domingo, 20 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22300: Tabanca Grande (518): João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, dez 1967/fev1971)... Fez o 1º COM, em Angola, Nova Lisboa. Vive em Torres Vedras. Senta-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 841.



João Rodrigues Lobo, ontem (1968) e hoje (2021)



Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > c. janeiro de 1971 > Imposição das medalhas comemorativas das campanhas da Guiné.


Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > c. dez 1968 / fev 1971 > O alferes miliciano de transportes rodoviários, comandente do PTE (Pelotão de Transportes Especiasis=, junto do novo jipe sul-africano,


Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 >1970 > Prestes a sair com a coluna de transporte de máquinas.

Fotos (e legendas): © João Rodrigues Lobo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Joaquim Costa / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de João Rodrigues Lobo, novo membro da Tabanca Grande com o nº 841

Data - sexta, 18/06, 14:07  

Assunto - BENG 447, Guiné

Boa tarde,

Então conforme solicitaste (*). aqui vai:

(i) Duas fotos em anexo, uma de 1968 e outra actual.

(ii) Breve resumo,  se é que interessa (Talvez nem tudo tenha interesse em ser publicado)

Sou o João José Lourenço Rodrigues Lobo. 
Natural de Óbidos, atualmente residente em Torres Vedras.

Estudei no ERO (Externato Ramalho Ortigão) nas Caldas da Rainha. Vivi em Angola. Como depois chumbei no exame de admissão ao  IST (Instituto Superior Técnico),  tive como prémio a chamada para o SMO (Serviço Militar Obrigatório).

Actualmente sou aposentado, depois de 30 anos como Chefe de Repartição dos SA (Serviços de Aprovisionamento) do CHTV (Centro Hospitalar de Torres Vedras).

Fui incorporado em 9 de outubro de 1967 na EAMA (Escola de Aplicação Militar de Angola - Nova Lisboa), 1º COM (Curso de Oficiais Milicianos), em Angola. Na altura residia em Luanda.

Como Cadete jurei bandeira em 23 de dezembro de 1967. Tirei a especialidade de Transportes Rodoviários no CICA - GAC 1, em Luanda.

Como Aspirante,  fui instrutor de condução auto no CICA. de Nova Lisboa (hoje Huambo) e depois colocado no Quartel General de Angola - 4ª Repartição, sendo comandante de MVL (Movimento de Viaturas Logísticas)  ao norte de Angola.

Inesperadamente, e a pretexto de uma mobilidade entre Províncias Ultramarinas (assim chamadas á data) fui mobilizado para a Guiné. Fui colocado como Alferes Miliciano a comandar o PTE (Pelotão de Transportes  Especiais)  do BENG 447,oonde cheguei em rendição individual em Dezembro de 1968 na véspera de Natal.

O Pelotão de Transportes Especiais (PTE) era constituído por: um alferes miliciano, dois sargentos do QP,  quatro furrieis milicianos e cerca de noventa condutores auto (quase uma companhia...)

Nas fotografias que anexo, veem-se parte dos nossos militares, pois muitos, guineenses, estavam dispensados do batalhão nesse dia, As fotografias de grupo foram tiradas quando as viaturas estavam quase todas no Batalhão para se prepararem e seguirem novamente para as obras.
 
O PTE  era responsável pelo transporte do pessoal de Engenharia,  das Máquinas de Engenharia, e de todos os materiais de construção para e nas obras de estradas, aquartelamentos e reordenamentos. 

O PTE também recepcionava todos os materiais militares que eram recebidos em navios fretados e carregava os materiais nas LDG e LDM da Marinha, no cais do Pijiquiti, para distribuição pelos aquartelamentos por estas servidos. 

O trabalho desenvolvido pelo nosso PTE foi, sem falsa modéstia, um exemplo de organização e dedicação de todos os seus elementos, que contribuiu para o meritório trabalho realizado por todos os militares, engenheiros e profissionais do BENG 447. Os condutores auto estavam sempre onde era preciso, sem eles NADA SE MOVIA !

E até levámos um louvor e a medalha comemorativa das campanhas da Guiné.

Dependendo diretamente do Comando,  prestei serviço com o Tenente Coronel Pires Pombo e Major Diogo da Silva e com o Tenente Coronel Lopes da Conceição e Major Santos Maia Era Comandante Militar do CTIG o Brigadeiro António de Spinola.

Acabei a Comissão em Janeiro de 1971 e passei à disponibilidade em 11 de fevereiro de 1971.

Vou reenviar umas fotos que não foram bem digitalizadas para, se interessar, substituir as que já estão no blog.

Vou enviar mais algumas novas para recordação.

E, vamos reavivar as memórias do BENG 447, Grande Batalhão que concretamente FEZ OBRA !

João Rodrigues Lobo

2. Resposta do editor LG:

João, obrigado. Como te prometi na sexta-feira passada, aqui vai a tua apresentação, comme il faut", ou seja,  "como deve ser e tu mereces".  Mas só o faço agora, porque tive este fim de semana tive um pequeno percalço de saúde (, espero que seja apenas uma vulgar virose...).

Vejo que, além da Guiné e da vizinhança, temos a afinidade da saúde... E também Angola (!)... Fui professor da ENSP/NOVA durante quase 4 décadas. Aposentei-me aos 70, em 2017, mas continuo ligado à saúde pública, nomeadamente através da "Portuguese Journal of Public Health". Tive alunos oriundos do Centro Hospitalar do Oeste, e tu deves ter lidado com administradores hospitalares e outros profissionais de saúde que passaram pela nossa Escola e tiveram aulas comigo. O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca é Grande.

Por outro lado, somos praticamente contemporâneos no CTIG: eu cheguei em finais de maio de 1969 e regressei a casa em meados de 1971. Não sei se alguma vez estiveste em Bambadinca, mas somos contemporâneos do reordenamento de Nhabijões (um dos maiores, se não o maior, então em construção: cerca de 300 moranças).

Temos naturalmente muito carinho e apreço pelo BENG 447. Temos 9 dezenas de referências no nosso blogue à tua unidade. Mas é a primeira vez, se não erro, que nos aparece aqui um representante do PTE...Desconhecia, de resto, a sua existência como não sabia o que tu agora acabas de nos contar sobre a tua experiência angolana... Tudo somado, Angola e Guiné, o teu tempo de serviço militar obrigatório utrapassa os 40 meses... É muito tempo das nossas vidas!

Já conheces a organização e o funcionamento do nosso blogue: tens aqui as 10 regras da política editorial do blogue... Está também à vontade para falar das tuas vivências em Angola, 

Formamos também uma tertúlia, e convivemos de vez em quando. A Tabanca Grande é a mãe de muitas outras tabancas... Espero que, finda a pandemia,  nos possamos conhecer pessoalmente e partilharmos mais memórias (e afectos). Tens já o meu nº de telemóvel.

Ficas, entretanto,  "sentado" no lugar nº 841, à sombra do nosso poilão (**).Publicarei a seguir um outro poste com as fotos que me mandaste, deviamente editadas e legendadas. Vou-te mandar também os contactos da malta do BENG que está registada no nosso blogue.

Que os bons irãs te protejam, 

Um alfabravo (ABraço) do  Luis Graça, demais editores, colaboradores e restantes membros da Tabanca Grande.

PS - Se quiseres que a gente te dê os parabéns pelo teu aniversário natalício, tens que nos autorizar e indicar a data de nascimento. O nosso coeditor Carlos Vinhal tem esse pelouro.

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(**) Último poste da série >  


29 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P22048: Tabanca Grande (517): Jean Soares, ex-1º cabo de radiolocalização, Batalhão de Reconhecimento de Transmissões (Trafaria, e Maquela do Zombo, 1972/75): enfermeiro psiquiátrico reformado, a viver em França, em Caen, Normandia, e que está a tentar a recuperar a nacionalidade portuguesa que perdeu... Nasceu em Pirada... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 839.

Guiné 61/74 - P22299: Blogpoesia (742): "Corre apressado o tempo..."; Curiosidade" e "A sirene", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


Corre apressado o tempo...

Corre apressado o tempo.
Seus passos são os dias e os anos.
Não vale a pena fugir ou desistir.
Umas vezes benfazejo outras mais agreste.
Há que lhe fazer frente com todas nossas forças.
Evitar os precipícios.
A doença e a melancolia espreitam a cada hora.
Festejar bem nossos sucessos estimulantes.
Um dia, sem cada um de nós ele vai continuar indiferente sua marcha.
Ninguém escapará.
Para todos, crentes ou não, virá depois a eternidade...


Berlim, 15 de Junho de 2021
16h57m
Jlmg


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Curiosidade

Curiosidade, o motor da inspiração.
Sem inspiração e as modulações das formas
Não chegamos à obra prima.
A vida é um caminhar constante para a perfeição.
Seus passos são condição sine qua non para o culminar pretendido.
Enjeitá-lo é por em causa o objectivo...


Berlim, 18 de Junho de 2021
21he 50m
Jlmg


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A sirene

Há coisas da infância que ficam gravadas para sempre na nossa memória.
Uma delas é a sirene.
Lá na vila havia o quartel dos bombeiros
Quando havia um incêndio ou um desastre, a sirene lançava um silvo lancinante a chamar cada bombeiro de suas casas.
Num instante chegavam todos.
O telefone localizava onde era o incidente.
De seguida era o silvo da ambulância rubra que apitava.
A criançada do lugar e outra vinha de longe para assistir.
Lembro o fogo que alastrou na casa de lavoira do Codeçal em Varziela.
Um criança estava dentro da casa a arder...
Foi aí que eu vi, era miúdo, o Sr. Pereira da Elisinha da Forca, pegar numa manta encharcada e avançar pelas chamas dentro.
Pouco depois, aparecia com a criança nos braços entre um mar de palmas da gente a aplaudi-lo.
Nunca mais esqueci....


Berlim, 29 de Junho de 2021
16h46m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22278: Blogpoesia (741): "As alegrias da vida"; A fantasia"; "Tradições" e "Sementeira", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P22298: Parabéns a você (1972): Cherno Baldé, Engenheiro e Gestor de Projectos, Amigo Grã-Tabanqueiro da Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22289: Parabéns a você (1971): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

sábado, 19 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22297: Os nossos seres, saberes e lazeres (456): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (3): De visita obrigatória: exposição Representações do Povo, Museu do Neo-Realismo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de um acontecimento cultural relevante, um conteúdo organizado num espaço onde os núcleos dialogam ora entre si ora exprimem a diferença das épocas e o peso das respetivas mentalidades. Mas todas elas representações do mesmo povo, o que foge do invasor francês e come a sopa em Arroios, então à entrada da cidade, o estereotipado Zé Povinho, umas vezes sujeito à canga, outras vezes veemente no seu manguito para quem dele usa e abusa; e atravessamos os campos da Reforma Agrária, o mundo piscatório de Matosinhos, a dolorosa aprendizagem dos jovens vidreiros da Marinha Grande até chegarmos à mulher transmontana, de vigorosa sabedoria. A exposição intitula-se Representações do Povo, a sua coordenadora é Raquel Henriques da Silva, nome indispensável da historiografia de arte, e diretora científica do Museu do Neo-Realismo. Está patente até abril do próximo ano, é excecional, recomenda-se que não se perca estas representações do povo, numa apresentação original e credoras de um catálogo de imperdível leitura.

Abraço do
Mário


De visita obrigatória: exposição Representações do Povo, Museu do Neo-Realismo

Mário Beja Santos

É irrefutável que o povo só passa a ser uma presença obrigatória na obra de arte depois do Século das Luzes, aufere os seus galões nos movimentos revolucionários, a industrialização, os movimentos estéticos realistas e as ideias socialistas deram razão de ser às representações do povo, designadamente na pintura, na fotografia, no desenho (na literatura seguirá os seus rumos, bem distintos). A exposição Representações do Povo, coordenada por Raquel Henriques da Silva, que permanecerá no Museu do Neorrealismo até abril de 2022, é um acontecimento cultural pelas abordagens apresentadas, o desafio à resposta O que é o povo?. Escolheram-se obras concretas, algumas de extraordinário valor, mas o aliciante da organização do espaço expositivo é o diálogo entre essas mesmas representações onde cabem uma gravura de Domingos António Sequeira, A Sopa dos Pobres em Arroios, um tributo ao macerado povo alentejano, um quadro a óleo de Jorge Pinheiro que nos leva ao assassinato de dois cooperantes alentejanos no ciclo final da Reforma Agrária, intervém o génio de Rafael Bordalo Pinheiro com um ícone que jamais saiu de cena, o Zé Povinho, com o seu manguito e a sua albarda; e vamos a Matosinhos, onde Augusto Gomes nos revela os pescadores da sua terra natal na sua impressionante qualidade, tema popular que se confronta com outro, o povo dos vidreiros da Marinha Grande, da autoria de Teresa Arriaga; e assim chegamos ao último núcleo, da autoria de Graça Morais que nos apresenta as mulheres de Vieiro, aldeia transmontana onde nasceu. Como escreve Raquel Henriques da Silva na introdução do magnífico catálogo que o visitante não deve dispensar: “O nosso objetivo foi dar continuidade à linha expositiva do Museu do Neo-Realismo que valoriza os contextos sociais, políticos e culturais da produção artística. Trata-se de um repto estimulante, pouco praticado nos museus de arte que, ao longo do século XX, foram afirmando uma expografia centrada na capacidade falante do objeto artístico e da sua autonomia em relação aos contextos produtivos. Há casos em que assim é, mas há muitos outros, como acontece com os autores aqui expostos, que na totalidade das suas obras, ou em parte delas, assumem, como motivação, a narrativa da História (…) O povo destes artistas é a representação dos fundamentos de uma nação (…) O que muitos artistas têm feito, em ciclos longos e muito diversificados, é representar essa humanidade menorizada, dando-lhes uma simbólica aura, pressentindo que ela é o fundamento de uma cultura regida por ritmos antiquíssimos, talvez mais afins da biologia do que de frágeis conceitos de História”. Assim nasceu o desafio de pôr o século XIX em franco diálogo com o século XX, o povo no palco da História. E o desafio do projeto triunfou, a exposição é magnífica, vamos visitá-la.
Sugere-se ao visitante que comece por contemplar no bar os azulejos de Querubim Lapa, datam da inauguração do museu, 2007, ali estão vibrantes, geométricos e buliçosos, melhor acicate ou tónico para entrar no museu duvida-se que pudesse haver.
Para quê estar a apregoar a ousadia de linhas de Alcino Soutinho? A disposição das formas garante a leveza, luminosidade, apetece subir e descer e descobrir ângulos recônditos, há para ali uma escadaria flutuante que faz medrar ilusões óticas pelas subtis combinações matéricas, e tal leveza – deverá ter sido esse o móbil do arquiteto – põe todo este interior museológico a conversar entre paredes e estimular o visitante a subir e descer, sem pressa nenhuma, pois as obras de arte que visita estão transfiguradas pela obra de arte que as encerra. E ponto final.
Tudo aconteceu em 27 de setembro de 1979, António Maria do Pomar Casquinha, 17 anos, e João Geraldo “Caravela”, 57 anos, foram mortos pela GNR, na Herdade do Vale do Nobre, perto de Montemor-O-Novo, durante uma devolução de terras ao seu proprietário. Houve quem fotografasse na hora própria, há obras de arte alusivas, mas este impressionante quadro de Jorge Pinheiro intitulado Ao Povo Alentejano catapulta-nos para os valores simbólicos, usados com uma simplicidade que atrai quem contempla a obra de arte: as papoilas e as espigas convocam o pão; quem está morto e quase transfigurado em todo aquele planejamento que se assemelha a um sudário evoca a indignidade de quem morreu e queria ganhar a vida com o suor do seu rosto, é como se uma força revolucionária dali emanasse para abalar a consciência.
Sopa dos Pobres em Arroios (Domingos Sequeira)

Bendito aquele que na organização das exposições se lembrou de aqui trazer uma das mais impressionantes gravuras que se fizeram em Portugal, a Sopa dos Pobres em Arroios, é preciso recorrer aos estudiosos para se saber que estamos em plena Praça do Chile, lá para cima se vai pela Almirante reis até ao Areeiro e em frente está um convento, hoje um escombro que parece destinados a um futuro hotel de luxo. O espetador é atraído por essa torrente humana constituída por milhares de refugiados da Beira e da Estremadura que fogem das tropas de Napoleão, neste caso comandadas pelo marechal André Masséna, estamos em 1810. Domingos Sequeira foi sublime no esquema cenográfico, desloca para primeiro plano o drama humanitário que se desenrola na calçada, deixa os militares a meio, obriga-nos a olhar uma encruzilhada de caminhos que têm o condão de alavancar a animação de tudo quanto se representa. Escreve-se no catálogo: “Em primeiro plano, várias figuras, sobretudo mulheres cobertas com xailes e lenços, comem a sopa em pé, junto de mulas sobrecarregadas com os volumes dos haveres que os camponeses conseguiram trazer de casa. Mas o destaque vai para o numeroso grupo de jovens mulheres que dão de comer ou acompanham bebés e crianças, sorvendo alguns a sopa das málagas. A ausência masculina só reforça a ideia de um país em guerra”. Que tal darmos um elucidativo texto sobre esta topografia, e o autor alude a algo que eventualmente nos possa escapar: Sequeira terá querido veicular uma mensagem que pretendia universal. O povo que Sequeira apresenta nesta gravura não representaria somente uma comunidade nacional e numa leitura atual se pode dizer que o episódio retratado pode ser visto como um exemplo de defesa dos direitos humanos.
O mais genial artista do século XIX fez aparecer o Zé Povinho em 1875. “Veste um traje rústico e remendado, usa barba à passa-piolho e apresenta um riso alvar, ingénuo. É de salientar a escolha do seu nome, composto por dois diminutivos, a partir de José, nome próprio comum em Portugal, e de Povo, identificado com a Nação, mas reduzido ao seu estrato mais baixo e de espetro alargado. Que não sendo ninguém em particular é toda a gente”. O visitante vai encontrar no precioso catálogo ou elementos necessários para conhecer a história desta figura e como ela mantém uma popularidade que nenhuma outra iconografia de representação do povo consegue superar, nos dias de hoje.
Alguém fala das representações destes vidreiros da Marinha Grande, saídos do punho de Teresa Arriaga como sudários do vidro. Esta artista comunista foi professora na Marinha Grande, na escola industrial. Vale a pena ler o documento, conhecer o trabalho do vidro e chegarmos à compreensão e ao testemunho destes jovens vidreiros. “Os aprendizes entravam na fábrica ainda meninos. As tarefas que desempenhavam variavam consoante a tipologia de produção, abrangendo o fechamento e abertura dos moldes, o transporte das peças para as arcas de tempero, galerias normalmente contíguas aos fornos, onde arrefeciam lentamente, a limpeza do espaço de trabalho, dos moldes e dos utensílios”. Chegam a ser pungentes os depoimentos que o catálogo recolhe e este quadro que aqui vemos tem a ver com a obragem. “O trabalho decorre num estrado que organiza o espaço pictórico em diagonal, estruturando a tela de grandes dimensões e disposta ao alto. Os cinco operários movimentam-se neste corredor estreito e enegrecido, exclusivamente iluminado pelas duas bocas de forno, pelas duas peras de vidro incandescente e pela peça que o oficial tem em acabamento. É uma composição centrada na operação que se desenrola e não nas personagens. Nenhuma delas foi individualizada. Teresa não reintroduziu na tela os retratos que tão intensamente desenhara sete anos antes”. E o visitante tem à sua disposição não só esse rol de desenhos como outros retratos.
Numa entrevista a Maria Antónia Palla disse Augusto Gomes: “Muitas vezes se afirma que sou um neorrealista. Eu diria que a minha pintura é populista. Na verdade, não pretendia fazer uma arte de luta. Pintava temas populares por gosto, porque me sinto próximo dessas figuras". O artista teve a sua vida sempre ligada a Matosinhos, o Litoral está sempre permanente nas suas obras de arte, convoca o mundo da pesca, recorde-se que Matosinhos foi durante a primeira metade do século XX um dos principais portos piscatórios portugueses e mundiais. É impressionante este quadro intitulado Família de Pescadores. “É uma pintura com gente triste, mas não é exatamente uma pintura sentimental, há nela uma combinação entre desânimo e solenidade”. Podemos situar este quadro nos finais dos anos 40, foi uma encomenda da Junta de Freguesia de Matosinhos, após um acontecimento trágico, um naufrágio que ocorreu em 2 de dezembro de 1947, em que morreram 152 pescadores e 4 traineiras. Augusto Gomes dizia-se atraído pela pintura clássica e há de facto um aspeto de sagrada família neste grupo e apresentado como uma estrutura do tipo piramidal: a representação da mãe e do filho, há ali uma evocação de uma Virgem com o Menino, não se pode ignorar uma certa influência da pintura italiana do século XV. Contempla-se, e fica-se esmagado pela força da representação.
Graça Morais representa mulheres transmontanas, sabemo-las que são camponesas com variadas lides, as domésticas e as da terra, a própria artista tece comentários como estes: “Têm o poder da maternidade, um poder fortíssimo. E os homens sabem disso, sabem que as mulheres têm sempre uma grande ligação com os filhos”. O que aqui vemos é algo que se prende ao processo de envelhecimento e da acumulação de saberes, elas aparecem aqui representadas como uma força motriz ancestral que trabalha, garantindo a vitalidade da terra e do ser humano, é obrigatório ler o que se escreve sobre estas Marias transmontanas, que Graça Morais imortalizou.
Convém não sair do edifício desenhado por Alcino Soutinho sem visitar a exposição dedicada a Júlio Pomar e à sua obra gráfica. Trata-se de uma coleção privada onde ganha realce a obra em gravura do grande artista, nas décadas de 1950 e 1960, veja-se o potencial revolucionário do almoço do trolha, da fase puramente neorrealista de Pomar, mas o visitante tem outros núcleos à espera, intitulados Tigres, Índios da Amazónia, Retratos Míticos, Animália, Mitologias, Figuras do Povo, Tauromaquias, Eróticas. Uma excelente oportunidade para conhecer esta obra gráfica de um dos mais significativos artistas portugueses da segunda metade do século XX que foi pioneiro do neorrealismo pictórico.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22276: Os nossos seres, saberes e lazeres (455): Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22296: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte IV: Augusto Valdez de Passos e Sousa (Elvas, 1886 - Angola, 1915), ten inf

 

Augusto Valdez de Passos e Sousa (1886 - 1915)


Nome Augusto Valdez de Passos e Sousa

Posto Tenente de Infantaria

Naturalidad:  Elvas

Data de nascimento: 12 de Dezembro de 1886

Incorporação: 1907 na Escola do Exército (nº 181 do Corpo de Alunos)

Unidade: Regimento de Infantaria n.º 17

Condecorações

TO da morte em combate:  Angola

Data de Embarque:  10 de Dezembro de 1914 | Data da morte 1 de Setembro de 1915

Sepultura: Môngua - Angola

Circunstâncias da morte:

No dia 18 de Agosto de 1915 o destacamento de Cuanhama foi atacado por cerca de 12000 guerreiros nativos que,  apesar de repelidos com baixas voltaram,  a atacar o quadrado português (#) no dia 19 de Agosto tendo sido novamente afastados. Neste combate, integrando a força de Infantaria 17, foi gravemente ferido vindo a falecer em 1 de Setembro de 1915.



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

(#) Disposição especial das tropas de infantaria, usado pelas NT nas campanhas de África,  que consistia em se ordenarem, formando quatro frentes para resistir aos ataques da cavalaria inimiga ou de ataques em massa do "gentio". Também era uma forma de acampar. (LG)

Fonte: "quadrado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/quadrado [consultado em 19-06-2021].

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Nota do editor:

Últimos postes da série > 

8 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22264: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte I: Apresentação | Artur Homem Ribeiro, cap inf (Canas de Senhorim, 1874 - Angola, 1914

9 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22265: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte II: cap inf Sebastião Luiz de Faria Machado Pinto Roby de Miranda Pereira (Braga, 1883 - Angola, 1915)

13 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22277: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte III: alf cav Álvaro Damião Dias (Lisboa, 1887 - Angola, 1915)

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22295: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (124): O "periquito" Henrique Matos, 1º cmdt do Pel Caç Nat 52, que eu conheci no Enxalé em 1966 (João Crisóstomo, Nova Iorque)


Foto 1 > Guiné > Zona Leste > Enxalé > 1966 > O meu Baptismo no Enxalé: (i) Ali sentado no meio, de camuflado ainda novo, pelo aspecto já devia estar bem tratado, com alguns elementos da CCAÇ 1439 (Enxalé, 1965/67) que me deixaram gratas recordações, (ii) a saber da esquerda para a direita: furriéis milicianos Passarinho, Lopes e o nosso Futebolista, infelizmente já falecido. 

A seguir enchendo a caneca, (iii)  está um madeirense e quem domina garrafa é o alf mil Sousa;  ao lado está  (iv) o fur mil Teixeira (actual Presidente da Junta de Freguesia da Sé, em Faro) e ainda a comer está um 2º Sargento que não me lembro o nome. 

Os restantes são (v)  militares madeirenses, da CCAÇ 1439.



Foto 2 > Primeira lição no Geba, eu, periquito, com os velhinhos da CCAÇ 1439 no Sintex, que até tinha um pequeno motor fora de borda e base para metralhadora



Foto 3 > Batelões a descer o Rio Geba. Como curiosidade, o último chamava-se Lisboa. 


Fotos (e legendas): © Henrique Matos (2007). Todos os direitos [Edição : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1. Mensagem de João Crisóstomo (ex-alf mil, CCAÇ 1439, Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)

Date: terça, 15/06/2021 à(s) 10:11
Subject: fotos...
 
Caro Henrique Matos,

São  03,48 AM. Não consigo dormir, o que me sucede muitas vezes. Coisas da idade porque vontade não me falta. E até  faço bem esforços nesse sentido, bem bizarros por vezes, por ter ouvido que isto e aquilo ajuda a vir o sono. Conselhos  nesse sentido não me faltam, pois como sabes a maior profissão   no mundo é a de médicos: todos e cada um de nós sabemos sempre qual a  mezinha a recomendar para os males dos outros, poções mágicas, exercícios variados como seja o de respirar desta maneira e daquela,  contar  de um a cem e repetir em línguas "estranhas"… etc etc  

Reccuso-me  abusar de  comprimidos  que podem ajudar uma vez mas são um perigo, como sabes.  O meu escape frequente é o nosso bom blogue, com grande incidência  nos assuntos e momentos que de alguma maneira nos dizem respeito  a nós  mesmos e aos nossos amigos, tenham sido  estes momentos vividos  na Guiné ou depois em Portugal, especialmente depois de ter conhecido e  entrado no nosso blogue Luis Graca e camaradas da Guiné.

Hoje decidi pesquisar dois nomes : "Luís Zagalo" e logo a seguir "Henrique Matos". 

Como sempre sucede  segue-se logo uma enxurrada  de emoções, saltitando de  um  poste  a outro. E por vezes aparece o desconhecido ou inesperado, como foi o caso de hoje ao deparar num poste com fotos do "granadeiro" da CCaç 1439 que ainda não tinha visto. 

E noutro poste (P2191)  (*)  uma foto muito boa que gostava muito de ter comigo. Podes fazer o favor de ma enviares por email? Tentei "pescá-la" e transportá-la para a Galeria  de fotos no meu computador, mas, como não percebo nada de coisas digitais,  estou farto de dar voltas e não consigo.

Sei que as coisas começam a melhorar em Portugal também; e começo a sonhar numa possibilidade de ir aí ainda este ano. Mas, porque  "gato escaldado de água fria tem medo",  vou conservando as minhas barbas molhadas , que na nossa idade todas as  precauções são poucas e esta história de "variantes" é razão para poucas aventuras. E ir a Portugal sem poder encontrar-me com os meus amigos (num possível encontro  em que as pessoas  tenham ainda medo de aparecer) está fora de questão. 

Por aqui, salvo uns ocasionais telefonemas , não tenho tido  contactos com "camaradas da Guiné", ou de outras paragens, desde que a pandemia começou. E  pelo que me têm feito compreender ainda é cedo para pensar em nos juntarmos pessoalmente, embora essa ideia já há muito   ande a rondar a porta. Demos tempo ao tempo.

Bom, vou pôr o computador de lado e  ver se consigo dormir algo, pouco que seja.
 Um abraço
joao


2. Comentário do editor:

João: Tempos duros estes, tu não dormes, e eu levanto-me de três em três horas... Temos que aprender a gerir as nossas mazelas da idade... Também muito folgaria em ver-te tão brevemente quanto possível pelas nossas Tabancas... Mas não me parece provável que ainda possa ser este ano,,,

Quanto às fotos que pedes ao "periquito" do Henrique Matos, que foi o primeiro  comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68), eu mesmo tas vou enviar, por email, para o teu álbum de recordações. Para já, volto a republicá-las aqui, com melhor qualidade.

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(...) Caros tertulianos: Aqui vai um pequeno episódio a que chamei Baptismo no Enxalé (...). Saídos de Bolama no final de Agosto de 66 (...) , subimos o Geba numa LDM e depois de deixar os nossos companheiros do Pel Caç Nat 53 no Xime, chegamos a um lamaçal que era o local onde se desembarcava para o Enxalé e onde já nos esperava pessoal e viaturas da CCAÇ 1439 (madeirenses). 

O percurso relativamente curto foi picado e serviu para nos dar as primeiras imagens e contar algumas histórias ( pintadas de negro), sobressaindo um ataque que tinham sofrido recentemente sem grandes consequências. 

Com o capitão de férias, comandava a companhia o alf mil Freitas. A tarde ainda ia a meio e como tinhamos apanhado água durante a viagem, a primeira operação foi reunir o pessoal e proceder à limpeza do armamento. Estavamos ali sentados no chão com as G3 que nos tinham sido distribuídas em Bolama, novinhas em folha,  desmontadas, quando desata uma fogachada dos diabos e nós, apanhados como se costuma dizer com "as calças na mão", a correr como moscas tontas à procura dos abrigos. 

Assim como começou de repente, parou e era ver agora o pessoal velhinho a rir com este grande ronco. Afinal, tinham sido apenas umas rajadas já combinadas com o pessoal das guaritas, mas para nós, periquitos depenados, o som parecia amplificado e tivemos que aguentar com um risinho muito amarelo. 

Como é bom de ver, a festa só acabou no bar com o pessoal devidamente regado. Anexo uma foto do baptismo e outras do Enxalé. 

Grande abraço, Henrique Matos (...)


(**) Último poste da série > 9 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21876: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (121): Fui descobrir que o Hospital de Torres Vedras fica na Rua Aurélio Ricardo Belo, médico militar e arqueólogo [Fundão, 1877- Lisboa, 1961] (José Manuel Samouco, ex-fur mil, CCAÇ 2381, Os Maiorais, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)

Guiné 61/74 - P22294: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Paulo Guilherme andava derribado, insone, anormalmente irritável, deu manifestos sinais de agressividade, o médico estava atento, encontrou uma solução, mandou-o com guia de marcha para Bissau, a pretexto de umas consultas, um outro médico e seu amigo, David Payne, meteu-o lá em casa e deu-lhe umas mezinhas consistentes para repor o bom humor e regressar ao sono satisfatório. Foi de avião algemado a um prisioneiro. Ou perdeu a chave das algemas ou partiu sem chave, o sargento que os recebeu no aeroporto levou-os emparelhados e recorreu a uma gazua, quem via a cena deve tê-la achado um tanto desconcertante. Dormiu que se fartou, tinha autorização para sair de casa a meio da tarde, foi um memorável sistema de cama e mesa, medicamentos e roupa lavada, tratamento mais económico não podia haver. É Annette quem conta a história, chega a Bambadinca, todo pimpão, prontamente o major de operações o convoca, amanhã de manhã parto para a operação Topázio Valioso, se alguém duvida que qualquer cenário de guerra é um mistério por decifrar ou um oceano de surpresas, nestas histórias tem bom enredo para desencantar.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (57): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon trésor, mil anos que eu vivesse jamais esqueceria o orgulho com que te ouvi dissertar sobre a presença portuguesa na Bélgica, posso imaginar o trabalho que te deve ter dado a organizar aquelas largas dezenas de slides em que descreveste o relacionamento efetivo desde a Idade Média entre o reino de Portugal e a Borgonha e a Flandres até chegares à independência da Bélgica, e apreciei muito a forma suave como abordaste as relações entre os dois países no período das independências africanas e como as relações luso-belgas se têm vindo a estreitar desde a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Gostei muito de ver o Espaço Senghor altamente composto, tiveste uma boa parte da comunidade portuguesa bem representada, e participaram muitas organizações que apelam ao mais estreito relacionamento entre os povos europeus. Um dado curioso foi ter visto e até ter conversado com alguns desses participantes que eu conheço da minha vida profissional, caso de gente ligada às cooperativas de consumo, às organizações de saúde, às associações de consumidores, de famílias e sindicatos, não é raro encontrá-los nas reuniões das instituições europeias. Um dado curioso é que tinha estado na véspera com Emílio Bottignini e Paolo Adurno do Comité Socioeconómico Europeu, fiz interpretação do italiano para neerlandês, e encontrei-os no Espaço Senghor, deve ser gente que te aprecia bastante.

Começo por esta exultação, e não sei como registo a esconder o meu pesar de teres estado tão pouco tempo comigo, é egoísmo meu, bem sei, não sei como arranjas tempo para tanta diversificação de tarefas, sabia de antemão que vinhas por muito pouco tempo, tens muita coisa a fazer em Lisboa nos próximos dias, sossega-me o coração saber que depois vêm as férias, mas não quero disfarçar como custa muito, depois de receber tão intenso afeto teu, levar-te para o aeroporto, ainda por cima fui logo arrumar o carro no parque de estacionamento, duas horas depois de tu partires viajei para Dublin, era uma reunião internacional sobre as condições de trabalho. Como te disse, falando-te dos meus filhos, Noémie tem trabalho seguro, é comprovadamente competente no que faz no chamado planeamento urbano, Luc, o seu companheiro, trabalha numa empresa de créditos, vivem com remunerações curtas, lançaram-se na compra da casa em Woluwe-Saint-Pierre, claro que eu ajudo, não hesito em partilhar o que tenho com estes dois filhos, mas há uma certa ansiedade quanto ao modo de viver de Jules, ele é pouco previdente, se bem que generoso na defesa da causa dos imigrantes, custa-me ir lá a casa e ver que a sua companheira, Isabelle, está muito pouco interessada em procurar empregos estáveis, o que não deixa de ser intrigante para quem como ela tirou um curso de secretariado. Não quero intervir, mas não estar regularmente a desembolsar para não ver o meu filho e a sua companheira a passarem extremas dificuldades. Tu não me escondes que tens problemas idênticos com um dos teus filhos, sei perfeitamente como os ajudas. Pergunto-me se tu não queres fazer umas férias económicas, sonhas em conhecer com alguma profundidade a maior parte das localidades à volta de Bruxelas, deixaste cá em casa o Guia Michelin com muitas anotações desses lugares que gostavas de visitar, aqui fica a minha sugestão fazermos passeios diários e permanecermos na Rua do Eclipse. Dá-me a tua opinião.

Volto agora à Guiné e ao meu dossiê, cada vez mais túrgido. Estamos em janeiro de 1970, andas com os nervos em franja, o médico insiste que faças um repouso, seria bom que permanecesses aí uma semana em Bissau a tomar uma medicação que te restituísse um bom sono e a alegria de viver, assim que ele ouviu dizer que o teu pelotão passaria uma semana na segurança da ponte de Undunduma e a fazer patrulhamentos e vigilância dos Nhabijões, sugeriu ao comandante que tu seguias com uma guia de marcha para várias consultas médicas, ele aprovou, conversou-se com o David Payne e ele aceitou de bom grado que tu fosses para Bissau dormir sossegadamente graças ao Vesperax e outra batelada de comprimidos. Tenho aqui um apontamento teu deste período, dizes que chegaste a dormir 15 horas por dia, praticamente não davas trabalho a ninguém, saías a meio da tarde para dar um passeio e à procura de um ou outro livro, voltaste a jantar com o médico oftalmologista, de nome Botelho de Melo, passado oito dias acabaram as insónias, voltou o bom humor, pediste para regressar, pedido deferido. Houve uma nuvem muito escura no horizonte, alguém te informou que o segundo comandante do batalhão, pessoa que tu muito apreciavas, escreveste major Ângelo da Cunha Ribeiro, sofrera um horrível desastre na rampa de Bambadinca, vinha num jipe, seguia à frente um camião que recuou inesperadamente, dispararam da caixa as rachas de cibe que voaram como setas para o interior do jipe, que desceu a rampa aos trambolhões, o condutor teve oportunidade de fugir, o mesmo não sucedeu com o major que foi retirado dos ferros retorcidos com múltiplas fraturas, contusões graves e hemorragias. Tu irás visitá-lo na véspera do regresso a Bambadinca, jazia engessado e enfaixado, não perdera uma pitada de humor e contava algumas pilhérias sobre o que via no hospital.

Cher Paulo, desatei a rir com a folha que me mandaste sobre a tua partida para Bissau. Tu escreveste: “No início do ano, numa operação no Xitole, de nome A Navalha Polida, foi feito um prisioneiro em Satecuta, e trazido para Bissau. Quando me disseram que podia aproveitar a boleia de uma avioneta que vinha buscar este prisioneiro, partimos os dois algemados, ele para ser interrogado, eu para fazer tratamento às minhas insónias. Havia um transporte à espera do prisioneiro em Bissalanca, começo a afligir-me porque não encontro a chave das algemas, o sargento que me aguarda e acompanhado por outros militares armados diz para eu não me preocupar, seguiremos algemados, alguém há de desenrascar a situação, há gazuas para tudo, depois levam-me até ao hospital, tenho que restituir as algemas em Bambadinca. Felizmente que tudo correu bem, conversei amenamente durante a viagem com o prisioneiro, não me passou pela cabeça dar-lhe qualquer sugestão que o estava a interrogar, quando ele me disse que era da etnia Futa-Fula, contei-lhe o que tinha lido sobre o Futa-Djalon e as grandes batalhas em que os Fulas tinham estado envolvidos no século XIX com os Mandingas e com os Beafadas. Quando nos desalgemaram, até parece que nos despedimos como bons amigos”.

Estou agora a juntar os papéis do teu regresso, tu dás muitos pormenores de pessoas que encontraste com quem conversaste, dos livros comprados no Centro Cultural da Guiné Portuguesa, da satisfação que tiveste quando chegaste a Bambadinca, estava um céu límpido e um dia quente e as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio, conheceste o novo comandante do pelotão Daimler, convocaste os teus homens para anunciar a chegada e é nisto que o impedido do comandante, de nome Bala, que tu dizes ser uma figura inesquecível pelo seu sorriso aberto mostrando muitos dentes de ouro, te anunciou que o major das operações te chamava com urgência. Entraste no gabinete, houve uma troca rápida de cumprimentos e ele anunciou-te: “Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Burontoni, é a Operação Topázio Valioso”. Fiquei estarrecida, cher Paulo, como é possível uma pessoa vir de um tratamento para melhorar o sistema nervoso do sono e imediatamente ter um cenário de guerra? Fico-me por aqui. Escreve-me muito, dá-me notícias, telefona-me, bem logo que possas, a tua charmante Annette, como tu me chamas, não sabes viver sem a tua presença, os teus afagos, o teu amor verdadeiro. Bisous mil, infinitamente, Annette.

(continua)

Centre Culturel d'Etterbeek, Espace Senghor
Cher Paulo, fiquei agora a conhecer os teus militares com que irias para a Guiné caso não tivesses sido classificado como “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Contaste-me que ajudaste a promover um encontro dessa unidade militar, a CCAÇ 2402, em Figueiró dos Vinhos, foi para ti emocionante, mais de 30 anos depois, rever gente com quem já tinhas estabelecido uma relação tão afetuosa. Ocorre-me um truísmo: são coisas da vida.
Muito obrigado por este bilhete-postal, sei que Les Halles de St. Géry são do teu pleno agrado, e eu acompanho-te. Lembras-te, mon amoureux, de termos visto aí uma exposição da arquitetura de Bruxelas nos anos 1950? Sinto-me sempre muito feliz quando estou ao teu lado e poder partilhar a devoção que tu sentes por esta cidade que tu tratas como tua.
Que surpresa! Até fiquei na dúvida de quem me olha nesta fotografia, encontrei parecenças evidentes, sei agora que é uma fotografia do teu pai, a trabalhar no seu laboratório fotográfico. Não te esqueças de me mandar imagens de outros familiares, tenho uma grande curiosidade sobretudo sobre os teus ancestrais, falaste-me na tua mãe em Angola, quando tiveres tempo fala-me dela, já percebi que ela teve um papel determinante na tua vida.
Eras então assim dez anos antes de eu te conhecer. E contaste-me que estavas em pleno trabalho “europeu”, era a presidência portuguesa de 1992, coubera-te estar na organização da Conferência Europeia do Acesso dos Consumidores à Justiça, a maior satisfação, disseste-me tu, foi ter conseguido levar a custo zero ao Teatro Nacional de São Carlos para ver a ópera Così fan tutte de Mozart, os convidados estrangeiros, récita extraordinária, orquestra conduzida por John Eliot Gardiner.
Reconheci-te perfeitamente, é um dos teus hábitos de conversares com as pessoas e pores as mãos como se tivesses em oração, gesto a confirmar a palavra. Registei o que deixaste escrito no verso da imagem: Madrid, 1987, Congresso Mundial dos Consumidores, conversa com a chefe da delegação cubana, dás-lhe conta do quadro legislativo existente em Portugal para a proteção dos consumidores.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22273: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (56): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22293: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte X: Igreja de Santa Sofia, Constantinopla, Bizâncio / Mesquita Azul, Istambul,Turquia, 2012





Igreja de Santa Sofia / Mesquita Azul, Istambul, Turquia

Texto e fotos recebidos em 15/6/2021



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros.

É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.



Igreja de Santa Sofia, Constantinopla ou Bizâncio, ou Istambul, Turquia, 2012


De um lado, uma flamejante Mesquita Azul, do outro uma enfeitiçada igreja de Santa Sofia. Quase no meio, o espaço-memória do hipódromo romano, lugar, outrora, de elevadas cavalarias, execuções primárias, mil tragédias e farsas no teatro do mundo. Por perto, a Cisterna mergulhada na terra, há quinze séculos dando de beber às gentes de Bizâncio, Istambul. Lá em baixo, o azul do mar.

Santa Sofia me entristece. No tempo do imperador Justiniano, em 537, era o maior templo cristão jamais construído, se não tocava as estrelas, pelo menos abraçava o céu.

Na cidade, ao longo dos séculos, tantos guerreiros, tantos conluios, tanto malquerer, tantos exércitos…Trinta quilómetros de colossais muralhas circundavam Constantinopla, Istambul. A brutalidade ignóbil das lutas pelo poder. Assassinavam-se, envenenavam-se, cegavam-se imperadores, decapitava-se gente honesta. As naves da igreja de Santa Sofia inundadas de lágrimas. No entanto, luxo e arte também floresciam. Candelabros gigantes iluminando a escuridão, pilares de mármore, painéis coloridos, mosaicos enormes, os retratos de santos, de Jesus Cristo e de Maria, a vastidão dos espaços, o dourado do tempo. Houve igualmente muitas primaveras de concórdia e harmonia, e pessoas felizes em vidas tão breves.

1453, os turcos tomaram Constantinopla, vieram os sultões muçulmanos, inventaram Istambul, o império otomano tomou forma. Expulsaram e mataram cristãos, transformaram Santa Sofia numa imensa mesquita.

Hoje, entro na espantosa Hagia Santa Sofia, mesquita e igreja, a da Divina Sabedoria. Que Alá seja grande no seu trono invisível, que o humilde Jesus, todo-poderoso, nas pinturas e mosaicos do século XI, meio escondidos pelo veredicto temeroso do Islão, continue o seu caminho, por dentro, por fora de Santa Sofia, para além dos séculos, rumo ao infinito.

António Graça de Abreu, em Istambul, 2012

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Guiné 61/74 - P22292: Consultório militar do José Martins (68): “Companhias de Caçadores Especiais” - Unidades de Infantaria criadas em 1959, que iriam ter como missão principal, a defesa das Províncias Ultramarinas - Parte II


Segunda parte do trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blogue no dia 14 de Junho de 2021, dedicado às antigas Companhias de Caçadores Especiais, as primeiras Unidades militares a serem enviadas para a Guerra do Ultramar no início dos anos sessenta.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22288: Consultório militar do José Martins (67): “Companhias de Caçadores Especiais” - Unidades de Infantaria criadas em 1959, que iriam ter como missão principal, a defesa das Províncias Ultramarinas - Parte I