quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste:




quarta-feira, 10 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21992: (Ex)citações (393): por que razão é que os fulas não gostavam de vender as suas vacas à tropa (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor  L1 (Bambadinca) > BART  2917 (1970/72) > CCAÇ 12 > Crianças de tabanca fula em autodefesa, no sul do Regulado de Badora, talvez Sansacuta.

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamajã e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012)


1. Comentário do Cherno Baldé [,
 o "Chico de Fajonquito", quadro superior na área da gestão de projectos, com formação em Kiev e Lisboa, colaborador permanente  na área da etnolinguística da Guiné-Bissau, com 225 referências no nosso blogue) (*)

Caro amigo António [Carvalho]:

É verdade que os camponeses fulas não gostavam de vender o seu gado e a razão é muito simples, era e continua a ser a única riqueza que têm e com a qual podem contar para se socorrer em casos de necessidade da família e da comunidade ou ainda em casos de calamidades naturais ligadas as suas actividades de sobrevivência. 

Só quem (sobre)vive da terra, da agricultura,  percebe as dificuldades e incertezas com que se deparam e num pais onde não existem nem subsídios, nem financiamentos ao agricultor.

Para nós, na tabanca, tirar uma galinha já representa um grande sacrifício. E de mais a mais, as manadas representam uma propriedade colectiva onde crianças, mulheres e homens adultos, cada um tem a sua vaquinha para seu sustento (ordenha do leite) e a sua poupança para o futuro a titulo individual e colectivo. 

Vocês, vivendo no meio dos guineenses, nunca estranharam o facto de nunca terem encontrado instituições de fomento e/ou de apoio aquelas famílias,  muitas vezes escorraçadas das suas terras e condicionadas pela situação da guerra onde eram mais vítimas do que propriamente actores ?

Para nós,  que estávamos habituados a escassez e a miséria do dia a sua, parecia-nos um exagero quanto as "queixinhas" dos metropolitanos sobre a comida. No caso concreto de Fajonquito, todas as semanas (segundas feiras?) abatia-se uma vaca que compravam (?) com a ajuda das autoridades locais,  quando não eram vacas trazidas do mato, e habitualmente, preparava-se um guisado de carne com batatas ou então com massas (esparguete) e ainda assim acontecia, esporadicamente, na aldeia o desaparecimento de cabritos e galinhas que iam parar no forno do padeiro.

Para a tropa a comida nunca estava boa, mas ainda assim nós os djubis do quartel debatiamos sempre com insuficiência de sobras, aliás não raras vezes as segundas feiras (dia do abate) eram o dia em que não queriam ninguém no quartel, corriam com todos, isto falando dos outros, porque os faxinas estes ficavam na caserna à espera que um dos amigos lembrasse de trazer um pouco da sua comida ou da segunda dose quando restava alguma coisa na mesa. 

O que me valia a mim era ter o amigo Teixeira (Cabo Mecânico), hoje um empresário de sucesso em Lisboa, que nunca se esquecia do seu amigo Chiquinho. Alguns eram bons comilões e por cima mandões, porque traziam a marmita vazia para eu lavar e guardar.

Continua que estamos a gostar, embora me pareça mais do género politicamente correcto, como se costuma dizer e um pouco à esquerda. Não sei se vais ter muitos leitores nos tempos que vivemos.

Um grande abraço,
Cherno Baldé
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

Guiné 61/74 - P21991: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (22): minas, terríveis minas...


Guiné > Região de Quínara > São João > CCAÇ 423 (1963/65) > Os efeitos devastadores das primeiras minas e fornilhos A/C no CTIG, na estrada Nova Sintra-Fulacunda.


Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; 

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem cerca de 3 dezenas referênciasmo nosso blogue.


Minas, terríveis minas...


O soldado Sousa, da 2ª CART / Bart 6520, de Nova Sintra  –Ramiro de Silva Sousa, natural de Quiaios, Figueira da Foz
 – estava no destacamento à espera do correio que vinha numa avioneta, DO-27,  e, nesse dia, não tinha recebido correspondência, o que o entristeceu, um sentimento semelhante ao de todos nós, quando não recebíamos correio.

Estava junto à sua caserna e um seu amigo encontrava-se a ler um jornal da sua região onde noticiava que tinha havido um acidente na zona Quiaios, terra do Sousa,  e, por infelicidade, esse acidente foi grave e trágico...  Tratava-se de  familiares do soldado Sousa que, compreensivelmente,  ficou num estado psicológico desesperado.

Pela tardinha, furtivamente, o Sousa desertou do destacamento de Nova Sintra e foi ao aquartelamento de S. João, onde se encontrava o seu amigo Alferes Garcia, do qual esperava um apoio para a sua situação .

O Alferes Garcia (já falecido) era um grande amigo dos militares, homem simples, colaborador, alegre, simpático e com um elevado sentido de humor e quando se juntava ao alferes Figueira, e aos furriéis Elias e Mendonça, era um ambiente de alegria transbordante e grandes “palhaçadas” no bom sentido do termo.

O soldado Sousa seguiu pelo caminho ou trilho em direção a S. João e pisou uma mina anti-pessoal e deu-se a tragédia! Essa mina tinha sido colocada pelos sapadores de S. João, como “armadilha” de defesa do destacamento.

Um milícia, chamado Atilo, que andava à caça, ouviu essa explosão e aproximou-se do local onde tinha deflagrado a mina e encontrou o Sousa, o “Meio Quilo”, estendido no solo poeirento e com ferimentos extremamente graves.

O milícia Atilo foi, de imediato, avisar o alferes Garcia,  comandante do destacamento que mandou uma Berliet buscar o ferido, sendo, posteriormente, evacuado de helicóptero, pela tardinha, de S. João para o Hospital Militar de Bissau.

O Sousa recuperou, regressou à Metrópole, casou e constituiu família e foi a todos os Encontros – Convívios Anuais organizados pelos “Os Mais de Nova Sintra”. Como um dos organizadores, desses convívios, eu posso afirmar e justificar que o Sousa esteve presente com a sua esposa, pelo menos, nos últimos 41 anos consecutivos.

Infelizmente, há 4 anos faleceu, deixando-nos imensas saudades.

Fisicamente perdemos o Sousa mas, espiritualmente, está sempre presente entre nós.

Testemunho do ex-furriel Barros, 2ª Cart / BART 6520, sendo apoiado neste testemunho, pelo amigo Joaquim Manuel Rodrigues Cunha (que estava em São João).

Carlos Manuel de Lima Barros,

Guiné 61/74 - P21990: Historiografia da presença portuguesa em África (255): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
 
Nunca ouvira falar em António de Saldanha da Gama e li num só ápice este documento que terá sido produzido à volta de 1814 e editado em Paris em 1839. Os documentos foram apresentados aos eleitores do Círculo Eleitoral de Viana do Minho pelo Ajudante de Ordens de Saldanha da Gama, o Visconde da Carreira. 

No seu discurso preliminar, o antigo Governador do Reino de Angola procura sacudir quem o leia, dizendo coisas como esta:
 
"Qual será o português que não se envergonha, que não sinta uma nobre indignação, à vista da nossa inferioridade, da nossa nulidade, dos impropérios ignominiosos, do desprezo desdenhoso com que somos tratados pelas nações da Europa! Cuidemos sem demora de nos reabilitar, de sair de tão abjeto estado e de recuperar no grémio das nações o posto e consideração que nos competem".

E lança-se exultante num exórdio à industrialização, à liberdade de comércio. Saldanha da Gama estaria em campanha eleitoral. É admissível que tenha dado à estampa a sua Memória sobre as colónias de Portugal, tenho extrema dificuldade em vê-lo, em reuniões e comícios, a fazer apologia do comércio negreiro.
 
Sobre essa surpresa, completamente inusitada, falaremos a seguir.

Um abraço do
Mário




Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura (1)

Mário Beja Santos

António Saldanha da Gama não era um qualquer um: Conde de Porto Santo, Par do Reino, Grã-Cruz de várias Ordens, Chefe da Esquadra da Armada Real, Ministro Plenipotenciário e Embaixador em diversas Cortes. Foi ainda Governador e Capitão-General do Reino de Angola. 

Em 1839, consolidada a monarquia constitucional, Saldanha da Gama publica textos seus datados de 1814, "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África", precedida de um discurso preliminar. É um documento que provocará um estado de choque junto daqueles que andam nos últimos tempos a adoçar a natureza do esclavagismo à portuguesa. No seu discurso preliminar, esse Saldanha da Gama se anda a ocupar sobre a importância da industrialização, contudo abre com um discurso acabrunhante:

“As colónias que ainda restam a Portugal dos velhos continentes e mares de África e Ásia são monumentos da nossa antiga glória, portentos espantosos da gigantesca força, diligência e perseverança da antiga gente portuguesa, que acabrunham a nossa pequenez e insultam a atual indolência”.
 
Deplora algumas fundações que se estavam a fazer em Angola, alerta para a necessidade de ter um bom governo, governo estável e não em perpétuo tirocínio. Exalta civilizações do passado e alerta para um novo quadro de desenvolvimento:

“A experiência mostra que as nações que se limitam a poucas espécies de trabalho de produção, ainda quando são fornecidas pela fertilidade e riqueza do seu território, permanecem sempre pobres, estacionárias e privadas de grande número dos confortos da civilização moderna”.
 
Exemplifica com Inglaterra e a sua prosperidade, o seu comércio interno e externo e lembra que as indústrias tinham passado a ser a principal fonte das riquezas. Para haver indústrias são indispensáveis as vias de escoamento, rios, canais, estradas, comunicações céleres, e faz a apologia das instituições constitucionais, dá exemplo do que ele está a ver em França, mas o seu azimute parece ser sempre em Inglaterra. E deste discurso preliminar entramos propriamente no texto da memória sobre as colónias de Portugal.

Parecendo irremediavelmente perdido o tráfico negreiro, haverá que melhorar a vida das colónias portuguesas na África Ocidental, são elas: Cabo Verde, Bissau e Cacheu, S. Tomé e Príncipe e Angola e Benguela. É muito útil o que ele diz sobre Cabo Verde, importa não esquecer que a desafetação da Guiné será cerca de 60 anos depois. A colheita e a venda da urzela parecia ser a principal riqueza. 

“A Fazenda Real compra toda a urzela por um preço fixo, e desta compra são encarregados os capitães-mor dos distritos. Não é fácil descrever as vexações que estes exercem naquele ato, negando-se a paga em dinheiro e fazendo-a em géneros, em que os miseráveis cultivadores perdem às vezes 100%. Seria sumamente útil isentar a urzela do estanco Real, e permitir a sua livre venda, impondo-lhe um módico tributo de exportação”

Mas outros ramos viam animar a economia das ilhas, segundo Saldanha da Gama, enuncia o amendoim, o gergelim, a palmeira de dendém, exalta a importância de pescarias e salgas de pescado. Conclui esta apresentação referindo uma manufatura de tecidos grosseiros de algodão que é artigo de comércio para os presídios de Bissau e Cacheu, conviria aperfeiçoar tal manufatura.
 
Chegou agora o momento de falar de Bissau e Cacheu, cita-se integralmente o que escreve:

“Abundam nestas colónias artigos de grande importância, que poderiam fazer a riqueza delas, como são muitas gomas, resinas, marfim, madeiras, etc. A goma arábica se encontra nestes países, e bem conhecido é o seu préstimo e o seu valor. Das outras gomas e resinas seria necessário averiguar o préstimo e fazê-las depois conhecidas na Europa.

Há aqui muitas terras próprias para o cultivo de arroz, e os habitantes com gosto se dão a esse trabalho. Ora se a América do Norte pôde por muitos anos abastecer a Europa daquele artigo, se o Maranhão, a Baía, etc., ainda hoje o fornecem a Portugal, por que razão o não poderão fazer Bissau e Cacheu, que além de terem as mesmas proporções, estão mais perto de nós? As pescarias também aqui se poderiam promover, tanto para as salgas, como para a extracção do azeite de peixe.

Não falecem aqui os vegetais de que se podem extrair óleos, como o rícino, o amendoim e a palmeira dendém. As madeiras de África são entre nós pouco conhecidas, e a experiência me tem mostrado que se a natureza não dotou abundantemente esta parte do mundo de grandes florestas, concedeu em compensação às árvores pequenas desta terra muita solidez e um delicado colorido que as faz próprias para obras primorosas de marcenaria e de embutido. Deverão portanto examinar-se cuidadosamente as árvores que crescem nestas possessões, para além das suas madeiras se tirarem o conveniente proveito. Creio que não me iludo persuadindo-me que os aromas da Ásia prosperariam facilmente em Bissau e Cacheu, e que a pimenta, hoje cultivada na Baía com tanto proveito, poderia também aclimatar-se nestas terras”.


Discreteia depois sobre S. Tomé e Príncipe, tendo sido Governador no Reino de Angola vai dedicar o essencial da sua memória às riquezas da terra, não esquecendo o carvão de pedra e o marfim. Findo o documento, apensa várias notas, a última serve exatamente para expor o que ele pensa sobre o tráfico da escravatura. Prepare-se o leitor para uma defesa que hoje, pelo menos no campo formal, não tem seguidores, a despeito, como é público e notório, que ainda há escravatura no mundo, e pensa-se que se trata de negócio chorudo.

Ele começa por dizer o seguinte:
 
“Não cremos que haja pessoa alguma dotada da faculdade de discorrer que se persuada que o zelo e pertinácia da Inglaterra para abolir o tráfico da escravatura proviesse simplesmente do amor da humanidade, ou de uma filantropia pura e desinteressada. Entretanto é certo que não foi sem proveito que aquela potência invocou em apoio da sua política as simpatias das almas verdadeiramente virtuosas e sensíveis.

Deslumbrados pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa-fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projetos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Uma simples reflexão bastaria, contudo, para desabusar esta crédula e com passiva falange”
.

Daremos conta do que falta desta litania na próxima oportunidade, sem descurar o contraditório, muito de rigoroso e altamente documentado sobre o tráfico negreiro se tem publicado em muitas línguas, aqui se fará referência a trabalhos portugueses.

(continua)

Tráfico negreiro praticado pelos árabes
Tráfico negreiro no século XIX
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21965: Historiografia da presença portuguesa em África (254): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21989: Fichas de unidade (17): CCAÇ 1550 / BCAÇ 1888 (Farim, Binta e Xime, 1966/68)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > António Fernando Marques e Arlindo Teixeira Roda, dois camaradas, furrieis, da 1ª geração da CCAÇ 12 (1969/71), junto ao monumento da CCAÇ 1550 (1966/68), unidade de quadrícula do Xime que antecedeu a CART 1746 (1968/69), a CART 2520 (1969/70), a CART 2715 (1970/71), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)... 

A CCAÇ 12 conheceu, bem e duramente, o subsetor do Xime, entre 1969 e 1974, primeiro como subunidade de intervenção ao setor L1 e depois, no final da guerra, como subunidade de quadrícula... 

A CCAÇ 1550, antes de passar a subunidade de quadrícula no Xime, esteve antes em Farim, era comandada pelo cap mil inf Agostinho Duarte Belo; no monumento estão inscritos os lugares (de diferentes setores) por onde passou: Binta, Guidage, Xime, Ponta do Inglês, Galomaro, Candamã, Taibatá, Farim, Dembataco, Samba Silate, Bissau... (*)

Foto: © Arlindo Roda (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Ficha de unidade: CCAÇ 1550 / BCAÇ 1888 

A CCAÇ 1550, juntamente com a CCAÇ 1549 e 1 551, foi uma unidade de quadrícula do BCAÇ  1888. Esta unidade foi mobilizada pelo RI I,  Amadora, tendo  como Cmdt o ten cor  inf Adriano Carlos de Aguiar e 2.° Cmdt o maj inf Artur Miguel Agrely Rebelo . (Não se conhece o nome do major Inf Op/Adj).

Cmdts Companhias:  CCS: Cap SGE Manuel Pereira Pimenta de Castro |  CCaç 1549: Cap Mil lnf José Luís Adrião de Castro Brito | CCaç 1550: Cap Mil Inf Agostinho Duarte Belo | CCaç 1551: Cap Mil Inf Francisco Silva Pinto Pereira

Divisa: "Vendo, Tratando e Pelejando"

Partida: Embarque em 20Abr66; desembarque em 26Abr66 | Regresso: Embarque em 17Jan68


Síntese da Actividade Operacional do BCAÇ 1888

Em 26Abr66, rendendo o BCaç 697, assumiu a responsabilidade do Sector L I, com sede em Fá Mandinga e a partir de 14Nov66, em Bambadinca, e abrangendo os subsectores de Xitolc, Xime, Bambadinca e Enxalé, este até  1Jul67 e retirado ao sector por alteração dos limites.

Comandou e coordenou a actividade das forças que lhe foram atribuídas, orientando a sua acção sobre as linhas de infiltração do inimigo, em patrulhamento, reconhecimentos e emboscadas em ordem a obstar à sua instalação e movimentação na zona. Desenvolveu ainda uma intensa actividade psicossocial junto das populações, promovendo a sua autodefesa e reordenamento e garantindo a segurança dos itinerários e a recuperação das populações.

Dentre o armamento capturado mais significativo, salienta-se: 1 metralhadora pesada, 2 metralhadoras ligeiras, 70 espingardas, 1 lança-granadas foguete, 4 minas, 28 granadas de armas pesadas e 3000 munições de armas ligeiras.

Em 16Jan68, foi rendido no sector de Bambadinca pelo BArt 1904 e recolheu a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.


CCAÇ 1550 (Farim, Binta e Xime,  1966/68) (*)

A CCaç 1550 seguiu imediatamente para Farim, a fim de substituir a CCaç 675, como subunidade de intervenção e reserva do sector, ficando integrada no dispositivo e manobra do BArt 733 e depois do BCaç 1887, orientada para a realização de patrulhamentos, emboscadas e acções sobre os corredores de Sambuiá e Samine.

Em 28Dez66, foi rendida pela CCaç 1546 e,  após curta permanência em Bissau, seguiu em 3Jan67 para Xime, a fim de substituir a CCav 1482.

Em 11Jan67 , assumiu a responsabilidade do subsector de Xime, com efectivos destacados em Ponta do Inglês, Taibatá e Galomaro e depois ainda em Demba Taco, Samba Silate e Candamã, estes por períodos curtos e variáveis, ficando então integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 9Jan68, foi rendida no subsector de Xime pela CArt 1746 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pp.85/86.
_____________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 8 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21988: Parabéns a você (1941): Joaquim Cruz, ex-Soldado CAR da CCS/BCAÇ 4512/72 e BENG 447 (Farim e Bissau, 1972/74)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2021 > Guiné 61/74 - P21981: Parabéns a você (1940): Cor Art Ref DFA António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690/BART 1914 (Geba, Banjara e Cantacunda, 1967/69)

terça-feira, 9 de março de 2021

Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Fevereiro de 2021:

Boa tarde camarada
Mais uma estória da minha vida.
Se achares que tenha interesse, podes publicar.
Se achares que algo deve ser corrigido, tens a liberdade para o fazer.

Um abraço
Joaquim Ascenção



Enfermeiro por uma noite

Decorria o fim de Dezembro de 1970.

No final do CSM um momento de grande ansiedade para todos era saber qual a especialidade.
Estávamos nós na semana de campo debaixo de chuva e um frio terrível a dormir em tendas miseráveis, cansados e mal alimentados quando toca a formar durante a noite para comunicar a especialidade que nos tinha sido atribuída, a mim calhou-me nada mais nada menos, enfermeiro, considerada uma boa especialidade.

Houve festa e tristezas porque os que sonhavam em escriturário iam para sapadores, tudo ao contrário do sonhado... pura psico.

A mim pareceu-me estranho, tendo o curso de Serralheiro Mecânico e a frequentar o 3.º ano do ISEP [, Instituto Superior de Engenharia do Porto,] quando fui chamado para a tropa, o lógico seria engenharia, artilharia, manutenção auto ou afins, procurei descansar e aguardar.

Na tropa normalmente a lógica não era seguida.

Ao toque de alvorada havia uns tristes, outros assim assim.

Segue-se o toque para o pequeno-almoço e nova formatura para comunicar as especialidades.
Foi-me atribuída Armas Pesadas de Infantaria, morteiros médios e grandes, canhões sem recuo 5,7; 7,5; 10,6 e metralhadoras pesadas, especialidade normalmente de retaguarda e apoio a grandes operações.

Uma especialidade de risco moderado, de grande rigor porque o tiro era regulado na base de um mapa em que o erro do azimute podia ser fatal. Mapa, bússola, transferidor de tiro em grados e tabelas de tiro eram as ferramentas principais, não havia GPS.
O CSR M40 10,6 cm colocado num Jipe. Buruntuma 1973

Foto: Com a devida vénia ao camarada Luís Dias - HISTÓRIAS DA GUINÉ 71-74 - A C.CAC 3491-DULOMBI


Assim passou a noite que não me via ser enfermeiro.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 63/74 – P21938: Estórias avulsas (102): Um frango que voou depois de morto (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

Guiné 61/74 - P21986: Facebook...ando (62): Um dos que participou na Op Mar Verde foi o 2.º Srgt Fuzileiro Domingos Demba Djassi, a quem dei trabalho depois de desmobilizado, e que desapareceu em 21 de março de 1975 (Mário de Oliveira, BIssau e Alcaide, Fundão)

1. Do Mário [Serra] de Oliveira (ex-1.º Cabo Escriturário, Bissau, 1967/68)

[foto à esquerda: Mário Serra de Oliveira, ex-1.º cabo escriturário, BA 12, Bissalanca, 1967/68; é autor de "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser" (Lisboa: Chiado Editora, 2012, 542 pp, preço de capa 16€, lirvo escrito sob o pseudónimo de Mário Tito; sob este perfil, também assina vários blogues]

(i) nasceu em 1945 em Alcaide, Fundão;

(ii) aos 14 anos, foi para Lisboa a trabalhar como “marçano” numa mercearia;

(iii) posteriormente, enveredou pela indústria hoteleira, trabalhando em Lisboa, Algarve e Viana do Castelo;

(iv) ingressou no exército e, após recruta, foi transferido para a Força Aérea (, como 1.º cabo escriturário, BA 12, Bissalanca, 1967/68);

(v) na prática, cumpriu a sua comissão em Bissau na Messe de Oficiais da FAP;

(vi) assistiu ao 25 de Abril, período de transição para a independência;

(vii) foi empresário hoteleiro em Bissau, antes de regressar definitivamente ao fim de 14 anos e meio, tendo trabalhado ainda  na Embaixada dos EUA em Bissau;

(viii) dali, embarcou num navio sismográfico, como cozinheiro chefe rumo a Inglaterra, Holanda, Escócia (Mar do Norte);

(ix) acabou de chegar aos Estados Unidos juntamente com sua esposa, ao serviço da embaixada de Portugal em Washington;

(x) mais tarde, trabalhou cerca de 20 anos na Embaixada da Alemanha, também em Washington;

(xi) reformado, voltou à sua terra natal;

(xii) tem página no Facebook > Mário de Oliveira;  tem mais de 35 referências no nosso blogue; entrou para a Tabanca Grande em


2. Comentário do Mário Serra de Oliveira a um poste da  página do Facebook da Tabanca Grande,  de ontem, e relacionado com o lançamento do livro "Ataque a Conacry: história de um golpe falhado", de José Matos e Mário Matos e Lemos (Lisboa, Fronteira do Caos, 2021, 170 pp.)

Entre eles [, os que participaram na Op Mar Verde], estava o 2.º Srgt Fuzileiro Domingos Demba Djassi... a quem dei trabalho depois de desmobilizado. (**)

A um ponto, e como eu tinha mais que um local, ele passou a ser o "meu braço direito" do restaurante "A Tabanca". Foi ali que, no dia 21 de Março de 1975, prenderam 3 ex-comandos africanos, sendo que, o 4.º estava de folga. 

É de notar que 21 de Março de 1975 foi uma 6.ª feira, dia de folga do Djassi, porque ele era muçulmano e, por isso estaria na Mesquita, junto ao bairro do Pilão. Quando prenderam os 3, também levavam outro que não tinha sido militar mas que tinha uma "barbicha" um pouco maior que a do Djassi. 

A ideia deles era que, o da barbicha fosse o Djassi. Eu fiquei à porta de mãos na cabeça, com 4 "kalas-ti-o-ti-fodes" apontadas por 4 paigecês  armados até aos dentes. Ali, eu, ao ver o da barbicha também debaixo de prisão... falei em crioulo para ele, "onde é ki bó na-bai? (como que perguntando "onde é que tu vais"!)... "R mim cá sibe" (eu não sei). respondeu ele. "Intão por ki bó no fala qui bó no foi tropa"? 

Porque eu sabia que ele não tinha sido tropa ao nosso lado. Foi a sorte dele, porque um paigecê pergunta-me onde esta o outro (, o Djassi). Não sei... porque ele está de folga. Bem, largaram o outro da barbicha, deram ordens para encerrar o estabelecimento e levaram os 3. 

Nunca mais os vi, nem ao Djassi. Mais tarde constou-se que foram 14.800 fuzilados ou mesmo enterrados ainda a mexer. Lá me safei, depois de me ameaçarem que me pusesse a pau, porque o nome constava na lista negra!!! Oh lari-lolela, tal e qual. 

Mais tarde encerrei tudo e procurei trabalho na Embaixada dos EUA já então em Bissau. A minha mulher foi para cozinheira do embaixador e eu para "encarregado do pessoal local".
__________



Guiné 61/74 - P21985: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi ( João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte I: afinal, não consegui esquecer...


Companhia de Caçadores 1439 

(Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)

 

Ficha de Unidade

Unidade de Mobilização: BII 19 – Funchal                                            

Cmdt: Cap Mil Inf Amândio Manuel Pires

Partida:   Embarque em 10 Agosto 1965 | Desembarque em 06 Agosto 65

Regresso:   Embarque  em 18 Abril 1967


Síntese da Actividade Operacional


(i) Após o desembarque, em 6 de agosto de 1965, seguiu imediatamente para Xime, a fim de efectuar o treino operacional com forças da CCav 678 e assumiu a responsabilidade do subsector de Xime em substituição da CCaç 508, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 697, com a missão de intervenção e reserva do sector.

(ii) Em 10 de setembro 65, por troca com a CCav 678, foi deslocada para Bambadinca, onde continuou com a missão de intervenção e reserva do sector e assumiu cumulativamente a responsabilidade do respectivo subsector de Bambadinca;

(iii) Nestas funções tomou parte em diversas operações de que se salientam, pelos resultados obtidos, a operação “Bravura”, de 14 a 24 de agosto de 1965, na região de Galo Corubal e a operação ”Avante” de 29 a 30Ago65, na região do rio Burontoni.

(iv) Em 9 de outubro de 1965, por troca com a CCaç 556 assumiu a responsabilidade do subsector de Enxalé, com destacamentos em Missirá e Porto Gole, mantendo-se na dependência do BCaç 697 e depois do BCaç 1888. 

(v) No princípio efectuou várias operações nas regiões de Madina Belele, Bissá e Porto Gole em que capturou bastante armamento e material.

(vi) Em 8 de abril 1967, foi rendida no subsector de Enxalé, por troca pela CArt 1661 e recolheu seguidamente a Fá Mandinga, onde se manteve temporariamente, como subunidade de reserve do sector.

(vi) Em 17 de abril de 1967 seguiu para Bissau a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações : Tem História da Unidade (Caixa no 74-2ª  Div/4ª.Sec, do AHM - Arquivo Histórico Militar).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pp. 349


1. Texto, de 45 páginas, ilustrado,  enviado em formato pdf,  em 4 de fevereiro de 2021, pelo nosso amigo e camarada João Crisóstomo, que foi alf mil at inf, CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), e que vive em Nova Iorque desde 1975, tem dupla nacionalidade e tem sido um ativista causas como a autodeterminação de Timor Leste, as gravuras de Foz Coa ou a reabilitação da memória de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul de Bordéus em 1940 (*):


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque)
 
Parte I

O que me proponho neste trabalho não pode na verdade  ser considerado uma “história" da  CCAÇ 1439.

 Passados  cinquenta e cinco anos do nosso regresso da Guiné,  isso é tarefa quase impossível. Durante muito tempo tentei propositadamente "esquecer” e não quis saber mais desse tempo que estive na Guiné. O ter decidido "tirar uns anos fora de Portugal para aperfeiçoar línguas" (, eu queria dedicar-me ao turismo em Portugal,) de certa maneira ajudou mesmo a esquecer esses meus tempos de serviço militar.

Houve alguns esporádicos momentos em que o assunto vinha à tona. Lembro-me, por exemplo, pouco depois de chegar a Londres, ter encontrado no "Hyde Park Corner" um indivíduo em cima dum escadote a falar sobre Portugal e o colonialismo português na Guiné… Mas eu quase nem liguei: estava farto.

Quando aconteceu o 25 de Abril (, estava eu no Brasil na altura,) fiquei curioso e esperançado, mas logo essa esperança começou a desaparecer: o pouco que ouvia fora de Portugal sobre o assunto era geralmente negativo e que em Angola, Moçambique e em quase toda a parte, Portugal só tinha deixado uma grande confusão e guerras civis. E eu de jeito nenhum queria ouvir falar desse aspecto da nossa “herança.”

A tal ponto era a minha vontade de não querer saber de nada que, mesmo quando houve o massacre em Timor, eu andava tão alheado de tudo que nem apercebi de que tinha havido uma invasão da ilha pelos indonésios e que o que se passava em Timor não era resultado de guerra civil. E quando em 1996 um estudante luso-americano que, no ano anterior, eu tinha convencido a envolver-se na defesa das gravuras de Foz Coa, veio ter comigo pedindo-me para eu me envolver no caso de Timor Leste, a minha primeira e rápida resposta foi de que eu não queria saber de nada que estivesse relacionado com as lutas nas nossas ex-colónias.

Ele ficou espantado com a minha ignorância e foi perseverante; e, passados dois dias, quando me apercebi da verdadeira situação em Timor — e de que os Estados Unidos, Inglaterra, França e quase todo o mundo, mesmo Portugal, estavam todos mais ou menos a fazer o jogo da Indonésia —, eu também não tive dúvidas em me embrenhar a fundo nessa polémica.

Em bom momento o fiz. Foi esse envolvimento que me levou a começar a prestar atenção ao que se estava a passar em outros lugares, incluindo a Guiné.

Um dia uma de minhas irmãs ao telefone contou-me que tinha encontrado numa excursão de autocarro um indivíduo que ao saber o nome dela disse que me conhecia pois ele "tinha estado comigo na Guiné". "Chamava-se Abrantes", disse. Ela disse-me e eu lembrando-me bem de quem se tratava, comecei então a lembrar os outros que que lá estiveram comigo e de quem nunca mais tinha ouvido falar. E a lembrar com um misto de revolta, mas paradoxalmente também de nostalgia e saudades esses tempos.

Passados uns tempos ao chegar a casa encontrei um papel onde a minha esposa antes de sair tinha escrito : "Um indivíduo que diz ser teu amigo, Abrantes, telefonou: que te dissesse que o capitão Pires morreu”. Mas não dizia mais nada. Respirei fundo, mas foi um respirar de tristeza, sentindo-me culpado de nunca ter sequer tentado saber dele nem de mais ninguém. Agora, pensei eu, já é tarde demais para o reencontrar.

Não sabia de ninguém mais nem de que havia encontros de antigos camaradas; vim a saber mais tarde que os havia, que tentaram mas nunca me conseguiram contactar, talvez em resultado das minhas muitas mudanças de Pilatos para Herodes. Mas eu pouco a pouco comecei a interessar-me mais, procurando algum livro, jornal ou revista que falasse da Guiné; mas sem sucesso.

Cheguei a encontrar alguns cabo-verdianos, em New Jersey, mas não guineenses. Mas se tenho um defeito grande (, alguns dizem que é virtude,) é o de ser teimoso. Ano após ano eu vasculhava livrarias, bibliotecas e nada… Eu queria saber do que se passou depois que de lá saí. E um dia de férias em Lisboa, na véspera de voltar aos Estados Unidos, na feira do livro na estação da Portela, deparei com o primeiro livro do Beja Santos "Diário da Guiné: 1968-1968, Na Terra dos Soncó.” Foi como se me tivessem dado um murro do qual acordei estremunhado. E cedo eu estava à procura do Zagalo, e logo tomei conhecimento deste blogue e comecei uma nova vida contactando os meus colegas que tinham estado comigo na Guiné.

Lembro que, quando estava na Guiné, o comandante da minha companhia CCaç 1439, Capitão Amândio Manuel Pires, queria a toda a força que alguém escrevesse um “diário” da CCaç 1439. Parece que ninguém estava pelos ajustes, e cada um tentou livrar-se, empurrando o fardo para outro. No meu caso, quando ele me abordou eu disse-lhe da minha quase aversão a tudo o que era coisa de escritas. E sugeri que ele falasse com o Alferes Freitas, que era mais dotado e parecia não ter aversões a escrever. Mas parece que ninguém mesmo se deu a esse cuidado.

Há meses atrás lembrei-me de tentar fazer/escrever uma história desta Companhia, pequena e resumida que fosse. Cedo me apercebi da minha ilusão. Felizmente há algumas fontes escritas já, como são os casos do Beja Santos, Henrique Matos e outros, mas não o suficiente para um trabalho compreensivo e abrangente a que se possa chamar história. Vários contactos que tenho feito vieram-me confirmar isso, pois o tempo leva a que na maioria dos casos venham razões e desculpas como: “a minha memória já não me ajuda’; “já não me lembro bem’ e “não me recordo dos pormenores”.

Recebi, porém uma boa ajuda com um caderno (20 páginas) intitulado "Resumo descritivo dos factos e feitos mais importantes da Companhia de Caçadores 1439” que o alferes Freitas  [, natural do Funchal e a viver lá.] me mandou. A princípio pensei que tinha sido ele que o tinha escrito. Mas há pouco esclareceu-me que o autor não é ele,  mas sim é da autoria do Capitão Pires (que, a avaliar pelo texto, o deve ter ditado a alguém) e de que conseguiu dele uma cópia para si.

É sem dúvida um documento de valor, até porque pelo que sei (ou não sei!) é o único "documento oficial” abrangente sobre o assunto. Mas se eu não tivesse conhecido bem e estar certo da muita honestidade e idoneidade do Cap Pires (, o único defeito dele era não saber e não admitir perder no jogo de dados e de cartas; mas mesmo aí, salvo o perder o controle do seu temperamento, levantando-se repentinamente da mesa para nunca ter de admitir ter perdido, nunca o vi agir desonestamente), eu diria que era impossível este documento ter sido escrito por ele.

Acredito que documento deve ter sido escrito bem depois de ter voltado e daí alguns bem evidentes lapsos e lacunas. Mas como o próprio título diz e bem: ele é um “resumo”; e por vezes é tão resumido que não chega a mostrar a importância que alguns dos acontecimentos mencionados tiveram.

São vários os casos em que o relato de operações se resume a isto:

(...) "Um grupo de combate da CCaç 1439 participou na Op [...]" (um ou mais pelotões? a palavra “participou” parece indicar que haviam outros grupos: era um oficial da CCaç 1439 que comandava ou era um oficial de outro grupo que comandava essa operação? qual/quem era esse grupo e que efectivo?, operação essas que consistiu numa "acção ofensiva na mata":

(...) "As NT detectaram um acampamento IN o qual se encontrava abandonado. Foram destruídas as casas de mato e culturas. No regresso as NT foram emboscadas duas vezes " (; eram uns simples tiros ou flagelações só para chatear, ou eram “emboscadas” mesmo?).... "não tendo sofrido qualquer baixa."


Por outro lado - e ainda bem que o aviso de limitação é feito - , este documento diz respeito (apenas) aos factos e feitos "mais importantes”.

Na verdade houve casos de acontecimentos que nem estão nele mencionados, mas que pelas circunstâncias em que sucederam vieram a ser mais importantes do que muitos que aqui estão mencionados. E pelo que posso eu mesmo testemunhar e que confirmei em conversas com outros meus colegas que os mesmos acontecimentos viveram, alguns dos relatos feitos são claramente descritos duma maneira muito subjectiva, umas vezes beneficiando, outras diminuindo ou de alguma maneira alterando o seu verdadeiro valor.

De novo quero deixar bem claro que “ponho as mãos no fogo” pela idoneidade do Cap Pires; se foi ele mesmo que escreveu este documento sei bem que estes lapsos na descrição de alguns acontecimentos não foram de maneira nenhuma propositados, nem as descrições foram manipuladas consciente e propositadamente. Ou se foram manipulados, não foi pelo Capitão Pires, mas por outros que o manusearam a seguir, como parece ter sido o caso mais do que uma vez. 

Dito isto o que segue pode e deve ser considerado apenas um “contributo” para a história da CCaç 1439 e não como uma "história da Companhia CCAÇ 1439". Embora eu siga cronologicamente e me baseie neste relatório, copiando grandes partes, sem falhar qualquer dia que nele vem mencionado, este é um contributo e relatório muito pessoal em que, sempre e à medida que a minha memória me ajuda eu relato com toda a honestidade os factos como os vivi, sem querer aumentar ou diminuir nada nem ninguém. E não deixarei de mencionar os casos em que eu e o que fiz deixou muito a desejar. E faço-o porque uma enumeração e relato cronológico simples não chega. Cada ataque, cada mina, cada emboscada ou acidente têm a sua história própria que os distingue de todos dos outros. E é isso que vou tentar fazer; e, se me não é possível apresentar a descrição da realidade absoluta, vou relatar pelo menos o que sobre ela eu sei e o que vivi.


A maior parte das fotos foram tiradas por mim, mas há fotos cuja origem pode suceder não ser minha. Lembro, por exemplo, que depois do ataque a Missirá eu e o furriel Viegas,  do Pelotão de Caçadores Nativos 54, e que tem muitas fotos no blogue, estávamos por vezes juntos a fazer as mesmas fotos ao mesmo tempo. E quando estivemos juntos há anos atrás depois do nosso reencontro de quarenta e picos anos, manuseamos, trocamos e partilhamos memos e fotos.

E isso sucedeu com outros,  e mais do que uma vez. É possível que em resultado disso hajam confusões da sua origem ou autoria. Mas qualquer discrepância ou engano não será nunca resultado de má intenção da minha parte. Sempre tenho oferecido e consentido que todas as fotos da minha autoria sejam reproduzidas em qualquer altura, sem necessidade de me mencionarem sequer como o seu autor.

Reitero que este meu trabalho é um testemunho de âmbito muito limitado pois que, embora intencionado como um contributo para a historia da CCaç 1439, é em grande parte um relato muito pessoal e por isso mesmo também subjectivo e parcial, feito/escrito passados já mais de 50 anos. 

 Para uma melhor compreensão não posso deixar de deixar de ir ao princípio onde no meu caso tudo começou, pois não sendo isto uma autobiografia, sem dúvida que toda a minha experiência militar foi marcada e influenciada por estes antecedentes que foram o ingresso e logo a preparação para o serviço militar.

(Continua)
__________

Nota do editor:

(*) A CCaç 1439 tem mais de 7 de dezenas de referências no nosso blogue. O João Crisóstomo, por sua vez, entrou para a Tabanca Grande, em 26 de julho de 2010, e tem mais de 130 referências. É o nº 432:

Vd. poste de 26 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6786: Tabanca Grande (233): João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), e grande português da diáspora

segunda-feira, 8 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21984: Facebook...ando (61): Afectos com Letras: Esta ONGD portuguesa, a trabalhar na Guiné-Bissau, em prol das mulheres e crianças, merece o nosso apoio e apreço... E um justo destaque neste Dia Internacional da Mulher, celebrado ainda em plena pandemia de Covid-19.


 Guiné-Bissau > Região de Quínara > Tite > Bissássema >  6 de março de 2021 > O que serão, em 2030, quando ainda se celebrar o Dia Internacional da Mulher, estas crianças (míúdas e miúdos) que, felizmente, vão à escola ?!... Esperemos que até lá
 condição feminina melhore na Guiné, em toda a África, no resto do mundo e inclusive em Portugal e no resto da União Europeia... (LG)

Foto: cortesia da ONGD AFectos com Letras, Pombal. 


1. Da página do Facebook da Afectos Com Letras ONGD > 6 de março às 10:26 ·

Em Bissassema, Guiné-Bissau, a vida continua no seu ritmo da subsistência e do empoderamento das mulheres, mas agora com uma escola equipada pela Afectos com Letras com material didático e uma biblioteca adjacente que irá servir uma comunidade de mais de meia centena de crianças e jovens.

[Neste projeto contámos com o apoio do Grupo Sousa e da AIPES - Associação de Investigação e Promoção da Economia Social ]


2. Comentário do nosso editor LG:

Esta ONGD portuguesa, a trabalhar na Guiné-Bissau, em prol das mulheres e crianças, merece o nosso apoio e apreço... Merece as nossas palmas. E m justo destaque neste Dia Internacional da Mulher, celebrado ainda em plena pandemia de Covid-19.

E a maneira mais prática e feliz de manifestar o nosso apoio e o nosso apreço, como amtigos combatenets, é  doar 0,5% do nosso IRS de 2020  à Associação Afectos com Letras.

Pode ser pouco, uma migalha, mas muitas migalhas vãoo levar  mais esperança e educação às meninas, mais dignidade às mulheres e mais qualidade de vida às famílias, mais presente com futuro.

A ONGD, que tem sede em Pombal, já conseguiu  instalar duas máquinas descascadoras de arroz com o apoio recebido das consignações em  anos anteriores, mas novas máquinas poderão chegar às aldeias guineenses e mudar vidas das meninas e mulheres com uma simples cruz na vossa folha de IRS. Deixando de ficar "escravizadas" nas tarefas domésticas, como o descasque manual do arroz, as meninas podem frequentar a escola.  O Dia Internacional da Mulher tem de ser, da nossa parte, mais do que uma celebração simbólica.

O que esta ONGD nos pede um gesto muito simples mas concreto, camarada e/ou  amigo:

(i) Até 31 de março, basta  acederes ao Portal das Finanças e indicares a entidade à qual  pretendes consignar o IRS ou IVA, inserindo neste caso o NIF 509 301 878, que é o número fiscal da Afectos com Letras.
 
(ii) A partir de 1 de Abril, ao preencheres o quadro 11 do modelo 3, inseres o NIF da Afectos com Letras e assinalas com uma cruz no IVA ou IRS.

Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
 
É bem verdade que todos estes testemunhos coletivos vão ter que ser tomados em conta pelos futuros historiadores. Esta região do Xime que aqui se viveu em 1967 e inícios de 1968 se transformou radicalmente de um ano para o outro. Quando a CCaç 1550 partiu, extinguiu-se o destacamento da Ponta do Inglês, desapareceu Samba Silate, ao que se dizia a maior tabanca de todo o leste da Guiné, o PAIGC atacava com ferocidade as tabancas entre Amdalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, com o evoluir da guerra abandonou-se Moricanhe, para mim uma aberração tal medida, era um posto avançado de inegável importância para proteger tanto o Xitole como Bambadinca. E Galomaro, que os autores tratam por colónia de férias, passou a ser sede de Companhia, daqui partiu uma em fevereiro de 1969 para uma operação de retirada de Madina do Boé, teve pesadas vítimas.
 
Honra a quem escreveu este legado de memória, tão singelo e tão terno.

Um abraço do
Mário



CCAÇ 1550, todos presentes e lembrados, 50 anos depois

Beja Santos

A obra intitula-se "Memorial, O livro dos 172 autores", DG Edições, 2018. Quem coordenou foi José Marques Valente, mal soube do acontecimento telefonei-lhe e pedi-lhe o documento, é um memorial enternecedor, pelo registo onde primam testemunhos quase incógnitos, onde cada um depositou as suas imagens e as suas memórias. 

Partiram para a Guiné em 20 de abril de 1966, a 26 seguem em coluna-auto de Bissau até Farim, vão sem armas, passam pelo K3, atravessaram na jangada o Cacheu, em Farim organizaram-se para ir para Binta e Guidage. Há uma apresentação sumária do setor, recorda-se que o Corredor de Sambuiá estava encravado entre Binta e Bigene. 

Vão então para Binta e segue para Guidage um grupo de combate reforçado. Foram render a CCaç 675, a do Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, é história para nós conhecida, JERO escreveu a vida do primeiro ano da Companhia, é um documento histórico. É uma primeira fase de comissão que não deixou péssimas memórias: 

“Nos oito meses que permanecemos em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Apenas por três vezes foram disparadas granadas de morteiro e tiros de metralhadora para dentro do aquartelamento e tabanca”

A relação com as populações terá sido magnífica, havia escola a funcionar e tratamentos para guineenses e senegalenses. Fizeram patrulhas de reconhecimento e foram a Sambuiá. Nas proximidades desta área sujeita a controlo do PAIGC destruiu-se uma ponte pedonal, via de acesso às culturas de arroz. Foram sempre felizes a picar as estradas, nunca houve sinistros no contingente militar.

E um dia a Companhia muda de poiso, vai para o Xime, Ponta do Inglês, Taibatá/Demba Taco e Samba Silate. No Xime a CCaç 1550 era reforçada com o Pel Caç Nat 53 e milícias da tabanca, na Ponta do Inglês havia um grupo de combate reforçado, Taibatá/Demba Taco, milícias e população em autodefesa e em Samba Silate população em autodefesa, mais adiante um destacamento em Galomaro, uma secção e muitas espingardas Mauser. Esta Guiné e esta região, nos inícios de 1967, serão bem distintas daquela que irei conhecer a partir de agosto de 1968.

A CCaç 1550 viera render a CCav 678, nessa altura havia flagelações praticamente todos os dias na Ponta do Inglês e picava-se o itinerário entre Xime e Bambadinca com muitos cuidados, não só as minas mas as emboscadas num local conhecido por Ponta Coli, sobretudo. Deixara de se fazer a ligação por terra entre o Xime e a Ponta do Inglês, aquele itinerário foi um sorvedouro de vidas e de viaturas. Explica-se a constituição da população do Xime, a organização do aquartelamento, a construção de uma paliçada. A vivência na Ponta do Inglês é mais do que inóspita:

“Formado por uns abrigos, onde se comia e dormia, rodeados por arame farpado e postos de vigia, estavam ali cerca de 40 homens, armados com G3, Morteiro 60 e bazuca. Os abastecimentos e correio eram entregues pela Marinha, que passava regularmente no Xime. A água era recolhida, diariamente, num poço a uns 500 metros do arame farpado, com a ajuda da única viatura disponível. Diariamente, sob o mesmo ritual, picava-se o percurso do arame farpado ao poço e avançava-se com o Unimog e os bidões. Uma parte do pessoal ficava de arma aperrada, enquanto os outros com balde e corda puxavam a água, até encher os reservatórios. O poço onde se ia buscar água era comum às nossas tropas e às populações do outro lado da bolanha (controlada pelo IN), pelo que o teste antiveneno para verificar se a água estava envenenada era praticamente desnecessário”.

Fala-se da vida em Taibatá e de Samba Silate, na margem esquerda do Geba, local de cambança de grupos IN, e há referência de que do outro lado do rio estava a zona de Mato de Cão onde acima havia bastantes casas de mato do IN. E recorda-se as matas onde o IN se instalava: Galo Corubal, Bissari, Fiofioli, Ponta Luís Dias, Buruntoni e Poindom. Galomaro, ao tempo, era uma paz de alma, em pleno Cossé, zona de Futa-Fulas, encruzilhada comercial entre o Senegal e a Guiné Conacri.

O aquartelamento do Xime é passado a pente fino e as imagens que o livro publica foram-me imediatamente familiares, incluindo a capelinha, a messe de oficiais, as caravanas ali instaladas, até os arruamentos dentro da tabanca. Detalha-se o que cada um fazia, desde a carpintaria, aos eletricistas, à mecânica auto.

E segue-se o lado emocionante do memorial, as fotos destes 172 autores, os seus nomes, posto e alcunha. E lembra-se que 45 já tinham partido deste mundo. Temos os testemunhos das doenças, dos medos, faz-se o elogio dos bravos, como se constituíam pés-de-meia, como se comia mal e se procurava comer bem, são testemunhos genuínos como o de um 1.º Cabo que em maio de 1977 foi a Demba Taco que tinha sido atacada, saqueada e incendiada durante a noite:

“Ficou um rasto de destruição, com civis mortos e outros raptados. Quando lá chegámos, do pouco que ficou, tudo fumegava.

Depois de feito o levantamento da situação, foi escalada a 1.ª Secção composta por sete militares, para ali ficarem a manter a segurança e ordem na reconstrução da tabanca. Não tínhamos qualquer tipo de abrigo. Ali ficámos com alguns alimentos, numa temperatura superior a 40º até que chegou a hora de preparar a primeira refeição. Foi necessário escolher, entre os sete camaradas, quem tivesse aptidão para cozinhar.

Destacado o soldado A. F. que logo improvisou com duas pedras e uma fogueira os meios para preparar a nossa refeição de batatas cozidas e atum de conserva. Mas quando nos preparávamos para distribuir as batatas e o atum, deparámo-nos com imensas crianças, olhando famintas. Jamais poderei esquecer este cenário. De entre as crianças destaquei uma, de nome Umaru Baldé, de 12 anos, que nessa noite tinha perdido o pai e a mãe.

Criei um sentimento de amizade e ternura que quando acabei a missão, em Demba Taco, me custou a separação desta criança. Com o tempo e as circunstâncias, perdi-lhe o contacto, mas nunca esquecerei este miúdo que me marcou profundamente nos quase três meses que estive em Demba Taco, em que dia a dia as minhas refeições eram repartidas com ele”
.

Obra tocante na composição e pelo recurso ao anonimato, vejam as imagens do livro, leiam a folha solta sobre o Victor, feita pelo organizador do livro, o José Marques Valente, a quem já comuniquei que este belíssimo testemunho seria publicado num blogue onde teremos o orgulho em o acolher, bem como aos seus camaradas da CCaç 1550.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21959: Notas de leitura (1344): “Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)