na época ostentavam, levantem-se dos sepulcros, escutem o julgamento final e defendam a triste tese que certamente não transitará em julgado.

Histórias avulsas de incautos cenários onde fomos meros “pássaros” andantes de uma imigração obrigatória em território alheio.

Um abraço, camaradas,

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. também o poste anterior deste autor:

17 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21366: (Ex)citações (370): Rumo à guerra colonial na Guiné (José Saúde)

domingo, 4 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21416: Blogues da nossa blogosfera (142): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (53): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.




 GUERRA NA GUINÉ (PEQUENAS MEMÓRIAS)

ADÃO CRUZ

Bigene


Esta velhota, fumadora de cachimbo, veio um dia ter comigo porque tinha o “Verme-da-Guiné”. Chamávamos a este verme “Dracontia”.
Embora Dracontia seja o nome de uma das vinte e cinco mil espécies de orquídeas, aqui é um parasita denominado “Dracunculus Medinensis” o qual produz uma doença chamada “Dracunculíase”. Pertence ao grupo das “Filarias” e é um parasita que é transmitido pela água infectada com larvas de Dracunculus. No intestino acasala-se com os machos, que depois morrem, e em seguida infiltra-se na pele, no tecido celular subcutâneo (gordura debaixo da pele), onde cresce e se desenvolve, podendo atingir o tamanho de um metro.
Aloja-se em qualquer parte do corpo, mas aparece sobretudo nas pernas e abdómen. Não tem tratamento, podendo causar graves infecções e processos inflamatórios. Vi alguns casos, e felizmente todos bem sucedidos, graças a uma técnica que alguém inventou, e quem a inventou, não há dúvida que “tinha esperto no cabeça”.

Reparem bem na maravilha desta invenção. O parasita vem pôr os ovos (um a três milhões) quando está dentro de água. Para isso abre um pequeno orifício ulceroso e muito doloroso, onde enfia uma espécie de cabeça, semelhante ao escolex da ténia. Nesta mulher, essa úlcera estava na parte interna da perna, logo acima do tornozelo. Então, com uma pinça, agarra-se a cabeça, puxa-se suavemente para fora alguns centímetros (nunca por nunca partir ou romper, pois dessa forma fica o caldo entornado e nunca mais o conseguimos tirar), e enrola-se num palito, fixando-o à perna com adesivo.
Ao outro dia, como o verme se sente preso, sai um pouco mais para o exterior e enrolamos mais uns centímetros, fixando de novo com adesivo. E assim sucessivamente, todos os dias, até sair por completo, o que pode levar semanas. Associamos alguma medicação analgésica, anti-infecciosa e anti-inflamatória.

Em 1986 havia cerca de 3,6 milhões de casos. Nesta altura, o Verme-da Guiné, existente em muitos outros países, está praticamente erradicado.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21396: Blogues da nossa blogosfera (141): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (52): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21415: Blogpoesia (699): "O tagarela", "Fidelidade" e "O mistério do talento", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


O tagarela

Infelizmente não é uma avis rara.
Estamos sempre a tropeçar neles.
Uns bazófias.
Nunca leram um livro a sério.
Mas dão ares de que sabem tudo.
Na roda são quem mais fala.
Sua cabeça é oca. Que nem um melão.
Ninguém lhes passa cartão no que dizem.
Mesmo assim, têm sempre de dizer parlapatices.
E, se eles são da nossa família?
O caso é muito sério.
Temos de os gramar.
E viva o velho.
São pessoas.
Embora menores.
Mas, fazem falta.
Para condimentar a vida.
Se todos falassem ajuizadamente, seria uma sensaboria de criar bicho…


Berlim, 3 de Outubro de 2020
12h43m
Jlmg


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Fidelidade

A união gera a solidez.
A amizade é uma força ingente que ata as mãos e cria a fidelidade.
Somos muito mais fortes unidos.
Assim, alcançaremos os nossos sonhos.
Tornaremos nossas vidas mais ricas e viçosas.
Com esta riqueza poderemos comprar tudo. Até o infinito.
A abundância só se consegue com o trabalho de todas as mãos.
Repartir justamente os frutos gera força e não deixa espaço para a exploração nem para o parasitismo.
Só assim se alcança a felicidade que tanto nos seduz e arrasta…


Berlim, 2 de Outubro de 2020
7h17m
Jlmg


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O mistério do talento

Ave misteriosa.
Voa solitária na noite do indefinido.
Poisa em silêncio sobre a presa.
A avassala e condena.
Se apodera de seus caprichos.
A escraviza sem torturar.
Felizardo quem a recebe.
Dá-lhe a volta a vida.
Não mais o larga.
Visionário na escuridão.
Onde aparece, tudo fica brilhante.
São diversos como a natureza.
Fazem uníssono em sinfonia.
Realçam o belo com o rigor dum bisturi.
Abençoado quem o aceita.
Atingirá os cumes da beleza.
Repousará na candura do inefável.
Onde ora o sonho e o silêncio.


Ouvindo o pianista Tiago de Sousa tocando uma peça sua.
Berlim, 1 de Outubro de 2020
11h43m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21395: Blogpoesia (698): "Tanque sob a ramada", "Folhas de Outono" e "A minha costeira à porta de casa", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21414: (Ex)citações (372): Protésico & amnésico ? Lelé da cuca ?... Recomenda-se o teste matinal do dedo-grande-do-pé-direito-a-mexer...para se fazer a prova de vida...



Forno crematório elétrico. Foto de Georg Lippitsch (2017). Cortesia de Wikipedia > Cremação



1. Já tive, ontem de  manhã, uma longa e agradável conversa, com o Hélder Sousa, nosso aniversariante do dia (a par do Carlos Prata). Estava feliz, naturalmente, é dos que gostam de fazer anos, de estar vivo, de ser ativo e proativo, e de receber lembranças dos amigos... "Eh!, pá, 'tás porreiro ? Ainda ainda não foste covidado ? E quando é que a gente bebe um copo ?"...

Para além do doce blá-blá dos amigos, há uma razão adicional para se celebrar essa efeméride festiva que é o nosso aniversário: é que no dia de anos a família pelo menos reune-se, filhos e netos, noras e genros juntam-se à volta da mesa para cantar os parabéns a você. 

Não há, afinal, melhor prenda do que essa...E fazem-se juras,votos, promessas..."Até aos cem, papá, muita saúde e longa vida, vovô!"...

Mas a gente sabe, por experiência própria e alheia, que o raio da velhice nunca vem só, com ela vêm as sequelas & as mazelas...E, no caso dos antigos combatentes como nós, as sequelas & as mazelas se calhar são a dobrar... Dizia-me há um dias um camarada, ao telefone, grávido de lucidez: "Porra, estamos protésicos & amnésicos!"...

Para o Carlos Prata e o Hélder Sousa, que ainda são "rapazes novos", eu pessoalmente só posso desejar, não o impossível, mas o razoável: 
No mínimo, que acordem todos os dias com o dedo grande do pé direito a mexer!...

Era assim que a gente acordava jovialmente na Guiné, todas as manhãs (em Bambadinca, sempre que dormíamos num colchão de espuma; que no mato, as preocupações matinais eram bem outras).

Os nossos filhos e netos podem não acreditar, e achar que já estamos todos lelés da cuca, mas era a primeira parte do corpo, o dedo grande do pé direito, para que deitávamos os "holofotes" ao acordar... 

Era a primeira peça do esqueleto que não podia falhar... E era o primeiro teste vital que tínhamos de fazer todos os dias, pela manhã... (Há muita gente viva, camaradas da Guiné, que ainda anda por aí em boa forma e que não me deixa mentir.) 

2. Fui assaltado, entretanto,  por uma dúvida: será que estamos mesmo "lélés da cuca" ? Nós ou o blogue, que é a mesma coisa...Há quem insinue, há quem acuse, há quem se interrogue, há quem receie: mas agora até já os crematórios, ligados à centrais de aquecimento das cidades, lá na terra dos viquingues, também são tema de conversa ?! (*)

Apressei-me a pôr água na caldeira, e escrevi, em comentário ao poste P 21411 (*), adicional aos comentários do António Martins de Matos, Cherno Baldé, Valdemar Queiroz e José Belo...

Parafraseando o escritor romano Públio Terêncio, o Africano (c. 195 / 185 a- C- c. 159 a. C:). na sua comédia "Heautontimorumenos" (O inimigo de si mesmo), do ano de 165 a.C., podemos dizer_"Homo sum, humani nihil a me alienum puto" (, traduzindo para o povo cristão que não sabe latim: «Sou humano, e nada do que é humano me é estranho»).

Pois é, se calhar nada é  mais humano do que a nossa condição mortal, a morte e o culto dos nossos mortos... O assunto é tão delicado que continua a mexer connosco, antigos combatentes: os nossos mortos insepultos (, que desapareceraam nas águas lodosas dos rios, braços de mar e bolanhas da Guiné), os nossos mortos inumados em cemitérios locais, por vezes nos próprios locais onde morreram (Cheche / Rio Corubal, Guidaje...), os nossos mortos pulverisados por minas e fornilhos, os talhões nos cemitérios e monumentos aos nossos mortos vandalizados...

De acordo com as nossas regras editoriais, só há três "temas" que são tabus:  a política (partidária), a religião (proselitista) e o futebol (clubístico)... Em nenhum deles cai a cremação e a eficiência energética das cidades... De qualquer modo, e c
omo diz um amigo meu, isso é tramado, porque se calhar a política, a religião e o futebol representam, com a conversa da treta, as anedotas, a fofoquice e os comes & bebes, 99% das nossas conversas do dia a dia... 

Restar-nos-ia 1% para falar aqui no blogue...  Mas o problema é que a maior parte da malta já não quer mesmo falar da "guerra da Guiné", coisa do passado distante, e há mais de meio século (1961-1974)... "Camarada, estou cansado, poupa-me!", ouve-se dizer...

Quando o último se calar, vou ter mesmo que ponderar o fecho do blogue... Mas antes temos de fazer uma festa de despedida e nomear uma comissão liquidatária... para organizar o "choro"... E aí põe-se a questão: é com ou sem cremação, o funeral  ?

Aliás, o blogue já se começou a "desfazer": estranhamente ontem de manhã  desapareceu a coluna estática do lado esquerdo... Mau augúrio ? Ou um simples "bug" informático, uma anomalia temporária ?... 

Aposto na segunda hipótese. A verdade é que se eu clicar em postes anteriores a coluna reaparece...Mas de momento só aparece a coluna em branco, do branco da cal, do branco da cor da morte!...

Se calhar, bem tem razão o tal camarada que, há dias, ao telefone, em desabafo solidário, me dizia: "Porra, camarada, estamos a ficar todos protésicos e amnésicos!"... Um eufemismo para dizer: "Velhos"!...

Eu, protésico, já estou... Se calhar o próximo passo, é "lelé da cuca"...

De qualquer modo, caros amigos e camaradas, desculpem lá qualquer coisinha, mas "homo sum"..., o que dizer: os pobres dos editores que fazem este blogue não são heróis, muito menos deuses... O máximo que eu posso é recomendar que  todos nós, editores, autores, colaboradores permanentes, comentadores e leitores,  façamos o teste, rápido e gratuito,  que a gente fazia todas as manhãs na Guiné, o do dedo-grande-do-pé-direito-a-mexer"... (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de outubro 2020 > Guiné 61/74 - P21411: Da Suécia com saudade (81): Pragmatismos escandinavos: ligar os crematórios às redes centrais de aquecimento das cidades (José Belo)

(**) Último poste da série > 19 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21372: (Ex)citações (371): eu, computodependente me confesso: a notícia da minha "deserção"... foi, afinal, um bocado exagerada... (Valdemar Queiroz)

Guiné 61/74 - P21413: Parabéns a você (1875): Artur Conceição, ex-Soldado TRMS da CART 730 (Guiné, 1965/67) e Inácio Silva, ex-1.º Cabo Apont Armas Pesadas da CART 2732 (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor:

Último poste da série de 3 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21410: Parabéns a você (1874): Cor Ref Carlos Alberto Prata, ex-Capitão, CMDT da CCAÇ 4544/73 e CCAÇ 13 (Guiné, 1973/74) e Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF (Guiné, 1970/72)

sábado, 3 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21412: Os nossos seres, saberes e lazeres (413): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Em Viana do Castelo, lamento profundamente só lhe ter dedicado um dia nesta itinerância em homenagem ao meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo que aqui estudou e viveu por um bom período. Acompanhei anos a fio a vida da cidade, lia-lhe impreterivelmente o Aurora do Lima, até mesmo a necrologia. Viana é um deslumbramento. Algumas destas imagens abonam a fruição que a cidade oferece, o património é riquíssimo, e duvido que haja alguma panorâmica que rivalize com o que se avista no Alto de Santa Luzia. A fama das gentes de Viana vem de longe e não se circunscreve nem aos seus festejos, ao seu gosto pelo oiro, ao seu valioso casario. São as suas gentes.
Atenda-se ao que Frei Luís de Sousa escreveu na vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, uma das figuras icónicas da terra, a propósito das mulheres: "Não vivem em ociosidade, mas são daquele humor que a Escritura gaba na que chama forte, aplicadas ao governo da sua casa e a granjear com o trabalho e indústria, das portas adentro, como os homens fora de casa. Assim, há matronas de muito preço e bom exemplo e tão inclinadas a encaminhar as filhas a serem mulheres de casa e governo que, assim como em outras terras é ordinário, na tenra idade, mandá-las a casa das mestras com almofadas e agulhas, assim nesta as vemos ir às escolas com papel e tinta, e aprender a ler e a escrever e a contar".
E fiquemos por aqui, ainda há muito que ver em Viana.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (8)

Mário Beja Santos

Impensável que a peregrinação em homenagem ao meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo não passasse pela cidade princesa do Lima, a Viana do Castelo onde ele estudou e fez amizades, como a que manteve com o poeta António Manuel Couto Viana, amizade que sobrou para mim, e daí a oferta que fiz de um conjunto de desenhos dele, com o especial pedido à autarquia, a quem entreguei este património, que ele ficasse numa sala da Biblioteca Municipal de Viana de Castelo que tem o seu nome. Lamento só ter gizado um programa para um dia, Viana e os seus arrabaldes precisam de muito mais tempo. E o paradoxo é que eu lia com absoluta regularidade a imprensa local, durante muitos anos deve ter havido poucos leitores que leram de alto a baixo o Aurora do Lima, como eu. Adiante. Muni-me do que Carlos Ferreira de Almeida sobre Viana escreveu no livro Alto Minho, atenção que a obra é de 1987, há uma expansão urbana e uma requalificação do casco histórico que não consta deste relato exultativo às belezas de uma cidade cheia de História. Logo nos alvores da nacionalidade, a Viana da Foz do Lima era fundamental para a segurança da orla costeira nortenha, a população ia crescendo à volta de uma enseada depois desaparecida. A antiga vila rural de Átrio passou a partir de D. Afonso III a chamar Viana da Foz do Lima, na época moderna acrescentou-se-lhe o epíteto de “notável”. E escreve Ferreira de Almeida que a sua fidelidade à política de D. Maria II e a resistência do seu castelo à revolta da Patuleia levaram a rainha a conceder-lhe a categoria de cidade, com o nome Viana do Castelo. Ferreira de Almeida desenha um itinerário que não será aquele que preparei para o dia de hoje. Mas é importante o que ele escreve sobre o crescimento de Viana, a desenvolver-se na direção do cais, a Sul, e na banda da Ribeira, a Oeste. Refere as quatro portas, creio que só restam vestígios, propícios a expedições arqueológicas, a do Campo do Forno, depois chamada de Santiago, a Norte, a das Atafonas, ou de S. Pedro, para Nascente, a do Postigo, para Sul, e a da Ribeira, no lado Oeste. Detenho-me aqui, a cidade portuária, que muito cedo recebeu o caminho-de-ferro, daqui se partiu para o Brasil e para a pesca do bacalhau, e ofereceu a Portugal nomes sonantes, como D. Frei Bartolomeu dos Mártires.
Desse tempo da pesca do bacalhau, na zona portuária, espera-nos, de cara lavada, o Gil Eanes, o símbolo de uma epopeia que felizmente não está esquecida.
Agora sim, vou embrenhar-me em ruas velhas, não procuro restos da cerca amuralhada, houvesse tempo e até iria à Torre da Roqueta, isolada e à semelhança da Torre de Belém, a defensora do rio, mas não, meto-me ao caminho até à Praça da República, viajo por vários tempos, são aqui frontarias que nos falam do passado. Uma coisa fixei, para jamais esquecer, o nome de certas ruas e certas casas, a Rua de Mateus Barbosa, onde está a casa dos Pimenta da Gama, a Casa dos Barbosa e Silva, esta ligada à vida de Camilo Castelo Branco, e a Casa dos Pedra Palácio, de bonitas varandas, com sóbrios ferros. Como não se pode esquecer a Casa da Praça, pertença dos Malheiro Reimão, aqui já vemos a influência do dinheiro do Brasil. Numa das divagações, já de cabeça perdida porque não atinava com certas ruas, irei encontrar na Rua da Carreira o Paço dos Melo e Alvim, e ainda não consegui apurar se aquele governador da Guiné dos anos 1950, homem da Armada, de nome Diogo António José Leite Pereira de Melo e Alvim, reza a lenda e consta da hagiografia de Amílcar Cabral que tiveram uma desavença, que teria sido a razão do regresso do pai fundador da Guiné-Bissau a Lisboa, não passa de atoarda, Amílcar Cabral e a mulher regressaram a Lisboa devido a doença, carregados de paludismo. Mas ainda assim é a hagiografia que permanece…
Aqui foi delegação do Banco de Portugal, hoje é o Museu do Traje, estamos já em plena Praça da República, foi visita de médico, um outro amigo nosso ofereceu a este museu uma extraordinária coleção de leques que pertencia à sua mãe, o lugar é ajustado, o museu alberga um relevante espólio de trajes e de ourivesaria tradicional. Tem um conjunto de núcleos museológicos, tudo visto a correr. Ficou-me um ressaibo na boca, de amargura, devia ter ido ao Museu de Artes Decorativas, instalado numa mansão do século XVIII, imperdoável porque estão aqui valiosas coleções de faiança antiga, importantes peças da famosa Fábrica de Loiça de Viana, isto para além de pintura, arte-sacra e mobiliário indo-português do século XVIII. Outro motivo para regressar.
Esta Praça da República é, para mais de quinhentos anos, o centro cívico de Viana do Castelo, estão aqui alguns dos seus edifícios mais emblemáticos, como os antigos Paços do Concelho, cuja construção teve lugar na primeira metade do século XVI, um elegantíssimo chafariz e o edifício da Misericórdia onde se incrusta uma joia do Barroco que é a sua igreja, monumento nacional, mais adiante se falará dela, em visita a preceito.
Chegou a hora de amesendar e definir exatamente o que é possível ver durante a tarde. Haverá Santa Luzia e o funicular, a Praça da Liberdade e aquela preciosa peça de arquitetura de Siza Vieira que é a biblioteca e o Centro Cultural traçado por Souto Moura, confesso que fiquei por ali de boca à banda com aquele desmedido arrojo arquitetónico. Enquanto mordisco leio que o navio Gil Eanes foi construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo em 1955, tinha por missão apoiar a frota bacalhoeira nos mares da Terra Nova e Gronelândia. Hoje tem lá instalado o Centro de Mar e outros serviços. Pois bem, olhando esta fachada de edifício que pertenceu aos Távoras, preparo os itinerários da tarde, folheei publicações e apercebo-me que há muitíssimo mais a ver, teimarei em voltar.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21393: Os nossos seres, saberes e lazeres (412): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21411: Da Suécia com saudade (81): Pragmatismos escandinavos: ligar os crematórios às redes centrais de aquecimento das cidades (José Belo)



Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada,
1968/70); cap inf ref, jurista, criador de renas,
autor da série "Da Suécia com Saudadr"; 
vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da 
Tabanca da Lapónia; tem  170 referências 
no nosso blogue

 
1. Mensagem de José Belo:

Date: sexta, 2/10/2020 à(s) 15:12
Subject: Pragmatismos Escandinavos
 

Caro Luís 

Já decorreu mais de uma década e, curioso, procurei saber como teria decorrido o projeto.

Ingenuamente considerei que o mesmo tivesse sido abandonado devido a "explosão" de abaixo assinados opondo-se ao mesmo. A economia, a técnica, os pragmatismos políticos demonstram mais uma vez serem mais fortes que outros valores... secundários.

Solução económica utilizada por algumas Comunas (nome dado aqui  às Câmaras Municipais) na sua busca de diminuir os elevados custos do aquecimento central, gratuito para o cidadão mas, tendo em conta os prolongados invernos com temperaturas bem negativas, extremamente onerosos para o Estado.

A Comuna da cidade de Halmstad, entre outras, apresentou como solução económica o aproveitamento das elevadas temperaturas produzidas aquando do uso dos crematórios.

Esta energia é enviada diretamente para as redes centrais do aquecimento das cidades que, deste modo, economizam avultadas somas,  tendo em conta ser a cremação a forma de funeral mais utilizado na Escandinávia.

O cidadão, confortavelmente instalado no seu sofá frente a uma TV, com temperatura caseira (gratuita) de 22 graus centígrados, deveria ser levado a meditar que tal bem-estar mais não é que o resultante da cremação da avó, pai, irmão, filho ou neto, amigo ou conhecido.

Mais do que macabro na sua simplicidade económico-funcional será o facto de seres humanos serem mais ou menos usados como "lenha" complementar.

Como seria de esperar, tanto os especialistas técnicos das redes de aquecimento como os responsáveis pela cremação, garantem que a energia reenviada desde os crematórios para a rede central mais não é que o calor resultante das altas temperaturas necessárias sendo a "comparticipação" dos corpos queimados não porcentualmente representativa.

E, muito modernamente, acabam os esclarecimentos com a indispensável referência a quanto de positivo é para o meio ambiente o aproveitamento total deste tipo de energia, diminuindo a necessidade de utilização de complementares poluentes .

Economicamente recomendável!
Tecnicamente recomendável!
Ambientalmente recomendável!

Será exagero sentir um certo "desconforto moral" quanto ao tipo de lenha secundária usada?

Um abraço do J. Belo
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21410: Parabéns a você (1874): Cor Ref Carlos Alberto Prata, ex-Capitão, CMDT da CCAÇ 4544/73 e CCAÇ 13 (Guiné, 1973/74) e Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF (Guiné, 1970/72)

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Nota do editor:

Último poste da série de 29 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21402: Parabéns a você (1873): António Bastos, ex-1.º Cabo At Inf do Pel Caç Ind 953 (Guiné, 1964/66)

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21409: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (21): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Annette é de uma curiosidade insaciável. Pergunta-se como é que uma intérprete profissional, mulher de vasta cultura, vincadamente europeia, tendo sido atraída para colaborar numa obra de ficção, ainda por cima sobre um tema para ela inimaginável, uma guerra que ocorreu algures num ponto da África Ocidental, mesmo sabendo-se que toda aquela luta ganhou fama mundial nas décadas de 1960 para 1970, que todos aqueles sonhos caíram no charco, parece um país pária, entregue à caridade internacional, isso ela bem sabe, porque já foi intérprete em reuniões de doadores e ficou consternada com a miséria da população e a gravidade dos créditos, em princípio impagáveis, agora vive entusiasmada a ler as histórias do seu amante, recebe relatos uns atrás dos outros, felizmente vêm por ordem cronológica, há para ali histórias completamente absurdas, quando ela leu os tais relatórios com os abates à carga, riu desalmadamente. Já se passaram cinco meses, está tudo explicado até agora e a propósito do dia de Ano Novo Paulo Guilherme avisa Annette Cantinaux que se prepare, no dia seguinte vai participar numa tempestade de fogo.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (21): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureuse, o homem põe e Deus dispõe. Chegou finalmente a convocatória para a reunião do Grupo de Trabalho da Televisão Sem Fronteiras, é quarta-feira todo o dia, diz-me se estás em Bruxelas, não quero transtornar os teus planos, irei telefonar rapidamente para saber da tua disponibilidade, se estiveres em Bruxelas iria terça-feira no primeiro voo da manhã, mas tenho forçosamente que regressar quarta-feira à noite, no último voo, afazeres inadiáveis quinta e sexta, mas em breve passaremos as férias juntos.

Fiquei surpreendido por teres gargalhado com aquele episódio que te contei demoradamente dos abates que aceitei fazer quando fazia os relatórios das flagelações a Missirá e Finete. Tudo começou logo com a flagelação de 6 de setembro, três armas muito danificadas e três camas carbonizadas, incluindo a roupa. Andávamos a fazer esta visita, eu e os três furriéis, quando o cabo-quarteleiro me disse algo que até agora me tinha escapado completamente: “Olhe meu alferes, mais um mês e passo à peluda, é bom que não se esqueçam que faltam dezenas de mantas, capacetes, lençóis, panos de tenda, quando eu cá cheguei disseram-me que havia binóculos, interessa é que há roupa completamente destruída, eu quero saber como é que vão fazer a transferência quando chegar aqui outra unidade e trouxer à frente um desses sujeitos que não deixa escapar nada, nem na contabilidade nem na carga”. Conversei com o Saiegh, sim, era público, desaparecera muito material à carga com as viagens de Porto Gole para Enxalé, de Enxalé para Missirá; houvera um grande ataque em 1967, nem tudo fora referenciado nos danos. Aproveitei a coluna seguinte a Bambadinca para esclarecer o que se impunha fazer com urgência. Um daqueles sargentos de olhar manhoso e vitríolo na voz lembrou-me que havia livros com a classificação de todo o material e que era uma grande dor de cabeça e podia mesmo custar muito dinheiro faltarem coisas fora dos autos de abate, superiormente sancionados. Estava eu nesta conversa e apareceu-me o Alferes Valentim que ouviu a peroração do sargento, não se fez rogado: “Bem me podes safar de uma boa encrenca, mete lá mais 10 camas, 40 lençóis e 20 mantas, não há flagelações a Bambadinca, foram coisas que apodreceram ou enferrujaram, não tenho condições para justificar este material podre”. Como houve nos meses seguintes três curtas flagelações, fui cedendo a diferentes pedidos para ir abatendo capacetes, material dos sapadores, da manutenção automóvel, dizendo sempre que tudo tinha ficado calcinado, os de Bambadinca agradeciam e eu não previam que estava a preparar um sarilho na vida.

Guardo na memória a situação, parece que foi ontem. Estou a regressar de Mato de Cão, passámos a noite toda ao relento, vimos todos esfomeados e sedentos, quase junto à Porta de Armas aparece a zumbir um helicóptero, dele sai um senhor em farda n.º 2 sobraçando uma pasta, é formalmente cortês e diz ao que vem: “Foram lidos com atenção os seus relatórios, o que descreve é inacreditável, após as flagelações que sofreu, pouquíssimas, já arderam camas, material de transmissão e de manutenção de viaturas bem acima de um qualquer batalhão dos mais sacrificados. É uma situação intrigante, venho interrogá-lo sobre os fundamentos de tais perdas”.

Vem sujinho, pedindo licença para ir mordiscando um pão com marmelada, e depois de ter bebericado uma embalagem de leite com chocolate holandês, sopesando as palavras, fui direto ao assunto: “Meu coronel, justifica-se a incredulidade com a quantidade de material que eu digo que foi abatido nas minhas flagelações. Demorei mais de um mês a saber que havia faltas enormes, de tudo, desapareceram carregadores de G3, tripés de metralhadoras, correias, capacetes. Deram uma explicação de que entre Porto Gole para o Enxalé e de Enxalé para Missirá desapareceram coisas. Para tentar perceber o que se passava e como colmatar a brecha, ia a Bambadinca, arranjei lenha para me queimar, o batalhão estava de saída, pediu-me ajuda para preencher as faltas, quem era eu para dizer não? E assim tem sido nos meses seguintes. Não vi mal nenhum ao mundo. Não estou a ver ninguém a levar estas mantas bafientas para a metrópole. E já leva alguns meses para perceber que este clima destrói tudo, corrói o metal, apodrece os tecidos, rebenta as correias, enferruja e inutiliza tudo. Dito isto, meu coronel, assumo inteiramente o que escrevi nos meus relatórios, respondo pela falta dos outros, aceito as consequências”.

O coronel escutara-me com atenção, sorriu depois da minha perlengada, olhou para o teto e depois para as suas unhas bem cuidadas, fechou o caderno, onde me parece que escreveu umas notas magras, levantou-se com um suspiro, alegou que tinha pressa de chegar a Nova Lamego e prometeu que me ia tentar safar da alhada. Agradeci-lhe muito. Mais tarde, viemos a saber que houvera arquivamento do processo. E foi assim.

Mon amoureuse, creio que neste momento tens o essencial dos cinco meses de 1968: já arribei ao Cuor e me deslumbrei, tenho-me esforçado por suprir carências, por cumprir as responsabilidades militares, por arranjar professor para os soldados e para as crianças; tens em teu poder dados da correspondência incrível que me enviam, batem à porta da minha morança, entregam-me a cartinha, eu que leia os pedidos; fiz três ocupações fora do Cuor, senti uma profunda deceção pela falta de respeito, ninguém me explicou o que é que eu andaria a fazer naqueles pontos do Xime onde se previa estarem localizadas bases do PAIGC, foi canseira sem qualquer proveito; tenho um furriel, o Pires, que foi funcionário bancário, que me ajuda muito no expediente, nos mapas dos pagamentos, na conferência das despesas com alimentação, até na organização das escalas de serviço; um outro furriel, o Casanova, é muito habilidoso, aproveita restos de habitações abandonadas pela guerra, sobretudo entre Finete e Mato de Cão, reutiliza materiais que nos faltam; há uma ida semanal ao médico, tanto para ver os militares como as populações civis de Finete e Missirá; Finete, tenho que te confessar, é uma dor de cabeça, o comandante de milícias nominal não tem liderança, vive do espavento, passeia-se em farda n.º 2, fiquei atónito quando descobri que nunca vai fazer patrulhamentos, tenho felizmente dois bons sargentos, Bacari Soncó e Fodé Dahaba, sempre que posso estaciono lá uns dias para acompanhar os arranjos das valas, a segurança das fieiras de arame farpado, pego em duas secções e patrulhamos junto do Geba estreito, até Aldeia do Cuor, faço sempre todo o possível para que as populações do outro lado da bolanha nos vejam; procuro tratar de mim, tenho recidivas das micoses, os pés incham, os mosquitos deixam muitas marcas, fez-se um esforço apreciável para melhorar a cozinha, autorizaram que por turnos os nossos cozinheiros estagiassem nas cozinhas de Bambadinca, em todas, de oficiais, sargentos e praças, a confeção melhorou mas o lote de géneros é tão estreito que vivemos esta sensaboria do esparguete com chouriço e as batatas com atum; leio, escrevo e oiço música, sabe Deus como é possível encontrar tempos livres, são eles que me fortalecem; o novo comandante de Bambadinca já cá esteve, simpatiza comigo mas já me disse abertamente que está farto dos meus pedidos que ele não pode suprir.

Começa hoje um novo ano, Annette, não me passa pela cabeça que amanhã vou participar numa tempestade de fogo. São estes os apontamentos que te vou mandar, e vou pedir a todos os santinhos para que tu não andes pelos luxemburgos e holandas quando eu aí chegar na terça-feira. Muito obrigado pelas tuas cartas, são o verdadeiro lenitivo que tenho na tua ausência, acaricio estas folhas de papel como acaricio o teu cabelo, sabendo que o nosso amor supera e superará a imposição das distâncias.

Os meninos de Missirá. Acocorado, Tumlo Soncó, filho do Régulo Quebá, impressionava-me muito este jovem, ia na coluna sempre com a sua Mauser, a bandoleira no ombro, vive hoje no bairro de Missirá, Bissau, nunca se recompôs de um tremendo AVC. O meu querido amigo Abudu é o menino mais espigado, de cabeçorra, a sorrir, teve já dois enfartes de miocárdio, trabalha moderadamente, vive na Pontinha, quando lhe dei esta fotografia esteve bem meia-hora especado a ver o mundo da sua infância, praticamente todos já faleceram.

A primeira vitória da reconstrução de Missirá, refez-se o abrigo à esquerda, por cima está o posto-sentinela, vai começar uma discussão acesa com o régulo, todos aqueles cajueiros em frente têm que desaparecer. Após imaginar umas contrapartidas, ele resignou-se e ganhámos em segurança.

Ladeado por dois milícias, de etnia fula: à esquerda, o Albino Amadu Baldé, natural do regulado do Corubal, comandante do Pelotão de Milícias 101, de Missirá; à direita, Indrissa Baldé, soldado do Pel Mil 101. Finete era guarnecida pelo Pel Mil 102.

Fala-se muito no feitiço africano, no esplendor da natureza. Quando atravessava a bolanha de Finete, e nela pernoitava, dava tudo para contemplar aquela bola de fogo que contrasta com o verde-antracite e se precipita num fundo inimaginável.

Não conheço leitura tão sublime, e da Guiné falo, como os cadernos elaborados durante a sua visita à Guiné em 1947, por Orlando Ribeiro, aquele que foi o maior geógrafo português do século XX. São observações de um grande humanista, ele refere as conversas que ia tendo com o seu guia e nunca escondeu o orgulho de se fotografar ao lado daquele homem que tanto lhe ensinou. Os gigantes da cultura são assim.

Orlando Ribeiro e o seu guia

Guiné 61/74 - P21408: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (9): Doidas, doidas, doidas... andavam as galinhas!



Guiné > Região de Quínara > Tite > Bissássema > Jovens balantas en traje de festa

Foto do álbum do Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro (CCAÇ 3327, Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73), e que vive em Vila Nova de Gaia; é um dos primeiros membros da nossa Tabanca Grande.  (*)

Foto (e legenda): © Rui Esteves (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros, enviada por mensagem de 26 de junho passado:


Doidas, doidas, doidas... andavam as galinhas!



por Carlos Barros (**)



Eu, ex-furriel miliciano, 2ª CART / BART 6520/72, fui escalado para manter a segurança, na estrada Tite-Bissássema e levei o meu grupo (3º) para colocar os soldados, nos diversos postos, estrategicamente situados ao longo dessa estrada. 

Por volta das 11h40,  andavam umas galinhas, bem gordinhas, a “pastar”. Os nativos Balantas e Biafadas, tinham as galinhas contadas e matar uma era um risco porque o Comandante teria de atuar disciplinarmente, pois nessa altura vigorava a política de Spínola, por uma “Guiné melhor",  e não se podia molestar ou maltratar um africano guineense, o que se compreendia, no contexto dessa política “ultramarina”…

Disse ao soldado Lurdes, natural do Vitorino de Peães, concelho de Ponte de Lima: 

− Ó Lurdes, atire aquele pau para enxotar aquelas galinhas!

Ele pegou num tronco seco e atirou às galinhas, mas à sorte!... O milagre aconteceu…  Não é que o pau, às cambalhotas, caiu na cabeça da galinha e matou-a fulminantemente! Nem queria acreditar!...

 −  Lurdes, vá a correr, pegue na galinha e ponha-a no bolso grande do camuflado e vamos mas é já embora− disse-lhe eu, perante o ar estupefacto dos outros soldados que estavam perto de mim, coçando-se do exército de formigas que os atormentavam…

Metemo-nos na Berliet Tramagal e só paramos no quartel de Tite. Pedi aos soldados para isto ficar em segredo.

Tenho uma foto (que ainda  não consegui enviar), em que estão o Araújo, o Guimarães e outros dois soldados  a depenar o galináceo e, como uma galinha era pouco, arranjámos mais uma, mas esta teve de ser comprada por 10 ou 20 pesos (moeda da Guiné).

Quando o Capitão, soube do nosso manjar, disse-nos:

− Vocês...estão a viver bem!

Comemos um bom arroz de cabidela, com a ajuda dos cozinheiros que participaram no repasto…

Foi das melhores refeições que tomei na Guiné… Obrigado, galinhas!...

A Guiné,  que poucas alegrias me deu, assim como aos demais militares, sempre tinha destas histórias que atenuavam o sofrimento das situações trágicas e dramáticas que vivemos.

Hoje, estou numa de escrever, e envio esta história real, passada na Guiné em 1973,  apenas como mera curiosidade no seio de um ambiente hostil em que a guerra, com todos os seus impactos trágico-dramáticos, infelizmente, “ditava lei “!

Como homem de paz vivi quase 27 meses,  num desses ambientes. 

Um abraço grande de profunda amizade mas, com confinamento…

Esposende 9 de Junho de 2020,

Carlos Manuel de Lima Barros
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Notasdo editor:

(*) Vd. poste de 30 de novembro de 2005 > Guiné 63/74 - P305: A escola de Bissássema (CCAÇ 3327, 1971/73) (Rui Esteves)

(...) Em Novembro de 1971 fomos transferidos da região de Teixeira Pinto para a região de Tite, ficando a quase totalidade da CCAÇ 3327 instalada em Bissássema. Ficámos aqui até ao fim da nossa comissão de serviço.
 
(...) Instalados em Bissássema, começámos vida nova: em Teixeira Pinto, terra do povo manjaco, tínhamos servido de seguranças ao pessoal que abria a nova estrada; aqui, na terra dos balantas, íamos continuar a construção do novo aldeamento.

Passado poucos dias, chama-me o Capitão Alves (Rogério Rebocho Alves, Capitão Miliciano, comandante da CCaç. 3327, tão periquito quanto nós todos!) e comunica-me que vou ser professor dos soldados que pretendessem completar o Ensino Primário. (...)

(...) Um dia, pela manhã, descobrimos que o caminho entre Bissássema e Tite estava minado: o PAIGC tinha colocado algumas minas anti-carro no caminho e também anti-pessoal num local onde escreveram “VIVA O PAIGC”. A mina anti-pessoal foi detonada da pior maneira: um guia ficou sem a perna.

Estava descoberto tema para essa noite: os meus alunos iam escrever sobre as minas. Nunca me esquecerei da redacção do Cabral, o nosso cozinheiro, e o meu melhor aluno: escreveu ele, “Há minas boas e minas más. As minas boas são as que nós pomos aos turras. As minas más são as que eles põem a nós.” (...)